DANÇA
DOS
VÉUS
"Não sei o que representa em mim esta coragem nova, este sensível amor".
Adélia Prado
Acorde de overture (pra começo de conversa)
Ao contrário do que se possa pensar
os primeiros véus são os mais tênues.
À medida que cada um é retirado
o próximo mostra-se mais cerrado em sua trama,
de urdidura mais compacta.
No correr de pouco a pouco ir caindo a fantasia
e no que o segredo ficaria mais próximo,
mais os véus são espessos e colados ao corpo
até que
transposto um limite tal, indefinível,
resta a transparência, cristalina.
O último véu na verdade não
esconde nada, ele clareia a visão
e é realmente este, mais além do próprio corpo,
a vestimenta da alma.
Valsa
Quando te encontrei
era a menina sem vestígio de mulher.
A não ser a vaidade
e um acomodar de curvas
num corpo cheio,
de pequenos seios sem tentações.
Mas na verdade, o real
mente importante sem
pré é um rosto de luz
sem ser de lua ou sol,
talvez mesmo um globo terrestre
(o russo nos disse: ela é azul!)
flutuando pelas ruas, casas, praias,
lugares onde se tem
razão de mostrar o riso
de dentes alvos e olhos
se dizendo castanhos
mas em se olhando bem e bem
fixo e fundo pode-se
vislumbrar promessas de mar
e até mel.
O grave, o perigoso e
armadilha inescapável é
que além de nariz
e orelhas, há uma aura incandescente e
quem te olhou, olhou não, melhor
dizendo em outra lengua: mirou,
quem te mirou fuzilando olhos
e era (por acaso) poeta, pensou:
Cara de concha.
Em uma expressão
o resumo de toda
a que era e deveria vir a ser.
E logo os cabelos de algas escorridas de água
e pouco depois a necessidade
de conhecer mais
as mãos, formato de unhas,
linhas da palma, palavras,
(como uma quiromancia pessoal,
um horóscopo de signos palpáveis
onde o zodíaco é o corpo)
e muito depois descobrir com
susto e prazer um bicho,
habitante da concha da cara,
sentir uma lesma, uma língua
e sua gosma e saliva
deixando o caminho marcado
como purpurina
onde passa.
Tua concha nem é coisa dos mares,
é cálice de água doce.
Búzio menor que a sede
de um beijo.
(contradança)
Na função primeira de ver
dança-se suavemente mantendo a distância
num respeito que a curiosidade
se impõe por implicância,
para mais se aguçar.
Nas funções de tato, audição, olfato
e fala, é óbvio,
toca-se, ouve-se, cheira-se, diz-se
mas a maneira genuína e o sentido profundo
vem com lento aprendizado.
Antes, distraídos, nós
mexemos, escutamos, fungamos e contamos
sem maior proporção.
Mas só depois de contar nos dedos,
ouvidos, nariz e boca, só
muito depois
pode fluir o sexto sentido.
Quando te encontrei
era a mocinha sem prestígio de mulher.
A não ser as promessas
de tantos segredos e dúvidas
que deslizavam em primavera
num corpo feito
em pequenos jeitos sem aflições.
Como passos suaves mas que marcam
com riscos
o assoalho do chão
onde se dança.
(fim da contradança)
Mas tua concha
traz rastro de rio
que se estende em fios
pelo corpo para mais tarde
se tornar tão vigorosas corredeiras,
cachoeiras, imenso lago.
E tua fonte renovada pelos olho d'água
vão dar de beber e se banhar
a quem tem sede e calor.
Te encontrei para
saber desse baile das águas
sutil e sensual,
perceber que as coisas andam
nem sempre juntas mas
domadas por compassos íntimos
de silêncios vários, breves ou longos,
através dos tempos e espaços.
Te chamo simpatia,
tenho apego, quase brinco, pois
natureza fugidia
se trata com zelo.
Twist
É fogo na roupa.
Se o inverno pede agasalho e aconchego
quando abre o verão
a lareira está no céu e neste país
de duas estações,
nesta cidade em que a gente se encontra
cheia de mar,
o sono é mais curto, as roupas
poucas e vivas como a pele –
cores quentes.
Num movimento tão rápido a gente
quase que se beija amanhã e ainda
volta a se ver hoje.
É tanta vida por volta, é um furacão
de desejos, um rodopio no centro
do corpo desde dezembro até as águas
de março
pernas braços lábios copos
mares carros colos olhos festas
seios mãos coxas samba cabelos sorvete
dedos camarão cervejas shorts shows convite redemoinho sem vento
somente quentura de forno
vulcão em ebulição
e muitas lavas vão rolar
(a gente se vê, de repente)
depois do natal, tal
vez ano que vem logo
depois do carnaval.
E nestas cidades, capital ou balneários,
a gente não se perde
mas desencontra caminhos assim
meio na saudade, sem exagero,
com o carinho fervente e passageiro
como cem pares alegres
num mesmo recinto
coberto de espelhos
onde se está a cada segundo
e direção
ao lado de outra pessoa.
Num ritmo de locomotiva
sem trilhos ou apitos
os rumos são de barco em mar aberto
mas sem vento nas velas,
as caldeiras é que ardem
para decidir o destino.
Quando te encontrei
era tocha de palha par o fogo
e quando não,
não seja por isso:
O que arde cura
e o sol traz preguiça e vitalidade.
Te chamo namorada,
te trago e te levo
a sério mas quase que brinco com
incêndio e turbilhão, pois
espíritos flamantes
se tratam com complacência.
(break)
Remexendo as achas
dessa fogueira, teus fascínios
mudam de cor
sempre no mesmo fogo
mas enamora-se ora
do azul, laranja, amarelo,
ora bolas, te encontro
cada vez menos e mais
tensa e eletricamente até
o curto-circuito.
Você sai de mim e de
todas as calçadas por onde ando.
Te vejo de longe e bela
mas sem aceno.
Te vejo mesmo de perto
mas sem o toque da delícia.
(fim do breque)
Não te chamo - (querida)
mas guardo seu nome
com mágoa: Magia.
Vou desdobrar esquinas
por estradas de sóis diversos.
Caminhamos para um outono
que ainda vai penar
para que se faça.
Rock'n Roll
Rolando e re
quebrando –
pedra de rua
folha de árvore
neste estado, estação.
Agora a fala é mais de mim, de nós
só mesmo em alguns
encontros clandestinos e bem combinados.
contrabandistas de afeto
oferecendo a preço de ouro
o produto raro.
Nós,
só mesmo disfarçados de outros
como um casal de mascarados ainda
tecendo o que resta dos cordões
na quarta-feira de cinzas. (depois das chamas).
Mas muita gente me chama
e não sei de você. Embora
longo esse tempo hoje
parece o exato, elástico para viver,
conhecer, reconhecer
o que brota devagar e sempre
nos bosques interiores:
É assustar-se com a descoberta de tantas
matas virgens quando já se achava
conhecedor do mundo inteiro das
florestas tropicais de choro e seiva
ao sertão de carinho mais agreste e todo
o litoral de sonho e sal, corpo,
desejo carnal.
Te desconheci para aprender a amar.
Pois o que se intitulava amor
era mais nada que fragância
estonteante na presença
e resquício de lembrança quando só.
Você sabe onde pisa
e eu sei onde devo pular.
Terra a terra,
sem nunca deixar de
deixar sementes pelos caminhos,
podar os gestos desnecessários dos braços
e plantas,
dos pés, em geral.
(Como a lesma da concha
e a esteira do sol no éter,
o ciclo dos frutos, benditos ou não,
também deixa senhas, estrias, cor
redores, picadas no circuito do coração).
(solo)
me fiz de solo e arado,
boi de canga e senhor abastado.
me fiz de tudo possível
de cada qual um bocado,
me desfiz de tudo para
poder ter outros fados
na agricultura da vida
sempre uma queimada (queimadura)
antes de outro roçado.
decorei nomes , rostos
e alguns corpos palmeados.
vários nomes eu não sei
se ao certo se casam
com seus retratos falados.
eram mulheres, meninas,
cabelos lisos, cacheados,
tipos altos, baixos,
gordos ou delgados,
amigos e desconhecidos
curiosos ou interessados,
era todo tipo de gente
em multidão feito gado
mais na frente ou mais atrás
do que mesmo ao meu lado.
me fiz de anjo da guarda
e também de cão danado
bebi de toda bebida
destilando toda vida
para amar e ser amado
anotando na cartilha
insabidos cás e dáblios,
ou números negativos
as frações e os hiatos.
juntando todo o universo
rezei a deus e ao diabo
me fiz perverso e valente,
covarde e abnegado
conheci mundos e fundos,
mundanas e fundilhos gastos,
me fiz de barro e de ouro
elo solto e cadeado.
pra saber que o mundo é grande,
maior do que o imaginado.
me fiz de terra sem dono
sem futuro e sem passado
pra dar de comer a alguém
e ser também alimentado.
(fim do solo)
Rolando e re
bolando por aí
te encontrei vezes bastante
para sentir tua falta de mágica e saber
que não sou quem
mais te agrada
mas ficou preso em um ponto
qualquer de sua geografia
um pomo que nos seus mapas
traz discórdia aos sentimentos.
Te encontrei bastante
para medir o terreno, capinar
ervas daninhas, demarcar as cercanias,
fronteiras, e chovi na sua horta
para te verdejar, irrigar as veias,
transbordar os olhos, remexer
a terra, para te adubar com meu melhor
estrume
que o amor também pode
feder para lhe preparar
a melhor colheita futura.
Te chamo saudade,
tenho receio, enlevo, querença
e quase brinco (brindo)
com o mesmo fruto dessa terra,
que já provei
de outras feitas, verde ou
de vez.
Samba-canção
Quando me encontrou
eu tinha as mãos nuas,
por isso devolveu-me as suas
para que suassem juntas
e todos os choros
evaporassem aquecidos pelo sentir
mais simples e completo.
quando te encontro,
pego desprevenido, me entrego
em paixão convulsa, sopro
no ar mais frio a inspiração
contida há muito.
Te pretendo de agasalho,
divido o travesseiro,
nenhuma casa é tão pequena
ou bastante vasta para nosso espaço
de ser. Fluidos e etéreos,
duplos e sintéticos, o amor
quando nos toca com seu esgarçar
de nuvem, quando se apossa
de nós e nos livra do resto do mundo,
aí, coisa querida, nada a fazer
senão ouvir e flutuar na melodia
e saber que o inverno
é quando se conhece o calor mais íntimo,
o suor de entre-coxas, os gemidos que
embaçam as vidraças e mesmo
que ouçam os vizinhos, menos mal,
para que saibam, aqui se faz
amor
com limites que nem
as paredes, os pudores, as reclamações
podem traçar.
Aqui revoam aves de paixão
e flutuam anjos de asas de lã
com seus carinhos mornos
farfalhando em todos os cantos, membros, poros.
(instrumental)
Estar à beira de
às vezes é temerário
se debruçarmos.
Ficar à beira do abismo,
do fogão ou do tanque,
rente ao vício maligno,
à intolerância, no beiço do poço
de braços cruzados à mesa
de decisões ou refeições.
Para se viver de cama e comida
lavando a roupa suja em casa
é preciso mais que expediente,
tenacidade ou amor.
É preciso a matéria
de paciência e atenção
na vida que se divide para
multiplicar.
Estar à beira de
é às vezes um passo à frente,
às vezes salto no ar.
(fim do instrumental)
Quando nos encontramos
e enredamos
sonhos, tesões, ideais,
escovas de dentes, cabides, malas e cuias,
sabíamos das dissonâncias
e sincopados nos bailes da vida.
E foi assim de par constante que
entramos na dança e bailamos
e foi assado e hesitante
que dançamos.
Dançou
o salto que partiu
a sola que gastou
a cera do assoalho
arranhou, sem lustro.
Conforme a música.
Nós dançamos.
Para aprender que o vital
para além da melodia e do ritmo,
dos versos e rimas,
no horizonte da musical harmonia
a essência é o apuro
com que o coração recolhe
antes, durante e depois
a matéria abstrata da vida
e a deposita nas mãos
e nos pés de cada dia.
Te chamo amor distante,
tenho cuidado e sabedoria.
Já não brinco com flocos de nuvem.
Te tenho amor
e realidade.
Hino
(acorde final/acorde, afinal!)
Melhor é
quando se encontrava
o cristalino
e todos os elementos, estações, fases
da lua, marés, todos os passos
em muitas danças, andanças,
todos os gestos e sonhos e certezas
se tornam claros espelhos com
e sem aço. Rosa-dos-ventos,
bússolas, faróis, olhares são trans
lúcidos e plenos.
O pano cai mas o espetáculo
sempre continua, continuamos
nos tingindo de todas as cores
nos cingindo forte, exigindo o quê.
Te encontrei para aprender a viver.
Te chamo amor imenso,
te quero inteira porque revigoro o brincar
e sei que demos e temos
muitas voltas...
Fim/The End?...
marco valença. 18/21.11.1981.
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