Religiosidade do povo brasileiro
José Lisboa Moreira de Oliveira1
Na última semana do mês de agosto de 2011 foram publicados os dados
da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Tais dados trazem algumas informações interessantes
sobre a religiosidade do povo brasileiro.
O primeiro aspecto da pesquisa que chama a atenção é o aumento das
pessoas que não mantêm vínculos com a sua crença. Declaram-se
pertencentes a uma denominação religiosa, mas reconhecem que não são
praticantes. Entre os católicos isso já era bem visível. A novidade está por
conta dos evangélicos, onde os não praticantes passaram de 0,7% para 2,9%.
Tal situação revela que as pessoas, cada vez mais, constroem sua
religiosidade sem se preocupar com o que dizem as suas instituições
religiosas. Vale a interpretação pessoal e não a orientação das lideranças e
das igrejas. Para as instituições religiosas isso representa um grande desafio,
uma vez que tal fenômeno enfraquece o poder de controle sobre as pessoas e
de transmissão das tradições religiosas. Pode ser o início do fim de muitas
igrejas e religiões, pelo menos em determinadas partes do mundo.
Embora não seja totalmente uma novidade, uma vez que o fenômeno já
vem de algum tempo, um segundo elemento bem significativo é o aumento do
trânsito religioso. Trata-se da circulação de fiéis por diferentes denominações
religiosas. As pesquisas apontam que pelo menos 53% dos brasileiros e das
brasileiras já circularam por mais de uma denominação religiosa. A mobilidade
entre os evangélicos chega a quase 40% dos adeptos de igrejas pentecostais e
neopentecostais,
Para explicar esse fenômeno, Libanio, estudioso da questão, usa a
metáfora do ônibus circular: tem sempre gente entrando e saindo. Isso revela a
incapacidade cada vez maior de atrair e de segurar os fiéis, por parte das
instituições e lideranças religiosas.
Fica bem evidente que a religiosidade se tornou uma experimentação.
As pessoas não se fixam mais no institucionalizado, mas exercitam o poder de
escolha, como fazem para tantas outras questões. Há o afrouxamento dos
vínculos e dos compromissos. Esse dado revela a impotência das instituições.
Elas não conseguem oferecer algo mais consistente, capaz de levar o fiel a
aderir aos seus credos de modo permanente ou definitivo.
É claro que tal fenômeno tem a ver com a pós-modernidade, período em
que tudo o que é sólido “se desmancha no ar”. Mas revela também uma
profunda crise interna das instituições religiosas. Elas não exercem mais poder
de atração sobre os fiéis que nelas estão ou chegam. Mostra como seus
processos pedagógicos e metodológicos – se é que eles realmente existem –
não mais funcionam para os tempos atuais. Precisam encontrar alternativas.
Mas parece-me que isso continua muito difícil, uma vez que tais instituições,
diante de fenômenos como esses que a pesquisa menciona, ao invés de
1
José Lisboa Moreira de Oliveira, é filósofo, teólogo, professor universitário e escritor.
Publicou pela Editora Ser, Brasília, (2011) o livro Saindo do recinto sagrado: mística para cristãs
e cristãos inconformados.
buscarem outros caminhos, se fecham nos casulos do fundamentalismo e do
conservadorismo. Elas continuam rígidas, fechadas, intransigentes e
insensíveis aos verdadeiros problemas das pessoas que pedem mais
flexibilidade, compreensão, misericórdia, perdão e ternura.
Um terceiro dado revelado pela pesquisa mostra que são as mulheres a
mudarem de religião com mais frequência. E fazem isso mais por razões
altruístas do que por motivos pessoais. As razões vão desde a recuperação de
um casamento até a preocupação com um filho ou um parente doente. Já os
homens mudam de religião na tentativa de resolver questões pessoais.
Também aqui aparece a crise das instituições. Fazem muito barulho na mídia e
nos templos, mas na prática não acompanham e nem seguem de perto os seus
fiéis. Há rebanhões, encontros de massas, concentrações, acampamentos,
mas as pessoas continuam se sentindo sozinhas, abandonadas. Por isso vivem
mudando de religião, de igreja, na tentativa desesperada de encontrar alguém
que as ajude concretamente.
A atual política das igrejas é de arrebanhar multidões e não de
solidariedade, de escuta e de oferecer apoio real às pessoas. Essas continuam
se sentindo sozinhas e sem ninguém. Os templos religiosos se tornaram
supermercados da fé, onde se vendem “kits de salvação” a preços
diferenciados, segundo o poder aquisitivo de seus fiéis. As igrejas se tornaram
agências de prestação de serviços religiosos. O marketing e a propaganda
atraem os fiéis para que comprem os kits. Mas, ao experimentarem os
produtos, os fiéis descobrem que eles não passam de propaganda enganosa,
uma vez que a vida não muda num passe de mágica, com o consumo de um
produto religioso. Por isso vão à busca de outros kits, na esperança de um dia
encontrar algum “elixir milagreiro” que resolva todos os seus problemas.
Há mais um dado que me chamou muito a atenção: o crescimento no
Brasil da religião mulçumana. Pesquisas revelam que o número de convertidos
na comunidade mulçumana do Rio de Janeiro pulou de 15% em 1997 para
85% em 2009. Segundo os dados, a conversão de brasileiros para o islã
cresceu em 25%. Em Salvador, 70% da comunidade mulçumana são de
pessoas convertidas. O crescimento se dá não obstante toda a propaganda
anti-islâmica desenvolvida pelos países ocidentais, liderados pelos Estados
Unidos. A pesquisa está em consonância com os dados mundiais. Segundo
algumas estimativas, em 2050, os mulçumanos serão a maior religião da
Europa em número de fiéis.
O que faz uma religião tão perseguida, e tida como perigosa para a
liberdade e a democracia, crescer de modo tão acelerado? Alguns
pesquisadores acreditam que as pessoas estão se dando conta de que o islã
não é esse “bicho-papão” pintado pela propaganda ocidental. Sua religiosidade
permite maior compreensão de certos problemas, inclusive mundiais, que
outras formas de religiosidade não conseguem oferecer. Ele se apresenta
como uma religião menos intransigente do que aquilo que se pinta na
propaganda midiática. Por outro lado, oferece mais solidez e motivações do
que as religiões tradicionais do país.
Portanto, o perfil da religiosidade brasileira aponta para uma autonomia
religiosa dos fiéis. Estamos cada vez mais deixando de lado a fé
institucionalizada para abraçar uma religiosidade mutante, híbrida e pouco
ortodoxa. Os contornos religiosos são escritos a lápis para serem apagados e
refeitos sempre que for preciso. Quem sabe seja a oportunidade para que as
instituições religiosas, acostumadas a tratar seus fiéis como simples
“cordeirinhos”, aproveitem para fazer revisão de suas práticas, começando a
enxergar o óbvio: hoje as pessoas querem ser autônomas e livres. Não mais
aceitam ser amarradas pelo “cabresto” das lideranças religiosas.
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Religiosidade do povo brasileiro José Lisboa