ESTUDOS E PESQUISAS Nº 566
Viva o povo brasileiro
Elio Gaspari *
Fórum Nacional (Sessão Especial)
Visões do Desenvolvimento Brasileiro
E nova Revolução Industrial – a maior desde 1790
Rio de Janeiro, 10 e 11 de setembro de 2014
* Jornalista.
Versão Preliminar – Texto sujeito à revisões pelo(s) autor(es).
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Viva o povo brasileiro
Elio Gaspari
Viva o povo brasileiro
O impulso que levou o ministro João Paulo dos Reis Veloso a pedir este texto
veio-lhe lendo um artigo onde havia uma referência a uma pesquisa que associara
ao efeito preventivo do programa Saúde da Família a queda de 21% na
mortalidade de brasileiros causada por doenças cardíacas. O trabalho, publicado
no British Medical Journal, mencionava que o Saúde da Família foi criado em 1994
e tornou-se o maior do mundo no gênero. A pesquisa juntara estatísticas de 1.622
municípios entre 2000 e 2009. Portanto, dois anos de governo do PSDB e sete
petistas.
No estado atual dos debates em torno da saúde pública, a simplificação leva
uns a acusarem os outros de desvios de verbas públicas ou de aparelhamento do
Estado. A condenação dessas duas práticas é saudável, mas a perda de vista do
resultado efetivo do programa é uma atitude tóxica. Empobrece a discussão e
estimula simplificações grosseiras.
"Visão do Brasil" é um tema de ressonâncias mediúnicas e características
proféticas geralmente mal postas. Gilberto Freyre nunca escreveu que o Brasil é
uma democracia racial e, novamente, acredita-se que é porque ele disse. Não se
pode ser brasileiro sem ter uma visão desta terra e cada um tem a sua ou, caso
queira, adota a de outro. Algumas são derrogatórias: "Isso é coisa de brasileiro".
Outras são ufanistas: "Ame-o ou Deixe-o". Há ainda as que não querem dizer
nada: "A pátria de chuteiras." Em geral, há unanimidade em relação à grandeza
do país. O mesmo não sucede em relação ao julgamento que se faz de seu povo.
Indo adiante, o leitor não encontrará uma "Visão do Brasil", mas apenas
alguns exemplos de debates prejudicados por simplicações, analogias, amnésias,
ou visões derrogatórias deste grande país e de seu povo. Quem não ouviu a piada
segundo a qual Deus esbanjou riqueza por esta terra mas avisou que compensaria
a generosidade: "Agora você vai ver o povo que colocarei lá".
É de Scott Fitzgerald a observação de que a característica de uma cabeça de
primeira categoria está na sua capacidade de lidar com duas ideias opostas e
continuar funcionando. Tome-se um estrago exemplar provocado pela
simplificação da narrativa e, consequentemente, do debate. A aposentadoria
rural, criada pelo presidente Emílio Garrastazu Médici foi o maior programa social
do país desde a instituição das leis trabalhistas, por Getulio Vargas. Apesar disso,
Médici é o presidente do Doi-Codi, da tortura e do massacre dos guerrilheiros do
Araguaia.
Durante a ditadura houve o "Milagre Econômico", DOI-Codi, tortura e o
extermínio do Araguaia. Passados quase cinquenta anos, sustenta-se que houve
tortura e não houve o "Milagre". Ou ainda, que houve "Milagre" e não houve
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tortura. Até hoje, os comandantes militares não reconhecem o que sucedia nos
porões da ditadura. Num paralelo com a economia, essa amnésia equivaleria a
uma situação na qual hoje, o Banco Central não reconhecesse ter havido uma
hiperinflação no final do século XX. A amnésia dos comandantes militares é
utilitária. Destina-se a bloquear a discussão, preservando poderes e mitologias.
Esse tipo de conduta não é inerente aos povos. A cabeça de primeira
categoria mencionada por Fitzegerald pode existir e, existindo, funciona. Veja-se
maneira com que os americanos lidaram com a Guerra da Secessão. Ela durou
quatro anos, de 1861 a 1865, e matou 600 mil pessoas. Durante seu transcurso a
União transformou a fazenda de Arlington do general Robert Lee, comandante
das tropas do Sul, em cemitério de seus combatentes. Em 1900 (35 anos depois
do fim da guerra, já se passaram 40 do massacre do Araguaia), o Congresso
americano autorizou a construção de um monumento aos soldados do Sul, e hoje
lá estão os túmulos de tropas da União, dos Confederados, e de todas as outras
guerras que se seguiram, inclusive a do Afeganistão. O Cemitério de Arlington
tronou-se um monumento nacional. No caso brasileiro, não se trata de uma
amnésia generalizada em relação a revoltosos. A esquadra teve navios com o
nome dos almirantes Custódio de Melo e Saldanha da Gama. Ambos revoltosos
derrotados de 1893. A quilha do Saldanha foi batida em 1933, trinta e oito anos
depois da sua morte em combate.
Argumente-se (caso se queira) que não se pode comparar a rebeldia dos dois
almirantes com a guerrilha de inspiração albanesa do Araguaia. Contudo, ela
ocorre também em episódios de grandeza indiscutível. Quem foi o único
marechal brasileiro morto em combate pessoal durante um atentado político?
Por que o almirante Joaquim da Silva Lisboa é Marques de Tamandaré? Sabe-se
lá. O marechal Carlos Machado Bittencourt, ministro da Guerra, visto apenas
como comandante da matança de miseráveis em Canudos, morreu em novembro
de 1897, abatido pelos golpes de punhal que recebeu de um soldado que tentou
assassinar o presidente Prudente de Moraes. Foi ferido em frente ao portão do
que hoje é o Museu Histórico Nacional. O lugar onde ele caiu era marcado por
dois mourões e uma placa. Os mourões se foram. Algum psicanalista poderia
investigar quais mecanismos operam nos cérebros de segunda para que eles se
esqueçam a devida importância histórica de um marechal-ministro que morreu
defendendo o poder civil. O almirante Lisboa, virou barão (antes de chegar a
marquês) em 1860. D. Pedro II resolveu conceder-lhe o título vinculado-o à
localidade pernambucana de Tamandaré porque, durante uma viagem ele pediulhe para ir à terra buscar os restos mortais de seu irmão, que morrera com a
tropas revoltosas da Confederação do Equador, lutando contra D. Pedro I.
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É do historiador inglês Kenneth Maxwell a observação, feita num texto
perdido, segundo a qual a geração de brasileiros de 1820 era intelectualmente
mais preparada que a americana de 1776. De qualquer forma, ele diz para quem
quiser ouvir: "José Bonifácio era tudo o que os americanos gostariam que Thomas
Jefferson tivesse sido, inclusive abolicionista."
Ficando-se ainda em Thomas Jefferson, os americanos demoraram dois
séculos, mas absorveram o fato de que ele, viúvo, teve filhos com a escrava Sally
Hemmings, trinta anos mais jovem. Ao que tudo indica, a moça, meia-irmã de sua
falecida mulher era uma mulata clara. Hoje os Estados Unidos têm na Casa
Branca, construída por escravos, uma primeira-dama cujo primeiro ancestral
liberto foi enterrado numa cova perdida. (Sally também e ambos não têm rosto.)
A convivência difícil com os méritos tucano-petistas do programa Saúde da
Família, bem como a trava que bloqueia o reconhecimento devido a Fernando
Henrique Cardoso pelo restabelecimento do valor da moeda e a Lula por
iniciativas como o ProUni e o sistema de cotas nas universidades públicas servem
a conveniências de hoje, e só. No mais, atrapalham, como as amnésias
duradouras que embaçam a grandeza brasileira nos episódios de Bittencourt e
Tamandaré. No meio desse campo fica a aposentadoria rural de Médici.
O Brasil não é apenas um grande país. É uma civilização. É verdade que,
como dizia Darcy Ribeiro aqui, sem um só tiro, o Sul ganhou a Guerra da Secessão,
mas essa civilização nunca exportou seus pobres, como fizeram a europeia, a
japonesa e a chinesa.
Na sua raiz há duas trajetórias. Uma andou por dentro, pelo interior, e a
outra, por fora, arranhado o litoral. Por dentro, em 1628 saiu de São Paulo
Antonio Raposo Tavares. Passou pelas montanhas bolivianas de Potosí e, três
anos depois, chegou com sua gente à embocadura do Amazonas, onde hoje está a
cidade de Belém. Pareciam zumbis. Os descendentes dos imigrantes europeus
que chegaram ao Sul do Brasil na segunda metade do século XIX foram tangidos
para o Oeste na busca de terras e trabalho. Subiram pelo oeste de Santa Catarina,
chegaram a Goiás, Mato Grosso e Rondônia. Estão hoje em Roraima e no Oeste
da Bahia. Alguns foram demonizados como depredadores do meio-ambiente ou
como sem-terra. Outros tornaram-se o pilar de uma nova palavra: agronegócio.
Remontemo-nos ao dia 13 de janeiro de 1975. Nessa época pesquisadores
da Embrapa já haviam estudado formas de plantio de soja que se adaptavam aos
solos do cerrado. Ainda havia o "Milagre" na praça e os bancos internacionais
financiavam bilhões de dólares ao Brasil. Para projetos agrícolas, migalhas. Reis
Velloso, ministro do Planejamento, levou a Geisel um projeto de estímulo ao
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Viva o povo brasileiro
plantio de soja no cerrado. Ela só era cultivada no Sul. O presidente julgou a
iniciativa "importantíssima", "para dar emprego a toda essa gente que vive só da
construção civil". Mandou tocar. Um ano depois, visitou a primeira plantação de
soja nas terras goianas. Foi uma decisão imperial, como o Acordo Nuclear e a
Ferrovia do Aço, que transportaria minério em alta velocidade. ("As pedras têm
pressa?", perguntou o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen ao general
da pasta dos Transportes.) A Ferrovia ajudou a arruinar as contas públicas. O
Acordo Nuclear, outra iniciativa de Geisel, foi um desastre. A soja do cerrado,
contudo, está aí. O país do café tornou-se um dos maiores produtores de soja. É
um exemplo da civilização brasileira que anda por dentro.
Há uma palavra que permite diferenciar a origem essas duas bandas que
compõem civilização brasileira. É o termo "colonial". Na banda que se move por
dentro, vinda do Sul, se um móvel é colonial, foi produzido onde houve uma
colônia de imigrantes. Na banda que se moveu por fora, expandindo-se pelo
litoral, se um móvel é colonial, sua origem está, no máximo, nos primeiros anos
do século XIX, quando o Brasil era uma colônia. Exagerando, uma surgiu do
estímulo às relações com o poder. A outra, das relações com o trabalho. Como
diria Guimarães Rosa, o sapo dessa banda não pulava por boniteza, mas por
precisão. O migrante que adentrava ao interior não tinha telefone, muito menos
o número dos bancos oficiais.
Só recentemente o Brasil dos que andam por dentro passou a ocupar um
lugar de relevo nos debates nacionais. Mesmo assim, sempre acompanhado por
alguma desconfiança.
Dois Estados, Alagoas e Santa Catarina, contam um pouco os preconceitos
que acompanham as visões do Brasil. Quando se compara o desempenho
medíocre do primeiro com a pujança do segundo, surge uma explicação básica:
Alagoas teve escravidão, o que não sucedeu com Santa Catarina, que se
industrializou.
Falso. Na década de 1840 a percentagem de escravos nas duas populações
era a mesma, em torno de 20%. Na segunda metade do século XIX a produção
industrial das duas regiões assemelhava-se. Alagoas teve o primeiro engenho a
vapor do país (1846) e sua primeira centrífuga para o refino de açúcar é de 1852.
A fábrica de fiar do Barão de Jaraguá foi montada em Alagoas 1863. Hermann
Hering só chegou a Santa Catarina em 1878, abriu um armazém e no ano seguinte
comprou a primeira máquina de fiar. Deu no que deu. A Fundição Alagoana foi
criada em 1883, e a ferraria Bennack, de Joinville surge só dez anos depois.
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Viva o povo brasileiro
Em 1878 a estrada de ferro Paulo Afonso unia Piranhas a Jatobá. A ferrovia
Santa Catarina, no Vale do Itajaí, é de 1909. Entre 1870 e 1904 a utilização do
arado na lavoura alagoana encolheu. Sua plutocracia ironizava não só o arado
"moderníssima invenção dos tempos bíblicos", como a imigração europeia.
Francisco de Holanda Cavalcanti, senhor do engenho São Caetano, informava:
"A pungente ironia da recomendação de trabalhadores europeus, ainda
quando se admite a inverossímil hipótese de fácil adaptação deles a este clima,
que lhes não é favorável, e ao trabalho de nossa agricultura, que é pesadíssimo."
O clima e o povo, sempre eles. Durante o governo Kubitschek argumentava-se
que um nordestino jamais poderia montar um automóvel, Se o fizesse, fungos
tropicais estragariam os pistões dos motores.
Eliminando-se o falso binômio escravidão-industrialização atribuem-se
diferenças regionais brasileiras à imigração europeia. O problema volta: porque o
Norte de Santa Catarina, com o Vale do Itajaí, é mais desenvolvido que o Sul?
Com frequência, ouve-se que para o Norte foram alemães. Para o Sul, italianos e
açorianos, latinos preguiçosos. Colocada diante da pergunta do porquê da
existência de áreas colonizadas por alemães que definharam, uma pessoa que
conheceu a vida das colônias de imigrantes conviveu com a cúpula da vida
nacional explicou: "Eram suábios". Assim os brancos são melhores que os negros,
os europeus melhores que os brasileiros, os alemães melhores que os
portugueses e os prussianos melhores que os suábios.
Não há mistério nas trajetórias divergentes brasileiras. Em Alagoas vivia-se
da inibição da iniciativa alheia e em Santa Catarina, ia-se para onde se pudesse
trabalhar em paz. Para o oeste na primeira metade do século XX, para o Norte na
segunda, até Roraima no XXI. A grande propriedade fundiária da zona da cana
nordestina criou um ciclo infernal que precisava de mão de obra intensiva e
barata numa época do ano e de uma população presa à agricultura de
subsistência durante o resto do ano. Uma parte de Santa Catarina foi benefiada
por proprietários preguiçosos que preferiram vender suas terras a
empreendimentos que dividiam-nas em pequenos lotes. Mesmo lá, na região do
Planalto, onde prevaleceram grandes propriedades, espantou-se o progresso,
gerou-se pobreza. Onde o brasileiro tem oportunidade, ele a agarra.
O andar de cima do Brasil onde a palavra colonial designa a idade do móvel,
relaciona-se com créditos públicos e conexões. No outro, esse andar de cima
também se forma e, quando pode, vai atrás de créditos públicos e conexões, mas
quando não pode, vai adiante, em busca de serviço. São milhões de pessoas com
características comuns. Quase sempre, começam pobres. Talvez não se movam
com fé na democracia, assim como os pioneiros americanos não se moviam.
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Contudo, precisam do Estado de Direito, que só ela patrocina. Sem ele, o
potentado local inibe-lhe a iniciativa. Esse potentado precisa que o sem-terra seja
um sem-nada.
João Ubaldo Ribeiro tinha razão: "Viva o Povo Brasileiro". Seja qual for a
visão do Brasil que uma pessoa tem, o que há de mais perigoso nela é o grau de
demofobia que embute. Os italianos gostam de falar mal da Itália. Benito
Mussolini dizia que governá-la não era difícil, apenas impossível. Os franceses
gostam de falar mal da França. Atribui-se ao general De Gaulle a observação de
que é difícil governar uma nação onde há 243 tipos de queijos. Por cá, gosta-se de
atribuir ao presidente francês a observação de que "o Brasil não é um país sério".
De Gaulle nunca disse isso. Cavucando-se sua origem, pode-se atribui-la ao
embaixador brasileiro em Paris no início dos anos 60. Sempre que alguém diz que
"brasileiro tem mania de ...." ou que "o Brasil não é um país sério", está entendida
uma preliminar: quem enuncia a observação derrogatória não se inclui nela.
O regime democrático permitiu ao Brasil dois saltos qualitativos. Num,
restabeleceu o valor da moeda. No segundo, possível graças ao primeiro, povoou
o palanque das autoridades. A velha frase segundo a qual "todo o poder emana
do povo" tornou-se uma realidade. Os processos por meio dos quais esse poder é
formado e exercido são bafejados por toda sorte de malignidades. Somem-se
todas e não se consegue um resultado melhor. Como estamos em período
eleitoral, vale a pena visitarmos os velhos argumentos derrogatórios da vontade
popular: Com qualquer migalha esse povo, que não sabe escolher seus
governantes, escolhe dirigentes despreparados. Olhando-se pelo retrovisor, vê-se
que em pelo menos dois casos (Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello) as
escolhas revelaram-se desastrosas.
Em 1969 construiu-se uma fábula capaz de expor a dificuldade para se lidar
com a ideia segundo a qual o povo não sabe votar, mas há quem saiba fazê-lo. No
final de agosto o presidente da República, marechal Arthur da Costa e Silva teve
uma isquemia cerebral e estava mudo e paralítico. Seu vice, o advogado mineiro
Pedro Aleixo foi impedido de substitui-lo. Portanto, era necessário escolher um
novo presidente.
Pelo voto universal? Impossível, imagine analfabetos votando.
Pelo voto dos alfabetizados? Não dá, as eleições de Getulio Vargas, Juscelino
Kubitschek e Jânio Quadros já mostraram que brasileiro não sabe votar. Afinal,
por isso é que desde 1964 militares governavam o país, escolhidos em pleitos
indiretos.
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Pelo voto da oficialidade? Impossível. Seria uma quebra da hierarquia. O
voto do capitão não pode valer a mesma coisa que o do general.
Pelo voto dos oficiais-generais? Exagero.
Pelo voto dos generais do Alto Comando do Exército? Também não dá, o
voto do diretor do pessoal não pode valer a mesma coisa que o do comandante
das tropas do Rio.
Reunidos durante duas semanas, os generais do Alto Comando descobriram
que não tinham como eleger um presidente. Escolheram o general Medici por
meio de um sistema de consulta papalino sem método ou critérios conhecidos.
Dele restam apenas uns papeluchos com lacunas indecifráveis e o depoimento do
general que integrou a comissão eleitoral: "Não foi consulta, Foi auscultação".
(Em tempo: se o sistema de votação fosse ampliado, o general Affonso de
Albuquerque Lima poderia ser escolhido. Nesse caso, voltava-se ao ponto de
partida: Essa gente não sabe votar).
A desvalorização do voto dos outros leva simplesmente a lugar nenhum.
O regime democrático brasileiro derivado da Constituição de 1988
completou 26 anos. Faltam doze para que seja ultrapassado o período de
estabilidade dos governos civis da Primeira República. Chegou-se até aqui sem
sublevações militares ou tentativas de cerceamento das liberdades públicas.
Restabeleceu-se o poder civil e estabeleceu-se o predomínio da vontade popular.
Houve uma época em que se dizia que "saúde e saúva os males do Brasil são". Há
muitas outras travas na sociedade brasileira: Corrupção, corporativismo,
desigualdades, inépcia administrativa, rentismo, e fúrias legiferantes, para
mencionar algumas. Cada uma delas abriga debates e paixões. Uma, talvez a
maior de todas, move-se silenciosa e implacavelmente. É a demofobia, o horror
ao povo, entendendo-se por "povo", o "outro".
A demofobia duvidava que nordestinos fossem capazes de montar
automóveis, ou de que pudessem plantar soja no cerrado. Ela está ainda hoje no
cotidiano de quem acha que empregada doméstica no elevador social é uma
afronta à ordem social. Ou de quem se incomoda com o cidadão de bermuda e
havaianas na sala de espera dos aeroportos e com leis que forçam a entrada de
afrodescendentes e índios nas universidades públicas. Essas seriam as
demonstrações genéricas. Há ainda as específicas, concretas. Num exemplo: a
ideia do governador Sérgio Cabral de murar as favelas do Rio. Isso num país onde
se discute a criação do pedágio urbano com o argumento segundo o qual ele
existe em Londres e em Estocolmo. O aspecto demófobo da proposta não está na
eventual racionalidade da proposta e eficácia do pedágio, mas na amnésia em
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Viva o povo brasileiro
relação à vida real. Hoje, uma secretária pagaria IPVA e pedágio, mas o
helicóptero do banqueiro não paga um similar do IPVA e não pagaria pedágio. O
estacionamento por um dia de um automóvel no aeroporto de Congonhas custa
R$ 70. O de um jatinho privado, R$ 26.
Finalmente, pode-se até deixar de prestar atenção ao fato de que a
mortalidade por doenças cardíacas caiu 21% nos municípios onde há o programa
Saúde da Família. Afinal, esse tipo de problema estaria em outro mundo. Pela
sabedoria convencional, os males do coração podem ser tratados no hospital Sírio
Libanês.
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