O Conceito de Unidade Lexical
Jorge Baptista
Universidade do Algarve
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Laboratório de Engenharia da Linguagem
Instituto Superior Técnico
Centro de Automática da Universidade Técnica de Lisboa
[email protected]
http://w3.ualg.pt/~jbaptis
1
1. Unidade x Léxico x Sistema



‘first things first’
a definição de unidade lexical depende de e ao
mesmo tempo determina o objecto de estudo da
linguística
diferentes perspectivas de abordagem ao
fenómeno da linguagem acarretam diferentes
visões da forma como ela está organizada e o
papel que o léxico nela desempenha
2

definir as unidades de um sistema é
sempre o resultado de uma posição
teórica de partida sobre a natureza do
sistema, a metodologia para o analisar, os
resultados que se espera obter, etc.
3

a visão do léxico como lista de formas e
de propriedades, independente dos outros
componentes da linguagem é, em si
mesma, decorrente da ideia de que a
linguagem se pode organizar em vários
níveis/módulos/componentes
relativamente independentes uns dos
outros
4
a minha proposta:
 reflexão em conjunto sobre o objecto de
estudo da linguística
 observação sobre a complexidade de
noção de unidade lexical
 reflexão sobre consequências para o
ensino da língua (com especial referência
ao ensino da língua materna) à luz dos
pontos anteriores
5
2. Acesso à Língua via Linguagem


(prévio) distinção entre língua
(conhecimento interiorizado e partilhado
pelos membros de uma comunidade
linguística) e linguagem
(realização/manifestação exteriorizada
dessa competência)
ninguém nasce ensinado, e muito menos a
saber falar uma língua: a aprendizagem
da língua materna faz-se pela exposição a
uma língua
6

a descrição linguística só pode ser feita a
partir das realizações concretas
(discursos), já que não se pode aceder
directamente à língua (conhecimento
interiorizado e partilhado pela
comunidade)
7


é a partir da caracterização dos discursos
que é possível construir a ‘abstracção’
teórica que constitui a noção de língua
isto não significa que não existe língua,
apenas que ela não é directamente
observável, pelo que tem de ser concebida
como um objecto teórico
8


não é possível falar da linguagem sem
utilizar a própria linguagem (as línguas
naturais não têm uma metalinguagem
externa)
por essa razão, só é possível caracterizar
os discursos em termos de semelhanças e
diferenças, ou seja, em termos
combinatórios
9

1.
a descrição dos discursos procede em
dois níveis básicos:
a determinação dos sons da linguagem e
das respectivas restrições combinatórias,
de um modo que não interfere no
significado das expressões
2.
a determinação de sequências de sons e
das respectivas restrições combinatórias
de um modo que afecta/está ligado ao
significado das expressões
10
Exemplo:
 a cadeia sonora pode ser decomposta em
unidades discretas (fones) meramente na
base da percepção de que duas
sequências de sons são entendidas como
iguais ou diferentes
[vi  pátu]
[vi  gátu]
11

para tal, o significado da expressão – ou
mesmo a sua existência na língua – é
(praticamente) irrelevante:
[pÉt]
[gÉt]
12



os fones enquanto propriedades físicas da
cadeia sonora não formam unidades
discretas (p. ex. vogais)
o seu valor linguístico é função destas
oposições distintivas: são elas e a
estrutura das relações entre si que
definem os fonemas da língua – as suas
unidades discretas
a partir das combinações em que entram é
que é possível determinar elementos
portadores de significado
13
Exemplo:
[vi  pátu]
 [vi u pátu]
leva a considerar a existência de dois
elementos :
[ ]
 [u ]
ou, em alternativa:
[ ~ ] (nasalidade)
 [ _ ] (ausência de nasalidade)
14
na medida em que estes se opõem
regularmente a outros elementos:
[vi  pátu]
 [vi u pátu]
 [vi um pát]
 [vi uS pátuS]
 [ve  pátu]
 [ve u pátu]
 [ve um pát]
 [vê  pát] ...
é possível constituir conjunto de oposições:

15
pátu
pátuS


S
pát
um
umS
pátS

S
u
uS
16

as regularidades combinatórias observáveis
levam, por seu turno, a agrupar sequências de
sons em classes:
(X-o, -a, -os, -as)N
(W-o, -as, -a, -amos, ... -r)V
(o, um)Det X

Todas as categorias gramaticais tradicionais
podem ser obtidas desta forma
17
3. Unidades lexicais vs. palavras gramaticais


distinção entre elementos lexicais “plenos”
e elementos lexicais de natureza
gramatical
candidatos ao estatuto de elementos
gramaticais: ‘morfemas-presos’ (de
tempo-modo-aspecto e pessoa-número),
preposições, pronomes, determinantes,
etc.
18



Que estatuto atribuir aos elementos
gramaticais ?
[dificuldades:] ausência de uma
metalinguagem externa; (não-) pertinência
do critério referencial
intuitivamente, há uma distinção clara
entre:
carro, ler, aberto, depressa
e : de, um, -mos, ele
19


os elementos gramaticais constituem um
conjunto finito, de dimensão (relativamente)
reduzida, enumerável em extensão e evoluem
lentamente,
os elementos ‘lexicais’ são a priori em número
muito maior, que evolui em função da realidade
extralingística, podem sempre ser acrescentados
por neologia ou cair em desuso
20

=

por outro lado, é evidente que os
elementos gramaticais veiculam um
determinado tipo de informação:
O Zé leu o livro
O Zé [LER + passado + perfeito] o livro
o facto de em Português esta informação
ser veiculada por ‘morfemas presos’ é
acidental; noutras línguas estas
informações são expressas por palavras
independentes (com acentuação própria)
21

da mesma forma, nas combinações com
verbo auxiliar + verbo, a informação
gramatical é veiculada por um ‘morfema
livre’:
O Zé (está + anda + continua) a ler o livro
O Zé (acabou + parou) de ler o livro
O Zé (começou + desatou) a ler o livro
22

1.
em contrapartida, há claramente
elementos que, consoante a combinação
em que entram:
não veiculam nenhuma informação :
O Zé leu o livro
O Zé gosta de + o livro
em que de é claramente aqui uma
preposição (‘que vem antes de’)
2.
veiculam de facto uma informação precisa:
O Zé veio de Faro
23

1.
2.
A distinção entre ‘morfema preso’ e
‘morfema livre’ também não é suficiente
contracções:
dos (= de + os)
palavras compostas:
O Zé leu o livro antes de adormecer
3.
contracção de palavras compostas com
palavras simples:
O Zé leu o livro antes da Ana
antes da (= antes de + a)
24

=
certos sufixos estão sistematicamente
relacionadas com frases em que o
elemento seu homólogo é uma palavra
independente:
N0 ter a qualidade de ser Adj
N0 ter a Adj-n-idade
25

a distinção entre as palavras compostas (que
ortograficamente se representam por duas ou
mais palavras gráficas / com acento tónico
independente) e as palavras simples também
não é linear:
O Zé vai (amanhã + de manhã) a Lagos
a razão pela qual amanhã se escreve sem
espaço em branco é acidental, convencional,
histórica e meramente ortográfica (poderia,
p.ex., escrever-se
*à manhã como em à noite)
26


as palavras compostas, por seu turno, têm o
MESMO estatuto, como unidades lexicais,
que as palavras simples
a composição afecta TODAS as categorias
gramaticais:
O Zé leu um (livro + romance policial )N
O Zé é muito (charmoso + bem-parecido)Adj
Isso só depende de (nós + a gente)Pron
O Zé caminhou (por + ao longo de)Prep o caminho
O Zé comeu (dois + vinte e dois)Num bolinhos
O Zé leu o livro (por + em virtude de)Conj querer
saber mais sobre o assunto
...
27


o número de palavras compostas é
claramente muito superior ao número de
palavras simples
os dicionários usuais, em grande medida,
subestimam o número de palavras
compostas e registam apenas as que são
semanticamente opacas
28

a determinação de uma unidade lexical
composta faz-se com base no facto de
apresentar restrições combinatórias
relativamente às propriedades que seria à
partida possível observar em sequências
livres formadas pelas mesmas categorias
gramaticais
29

finalmente, certas combinações verbonome devem ser consideradas como um
‘bloco’:
O Zé (foi para os anjinhos + está a fazer
tijolo + bateu a bota + esticou o pernil +
já não está entre nós + está na paz do
Senhor + ...)
O Zé e a Ana (juntaram os trapinhos +
deram o nó + ... )
30


o seu significado não é composicional, i.e.
não pode ser calculado com base na soma
do significado que, noutros contextos,
cada uma das palavras poderia apresentar
apresentam fixidez combinatória, i.e. não
permitem as variações formais que se
esperaria encontrar, dada a estrutura e a
natureza sintáctica dos elementos desta
combinatórias
31

No caso destas ‘frases fixas’ o problema
principal é que a unidade lexical não é
apenas uma mera combinação de
palavras, mas sim uma frase, com um
verbo, com flexão relativamente livre e um
sujeito também ele distribucionalmente
livre (humano).
32


parece, pois, que o léxico deverá conter
não só as palavras simples, mas também
as palavras compostas e todos os
elementos gramaticais que contribuem
para a informação veiculada pelo discurso
haverá uma forma de estruturar o léxico
num sistema descreva a linguagem, tendo
em conta essa sua composição?
33
4. Linguagem e Informação


a ideia principal de Harris é a que a linguagem
veicula informação
o conceito matemático de informação, tal como
este autor o adopta para a descrição da
linguagem, está ligado à observação de os
elementos da língua não se combinam
indiferentemente uns com os outros,
apresentando importantes desvios a partir da
equiprobabilidade combinatória
34



estes desvios criam aquilo a que se chama a
redundância da informação do sistema
ela baseia-se nas restrições combinatórias
observáveis entre os elementos do sistema
as combinações de elementos baseiam-se numa
assimetria fundamental: a noção de operador e
de argumentos, decorrente da ordem parcial de
entrada das palavras numa frase
35


operadores são palavras que requerem a
presença de uma ou mais palavras (os
seus argumentos) para entrarem na frase
as unidades lexicais são, pois, de dois
tipos fundamentais: as palavras que
funcionam como operadores e as palavras
que não podem funcionar como
operadores (argumentos elementares)
36
operadores
de 1ª
ordem
de 2ª
ordem

ler
livro
em
cadeira
alto
mesa
___________
árvore
gosta de
sol
ante de
Zé
argumentos
elementares
os discursos são o resultado de operações
(funções) dos operadores sobre os seus
respectivos domínios de argumentos.
37


daqui decorre que a estrutura do léxico
incluirá, além dos argumentos elementares
(tipicamente nomes concretos), todas as
restantes entradas lexicais (operadores)
uma vez que estes operadores determinam
uma construção, essas entradas lexicais não
são propriamente PALAVRAS, mas sim
FRASES, mais concretamente:
FRASES ELEMENTARES
38

•
•
•
•
•
cada operador determina a construção
sintáctica da respectiva frase elementar:
número de argumentos,
tipo de argumentos,
preposições que introduzem os
complementos
natureza distribucional dos argumentos
propriedades transformacionais da
construção
39

palavras derivadas entram muitas vezes
em relações parafrásticas, de natureza
transformacional:
O Zé leu rapidamente o documento
= O Zé fez uma leitura rápida do documento
40


tal faz pensar que a unidade lexical nem
sequer será a palavra associada a uma
categoria gramatical
a categoria seria uma das formas de
actualização sintáctica da mesma unidade
lexical, transformacionalmente relacionadas:
LE.R (-r V; -itura N; -itor N; -gível
RAPID.O (-o Adj; -amente Adv)
Adj)
41


desta perspectiva resulta que não há uma
fronteira clara entre léxico, sintaxe e
semântica
cada unidade lexical (predicativa) tem de
conter informação sobre a sua construção,
as suas propriedades distribucionais e as
suas propriedades transformacionais
42


Cada frase elementar é a expressão de um
único predicado semântico
a análise de um discurso é, pois, a sua
decomposição nas frases elementares que
lhe deram origem e a respectiva ordem
parcial de entrada dos vários operadores
43
O Pedro prefere ler BD a ouvir música
Quantos PREDICADOS tem esta frase?
preferir (Pedro1, ler , ouvir)
ler (Pedro2, BD)
ouvir (Pedro3, música)
Pedro1 = Pedro2
Pedro1 = Pedro3
44
preferir
Onoo
ler
Onn
Pedro1 Pedro2 BD
ouvir
Onn
Pedro3 música
O Pedro prefere ler BD a ouvir música
NB: representação muito simplificada
45
Bibliografia
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