D E M O C RA C I A V I VA
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SETEMBRO 2008
ARTIGO
Teresa Sales*
Josué de Castro:
um homem e
vários legados
Este ano de 2008, comemora-se o centenário de nascimento de Josué de Castro.
Pernambucano ilustre, cidadão do mundo, Josué de Castro deixou vasta obra publicada,
na qual se destaca o livro Geografia da fome, traduzido para mais de duas dezenas de
idiomas pelo mundo afora. Geografia da fome ultrapassa as fronteiras do Brasil não
somente pela tradução do livro para outras línguas, mas também porque Josué de
Castro utiliza a mesma metodologia para estudar a fome em outras partes do mundo
por meio da Geopolítica da fome.
Enquanto esteve em Roma como presidente do Conselho Executivo da FAO
(Organismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), entre 1952 e 1956,
Josué de Castro abriu diálogo com o mundo das artes, e seus escritos suscitaram o
interesse de cineastas do neo-realismo italiano. Como resultado disso, em 1958, Roberto
Rossellini veio ao Nordeste com a intenção de realizar um filme baseado em Geografia
da fome – projeto que, infelizmente, não se realizou.
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Por essa mesma época, o escritor e roteirista Cesare Zavattini (imortalizado com o
filme Ladrões de bicicleta), de quem Josué de
Castro era amigo, pensou também em fazer
um filme-painel sobre a fome no mundo inspirado em Geopolítica da fome e composto por
vários segmentos, representantes dos países
nos quais a fome se apresentava de forma mais
aguda naquele momento, que seriam realizados
por diferentes diretores. O único dos segmentos realizado foi perdido, por essas fatalidades
da vida, sobrando dele apenas fragmentos.
Esse filme foi O drama das secas, de Rodolfo
Nanni, cineasta brasileiro que havia sido convidado por Josué para realizar o segmento brasileiro do projeto de Zavattini.
Para falar sobre o filme, dou a palavra
a Rodolfo Nanni:
1958 foi um ano de seca rigorosa. Partimos de Recife, com uma primeira parada em Caruaru, onde encontrei Mestre
Vitalino em uma praça, cercado de imagens
de barro expostas no chão. Ficou-me,
desse breve encontro, a lembrança do
grande artista e a imagem de um touro
esculpido por ele, para mim, até hoje,
o símbolo da resistência do povo nordestino. Na etapa seguinte das filmagens,
em Garanhuns, começamos a entrar em
contato com uma realidade muito mais
trágica do que esperávamos: retirantes
depauperados, na beira de estradas. Daí
em diante, nos quatro mil quilômetros
que rodamos pelas estradas cheias de pó,
encontrávamos centenas e centenas de
homens, mulheres e crianças, num misto
de desespero e desesperança, à procura
de um destino desconhecido. Foi o que
filmamos, o tempo todo. Assim nasceu
o filme O drama das secas , o único segmento realizado do projeto inicial de
Zavattini (press release escrito por Rodolfo
Nanni para a apresentação de seu filme
O retorno no festival de cinema de Pernambuco, em maio de 2008, onde ele recebeu o prêmio de melhor diretor).
da responsável pela trilha musical e paisagem
sonora, Anna Maria Kieffer. O centenário de
nascimento de Josué de Castro – comemorado, principalmente, no Rio de Janeiro, onde
ele morou por mais tempo no Brasil e onde
estão seus restos mortais; na França, onde
ele viveu seu exílio, depois de 1964, até sua
morte em 1973; e no Recife, sua cidade natal –
tem trazido à luz muitos aspectos de sua vida e
de sua obra. Preferi, neste escrito, começar
apresentando um Josué de Castro vivo e imortalizado por seu diálogo com a arte.
A arte de Josué de Castro está também
em seus livros, resultados de pesquisa científica
rigorosa, porém escritos com maestria e beleza.
Quando escreveu Geografia da fome – publicado pela primeira vez em 1946 pela editora
O Cruzeiro –, o tema era tabu, segundo palavras do próprio Josué.
Pensamento e ação
Médico de formação, Josué decide estudar a
fundo as causas da fome que ele viu de perto
quando, no Recife, entrava em contato com as
populações pobres dos manguezais, cujas imagens ficaram indelevelmente marcadas em sua
vida e em sua produção intelectual. A cidade
do Recife foi motivo de um livro pouco conhecido de Josué de Castro, cuja edição está esgotada, mas que, felizmente, está sendo reeditado pela Editora Massangana, com lançamento
FOTOS: ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
Meio século depois, Nanni retorna ao
Nordeste para novas filmagens, que resultaram
no filme O retorno, a ser lançado, em breve, em
circuito comercial. No Recife, como parte das
comemorações do centenário de nascimento
de Josué de Castro, tivemos o privilégio de
assistir, em primeira mão, a esse documentário, com a presença de Rodolfo Nanni, do
diretor de fotografia, Roberto Santos Filho, e
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previsto para este ano. Trata-se do livro Fatores
de localização da cidade do Recife, publicado
em 1948 e escrito como tese para efetivação
de Josué de Castro como professor na cátedra
de Geografia Humana da Faculdade Nacional
de Filosofia da Universidade do Brasil, em
1947. Ninguém conhecerá a cidade do Recife
sem ter passado por esse belo livro.
Josué de Castro era um homem de pensamento e ação. Radicado no Rio de Janeiro,
clinicando, lecionando e estudando, teve atuação destacada em políticas públicas: nos movimentos em prol do estabelecimento do salário mínimo (que passa a vigorar por decreto-lei
de Getúlio Vargas em 1940); na fundação do
periódico Arquivos Brasileiros de Nutrição,
editado sob a responsabilidade do Serviço
Técnico da Alimentação Nacional e da Nutrition
Foundation de New York, em 1941; na fundação da Sociedade Brasileira de Alimentação,
em 1940, constituída de futuros dirigentes
do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), criado em agosto do mesmo ano
por iniciativa do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
A década de 1950 reservaria muitas
atividades públicas na vida de Josué de Castro.
Foi deputado federal por Pernambuco em duas
legislaturas, 1955 e 1959. Em 1952, foi eleito
presidente do Conselho Executivo da FAO.
Reeleito por unanimidade pelos delegados dos
países que formam o Conselho das Nações
Unidas, permaneceu no cargo até o fim de
1956. Nesse conselho, impulsionado pelo sucesso de seus livros, sobretudo Geografia da
fome, pelo prestígio do órgão e pela aceitação
de suas posições científicas, Josué de Castro
empreendeu uma série de trabalhos de combate
à fome no mundo, buscando unir os conhecimentos científicos e a ação. Ao deixar a FAO,
em 1957, fundou a Associação Mundial de
Luta contra Fome (Ascofam), visando despertar o mundo para o problema da fome e da
miséria e promover projetos demonstrativos de
que a fome pode ser vencida e abolida pela
vontade das pessoas.
A figura humana de Josué de Castro
como homem de ação para além da reflexão
está presente desde o início de sua carreira,
como médico que retorna ao Recife depois
de formado no Rio de Janeiro. Foi Josué quem
realizou o primeiro inquérito de consumo alimentar do Brasil, em 1935, que contemplava
minuciosa descrição das despesas domésticas com moradia, alimentação, saúde, educação e transporte. Desse inquérito, resultaram
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as bases para a instituição do salário mínimo
no Brasil – efetivamente implementado no
governo Vargas.
O inquérito, ao estimar 50% dos gastos
para a compra de 12 alimentos básicos que compunham a cesta alimentar, constituiu enorme
avanço sobre a legislação mundial no assunto,
permitindo a cobertura das necessidades biológicas de calorias e nutrientes. Salário mínimo,
merenda escolar e criação da Comissão Nacional de Alimentação – precursora do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(Consea) – são algumas das ações de Josué de
Castro no Brasil, além da atuação internacional, na qual se destaca o período como presidente do Conselho Deliberativo da FAO.
Obra inesquecível
Pode-se dizer que a obra de Josué de Castro
é grande em quantidade e qualidade. Não
fosse a truculência do golpe militar, em 1964,
e dos governos ditatoriais que lhe seguiram –
ele e tantos(as) outros(as) ilustres intelectuais
brasileiros(as) foram expulsos(as) de nosso país
para o exílio –, não fosse esse período vergonhoso de nossa história, os resultados da atuação desse homem público em nosso país seriam
ainda mais expressivos. Quem sabe até chegaria
ao tão cobiçado Prêmio Nobel da Paz, para o
qual foi indicado duas vezes? Quem melhor
do que ele para representar o Brasil nessa honraria com a qual o país nunca foi brindado?
Um dos estudiosos da obra Geografia da fome, Ricardo Abramovay, traz Josué
de Castro para os dias atuais em seu artigo,
ainda inédito, “Integrar sociedade e natureza
na luta contra a fome no século XXI”. O autor
de Geografia da fome passa a dialogar, pelas
mãos e arte do professor Abramovay, com
autores e temas que estão, hoje, na academia.
Enfatizando a abordagem interdisciplinar de
Josué de Castro, duas dimensões são ressaltadas: a biodiversidade (“embora a noção não
esteja claramente formulada, Geografia da
fome encontra-se entre os mais belos elogios
já produzidos no Brasil a respeito de sua biodiversidade”) e a reunificação daquilo que a
constituição das ciências contemporâneas separou, qual seja, a natureza e a sociedade.
Ou, em outros termos, o meio-ambiente e o
desenvolvimento.
Nessa perspectiva interdisciplinar,
Ricardo Abramovay permite a Josué de Castro
dialogar com uma instigante e atual bibliografia de autores contemporâneos identificados
JOSUÉ DE CASTRO: UM HOMEM E VÁRIOS LEGADOS
com a economia ecológica, que procuram ligar
sistemas sociais e sistemas ecológicos. Para
Abramovay, é nessa ligação que está a chave
para compreender e enfrentar os desafios alimentares do século 21.
Segundo ele, o mais importante na obra
de Josué de Castro não é o tema sobre o qual
ele se debruçou, e sim o método que empregou para estudá-lo (ao qual o próprio Josué
chamou de método geográfico), sendo um
verdadeiro precursor da abordagem socioambiental dos problemas de nosso tempo.
Também aqui, e não apenas no diálogo
com autores atuais, Ricardo Abramovay convida Josué de Castro a tomar assento nos dias
de hoje, no caso, na sua atuação de homem
público que não apenas estudou, mas propôs
soluções. Pois é exatamente esse método que
permite não apenas compreender, mas, sobretudo, traçar as políticas necessárias para enfrentar o desafio do aumento da população
mundial dos 6,5 bilhões de habitantes atuais
para um horizonte de estabilização de 9,2
bilhões em 2050.
E mais. Temas tão atuais e candentes,
que ocupam as páginas da imprensa quase
todos os dias, tal como a explosão dos preços
dos alimentos, são reflexos não somente do
aumento da renda dos países emergentes ou
da opção norte-americana de dedicar parte de
sua produção de milho ao etanol. Essa elevação dos preços dos alimentos deve ser também interpretada pela ótica da oferta, tal como
propôs Josué de Castro, a partir das condições
ecológicas em que essa oferta se realiza.
Josué de Castro morreu no exílio. No exílio, sentiu agudamente a falta do Brasil, a ponto
de declarar que “não se morre apenas de
enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas
também de saudade”. Faleceu em Paris, em 24
de setembro de 1973, quando esperava o passaporte que o traria de volta ao Brasil.
*Teresa Sales
Socióloga, presidenta
do Centro Josué de
Castro, é professora
aposentada da
Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
O centro
Em fins da década de 1970, alguns intelectuais
pernambucanos da área de Ciências Humanas,
que estavam igualmente exilados em Paris, faziam
planos para o seu retorno ao Recife. Nasceu desse
diálogo uma idéia que se concretizaria em 1979,
quando foi fundado, no Recife, o Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro. A escolha do
nome foi motivada pela identidade intelectual e
humana com esse pensador, especialmente a independência, o espírito crítico e o compromisso com
o processo de conhecimento e a transformação
da realidade. Trata-se também de uma homenagem ao grande humanista pernambucano que
se dedicou à luta contra as causas que originam
a fome e a pobreza no mundo.
As principais áreas de estudo e intervenção
social do Centro Josué de Castro têm sido a análise da realidade brasileira, especialmente da região Nordeste, por meio de pesquisas e intervenções nos diversos ramos das ciências humanas; a
atuação em várias frentes voltadas para o conhecimento e a superação das causas da fome e da
pobreza; a capacitação de cidadãos e cidadãs
para a participação na formulação de propostas,
controle e acompanhamento de políticas públicas;
o fortalecimento de redes e articulações voltadas
para essa finalidade; e a atuação em fóruns e
debates sobre políticas econômicas, sociais e culturais. Em 1987, o centro recebeu da família de
Josué de Castro todo o seu acervo documental,
que hoje é parte integrante da biblioteca do
Centro Josué de Castro. Conheça mais sobre o
trabalho do centro em <www.josuedecastro.
com.br>.
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