OS APÓSTOLOS DA EDUCAÇÃO E O INSTITUTO PONTE NOVA
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento1/EHPS-PUCSP
O Instituto Ponte Nova2 foi a primeira instituição de ensino secundário presbiteriana
que se dedicou a formar professores e pastores na Bahia. Este estudo se deterá nos objetivos
que levaram o missionário e engenheiro William Alfred Waddell a propor e fundar aquela
instituição educacional, em 1906, verificando que elementos formadores de determinada
conduta foram propostos por aquele modelo de educação bem como a materialização daquele
projeto, partindo da.documentação confessional e institucional localizada até o momento3.
Estudar a história do IPN, como ficou conhecido o colégio, na perspectiva da nova
história cultural permite compreendê-la “como instituição que é produto histórico da
intersecção da pluralidade de dispositivos de normatização e de práticas de apropriação; (...)”
(Carvalho, 1999, p. 32). Dispositivos estes de organização do tempo e do espaço, dos saberes a
ensinar, e das condutas a inculcar. A análise dos dispositivos por meio dos quais aqueles
religiosos interviram sobre a escola, e, conseqüentemente, na conformação do corpo e da alma
da criança, possibilita “penetrar na caixa preta escolar, apanhando-lhe os dispositivos de
organização e o cotidiano de suas práticas” (Carvalho, 1998, p. 32) e reconstituir as normas
que regeram as estratégias de imposição, apropriação e difusão daqueles saberes.
A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história da educação presbiteriana por
ter sido a primeira denominação protestante a organizar escolas secundárias no Nordeste,
procurando compreender a importância que a Bahia tivera para aquele grupo religioso como
locus de sua atuação educacional na região sob sua jurisdição e que tipo de instituição
educacional era aquela instalada no sertão baiano (Nascimento, 2004). Mesmo estando em
funcionamento durante quase um século na cidade baiana de Wagner, o IPN não tem sido
objeto de estudo por parte da historiografia educacional brasileira.
No período de 1871 a 1971, a Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos Estados
Unidos da América (PCUSA), conhecida como Igreja Presbiteriana do Norte, enviou
missionários e professores para a Bahia. Responsável pela implementação do trabalho
evangélico e educacional naquele Estado, já atuava no Sudeste desde 1859, organizando, além
de igrejas, instituições educacionais, das quais, a que mais se destaca tanto na historiografia
educacional brasileira como na historiografia protestante, é o Mackenzie College, de São
Paulo. Através da Missão Brasil, como ficou denominado seu órgão de missões estrangeiras
no país, a PCUSA agiu não só no cenário religioso brasileiro, mas, principalmente no
educacional, instalando uma rede de instituições educacionais no país, moldando almas,
formando gerações de pessoas propagadoras do seu modelo educacional (Vilas-Bôas, 2001).
Pela grande extensão territorial, em 1896, a Missão Brasil dividiu-se Missão Sul do Brasil,
compreendendo os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina, e em
Missão Central do Brasil, abrangendo Bahia, Sergipe, Goiás, Mato Grosso e, posteriormente o
Norte de Minas Gerais4.
OS APÓSTOLOS DA EDUCAÇÃO
Os diversos grupos protestantes norte-americanos conhecidos por “denominações”
organizaram-se em associações voluntárias e em igrejas desestatizadas, com a tarefa de
cristianizar não somente a República norte-americana, mas o mundo. Aqueles puritanos
caracterizaram-se não só por aquele sistema de organização das igrejas, como no
estabelecimento de escolas para a formação acadêmica dos seus pastores. Um dos principais
instrumentos norte-americanos de intervenção internacional nas áreas da religião e da
educação foi a missão estrangeira. As missões eram organizações administrativas, muitas
delas denominadas de Juntas, pertencentes “a várias comunidades e, ou são sociedades
constituídas para o fim de manter a propaganda evangélica no país e no estrangeiro, ou são
comissões oficiais criadas pela autoridade eclesiástica das comunidades para a propagação da
fé” (Mendonça, 1995, p. 50, 51).
Seus missionários, geralmente tinham se formado nos grandes centros teológicos e
normais do norte dos Estados Unidos (Princeton, Harvard e Yale) ou nos do sul (Vanderbilt e
Richmond) e eram portadores de um “protestantismo de civilização”, “convencidos de que
possuíam as chaves da modernidade religiosa e econômica” (Bastian, 1994, p. 108). Eles
foram os agentes propagadores “dos modelos protestantes na América Latina”, importantes
também “na transmissão de modelos organizativos importados, e na apresentação, em seu país
de origem, da realidade latino-americana”. Apresentavam-se como representantes de uma
cultura mais adiantada, civilizada, podendo ser um pastor, um médico, um enfermeiro, um
professor ou também, uma missionária, uma enfermeira ou uma instrutora (idem, p. 111, 112).
O INSTITUTO PONTE NOVA
Em 1896, William Alfred Waddell foi designado superintendente das escolas da
Missão Central do Brasil, enviando ao Diretor da Escola Americana de São Paulo, Horace M.
Lane, um plano que propunha as diretrizes administrativas daquelas instituições, no qual o
presidente do Colégio Protestante (ou quando este estivesse ausente, o Decano) seria o
superintendente das escolas da Missão Central, “com total autoridade sobre as mesmas”;
designaria seus diretores e pessoalmente inspecionaria os trabalhos deles para que as escolas
mantivessem a qualidade; apresentaria à Missão um relatório anual das atividades das escolas,
demonstrando se as estimativas propostas para o período foram alcançadas. Já os professores
contratados pelo escritório da Missão não teriam direito a voto nas questões referentes às
escolas, mas, o missionário residente seria consultado em todas as questões que afetassem o
relacionamento entre a escola e a população (Minutes of the Meetings of the Central Brazil
Mission, 1897-1912. Reunião realizada em 19/01/1898).
Em meados de 1900, Waddell abriu um internato feminino na escola de São Félix,
provavelmente, a principal da Missão Central naquele momento. A proposta para a escola era
que, além do primário, seriam oferecidos os cursos secundário e industrial. O prédio que
deveria ser construído estava projetado em dois andares, acompanhando as linhas
arquitetônicas da Escola Americana de São Paulo. No andar térreo funcionaria o externato
misto e, no andar superior, o internato das meninas. A planta baixa do externato trazia a
divisão das salas de aulas para turmas mistas, com a capacidade de alunos e a localização das
séries; a do internato explicitava a quantidade e dimensões dos quartos. Em 1901, ficara
decidido pela direção da Missão que seria adicionado ao programa daquela instituição um
curso de Pedagogia para formar professores brasileiros, o qual ficaria sob a responsabilidade
da missionária-professora Margareth Bell Axtell (Minutes of the Meetings of the Central
Brazil Mission, 1897-1912. Reuniões realizadas em 17/01/1901 e dez/1901).
Sancha Galvão, uma das três alunas internas daquele ano, descreveu o colégio quando
ele ainda funcionava num antigo sobrado, possuindo “enormes salas, bem ornamentadas e com
boa mobília – paredes com quadros negros, mapas, quadros instrutivos e carteiras duplas”.
Cada classe possuía uma professora e uma censora, a qual ficava andando entre as carteiras,
observando o que os alunos precisavam. Para falar alguma coisa, o aluno levantava a mão e
recebia a autorização. Dos livros adotados, Sancha lembrava-se do livro de leitura, Coração,
de Raimundo de Amicis. Aos domingos, todos iam aos cultos, na cidade de Cachoeira
(Galvão, 1993, p. 45, 46).
Em 1904, Waddell apresentou um plano educacional, sistematizando os tipos de
instituições educacionais que a Missão deveria estabelecer. As escolas paroquiais primárias
seriam pagas em grande parte ou integralmente pelos seus benfeitores. As escolas missionárias
seriam abertas na residência do missionário ou em outros pontos que oferecessem uma
oportunidade especial para que as jovens “professoras-evangelistas” pudessem “influenciar e
desenvolver grupos de novos convertidos”, os quais deveriam prover a maior parte do sustento
financeiro do seu “campo”. Já a Escola Central deveria treinar professores para essas outras
escolas. Outro ponto fundamental para ele era o estabelecimento de internatos, de
“necessidade imediata se quisessem salvar para a Igreja as crianças de melhores classes
sociais” que estavam chegando (Minutes of the Meetings of the Central Brazil Mission, 19041938. Reunião realizada em 19/12/1904).
No mesmo relatório, Waddell propunha um novo tipo de instituição educacional,
distinta da Escola Americana de São Paulo, mais compatível à realidade do hinterland
brasileiro e às necessidades da Missão - uma escola rural formadora dos professores e pastores
para suas instituições. Provavelmente, ele inspirou-se em algumas iniciativas tomadas por
outros missionários norte-americanos anteriormente. Em 1869, George Nash Morton e Edward
Lane, pastores da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), conhecida como Igreja
Presbiteriana do Sul, organizaram o Colégio Internacional, de preparatórios “segundo os
princípios da liberdade de consciência e de culto e da metodologia norte-americana”, e, dentre
as disciplinas oferecidas constavam “química analítica, industrial e agrícola, (...)”. Desta
forma, “as classes agrícolas e comerciais encontrariam oportunidades de aprender a substituir
‘a rotina, a força numérica, e a agiotagem, pelo arado, pelo cultivador, pela economia e a
honradez” (Hilsdorf, 1986, p. 191, 192).
John Beatty Howell, missionário da PCUSA, idealizou e concretizou um novo tipo de
escola na década de 1880, na cidade paulista de Jaú:
adquiriu uma propriedade a poucos quilômetros dessa vila, na localidade
denominada Ortigal ou Capim Fino, onde criou, em 1887, um instituto bíblico
ou colégio agrícola. Devido à escassez de pastores, esse novo tipo de escola
visava preparar jovens para trabalharem como catequistas ou pregadores em
suas igrejas locais e incluía treinamento profissional em agricultura. Começou
com doze rapazes, que pagavam seus estudos com trabalho agrícola (Matos,
2004, p. 84).
A documentação confessional permite afirmar que o plano de Waddell fora aprovado,
pois a Escola de São Félix foi designada a Escola Central da Missão. No entanto, apesar dos
livros de atas da Missão não revelarem o motivo que levou Waddell a transferir o projeto para
a cidade de Wagner, Galvão assinalou que a causa fora a falta de um manancial de água no
local (Galvão, 1993, p. 48). Davis (1943) também registrou em seu survey que o novo local
fora escolhido por Waddell “por causa do suporte perene de água” e situava-se “no centro de
uma área subdesenvolvida do ‘hinterland’ da Bahia” (Davis, 1943, p. 53).
Em 1906, a Fazenda Ponte Nova, de propriedade de Luiz Guimarães e Souza, tenentecoronel da Guarda Nacional5, foi comprada pela Junta de Missões Estrangeiras da PCUSA por
vinte e dois contos de réis. Banhada pelo rio Utinga, a fazenda possuía 1.670 hectares, com
área cultivável de 219 hectares (RUI BARBOSA. Documento sobre Imposto de Renda de
Imóveis Rurais, 31/03/1936, nº 810. Arquivo do IPN, 1936).
No dia 12 de agosto de 1906, o IPN iniciou suas aulas, sob a direção de Waddell6,
oferecendo, inicialmente, o primário e, em seguida, o curso normal7. Como ainda não era
reconhecido pelo governo estadual, só possibilitava aos seus diplomados o exercício do ensino
primário particular. Oferecia também um curso bíblico, secundário, com a finalidade de
formar pastores e missionários para os seus campos evangelísticos (BAHIA. Boletim de
Informação do Serviço de Estatística da Educação e Saúde da Bahia, 1939. Arquivo do IPN).
O objetivo de Waddell era fazer funcionar uma escola profissionalizante, oferecendo,
inicialmente, o curso normal rural, destinada a dar aos jovens um preparo que os habilitasse a
ensinar em núcleos urbanos mais afastados, não só no interior da Bahia mas em outros
Estados, “desencadeando assim uma verdadeira onda de cultura e cristianismo naquelas terras
sertanejas”. Como também, “educar o indivíduo para que ele vivesse em seu ambiente,
fixando-o em seu meio, evitando, assim, a evasão rural para os centros urbanos” (Nascimento,
2003). A escola atendia uma clientela de situação financeira geralmente precária, isolada do
litoral pela distância dos pontos terminais das linhas férreas.
O IPN ministrava ensino religioso, presbiteriano, de caráter obrigatório, sendo um
estabelecimento de natureza privada e confessional. Destinado a educar os filhos das famílias
que seriam evangelizadas, era mantido pela PCUSA, não recebendo nenhuma subvenção do
governo brasileiro. Funcionava em regime de internato para moças e rapazes, e, semelhante às
suas escolas presbiterianas norte-americanas, adotava a co-educação e o sistema cooperativo,
onde o aluno obtinha sua educação através de uma taxa anual de 50 mil réis e serviços
prestados ao estabelecimento.
Segundo Sancha Galvão (1993), as moças que lá se formavam, retornavam para seu
local de origem, e abriam escolas particulares ou ensinavam nas escolas paroquiais da Missão,
preparando alunos que, mais tarde, vinham terminar os seus estudos em Ponte Nova, pois, “as
escolas públicas eram raras no sertão baiano e as moças formadas na capital não tinham
interesse em ir para o interior, principalmente pelas dificuldades de transporte e de
hospedagem”. As igrejas que as contratavam, pagavam um salário pelo ano letivo e todas as
despesas da viagem de férias (Galvão, 1993, p. 50, 51).
Um relatório apresentado por Robert Speer, secretário da Junta Presbiteriana de
Missões Estrangeiras e presidente do Comitê de Cooperação na América Latina, após visitar o
IPN, em 1909, demonstrava a representação8 que aqueles homens faziam da sociedade
brasileira do interior do país. Para ele, aquela instituição funcionaria como uma escola de
treinamento para crianças do Brasil tropical9. As meninas seriam preparadas para serem
professoras das escolas nas cidades e fazendas; dentre os meninos, deveriam ser selecionados
os melhores para serem seus futuros “ministros”, “meninos e meninas que deixaram suas casas
e antiga vida desqualificada, agora seriam bons fazendeiros e boas mães” (Wheeler et alli,
1926, p. 299. Grifos meus).
Para aqueles missionários, o IPN funcionaria como um instrumento de remodelação do
indivíduo, produzindo o que Elias (1994) denominou de
uma trama delicadamente tecida de controles, que abarca de modo bastante
uniforme, não apenas algumas, mas todas as áreas da existência humana, é
instilada nos jovens desta ou daquela forma, e às vezes de formas contrárias,
como uma espécie de imunização, através do exemplo, das palavras e atos dos
adultos. E o que era, a princípio, um ditame social acaba por se tornar,
principalmente por intermédio dos pais e professores, uma segunda natureza no
indivíduo, conforme suas experiências particulares (Elias, 1994, p. 98).
O DIA-A-DIA NO INSTITUTO PONTE NOVA
Para aquela concepção religiosa, a maneira de agradar a Deus não estava em se separar
do mundo, mas em cumprir as tarefas, os deveres, dentro das profissões seculares. Educação e
trabalho caminhavam juntos, pois este era visto como o produto de um longo processo de
educação, como uma “vocação”. O conceito de vocação para o calvinismo “tinha, mais que o
luteranismo e o catolicismo, o sentido de uma auto-destinação a dada condição de vida
sancionada não apenas pela ordem social (como no catolicismo), mas também pela própria voz
da consciência” (Weber, 1987, p. 174).
O controle do tempo através de atividades era constante, possuindo uma função
reguladora de atitudes e modeladora do comportamento. Aquele processo de escolarização
visava inculcar no indivíduo a auto-disciplina, uma “consciência moral”, modificando a
estrutura de sua personalidade. Segundo Elias (1998), o indivíduo “é sempre obrigado a pautar
seu próprio comportamento no ‘tempo’ instituído pelo grupo a que pertence e, quanto mais se
alongam e se diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os homens entre
si, mais severa torna-se a ditadura dos relógios” (Elias, 1998, p. 97).
Do momento em que o aluno se acordava até a hora de dormir, o corpo e a mente
deveriam estar ocupados com o estudo e com o trabalho. Os rapazes cuidavam da limpeza do
internato, dos arredores, da horta, das roças de laranja, abacaxi, banana, mandioca, feijão e
arroz, movimentavam o engenho, onde produziam mel e rapadura, pilavam café e milho, e
recebiam noções de carpintaria. As moças cuidavam da culinária, cada uma lavava e passava
sua roupa, sendo proibidas de pagarem a lavagem. Todos tinham deveres com a igreja:
participavam do coral e dos cultos aos domingos, independente de sua religião. Esta norma do
colégio já era informada no ato da matrícula (BAHIA. Boletim de Informação do Serviço de
Estatística da Educação e Saúde da Bahia, 1939. Arquivo do IPN).
As segundas-feiras eram destinadas à lavagem da roupa. Aos sábados, à noite, todos se
reuniam para brincar. “Cantavam, recitavam. Havia diversos brinquedos que se chamavam
brinquedos de salão”. As refeições eram servidas no internato, para moças e rapazes, quando o
diretor e professores presidiam as mesas. O café da manhã, servido das 7 às 7:30 constava de
carne acompanhada de verduras, arroz, farinha, “tudo como muita fartura e arrematado com
café”. Em seguida, uma turma de seis alunos descia ao rio para lavar a louça. Aqueles que
preparavam o café da manhã eram responsáveis pela limpeza dos quartos e da copa. Às nove
horas, todos iam para a aula. Ao meio-dia, era servido um lanche: café, leite, bolo de milho e
trigo, pão fabricado na própria instituição, doce e frutas. Das 14 às 15:30, os alunos
retornavam às aulas (Galvão, 1993, p. 53). Entre uma aula e outra, os alunos deveriam
“descansar” do trabalho mental, mas executariam “pequenos trabalhos: distribuição de
cadernos, limpeza do quadro etc”. Segundo o documento que registrava o horário de
atividades, aquelas pequenas “atividades não foram incluídas no horário porque ocupam
apenas alguns segundos que são suficientes para descanso, (...)” (INSTITUTO PONTE
NOVA. Horário, 1944. Arquivo do IPN, 1944.). Após as aulas, os alunos continuavam com
suas tarefas. Às 18 horas, era servido o jantar: feijão com carne, verduras e mandioca, ao invés
da farinha. Após o jantar, havia o culto doméstico. As duas horas seguintes eram destinadas à
banca e às 21 horas, todos se recolhiam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visita feita a Wagner, em 2002, e as entrevistas concedidas por ex-alunos do IPN
permitiram constatar que a presença daquele grupo religioso também imprimira um modelo
arquitetônico às residências da cidade que ficavam próximas aos seus prédios10. Segundo os
depoimentos tomados, todo aquele aparato pedagógico, num espaço rural, facultou a formação
de um núcleo urbano.
Na operação histórica, o espaço é também fonte, ou seja, sinal e signo. Sinal,
porque nele está inscrito o passado. E não só na forma de inscrições escritas
monumentais, normalmente urbanas, mas na sedimentação, permanência e
disposição espacial dos seres humanos, dos objetos e das coisas. E signo,
porque ditas sedimentação, permanência e disposição, assim como o espaço
como território e lugar, indicam ou dizem algo, remetem a significados que
têm de ser interpretados, tanto sem estarem materialmente inscritos como por
se encontrarem na memória das pessoas, no imaginário coletivo (Viñao Frago,
1996, p. 76).
No campo da história das instituições escolares, a arquitetura da escola, a distribuição
do espaço e do tempo escolar torna-se importante para a compreensão da implantação de
determinado projeto pedagógico. Segundo Escolano (1998),
A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de
discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de
ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora
e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e
também ideológicos. Ao mesmo tempo, o espaço educativo refletiu
obviamente as inovações pedagógicas, tanto em suas concepções gerais como
nos aspectos técnicos (Viñao e Escolano, 1998, p. 26)
Aquele grupo religioso sabia que era preciso dar visibilidade ao seu projeto
educacional, demonstrando, assim, a importância da educação para ele. Fazia-se necessário
construir edifícios escolares para que, na monumentalidade de seus prédios, a escola fizesse
ver sua ação pedagógica. A distribuição do espaço escolar explicitava o objetivo de projeção e
divulgação que a Missão pretendia imprimir àquela educação, pois, além de ser “um
constructo cultural que expressa e reflete (...) determinados discursos”, é “um mediador
cultural em relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou
seja, um elemento significativo do currículo, uma fonte de experiência e aprendizagem”
(Viñao e Escolano, 1998, p. 26).
De acordo com o relatório de Wheeller (1926), em 1909, as instalações do IPN
consistiam num sobrado que servia de dormitório para as estudantes e residência para o
missionário-diretor e sua família; uma pequena casa-escola, na verdade, um barracão
inacabado; e, do outro lado do rio, um dormitório para os rapazes. Em 1925, já existiam três
prédios. Dois deles, de um lado do rio: o primeiro, servia de hospital, desde 1917 e estava
sendo construído o prédio definitivo que ofereceria 25 leitos, um consultório, uma casa para o
farmacista, outra para o médico, e dependências para aqueles que vinham se consultar ou fazer
algum tratamento. Além deste, uma igreja e um prédio onde funcionava uma escola primária.
Em frente ao rio, a antiga casa agora funcionava somente como internato feminino,
acomodando 30 moças em beliches; o casal missionário estava instalado numa pequena casa
com dois quartos; em outro prédio funcionavam as salas de aula e uma capela para os
estudantes (Wheeler et alli, 1926, p. 299-302).
Até 1938, a Missão investira na construção de um complexo educacional em Wagner.
O Relatório de Verificação das Instalações do Instituto Ponte Nova, realizado pela Comissão
de Fiscais da Secretaria de Educação da Bahia, naquele ano, descreveu minuciosamente o
IPN: o sobrado, destinado à residência do diretor e internato masculino; três pavilhões de salas
de aula, dispostos em formato de ferradura; um sobrado em estilo vitoriano, construído no
ponto mais alto da fazenda, destinado à residência das alunas internas e das professoras do
estabelecimento (BAHIA. Relatório de Verificação sobre as condições e instalações do IPN,
1938. Arquivo do IPN).
Além do IPN, a Missão organizou e subsidiou até 1971, em Wagner, uma igreja e uma
escola de auxiliar de enfermagem, a primeira do gênero na Bahia, ao lado do Grace Memorial
Hospital. O sucesso daquele complexo institucional, integrando religião, educação e saúde,
levou a Missão a organizar, em 1923, um projeto denominado “Escolas Ponte Nova” no
território sob sua jurisdição. Em 1926, existiam escolas rurais em Buriti e Cáceres, Mato
Grosso (Chapada dos Guimarães); Jataí e Planaltina, Goiás (Chapada dos Veadeiros). Nesta
última cidade também foi construído um hospital. Em Rio Verde, Goiás, foram organizados
pelo Dr. Donald Gordon, uma escola de enfermagem e um hospital. As atas ainda falam de um
hospital em Araguaia, Mato Grosso, e de um hospital e escola em Anápolis, Goiás, estes dois
últimos construídos pelo Dr. James Fanstone. Vinculando educação, saúde e religião, aquele
complexo constitui-se num espaço privilegiado de investigação de instituição confessional
protestante, presbiteriana, destinado a moldar almas, formar pessoas que difundiriam um
modelo pedagógico nas populações rurais, distinto de seus colégios instalados nos centros
urbanos, como era o caso do Mackenzie College, em São Paulo (Minutes of Meeting of the
Central Brazil Mission (1904-1938).
NOTAS
1
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação, do Núcleo de Pós-Graduação em Educação
da UFS. Professora da Rede Pública Estadual de Sergipe. E-mail: [email protected]
2
O Instituto Ponte Nova é objeto da pesquisa que desenvolvo atualmente no Doutorado em Educação (PUC/SP),
sob a orientação da Profa. Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho.
3
Minutes of Meeting of the Central Brazil Mission (1897-1912); Minutes of Meeting of the Central Brazil
Mission (1904-1938). Documentação institucional do IPN, no período de 1911 a 1953.
4
Não obstante Matos (2004, p. 19) afirmar que Bahia e Sergipe pertenciam à Missão Central do Brasil, o Livro
de Atas da Missão registra além desses Estados, Goiás, Mato Grosso e Norte de Minas Gerais. Minutes of
Meeting of the Central Brazil Mission (1904-1938).
5
BAHIA. Documento ‘Projeto Wagner’. Câmara de Comércio Americana-BA/Governo do Brasil. Arquivo do
IPN, 1995. Segundo Galvão, posteriormente, o tenente-coronel foi excomungado da igreja católica por ter feito
negócio com os presbiterianos e toda a sua família se converteu ao presbiterianismo (Galvão, 1993, p. 48).
6
Waddell permaneceu em Wagner até o ano de 1914, quando saiu para presidir o Mackenzie College, até 1927
(Matos, 2004, p. 136).
7
Há indícios de que, em 1911, foram iniciadas as atividades do curso normal rural, com duração de cinco anos
(INSTITUTO PONTE NOVA. Livro de Registro de Pontos/Matrícula, 1911-1925. Arquivo do IPN). Naquele
mesmo ano, Waddell solicitou ao escritório de Nova Iorque uma professora com experiência em High-School
(Minutes of Meetings of the Central Brazil Mission, 1897-1912, Reuniões realizadas entre os dias 11
e13/12/1911).
8
Remete-se aqui ao conceito de representação de Chartier (1986).
9
Termo utilizado pelos missionários presbiterianos norte-americanos em relatórios para referir-se ao hinterland
brasileiro.
10
Segundo Escolano (1998), “não apenas o espaço-escola, mas também sua localização, a disposição dele na
trama urbana dos povoados e cidades, tem de ser examinada como um elemento curricular. A produção do espaço
escolar no tecido de um espaço urbano determinado pode gerar uma imagem da escola como centro de um
urbanismo racionalmente planificado ou como uma instituição marginal e excrescente”. (Viñao e Escolano, 1998,
p. 28).
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