FERIDAS DA PELE, FERIDAS VINCULARES
Mtra. María del Carmen Cuenca Zavala
Você está no fundo do poço/ Não sente o peso do lençol/o cheiro do quarto do hospital./Uma besta
de sangue / percorre o labirinto do teu corpo,/ a tua a memória é um rio de lava escura
Carmen Villoro
Na nossa experiência clínica, ocasionalmente, encontramos pessoas que nos
marcam profundamente, ao nos separarmos delas pode ser ao mesmo tempo, um
acontecimento feliz, quando o paciente mostra certos avanços no seu tratamento
e triste ao sentirmos uma separação que dói, acho que foi por isso que nasceu o
desejo de escrever este trabalho.
A palavra vínculo vem do latim vinculum e significa atar, unir, juntar, ligar, fazer um
nó, unir uma pessoa ou uma coisa com outra; psicanaliticamente utilizamos o
termo para designar a união da criança com sua mãe, com seu pai e,
posteriormente, com outros objetos, entre eles talvez a criação do vínculo com o
analista; me pergunto, é possível atar um nó que nunca se originou. Ao ser
abandonado pela mãe nas primeiras semanas de vida deixa o filho sem algum
vínculo possível? Dito de outra forma podemos falar de um não-vínculo?
Alguns autores como Winnicott (1968), Bion (1980) Auglanier (2004), deram
grande importância à relação da mãe com seu filho nas primeiras etapas do
crescimento. Didier Anzieu (1987) defende que os contatos da pele mãe-filho
fazem parte da estrutura do aparato psíquico. Winnicott diz que é a mãe quem faz
o papel de Eu auxiliar para que, através de sua contenção, o bebê vá formando
um Eu estruturado, genuíno, flexível, forte, que com o passar dos anos, lhe
permita separar-se dessa mesma mãe e desfrutar da vida sozinho ou em
companhia de alguém.
Neste trabalho quero tratar sobre a importância do vínculo mãe-filho nas primeiras
semanas de vida e das possíveis conseqüências no corpo e, depois sobre a
psique, do que chamo não-vínculo, em uma menina.
De acordo com Anzieu (1987) quando a mãe amamenta o bebê lhe proporciona
outros cuidados corporais, segura-o nos seus braços, aperta-o contra seu corpo,
fala com ele, canta para ele, comunicando-se através da pele e da sonoridade.
Assim, a criança adquire a percepção de sua própria pele, como uma superfície de
contato interno e externo, uma segurança de apego com a sua mãe, um
sentimento básico que garante a noção física de estar inserido na sua própria pele
e na pele da mãe.
Anzieu (1987) propõe que existe um Eu-pele, que nas primeiras fases do
desenvolvimento compreende os conteúdos psíquicos da experiência do corpo, é
como uma espécie de superfície onde ficam gravadas as marcas deixadas pela
relação com o outro.
Quando conheci Mili, era uma menina de 6 anos de idade, ia ao pré-escolar,
morava com seus pais adotivos, um irmão mais velho de um ano e meio e um
meio-irmão de 2 anos de idade. Era muito magra devido a um problema de
nascimento (atresia esofágica com fístula traqueosofágica), apresenta múltiplas
cicatrizes no abdômen por causa das operações, uma, especialmente enorme e
proeminente que atravessa todo o corpo de forma vertical, um orifício no pescoço,
outro na parte esquerda do tronco (gastrostomia) ao qual ela chama de “botão”
pelo qual é alimentada até a data de hoje quando não quer comer pela boca. Sua
pele é morena e seca. Certos dias, quando entra para a consulta está alegre e
vem pulando, outras vezes, entra quase indiferente como se não percebesse a
minha presença. Chega à consulta porque existe uma denúncia de maltrato infantil
na instituição governamental para a qual trabalho, que vários anos depois fizemos
uma visita para supervisão.
Apresenta pouco peso, não quer comer pela boca e não se pode retirar o
gastrostomia até que tenha um peso normal. Ela sofreu 8 operações, acho que a
última foi quando tinha 4 anos de idade. Tem medo de se perder ou perder a sua
mãe
(adotiva),
apego
excessivo
com
ela,
apresenta
uma
linguagem
desorganizada, ansiedade, alguns episódios de privação com berros, atos de
rebeldia ou agressividade contra sua mãe, problemas de aprendizagem na escola,
a mãe comenta ter medo que a menina se afogue de noite de tanto gritar.
Apresenta enurese noturna e ocasionalmente encoprese.
Para Anzieu “A profundidade da alteração da pele é proporcional à profundidade
da ferida psíquica”. (1987.P, 46). Já Bion teoriza a existência de um continente
psíquico que permite à criança sentir-se contida, na sua ausência os perigos de
despersonalização estão ligados à imagem de um envoltório que se pode perfurar
e a angústia de haver um derrame da substância vital pelos buracos. No meu
primeiro contato com Mili fiquei impressionada com a cicatriz que atravessava seu
tronco, pensava como uma criança tão pequeninha já tinha em seu corpo marcas
de feridas tão profundas, feridas psíquicas inscritas somente no corpo, que na
falta de palavras estas eram expressas através de toda a sintomatologia que
apresentava, como um grito de socorro. Recentemente tivera varicela, mas com o
passar dos meses as marquinhas que eram como pontos em toda a sua pele não
desapareciam e me veio a idéia de um coador. Sua pele mostrava algo de sua
psique; ela devia sentir-se assim, como diz Bion, penetrável e com risco de
esvaziar-se, por causa disso se defendia sendo uma menina rebelde, dominante,
agressiva, sem capacidade para conter suas próprias substâncias, expelia tudo
por todas as partes: saliva, sangue, xixi, cocô; às vezes chegava com um lenço no
pescoço para cobrir sua ferida e ao brincar o jogava no chão, me sentia
angustiada com medo que pegasse uma infecção: ela, para sentir-se normal,
pensava que o resto das crianças da escola também tinha “botões e mais
buraquinhos”.
A mãe biológica, durante sua gravidez, morou na casa de seu irmão Juan, ao
nascer Mili com problema de alimentação a deixou no hospital um mês e meio
para tratamento, depois que a entregaram ela não lhe deu os cuidados adequados
e a menina foi internada novamente durante dois meses apresentando um quadro
de desnutrição. Nesse meio tempo quem cuidava da menina era seu irmão e sua
esposa, que a abrigaram e deram início aos papéis para uma adoção legal,
ficando a menina registrada como filha natural de ambos. Juan e Laura adotaram
também seu irmãozinho Joseph de 2 anos de idade e passaram a cuidar deles.
Bion, Anzieu e Winnicott, coincidem que uma mãe sadia está naturalmente
disposta a receber e curar a dor de seu filho, ser responsável e cuidá-lo, mas ao
falhar esta conexão, a dor intensa desorganiza o aparato psíquico. As semanas
que Mili passou no hospital sozinha, sofrendo operações, devem tê-la deixado
extenuada, por isso, acho que os cuidados que recebeu de seus pais adotivos
foram motivos suficientes para ela “se agarrar” a eles, mas não só isto, senão uma
grande força pulsional, se aferrou à vida já no ventre materno, que desejava
expulsá-la. No início deste trabalho me perguntei: existiu, para minha paciente,
vínculo primário possível? Acho que Mili lança as suas próprias amarras por
qualquer lado, ou seja, se agarra forte apesar do rechaço primordial da mãe
biológica, se une ao desejo de Laura de ser mãe, ao meu desejo de ser analista,
se agarra à vida. Não se pode dizer que não existe um não-vínculo, se assim
fosse, não teria sobrevivido, viveu por causa dos cuidados das enfermeiras, da
preocupação de Laura e Juan que iam vê-la quase todos os dias, quando esteve
internada pela segunda vez.
Para Winnicott o Eu se vai integrando nas etapas iniciais graças ao cuidado da
mãe, necessita da presença confiável e ininterrupta dos cuidados maternos, se
esta experiência é insuficiente, a capacidade para estar só não se desenvolverá,
por isso o terror de Mili de se perder, a separação da mãe é intolerável. Com 7
anos, chorava inconsolavelmente, ainda mais se a mãe ia de um lugar a outro
dentro da própria casa. Entendo que a capacidade de ficar só é um
desenvolvimento muito sofisticado, aqui se trata da incapacidade de se
representar a mãe, também relaciono o desejo de não comer pela boca com a
não-representação da boca-peito. Mili tem na sua psique tantos ou mais buracos
como na sua pele: o corpo não representado inteiro, o vazio da mãe, o vazio de
sua própria história, a deficiência em proporcionar palavras durante suas
hospitalizações, tudo aquilo que fica inscrito nas marcas da pele, na carne, no que
real.
Durante a terapia desenha repetitivamente uma casa multicolorida aberta (figura
1) que relaciono com a falta de continente e sua sensação de ser um corpo aberto,
sem diferença dentro e fora. Freqüentemente me pergunta onde eu estava antes
da sessão, que vou fazer depois da sessão, se tenho mãe.
Vinheta:
Nesta sessão entra, pede um apagador e desenha uma silhueta incompreensível,
a apaga, desenha novamente algo que parece uma árvore, apaga, apaga aos
poucos, continua desenhando e depois de ter terminado o desenho o apaga
completamente.
Mili:- Então, sua irmã vai vir ou não? Você tem irmãs?
T:- Parece que você quer saber muitas coisas sobre mim para me conhecer.
Mili:- Não. Você não tem irmãs?
T:- Não, eu não tenho irmãs.
Mili:- Se você não tem irmãs, então também não tem papai, não vão cuidar de
você, e se você não tem quem te cuide, talvez te entreguem à polícia para que
cuide de você.
T:- Você se sente assim sozinha, que em qualquer momento pode ficar sem quem
te cuide, você tem medo de perder teus pais.
Finalmente desenha uma árvore-flor (Figura 2) com uma boca de brabeza ou
tristeza.
T:- Essa parece uma árvore-flor que está zangada
Mili:- (Pega um lápis de cera branco, pinta a primeira boca, e desenha uma boca
feliz). Já está contente.
Eu relacionava suas múltiplas perguntas como uma necessidade de explicação de
seu próprio ser e sua história, não queria saber sobre mim, queria saber sobre si
mesma.
Os três autores (Anzieu, Bion, Winnicott) me ajudaram a pensar sobre o caso para
este trabalho, pois eles acreditam que o analista tem que oferecer, a sua paciente,
uma disposição interior e uma forma de comunicar que lhe garanta a possibilidade
de uma função continente, que lhe permita uma interiorização suficiente. O
tratamento durou só 6 meses, 2 vezes por semana. Trabalhou-se com desenhos
cujo objetivo era ajudar-lhe a pôr palavras as suas experiências atuais e construir
uma história para fazer uma espécie um casaquinho de tricô que se caracteriza
mais por seus buraquinhos que pela sua continuidade.
Finalmente, me pergunto: como se desata o vínculo analítico ao finalizar um
tratamento?
No artigo de dependência no cuidado de uma criança e no marco psicanalítico
(1963) Winnicott reconhece a alta dependência que o paciente cria com seu
analista e diz que é necessário ser muito cuidadoso para salvaguardar a
continuidade do self de um paciente. Quando foi iniciado o tratamento a mãe disse
que o comportamento de Mili piorou em casa e na escola, vejo isto como um
avanço no tratamento, embora expresse sentimentos hostis, que estavam
guardados e que estão implodindo no seu corpo, começa a falar através da sua
conduta, pretendo que fale na terapia, tarefa difícil, pois sei que não posso atendêla por muito tempo. Como manejar isto sem que se torne uma repetição do
abandono, primeiro da mãe, agora por parte do terapeuta? O tratamento concluiu
aos 6 meses como havíamos combinado com os pais e a paciente. Nos últimos 3
meses eu sentia a necessidade de dizer a Mili que nossa relação duraria pouco
tempo. No meu trabalho com esta menina utilizei várias sessões vinculares, com a
mãe, com o pai, com o irmãozinho, e em uma sessão familiar falei a ambas
crianças sobre sua história, sua origem, tudo isto com o objetivo de analisar os
vínculos atuais e proporcionar ferramentas aos pais para melhorar – dentro do
possível- o “ninho” atual da paciente. A relação terapêutica proporcionou a análise
do desejo de Mili de ficar morando no consultório ou de ir morar comigo, seu
rechaço aos pais adotivos, sua raiva contra a mãe biológica, contra a mãe adotiva
e contra mim mesma.
Não encontro resposta a respeito de como desatar o vínculo, é assunto para outro
trabalho, mas alguns autores dizem que o analista é esquecido ou descartado, a
questão é que neste nó foram atadas duas cordas em mim, e isso eu não esqueci.
Em uma sessão, Mili desenha um pássaro multicorido, imóvel sobre uma figura
alongada (figura 3), põe seu nome completo em cima (como sempre, a assinatura
nela é uma necessidade) e me pergunta se posso colocá-lo no meu escritório,
digo-lhe que sim, desce comigo, observa como coloco seu desenho no armário no
meu lado direito, ela se sente bem, vai embora contente. O desenho permaneceu
ali até que comecei a escrever este artigo.
BIBILIOGRAFIA.
Anzieu, Didier. “El yo piel.” Ed. Biblioteca nueva. Madrid, 1987.
Auglanier, Piera. “La violencia de la interpretação. Del pictograma al enunciado.”
Amorrortu editores. Buenos Aires, 2004.
Bion. “Aprendiendo de la experiência”. Ed. Paidós. Buenos Aire, 1980.
Freud, Sigmund. Obras completas. “Sobre la dinámica de la transferencia.” 1912.
Serres, “Michel. Los cinco sentidos. Ciencia, poesía y filosofía del cuerpo”. Ed.
Taurus. México, 2002.
Villoro, “Carmen. El tiempo alguna vez. Fondo de cultura económica.” México,
2004.
Winnicott, Donald. “Los procesos de maduración y el ambiente facilitador. Estudios
para una teoría del desarrollo emocional”. Ed. Paidós, Buenos Aires, 2007: “La
dependencia en el cuidado del infante y del niño, y en el encuadre psicoanalítico”.
1963 y “La capacidad para estar solo” 1958.
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