Não se pode julgar a beleza do caminho a ser percorrido
olhando apenas para a porta.
Agradeço a minha 'buchinha de pia' que abandonada ficou
todas as vezes que preferi esfregar pensamentos no papel,
invés de pratos...
Desprendimento
Uma única batida na porta e ‘Que malas são essas?’ disse
Otoshi quando entrou no aposento. -Tenho que ver minha
mãe, ela apenas me espera para despedi-se do mundo - disse o
monge ainda no seu traje vermelho. Riut não imaginava que
coisas devia guardar, nem as que devia levar. O clima do Brasil,
tão quente, certamente o faria dispor da tchuba e do manto
zhen e arrumar roupas ocidentais, de acordo com o lugar. Seus
guardados empoeirados pelas lembranças, trouxeram àtona
duas bolas de gude, um gibi do Cascão, um compasso e uma
mecha de cabelo, que a mãe havia pedido tanto que guardasse
assim que cortasse seu cabelo negro para um dia depositá-lo
como suvenir em suas mãos. ‘Que lembranças são essas que as
mães guardam nos cabelos’? Dizia a mente de Riut, enquanto
dentro da pequena caixa de papelão, depositava os
fragmentos do passado, com moleques puxando rabo de
gatos, com bolas de basquete murchas, dedões dos pés
esfolados fazendo assim, as covinhas de sorriso brevemente
aparecer.
Piamente acreditou em seu bisavô quando disse ‘ esse menino
não é daqui ‘; e hoje entendia bem o que ele queria dizer: não
pertencia ao mundo que vivia. O mundo comum, a opressão, a
velocidade, contas à pagar. Era do mundo considerado
intelectual, orientado, organizado, adestrado, severo e recluso.
Mas no momento doía saber da doença de sua mãe e por isso
estava voltando ao Brasil assim, apático e correndo, como se
fosse uma ida à padaria sem ainda acordar realmente, ou ir no
jornaleiro interar-se das noticias mesmo sem saber direito
ainda qual o dia da semana. Era o que sentia. E isto estava por
fora, no movimento com a mala que custava fechar o zíper;
não pela quantidade de roupas mas pelo minúsculo tamanho
dela. Dentro dele, os estudos pairam como em águas claras,
numa torrente de informações adquiridas para seu
crescimento e satisfação pessoal como estudioso e professor,
mas encerrara no dia anterior suas atividades com os
adolescentes; não iriam mais ouvir sua voz, falando
repetidamente seus nomes, para que gravasse já que eram
tantos e tão parecidos uns com os outros.
A luz do sol que, várias vezes adentrou-se no quarto pela
manhã das cinco horas, entrou junto à Otoshi e sem avisar
encheu de melancolia, sentimento que havia retido no
passado, agora estava despedindo-se de seu presente
afortunado de sabedoria para empreguinar-se nos autos da
dor. Seus olhos que por várias tardes fotografaram aquele sol
poente, os jardins repleto das flores da época junto ao amigo e
companheiro desta fase de sua vida, estavam agora vendo as
coisas sendo guardadas; cada uma no seu lugar, com uma
organização logística, concreta e visual, enquanto Otoshi
sentado na cadeira por si mesmo feita, olhava atentamente
seu desprendimento e desapego trabalhar a seu favor, já
imaginando apenas as suas coisas ali e não conversando mais
com ninguém coisas que apenas com Riut podia falar. Estava
trabalhando dentro de si a ausência de seu amigo, enquanto
este mesmo arrumava as malas para sua viagem talvez sem
volta, na ausência que ele deixava quando estava calado
mesmo tão presente.
Otoshi sabia que o desejo é a causa crucial do sofrimento; a
aniquilação do desejo leva à aniquilação do próprio
sofrimento, então tinha que sentir a partida de Riut como um
trocar de roupas, como apenas uma passagem, como mais um
esclarecimento de que nada é para sempre.
Uma xícara de chá foi rompida por um chute desastroso,
levando às risadas de Riut, dizendo ‘sempre faço isso’,
delatando seu desajeitado modo com pequenos utensílios.
Otoshi não ria, por que tudo era ainda muito recente, fazia
apenas horas que seu amigo havia recebido a mensagem
urgente, ninguém estava preparado; nem para viajar, nem
para distanciar-se do convívio de dez anos instalado entre eles.
O chá sempre desempenhou importante papel, com profundas
raízes nas diversas camadas sociais, na cultura do povo e,
nesse instante era tudo o que Otoshi lembrava, vivera tanto
tempo ao lado de Ruit que sabia exatamente quantas as
pitadas de açúcar eram necessárias. Vendo essa imagem
enquanto Riut pegava os cacos, Otoshi orou e cruzou os
braços. ‘Vou sentir sua falta’, saiu falando e encostando a
porta, Riut sentiu ali que algo estava errado e seguiu logo atrás
deixando a cama ainda por fazer.
Despedidas
‘ Você é meu irmão, Ruit’, disse Otoshi sendo apartado no
corredor pelo amigo. Otoshi sentiu os olhos molharem, mas
segurou o quanto pode, abraçou-o forte e continuou andando.
Ruit ficou pelo caminho, olhando as sandálias do amigo
desaparecerem pelo salão lembrando da historia que custou
contar quando veio morar em seu quarto, bem jovem, mas
muito traumatizado. Otoshi dias antes de entrar no mosteiro,
havia perdido o irmão gêmeo por um derrame, uma causa
desconhecida e alarmante. O que devia ser um funeral
familiar, estava de um estrelato gigantesco, com pessoas
olhando seu irmão morto apenas pela curiosidade e cheios de
perguntas, “como um menino de 16 anos sofre um derrame
cerebral?” entre outras que desgastaram familiares, pais e tios.
Otoshi então, passou outros dez anos de sua vida ao lado de
seu novo irmão Riut, depositando nele confiança e confissões,
e agora tinha que caminhar aos vinte e seis anos sozinho e
liberto, entendendo que tudo que vem, vai um dia.
Riut compreendeu esse desassossego, mas nada podia fazer,
estava com trinta anos e muito jovem tomou a decisão de
dedicar-se ao encontro de si, deixando seu ninho para trás, e
agora devia deixar seu ninho novamente mesmo com tantos
percalços e saudade. As tardes com seu amigo e ‘irmão mais
novo’ foram boas, proveitosas, mas a mãe o esperava e o
destino estava traçando assim as coisas naquele momento.
O enorme mosteiro reluzia vermelho nos mantos e pilastras,
no chão e nos adornos. Vermelho eram alguns vasos,
desenhados ancestralmente; vermelho era seu sangue
brasileiro correndo nas veias do braço, que encostara por um
momento na parede e, levando a outra mão em sua cabeça
sem cabelos, retirou seus óculos, de armação antiga, apertou
seus dedos nos olhos, para nao deixar a hospede nostalgia
escorrer. Lembrou-se de quando foi conotado misantropo,
ausente e recluso; e viu que a convivência com Otoshi tinha
ajudado a viver melhor, sorrindo mais. Tudo o que aprendeu
na companhia do amigo ia ser levado em conta, sempre,
mesmo por que ninguém vai em lugar algum se não tiver um
amigo. Faz parte da saúde do espirito.
Voltando ao quarto, algumas folhas deixadas sobre uma
singela mesa fez aparecer a ideia de deixar algo ali para esse
amigo, que por hora estava sentindo novamente mais uma
perca, também dura, mas provável. Apoiou os dois cotovelos
sobre o papel em branco e minutos depois apenas conseguiu
distanciar-se mais, mais ainda como se fosse possível, embora
em nada tivesse apego, mas de uma maneira que refletisse
apenas um conselho para alguém que fica, enquanto outro
desperta sozinho:
“Se você sofrer, você dissipa energia, a energia sai de você
quando está magoado. Ao invés disso, sacuda-se. Feche seus
olhos e apenas observe o sofrimento, seja qual for; metal,
físico, existencial. Observe-o e transforme-o em meditação.
Olhe-o como se fosse um objeto. Não se esqueça que o
homem é muito mais mental, vive muito mais em sua própria
cabeça. Eis por que maior número de homens ficam loucos e
em maior número se suicidam. Lembra daquele dito que
estudamos, simbolizado pela serpente que come o próprio
rabo? Significa o encontro do começo com o fim, movendo-se
como em um círculo, voltando à fonte, você chega ao lugar de
onde veio. Este é o momento da volta deste círculo, não posso
impedir. Nós aprendemos a viver com nós mesmos bem antes
de dividirmos este trecho de nossas vidas. Adiante, então.”
Ocorreu um aumento no volume da voz no corredor, fazendo
Ruit terminar o bilhete sem assinar. Olhou para as malas
prontas, virou-se e foi caminhar pelo lugar, para despedir-se
de mais alguns detalhes, de alguns cheiros e algumas
paisagens. Quase sempre com o semblante sem expressão,
Riut caminhou até o lugar onde toda a tarde seus amigos e
alunos liam silenciosamente. Cheio de certa emoção
contemplou as colunas talhadas de dourado e vermelho, os
desenhos e pinturas, os símbolos que rodeavam todos os dias
seus rostos, seus pensamentos maduros. Viu que passou anos
mostrando nada além de retidão e boa conduta, que foi
alguém que progrediu dentro de si, que não teve sonhos, nada
o entusiasmou, pois não se permitiu sonhar e isso foi bom. Ia
voltar para seu antigo reino, o Brasil, apenas com vontade de
rever a mãe e a família, independente de algum remorso,
sonho desfeito, sentimento de culpa ou arrependimento. Disse
para a mãe dez anos atrás, arrumando as malas com pouca
roupa, dizendo ‘vou por que este é meu caminho’, acariciando
seu cabelo, ‘ não vou mais precisar de tanto’, queria apenas
paz e renovação de seu ser, ‘vou por que este é meu caminho,
mãe’ tendo de volta a cabeça baixa dela como aprovação
apesar das lágrimas. Deixou os tios, tias, pai, mãe e o avô, que
morreu logo assim que viajou, ‘ não aguentou ficar sem o
neto’, disse sua mãe ao telefone.
Talvez causara desgosto, fez pessoas questionarem muito, fez
alguns darem por vencidas as tantas maneiras que tentaram
usar para que mudasse de ideia, por que as pessoas não
entendem bem quando queremos viver no mundo; mas longe
dele ao mesmo tempo, viver o mundo dentro de si,
concertando sozinho defeitos, lambendo as feridas em
silêncio. Também ficou distante de tudo, chorou algumas
noites, mas não por ter mudado de país, mas por não ter visto
Emanuela antes de partir, sua única prima.
A viagem era instigante. Mover-se entre os arbustos sem ser
notado era difícil, mas Riut traçou um caminho, até a mais bela
vista que tinha, à direita de sua janela, do lado de fora de sua
enorme casa, malas na mão, apenas duas, não juntou muitas
coisas nesses anos de reclusão. Atingindo os portões, alguns
fotógrafos clicavam na direção dele, gesticulando e falando em
varias línguas, palavras que um ‘que lindo’ o sacudiu,
percebendo brasileiros a vista. Uma fotografa havia até parado
de fotografar, por que talvez suas lentes a impediam de
admirar tamanha construção milenar, porém os olhos da moça
acabaram por seguir os passos de Riut, que atingia a saída, um
flash cortou ambos olhos entremeio as fotos e outro flash
explodiu assim que Ruit estava na calçada, olhando a direção
contraria. Ele olhou novamente, dotado de timidez, a moça de
cabelos bem negros que despetalou um meio sorriso de volta,
mostrando que havia o fotografado. Riut sentiu o vento
cortando e uma sombra de chuva bem na direção que havia de
seguir, até pegar um taxi ao aeroporto, não retornou a visão
para o mosteiro, não devolveu o sorriso para a moça da foto,
não devolveu o adeus que Otoshi jogava la de cima, da janela
do quarto, mostrando uma caixinha que Riut deixara para ele,
com livretinhos de orações e uma pena de pavão. Riut pensava
na mãe e assim seguiu seu caminho, trabalhando o desapego
dentro da roupa das malas, únicos vestígios de lembrança.
Riut ficou algumas horas no aeroporto, seu avião atrasou.
Atingira todo o tipo de pensamento nesse intervalo de tempo,
pensou na imagem da mãe na cama, como descreveu a
enfermeira ao telefone, pensou nas sensações de estar num
avião que há muito tempo não sentia, pensou no barulho que
há muito não ouvia, pensou na multidão que o cercava,
pensou em Otoshi sozinho no quarto, pensou se ele havia lido
o bilhete, pensou no avô que não iria mais ver, folheou um
jornal, orou, mudou poucas vezes de posição no assento
público, olhou para crianças, pensou na prima ‘Manu’ que era
mais jovem que ele e tão esperta, pensou nas horas, no clima,
na fotografa. O último pensamento antes de entrar no avião
foi na moça que o fotografou pela última vez na China.
Regresso ou regressão
Viajando sentado na poltrona da janela, Ruit avistou o
anoitecer vindo com o brilho das luzes de Milão, onde fez
escala antes de finalmente desembarcar. Viajou imóvel, calado
e sisudo, até franzir o cenho quando viu voltando, de onde
possivelmente era o toalete, a fotógrafa que, pela manhã
passada retratara seu rosto numa imagem flagrada pela sua
máquina de sonhos, onde lá se registravam paisagens e sabia
bem Riut que seu rosto não era nada paisagístico; porém sabia
bem que havia sido fotografado e era a mesma pessoa que
naquele instante seguia dentro do avião na direção contraria,
provavelmente voltando para sua poltrona. Ergueu as
sobrancelhas em sinal de ‘coincidência’.
As sensações estomacais de Riut aumentavam a partir das
oscilações do avião, mostrando que o pouso estava próximo e
a terra brasileira também. Mesmo com a turbulência, tudo
correu bem, caminhou um pouco eufórico dentro do
aeroporto, atingindo os portões principais e avistando um
aparelho de telefone público. ‘Apenas umas horas’ disse
acalmando seu tio ao telefone, o qual demonstrava tamanha
insatisfação pelo estado de sua cunhada, e medo de que Riut
não chegasse a tempo. ‘Logo estou ai’ disse para si mesmo,
arrumando a mala de mão no colo, dentro do taxi que já saíra
às pressas por seu pedido. ‘Tanta exaltação e pressa. Que
estou fazendo? Não vou salvá-la, apenas vê-la. ’ E ainda
continuou olhando para a rua: ‘Isso é mesmo necessário?’
Nem deixou as malas no carro de Sólon, seu tio, já avistou seu
primo Nicolas parado na porta do hospital, saudando-o com
um abraço sem gosto algum, mostrando tamanho transtorno e
tensão. -As coisas vão mal por aqui - repetiu afagando em
silêncio as costas do primo, que continuou parado na mesma
posição inicial, mostrando que nada mais na família estava
acontecendo a não ser a doença de sua mãe. Leda, mãe de
Riut era o ‘arranjo de flores mais belo da casa’, segundo seu
pai dizia. Mas o vaso estava vazio, e entrando no quarto,
finalmente ele entendeu o por que. Leda estava entubada e
dormindo, um dormir de quase morte pousava em sua
respiração lenta. Aqueles cabelos negros e longos, findaram-se
nos brancos curtos e mal cuidados que a doença se encarregou
de deixar. Muito magra e branca Leda fez um breve sinal,
quando ouviu a voz de Riut dizendo ‘já cheguei’ perto de seus
ouvidos. Enquanto alguns choraram, pessoas estas que Riut
não fazia esforço de se lembrar quem eram, sentou-se na
cadeira ao lado e disse com a cabeça baixa para seu próprio
coração: ‘A verdadeira mudança sempre leva muito tempo
para acontecer. Tudo vai melhorar agora.’
Fez-se um instante de silêncio no local, alguns sussurros
cessaram-se. Riut apenas avistava um tremor na boca de uma
senhora, que mantinha um lenço entre os dedos, nobre. - Com
muita honra despeço-me de minha amiga de anos, que muito
me ensinou sobre paciência. - disse a mulher, retirando-se.
Percebendo que sua mãe havia sido muito boa para a mulher,
fez menção de agradecimento com a cabeça, tocando pela
primeira vez na pele da mãe que por última vez estava quente.
Em instantes, totalmente empalideceu-se e fez a passagem,
abandonando seu corpo frágil de sessenta e dois anos
carcomido pela ferrugem da osteoporose e pelo sangue
leucêmico.
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