9 – A DESCOBERTA DO SEPULCRO
by albertosolana
Tradução por Paulo Santos
O relato da descoberta também se faz em
forma de lenda: No reinado de Afonso II, o
Casto, um eremita chamado Pelayo, próximo
à aldeia de Solovio, foi testemunha da
existência de lamparinas no bosque de
Libredón, onde vivia, recebendo em sonhos a
profecia dos anjos de que se tratava dos
restos
do
Apóstolo.
Os
fiéis
que
compartilhavam o conhecimento do fenómeno,
informam o bispo Teodomiro, que perante o
depoimento, deslocou-se ao lugar, e
surpreendido pela descoberta, ordenou à
comitiva fazer três dias de jejum, e depois
mandou abrir uma brecha no bosque para
observar o que continha. Encontra no meio da vegetação, um pequeno edifício
com um altar, em cujo interior descobriu um túmulo maior e outros dois de menor
dimensão, que flanqueavam o primeiro, o que identifica como o sepulcro do
Apóstolo Santiago e seus discípulos, Atanásio e Teodoro.
A reação de Teodomiro, longe de precipitada,
pode valorizar-se de serena, considerando que
o episódio o podia elevar quase à mesma
categoria de Bispo de Roma, ao jazer na sua
diocese, os restos de um Apóstolo eleito do
Senhor. Poderia projetar uma viagem a Roma,
do Papa Leão III, ou ao império Carolíngio, de
Ludovico Pio. Um critério que nos indica que
mais do que o resultado de uma descoberta
magnífica, procurou dar a conhecer uma notícia
oculta e que quer proteger. Evitou atitudes
grandiosas e limitou-se a informar a seu rei,
Afonso II, monarca do reino asturiano, que
lutava mais pela subsistência que pelas
grandezas históricas. A reação asturiana não foi
tão rápida como é habitual ser referida, senão mesmo contida, pois em Oviedo já
existia, fundada pelo rei Fruela I, no século VIII, uma veneração ao templo préromânico, cuja câmara santa guardava as valiosas relíquias e onde se realizava o
culto ao Salvador. O descobrimento jacobeu veio despertar um sentimento de
concorrência moral e uma dúvida legítima da autenticidade. Por isso, as crónicas
oficiais asturianas foram discretas.
Posteriormente,
a
descoberta
parece que acabou por convencer
o monarca, que organizou uma
viagem com a corte ao túmulo, e
mandou construir no ano de 834,
vários anos após a descoberta,
uma igreja que acolhesse o
mausóleo.
Esta
viagem
do
monarca desde Oviedo até
Compostela é considerada como a
primeira peregrinação oficial ao
lugar santo, originando o que hoje é denominado por Caminho Primitivo. Ao que
tudo indica, Teodomiro apresentou argumentos que
creditaram ao monarca a certeza na descoberta, e
este acaba por reconhecer e avalizar. Não o faz
erguendo um Templo grande, mas sim uma
modesta basílica de pedra composta por uma única
nave, junto da qual se edificaram as igrejas de São
Salvador e de São João, o mosteiro de Antealtares e
o
palácio
episcopal,
conjunto
que
se
dimensiono
u com uma
muralha definindo um recinto que
constituía o Locus Sanctus Iacobi.
Depois dos reinados de Ramiro I e Ordonho I, o rei Afonso III, durante o
episcopado de Sisnando I, derrubou a primitiva igreja e mandou erigir outra maior
e suntuosa, composta por três naves, em pedra talhada e com colunas e pisos de
mármore, cujas obras se iniciaram no ano de 872 e foram consagradas em 899.
Mais tarde, Sisnando II, perante os sucessivos ataques normandos, reforça com
maior solidez a primitiva muralha do Locus. Este foi o conjunto arquitetónico que
Almanzor destruiu no ano de 997. As duas basílicas asturianas, muito diferentes
em dimensões e revestimento de materiais, têm um ponto em comum: conservar
a Edícula (nicho) Sepulcral romano no topo. Ambas foram edificadas para guardar
o sepulcro jacobeu.
O facto é interpretado por muitos como uma iniciativa eclesiástica ao serviço da
Reconquista da Península, e consideram a descoberta, resultado de oportunismo
militar, ao serviço da reconquista e da igreja.
O oportunismo militar, esgrimido com
frequência, é tão aparente como
inconsistente, pois Santiago já era
motivo de culto no norte de Espanha,
considerado padroeiro e protetor, cerca
de 50 anos antes do descobrimento da
sua sepultura, e dado que entre o início
da Reconquista, em 722 e o momento da
Inventio, em 829, decorre mais de um
século, tornando o referido argumento
refutável.
A “grande” batalha de Clavijo, supostamente decorrida no ano de 844, durante o
reinado de Ramiro I, implica tal manipulação de dados e interesses que a
convertem numa falsidade histórica. Tem início na afronta ao tributo de cem
donzelas, supostamente indicado pelo rei Mauregato dos muçulmanos com o
intuito de evitar contendas guerreiras. A glória do triunfo, com a ajuda milagrosa
do Apóstolo Santiago, desde esse momento com a alcunha de Mata-mouros,
profetizou ao rei em sonhos, que a sua intervenção, seria favorecida num cavalo
branco e espada prateada, que o levaria
à vitória, e em agradecimento o rei
estabeleceu um tributo (promessa a
Santiago). Sánchez Albornoz demonstra
que esta batalha não existiu, e que a
verdadeira contenda decorreu em MonteLaturce, em Albelda, e vencida alguns
anos mais tarde por Ordonho I, sem o
mencionado tributo de donzelas, nem
intervenção milagrosa, nem a promessa
a Santiago. Foi Ramiro II, rei de Castela
e León, em peregrinação a Compostela,
que invocou a proteção do Apóstolo,
outorgando a promessa a Santiago
depois da batalha de Simancas, no ano de 939, sendo auxiliado pelos condes
Fernán González e Assur Fernández, e alcançado uma sólida vitória sobre as
tropas de Abderramán III.
Santiago converte-se em símbolo para as
tropas, de modo isolado e pouco decisivo
num extenso processo de séculos, onde
nem sequer é o único que ostenta a
alcunha de mata-mouros. No reino de León,
com o padroeiro Isidoro de Sevilha
(sepultado em León), é invocado a mesma
alcunha, e o mesmo acontece com os
castelhanos, com o seu patrono São Millán
da Cogolla. De acordo com tradição
cluniacense, anterior à descoberta do
sepulcro, cada
exército tem seu patrono e rende tributo em forma de
promessa. Santiago acaba por se impor no final do
Século XIV, com a Reconquista já muito avançada e
que resulta numa Espanha Imperial cujas guerras
divinas encontram um estandarte adequado. Inclusive
ainda no século XVII, San Millán volta a ser
proclamado Patrono de Castela, e copatrono de
Espanha, e inclusivamente, nesta época é proposto
consentir o patronato de Espanha a Santa Teresa em
detrimento de Santiago. Invocar o mito de Santiago,
mata-mouros, como montagem pró-reconquista é um
erro, que contribuiu muito para o legado património
artístico, mas que não tem relação com a origem da
Tradição Jacobeia.
Para Sánchez Albornoz, a Reconquista não teve nada de guerra santa, portanto
não obedecia ao cumprimento de um conceito proposto pelo Islão, nem se
entendia como forma de morte mártire. Também não pode ser entendido como
uma cruzada, porque não foi levada a efeito com motivações religiosas nem a
extensão de um credo. Ainda que a Reconquista tenha tido início em
comunidades periféricas do reino visigodo de Toledo (astures, cántabros…), com
a tradicional resistência a ser subjugada,
nos territórios hispanos do norte,
mistura-se com os interesses dos godos
fugitivos da batalha de Guadalete, em
711, perante as tropas berberes do norte
de África que atravessaram Gibraltar, ao
comando de Tariq e Muza, por mediação
do Conde dom Julián, no conflito
dinástico pela coroa de Witiza. A ajuda
converte-se em invasão, e sozinho durante quatro anos, sem resistência, por
capitulações pacíficas, transações e pactos amistosos, e às vezes por força
militar, apoderam-se de quase toda a Península
Ibérica. Dom Pelayo, foi o obreiro da união da
revolta dos povos do norte com a motivação
patriótica dos visigodos fugitivos e congrega
num único movimento que, talvez a partir de
sentimentos diversos, se reúne numa frente
comum. Assim, desde a fundação de Oviedo,
no Século VIII, a Reconquista tem como
objetivos mencionados em crónicas, a expulsão
dos muçulmanos como usurpadores do
visigodo, e a restauração do reino visigodo, que
já tinha conseguido a desejada unidade
territorial entre o ano de 476 e 711. A intacta
identidade visigótica reiniciou cedo um
processo de restauração, não por motivação doutrinal, mas patriótica. Assim, é
infundado julgar, que mais de um século após seu início, se recorresse à farsa de
um sepulcro grandioso para incentivar a Reconquista.
O oportunismo eclesiástico tem menos fundamento ainda, porque a Tradição
Jacobeia, contrariamente ao que se costuma deferir, não foi criada pela Igreja à
sua medida, sendo inclusivamente a primeira em adotar uma atitude crítica, tendo
Roma ignorado durante muito tempo Compostela. No final do século X, a igreja
hispano-visigoda, considerada arruda e ignorante, possuía pouco prestígio em
Roma, em contraste com a celebridade de Santiago, citada nas crónicas
muçulmanas como o mais importante santuário cristão de Hispânia, aonde
peregrinavam com origem em todas as partes da Europa, inclusive de Roma.
Desta forma, é iniciado uma rivalidade latente entre Santiago e Roma, que
resultou na primeira iniciativa romana de
abolir o rito visigótico e substituí-lo pelo
romano. Em meados do Século XI,
Roma observa com preocupação a
crescente predominância que atinge toda
a esfera cristã da igreja de Santiago, de
que o bispo Iriense, Cresconio (10371066), desperta uma onda de inquietude
na sede do catolicismo, com a acusação
de se preocupar mais com armas e milícias do que das questões pastorais, com
domínio sobre outros bispados hispanos, com poder concedido pelos reis e
prestígio bélico reconhecido em crónicas, e sobretudo por denominar-se episcopis
lriensi apostolicae sedis. Marcado com todos estes incidentes, que são
entendidos como gestos de insubmissão perante os representantes enviados pela
Igreja Católica, em questões de protocolo de receção, bem como algumas
declarações que soaram discordantes, a suspeita converteu-se em acusação de
arrogância e soberba, e diante o risco de um problema eclesiástico, o Papa León
IX, no Concilio de Reims, no ano de 1049, excomunga Cresconio, por conceder a
si próprio o título de bispo da sede apostólica, que é entendido por Roma como
uma exagerada ambição de superioridade da Igreja Hispana, num tratamento
igualitário para com a sede do catolicismo. Simultaneamente, na excomunhão,
ditam-se vários cânones que afetavam a velha igreja hispana, em particular à de
“Gallaecia”.
Mas se são infundadas as argumentações de oportunismo, o discurso deixa
impressão e, em relação a Santiago, os críticos que tomam o partido anti jacobeu,
questionando a historicidade de Teodomiro, chegando a ser encarado uma
personagem fictícia para a ocasião, e negar a existência precedente de
Compostela, que se considera uma cidade criada no século IX para “albergar” um
sepulcro inventado, desencadeando o desnecessário dilema se Compostela é ou
não uma montagem ao serviço de interesses militares e eclesiásticos.
É certo e deve ser assinalado, que Santiago é dirigido
com diversas intenções muito direcionadas, sugerindo
ser uma montagem em que muitos obtêm resultados:
os militares conseguem dedicação nas batalhas; os
reis e políticos ganham terrenos conquistados; os
monges conseguem promoção da peregrinação que
eleva as doações e mordomias; os prelados atingem
benefícios fiscais e favores económicos; a Igreja
adquire a captação de devotos e designa uma
alternativa à Terra Santa…. Estes interesses,
frequentemente utilizados pelas mais mesquinhas
atitudes humanas, mancham a Tradição Jacobeia, de
igual forma que fizeram os mercadores no Templo de Jerusalém.
Mas estes nunca foram os motivos geradores, senão atitudes que rentabilizam
um fenómeno anterior que não é fruto de uma montagem oportunista ou de um
simples erro. Caso tivesse sido, a História e a arqueologia teriam detetado, e não
existe tal referência. Não se aceita que Compostela fosse o resultado de uma
super-trama multidisciplinar, um complô supra-histórico, em que os dados
documentários favoráveis carecem de rigor ou são falsificações, na necessidade
e na oportunidade de que umas relíquias sejam motivo suficiente para que se
alinhem num mesmo grupo monges, prelados, políticos, reis, militares, homens de
ciência, peregrinos de toda a condição, e as atitudes e documentos de gentes de
diferentes momentos históricos, sejam interesseiros, ou falsos, ou equivocados,
ou manipulados. E ainda, que todos tenham sido capazes de coordenar uma
mentira ao longo dos séculos, transmitida na perfeição, que encubram a
montagem sem resquícios, indetetáveis à arqueologia, sem que hoje em dia seja
possível desmentir. Apenas esta situação tem tanto peso argumental, que ainda
sem ser demostrativa, guarda muita convicção em favor da Tradição Jacobeia.
Seria bem pouco se isto fosse tudo, mas há bem mais.
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9 – A DESCOBERTA DO SEPULCRO Tradução por Paulo Santos