3.5 O BRASIL PLURINACIONAL – AS NAÇÕES INDÍGENAS
A análise desse novo Brasil, por outro lado, evidencia
um Brasil bem mais plural do que se costuma
perceber. Este pluralismo alcança também as
dimensões étnicas e culturais, pluralismo que vai além
das injustas diferenças regionais até agora
analisadas, e que, ao contrário dessa diferenças,
constitui um patrimônio nacional a ser preservado.
Fugindo à análise das diversas teorias, em torno dos
conceitos de Estado, território, povo e nação,
buscando abrir novas perspectivas de análise e
tratamento da questão, levantam-se, a seguir,
algumas hipóteses referentes ao Brasil “ plurinacional” , tema evidentemente polêmico, mas do qual
não se pode fugir, em face ao processo que está
ocorrendo no país e às propostas da Sociedade
Humanizada – participativa e plural, objeto desse livro.
A Constituição brasileira e a legislação decorrente,
porém, não se referem explicitamente à pluralidade
nacional do Brasil, a não ser na medida em que
reconhece a igualdade de todos os cidadãos
brasileiros e repele qualquer forma de discriminação,
inclusive por razão de raça, cor ou ideologia
(cultura). No entanto, o Brasil, além da diversidade de
raças, cor e ideologia, pode ser considerado um país
plurinacional.
O reconhecimento da multiplicidade de raças e
culturas é um conceito que costuma ser aplicado
preferencialmente ao negro. No entanto, a
Constituição e a lei permitem designar com o status
de nação os povos indígenas. O artigo 231 da
Constituição federal, que é complementado pelo
Estatuto do Índio, ao lhes reconhecer a cultura, a
etnia, e especialmente o uso de território próprio,
além
de
outras
identidades
específicas
e
diferenciadas, abre caminho a essa interpretação.
Embora, os territórios indígenas pertençam à união,
definem e delimitam áreas territoriais de uso e posse
exclusivos dos povos indígenas.
No entanto, ao atribuir aos povos indígenas essas
características, a legislação, não lhes concede
soberania, pois que os subordina às normas e à
legislação do país e ao Estado brasileiro. Também, e
em conseqüência, não os reconhece como Estado,
mas apenas como parcela específica da Comunidade
Nacional, ou seja, como parte específica de um
Estado plurinacional.
Por essas razões, por sua importância e complexidade, a
questão indígena merece, especificamente, dois tipos de
considerações.
A primeira, referente aos territórios por eles ocupados
e à soberania nacional.
A segunda, referente à preservação, integração e
desenvolvimento de sua cultura e etnia.
•
Territórios indígenas e soberania nacional
Os territórios indígenas, hoje, ocupam uma área
equivalente à soma dos territórios da França,
Espanha, Bélgica e Portugal, ou seja, quase metade
da Europa Ocidental – Veja-se o mapa nº 7.
A cultura indígena pressupõe uma forma de vida em contato com
a natureza, extraindo dela sua sobrevivência. Para isso, as áreas
reservadas às Nações Indígenas são extremamente suficiente,
consideradas as necessidades de ocupação e preservação cultural dos
cerca de 300 mil índios remanescentes dos quase 5 milhões
existentes à época do descobrimento. Pode-se dizer, também, que a
área é adequada para a multiplicação desejável da população
indígena e de seu desenvolvimento cultural, mesmo porque será
inevitável que o desenvolvimento cultural introduza formas
alternativas de convivência com a natureza. Essas formas serão
seguramente mais intensivas, embora devam ocorrer sem que
venham a se constituir em ameaça à natureza e à preservação das
características culturais dos povos indígenas. Por isso, embora
extensas, as áreas parecem adequadas ao objetivo a que se
destinam.
Mapa nº 20 – Territórios indígenas: 12% do território nacional ou 40% da União
Européia (ao lado o detalhe).
Outras questões a serem consideradas referem-se ao exercício
da soberania nacional sobre os territórios indignas.
Grande parte desses territórios localizam-se nas áreas
de fronteira, abrangendo partes significativas dos
Estados do Pará, Roraima, Amazonas e Rondônia,
principalmente.
A questão da segurança das fronteiras, em áreas de
dimensão das terras indígenas, tem muito a ver com a
questão da soberania nacional, nem tanto no sentido
tradicional da ameaça de invasão de tropas
estrangeiras, mas em termos de invasão cultural,
disseminação de interesses escusos, introdução do
contrabando e exploração clandestina das riquezas
naturais, especialmente da biodiversidade; também a
introdução de rotas de narcotráfico e de outros
procedimentos, que atentam contra a soberania
nacional, e que constituem um bom exemplo das
ameaças crescentes dessa passagem de era ou
civilização.
No que se refere à introdução de interesses escusos
deve-se considerar a desnacionalização dessas
áreas, tese de alguns segmentos internacionais,
defendida por motivações de ordem ideológica,
sobretudo ligadas a uma visão equivocada da
preservação ambiental ou da cultura indígena; mais
graves são as motivações que inspiram interesses de
ordem econômica e outros referentes ao domínio e
exploração dos recursos naturais da Amazônia,
especialmente de sua biodiversidade.
A existência das Nações Indígenas não é, e nem pode
se transformar num instrumento desses propósitos.
No entanto, se o Brasil não definir uma política de
aproveitamento sustentável, em seu próprio favor
e das populações locais, em favor da humanidade,
dos recursos planetários da Amazônia e do
Centro-Norte em geral, essas teses, hoje escusas
e marginais, poderão ser transformadas em fortes
argumentos
jurídicos
em
favor
da
desnacionalização dessa imensa parcela do Brasil,
ditados em foruns ou por interesses internacionais.
Na verdade, se essas regiões continuarem improdutivas, e
tanto mais se continuarem objeto de depredação, ao invés de áreas
de ocupação produtiva e sustentável, escassearão cada vez mais,
os argumentos de ordem ética ou jurídica, em favor da soberania
nacional.
Nesta perspectiva, existe uma ameaça de desnacionalização
da Amazônia, a ser considerada com urgência e responsabilidade.
•
Preservação, integração e desenvolvimento
cultural
O outro tipo de consideração referente às Nações
Indígenas, diz respeito à questão de sua preservação
cultural.
A preservação cultural é vista, às vezes, como incompatível
com o desenvolvimento dos povos indígenas. Nessa linha, prega-se
a segregação dos povos indígenas da comunidade nacional, para
preservá-los como culturas primitivas, talvez até como espécimes
raras, para estudo dos antropólogos, ou curiosidade dos turistas.
Teses desse teor, evidentemente, são atentatórias aos direitos dos
povos e à dignidade e direito das pessoas, como são contrárias ao
desenvolvimento desses povos e sua integração nos processos
globais, independentemente do estágio cultural em que se
encontram.
O que deve ser considerado é que seu
desenvolvimento e integração nesses processos,
não pode ser traumático e imposto à custa da
perda dos seus valores culturais. É necessário, em
conseqüência, que aos povos indígenas se dê
condições de desenvolvimento, a eles e a sua
cultura, de acordo com ela e com seus valores e
tradições. Essa há de ser a forma de os povos
indígenas chegarem, sem perder sua cultura, mas
embasados nela, a progredir, e a se inserir na
comunidade nacional e inserir sua identidade no
mundo globalizado, em vez de serem transformados
em guetos de raças ou espécies em extinção, que é a
ameaça que pesa sobre eles.
Paralelamente a essa forma de preservação da cultura, é
necessário desenvolver canais de interação entre a cultura
indígena e as demais manifestações da cultura nacional.
Essa perspectiva é possível desde que se busque,
efetivamente, desenvolver a cultura indígena ao invés de,
simplesmente, integrá-la na cultura nacional, ou preservá-la
intocável.
A Fundação Universidade do Tocantins em
determinado
momento∗,
introduziu
condições
especiais para o ingresso e a permanência de
representantes
das
Nações
Indígenas
na
Universidade, e aprofundou significativamente a
iteração entre a Universidade e a Cultura indígena, de
acordo com a perspectiva proposta. Para isso, foi
institucionalizada,
naquela
Universidade
a
possibilidade de ministração de disciplinas ou
conhecimentos referentes a valores culturais,
tradições, usos e costumes indígenas por meio de
representantes das próprias Nações Indígenas, por
elas indicados. De outra parte, representantes das
Nações Indígenas poderiam aperfeiçoar-se nas
funções que exercem na tribo, com conhecimentos
formais adquiridos e atestados na Universidade, como
alternativa a adoção de currículos da cultura formal,
que os introduz sempre na cultura oficial, afastando-os
dos seus próprios conhecimentos , dos usos e da
cultura tribal. No entanto, os preconceitos, o
corporativismo, a resistência à inovação e a mudança,
a falta de compreensão da questão cultural e a
burocratização,
tem
criado
obstáculos
à
implementação da proposta, como aliás é costume
fazer com toda proposta que inove. Pensar dói...
∗
O autor foi reitor dessa Universidade, à época da adoção das políticas propostas.
Na mesma linha de iteração* das Nações Indígenas
com a cultura oficial – embora a cultura indígena,
sendo reconhecida pelas instituições nacionais deva
igualmente ser tida como oficial, o Plano Diretor do
Campus da mesma Universidade reservou área
específica – o espaço das Nações Indígenas – mapa
nº 21, destinado a habitação dos indígenas, de acordo
com sua cultura, enquanto ligados à Universidade.
Visava-se com esta proposta, libertar o processo de
desenvolvimento indígena evitar sua adesão
obrigatória à cultura e ao modo de vida oficial – a
pensão e o apartamento, ao arrepio das garantias que
são deferidas aos povos indígenas e à sua cultura,
pela Constituição e pela lei, além de proclamadas pela
retórica oficial. Nem sempre, porém, a prática
consegue ser coerente com a retórica.
As garantias, ou a retórica oficial, inclusive da
antropologia oficial, no entanto, não estão
conseguindo salvar, da degradação e da extinção, as
Nações Indígenas e sua riquíssima cultura, o que
constitui um crime contra os direitos desses povos e
contra o que preconiza a lei postura que, na História,
se constituiu, também em fator de desaparecimento
dos 5 milhões de indígenas, anteriormente referidos.
Esta digressão foi posta, especialmente porque a situação da
minorias nacionais, em geral, e dos povos indígenas, em
especial, deve constituir uma denúncia necessária e urgente –
tão grave quanto a denúncia da pobreza iníqua e desumana,
ou seja, do processo de desumanização e da exclusão de mais
uma parcela da população brasileira, em geral pouco
considerada nos números oficiais da exclusão.
*
O conceito de iteração, ao invés de integração é fortemente proposto pelo
cacique Idjaruri Karajá, da Nação Indi em palestras ministradas na Universidade
do Tocantins.
Mapa nº 21 – Plano Diretor e Zoneamento de usos do Campus Universitário de
Palmas – Espaço das Nações Indígenas.
No contexto desta proposta voltada à construção
de uma sociedade humanizada e pluralista e
plurinacional permanece necessário propiciar às
minorias e ao indígena, em especial, condições
para seu desenvolvimento, de acordo com sua
cultura, em oposição às teses de que eles sejam
relegados a guetos culturais, étnicos e sociais,
com vistas à preservação intacta de suas formas
primitivas de vida. Se estas teses tivessem sido
aplicadas à cultura oficial, estaríamos a morar
nas florestas da Germânia, ou a cortar os mares
nos barcos fenícios.
Esta política preconizada de desenvolvimento e de
convivência iterativa entre as culturas deve significar,
pois, a integração não só das Nações Indígena, mas
da variedade de culturas e das diferentes etnias entre
si, as culturas negras, asiáticas, européias e outras,
para formar a grande Comunidade Nacional,
pluricultural, pluriracial e plurinacional e por isso
imensamente rica, complexa e humanizada. Tudo isto
é parte da necessária Revolução do terceiro milênio,
que não pode ser protelada sempre, para as calendas
gregas.
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