Posicionamento sobre atividades de ensino de arqueologia
propostas no âmbito da usina hidrelétrica de Belo Monte – Pará,
Brasil
Na condição de docentes e pesquisadores em Arqueologia, vimos nos
manifestar sobre a proposta de realização de um sítio escola na área
impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, recentemente divulgada
por empresa de consultoria através do site da SAB (Sociedade de
Arqueologia Brasileira).
Esta obra segue a descumprir as condicionantes do licenciamento ambiental
e vem gerando irreversível desestruturação sobre as formas de vida dos
povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Foi acusada de
causar um etnocídio indígena pela Procuradora Federal da República, Thaís
Santi,1 também por afetar e violar direitos fundamentais dos demais povos
tradicionais com remoções forçadas2 e degradação ambiental.
Consideramos grave o fato de que o Estado não exigiu nenhum trabalho
etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos das
comunidades tradicionais locais. Tampouco está claro se o destino da
coleção arqueológica resgatada será a cidade de Altamira e se o material
estará disponível para os descendentes das populações que ocuparam essa
região.
Em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma
conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo –
algo que a lei prevê, mas que devemos começar a questionar e propor
alternativas que sejam igualmente respaldadas pela legislação. Tentar
reconstruir a história dentro de um processo que acaba com a possibilidade
de transmissão de conhecimentos para as próximas gerações nos parece
um paradoxo. Naturalizar e mercantilizar este processo, que leva à
destruição ambiental e que representa a desestruturação cultural dos povos
– que, em muitos casos, podem ser descendentes daqueles que produziram
o patrimônio arqueológico que está sendo escavado – implica participar de
um processo totalitário.
Preocupações semelhantes levaram a Sociedade de Arqueologia Brasileira
em reunião da SAB Norte em agosto de 2014 a aprovar, em Assembleia
Geral na cidade de Macapá, estado do Amapá, uma moção de Solidariedade
para com os Povos do Tapajós. Um apelo foi feito aos colegas de profissão
para não participar do licenciamento ambiental das hidrelétricas da Bacia
do Tapajós, enquanto a consulta livre, prévia e informada (conforme
estipulada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho,
OIT e da qual o Brasil é signatário), fosse efetuada entre os povos indígenas
e comunidades tradicionais afetadas e reconhecida como tal pelo Ministério
Público Federal. No dia 15/06/2015 o juíz federal Ilan Presser suspendeu o
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html
http://www.prpa.mpf.mp.br/remocao-forcada-de-ribeirinhos-por-belo-monte-provocatragedia-social-em-altamira
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licenciamento da hidrelétrica de São Luíz do Tapajós e determinou a
necessidade de realização da referida consulta.
Acreditamos que um sítio escola deva, antes de tudo, ser norteado por uma
perspectiva de ensino pautada por preceitos teóricos explícitos, onde a
metodologia aplicada e a ética profissional estejam alinhadas para que os
estudantes participem de um processo de formação integral, o que
necessariamente inclui o desenvolvimento de um senso crítico em relação
ao contexto social em que atuam. Hoje, em pesquisas arqueológicas em
áreas que envolvem povos originários e comunidades tradicionais, não é
mais possível desconsiderar o contexto social circundante e desenvolver
projetos ignorando ou alienando seus moradores. Perguntamos se é correto
para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em
situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos
humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos
organismos.
Por estes motivos, manifestamos publicamente nossa contrariedade à
proposta tal como ela foi divulgada, recomendando que ela não seja
implementada. Propomos ainda discutir a criação de um protocolo único
pelo IPHAN, na forma de uma portaria e com termos de referência
específicos para cada caso, que definam com transparência todos os passos
da pesquisa arqueológica em contextos onde há povos indígenas ou
tradicionais, ou mesmo grupos sociais que vivam nos locais afetados. Uma
proposta deste tipo implica, ainda, a participação do Ministério Público
Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), da Fundação Palmares, de
movimentos sociais, da SAB e de outros setores da sociedade nacional. Isto
deveria envolver também a obrigatoriedade da divulgação e da publicação
detalhada dos resultados dentro de um período previamente estipulado,
igualmente dentro de um protocolo único e rigoroso.
Brasil, 23 de junho de 2015.
Firmamo-nos aqui,
Anne Rapp Py-Daniel – Universidade Federal do Oeste do Pará
Bruna Cigaran da Rocha - Universidade Federal do Oeste do Pará
Camila Pereira Jácome - Universidade Federal do Oeste do Pará
Carla Gibertoni Carneiro – MAE/Universidade de São Paulo
Claide de Paula Moraes – Universidade Federal do Oeste do Pará
Cristiana Barreto – MAE/Universidade de São Paulo
Eduardo Bespalez - Universidade Federal de Rondônia
Eduardo Kazuo Tamanaha – Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá
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Fabíola Andréa Silva - MAE/Universidade de São Paulo
Francisco Antônio Pugliese Junior - MAE/Universidade de São Paulo
Francisco Forte Stucchi – Biólogo/Arqueólogo
Francisco Silva Noelli - Universidade Estadual de Maringá
Gabriela Prestes Carneiro - Universidade Federal do Oeste do Pará
Guilherme Zdonek Mongeló – MAE/Universidade de São Paulo
Juliana Salles Machado - MAE/Universidade de São Paulo
Márjorie do Nascimento Lima – MAE/Universidade de São Paulo
Raoni Bernardo Maranhão Valle - Universidade Federal do Oeste do Pará
Vinicius Eduardo Honorato de Oliveira - Institute of Archaeology, University
College London
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