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NACIONAL
❚ TRAGÉDIA DE ILHA GRANDE
Reportagem ingressa na mata e revela marcas da destruição da Sankay e a luta de seus donos para sobreviver à perda da pousada e da filha
FOTOS: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS
O que sobrou da luxuosa Pousada Sankay foi tomado pelo mato que avança sobre a área isolada pela Defesa Civil e declarada de risco permanente, mas ainda guarda vestígios do que foi o sonho de seus donos
Cicatrizes de
um desastre
Ilha Grande, Angra dos
Reis (RJ) – Quem chega de barco à Enseada do Bananal, no
distrito de Ilha Grande, em Angra dos Reis, desfruta do belo
cenário panorâmico da praia e
pode ver, num contraponto, o
rastro do deslizamento na encosta da montanha semelhante a uma cicatriz. O desastre resultante das intensas chuvas
do fim de 2009 ganhou repercussão internacional e deixou
marcas no meio ambiente e
nos moradores. Na época, a
avalanche de lama, troncos e
pedras desceu e se dividiu em
certo ponto de seu curso destruidor: de um lado, soterrou
casas, dizimou vidas e também
parte da praia; no outro, onde
se localizava a Sankay, uma pedra gigante rolou a ribanceira e
atingiu em cheio o quarto onde dormiam Yumi e amigos,
entre eles o casal de namorados Isabella Godinho e Paulo
Sarmiento. Yumi e o casal de
amigos morreram.
Após o resgate das vítimas,
todas as casas foram interditadas pela Defesa Civil, com exceção das localizadas à esquerda de quem chega à enseada e
uma moradia cujos proprietários obtiveram liminar na Justiça para ocupação.
Alguns moradores não gostam de falar sobre a tragédia
ou ir além dos cordões de isolamento das árvores, mas indicaram a trilha ao repórter fotográfico Leandro Couri, do EM,
alertando sobre o mato avantajado. As instalações consumidas pela floresta ainda trazem fortes traços do lugar,
que já foi um dos mais luxuosos da Ilha Grande – com estrutura que incluía barco, vista privilegiada para o mar,
deque, sauna, piscina e salão
de jogos – e que operava com
mais de 70% da sua capacidade de ocupação o ano inteiro.
O empreendimento erguido por Geraldo Flávio e Sonia
Imanishi Faraci na Enseada do
Bananal não existe mais – restaram ruínas. Impressionado
com o cenário, Couri fez muitas fotos e mostrou algumas
delas ao casal, na semana passada, em sua residência num
condomínio em Brumadinho.
“Desde a tragédia, nunca mais
estive lá...”, disse Geraldo, que,
além de olhar fixamente para
as imagens, coçava a cabeça ao
verificar os detalhes. Sonia
também viu o material com
tranquilidade, mas, algumas
vezes, baixou os olhos.
As lembranças voltaram,
mas sem lágrimas. Numa das
fotos mostradas no smartphone, Geraldo identificou o quarto dele e de Sonia. “Atrás do
nosso quarto, ficava o de Yumi.
“Puxa vida! Você esteve lá...”,
disse, antes de contar episódio
envolvendo a cabeceira da cama do casal. “Tínhamos ali
uma tela grande de autoria de
Léo Brizola. Ela foi arrancada e
lançada na praia e ficou sobre
a areia durante muito tempo,
sofrendo os efeitos do sol e da
chuva, com as pessoas passando por cima, enfim, muitos danos.” Ao ser localizada a tela,
Brizola achou que seria melhor
deixá-la do jeito que estava e o
casal a mantém em Brumadinho com todas as suas marcas.
Na época da tragédia, o patrimônio familiar incluía pousada, restaurante, butique,
operadora de mergulho, uma
casa em Angra e apartamento
em Belo Horizonte, adquirido
para alojar Yumi durante os estudos na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
“Em duas décadas na Ilha
Grande, fortalecemos nossa
união”, conta Sônia. “Depois da
‘partida’ de nossa filha, fiquei
entre dois caminhos: tornarme sobrevivente ou vítima”,
diz ela, que, durante muito
tempo, acordou no meio da
madrugada, exatamente na
hora do “acidente”.
A mãe de Yumi encontrou
alegria modelando o barro,
que, por essas ironias do destino, soterrou a filha única.
Montou um ateliê de cerâmica, em que o casal mantém vários potes plásticos com terra
de diferentes cores retirada do
lote onde construiu a casa. “Sonia pretende fazer um pote
com um punhado de cada terra para guardar as cinzas de
Yumi”, adianta Geraldo.
As marcas estão também
na pele dos pais de Yumi. Geraldo tem o rosto da filha tatuado nas costas; o nome da
menina está ainda grafado na
lateral de uma das panturrilhas dele e de Sonia e, visto de
cima, toma a forma de uma
guitarra. O nome de Yumi batiza um torneio de kobudô, no
Rio de Janeiro, e um projeto de
educação musical em Angra.
INABITÁVEL Desde a tragédia
que deixou 53 mortos e um
desaparecido, incluindo o Morro da Carioca, comunidade na
cidade de Angra dos Reis (RJ), a
área onde ficava a pousada foi
declarada de risco permanente
e inabitável. Segundo a Secretaria Especial de Defesa Civil e
Trânsito de Angra dos Reis, em
2010, foi construído um muro
no local para evitar que novos
blocos de rocha se deslocassem em direção ao mar. Mas
como há pedras soltas no alto
do morro, a Defesa Civil Municipal decidiu pela interdição
permanente de toda a área
onde ficava a Sankay para evitar mais óbitos.
Geraldo e Sonia no cantinho
dedicado a Yumi (acima), morta no
deslizamento: medalhas, troféus,
instrumentos musicais, cinzas da
menina e terra de Ilha Grande
materializam a memória
RUÍNAS DO PARAÍSO
LEANDRO COURI E GUSTAVO WERNECK
Angra dos Reis (RJ) e Brumadinho (MG) – Os cordões de
isolamento são samambaias, cipós e raízes grossas que, de cara,
desencorajam os mais desavisados a seguir pela trilha
interditada. No meio da mata, há colchões tragados pelos
arbustos, um espelho quebrado no canto da janela e pedaços de
uma antiga cadeira marcada pela lama seca, além de montes de
entulhos de demolição. O cenário desolador e sinistro é parte
das ruínas da Pousada Sankay, em funcionamento até a
passagem de 2009 para 2010, na deslumbrante Enseada do
Bananal, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Nas primeiras
horas daquele ano novo, um deslizamento de pedras e lama
vindas do alto de uma montanha pôs fim ao empreendimento
e matou a estudante de arquitetura Yumi, de 18 anos, filha dos
proprietários, os mineiros Geraldo Flávio e Sonia Imanishi
Faraci. Dois amigos de Yumi também morreram no local.
Pouco mais de cinco anos depois da tragédia, que deixou 53
mortos e um desaparecido em Ilha Grande e numa
comunidade de Angra dos Reis, o Estado de Minas mostra, com
exclusividade, o estado da Sankay, considerada um pequeno
paraíso tropical e onde só se chega de barco. Desde o acidente, o
local da pousada está interditado pela Defesa Civil sob risco
permanente de novos deslizamentos. Ao mesmo tempo,
Geraldo e Sonia rompem o silêncio e, com impressionante
serenidade, falam das dores da perda, de lembranças e dos
novos tempos. Em dezembro passado, quando os colegas da
garota se formaram em arquitetura na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, o casal sentiu bater
forte a ausência e se refez com boas recordações e união forte.
Com madeira de portas, janelas e piso da Sankay, Geraldo e
Sonia, aposentados, construíram uma casa num condomínio
em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Sonia tomou gosto pela cerâmica e tem trabalhado muito na
produção de jarros, pratos e outros objetos decorativos.
Transformou o barro das angústias na arte da superação.
Depois de viver duas décadas na ilha e cinco distante dela, eles
alimentam o sonho de voltar a viver perto do mar e, nem por
um segundo, deixam de cultuar a memória de Yumi, nome
que, em japonês, significa “caminho bonito de luz”.
DEPOIMENTO
LEANDRO COURI, REPÓRTER FOTOGRÁFICO DO EM
Decifrando signos do santuário
Um colchão e objetos variados cobertos de arbustos: cenário desolador
“Ao chegar a Ilha Grande para passar férias com a família, não
me toquei, de imediato, que estava na região onde o acidente
ocorrera no réveillon de 2009/2010. Mas, como fotógrafo
eternamente apaixonado e jornalista por herança, senti a
adrenalina e a certeza de que não tinha outro objetivo a não ser
ir lá ver as ruínas da Sankay. Durante três dias, entrei na mata,
onde antes era a pousada, e, aos poucos, fui decifrando alguns
signos daquele santuário. Mesmo agora, após a ação do tempo,
fica claro que tudo era tratado com amor, arte e cuidado. Os
ladrilhos, como se estivesse faltando alguma escrita, me
remeteram ao nome que é a junção das palavras japonesas ‘san”
e ‘kay’; cada detalhe mostra que havia cuidado e harmonia. Nas
ruínas, estão signos de uma estrutura construída em estilo
rústico, no meio da floresta tropical, e que, após o acidente, está
em parte submerso e em parte emergindo na mata, deixando
expostos os objetos deixados pela família Faraci ou hóspedes e
até mesmo pelos saqueadores. “Tirávamos o que podíamos de
dia e o ladrão roubava de noite”, conta Sonia Imanishi Faraci.
Trilha de dor
e superação
Longe das montanhas de
Minas e do mar de Angra dos
Reis (RJ), duas grandes paixões
do casal, o deserto de Atacama,
no Chile, foi o destino escolhido por Geraldo Flávio e Sonia,
em outubro, para celebrar as
bodas de prata. Numa altitude
superior a 4 mil metros, os dois
tinham um objetivo singelo:
ficar mais perto do céu e, portanto, da filha Yumi Imanishi
Faraci, que, se estivesse viva,
completaria 23 anos no mês
anterior. “O lugar guarda uma
energia muito forte, foi bom
estar ali”, revela Sonia, ao admirar da janela de casa, num
condomínio em Brumadinho,
na Região Metropolitana de
Belo Horizonte, a natureza
exuberante, e se recordar da filha única que morreu no réveillon de 2009 em Ilha Grande.
Estudante de arquitetura e
apaixonada por esportes, sendo inclusive faixa preta em caratê, a jovem foi soterrada por
lama e pedras deslizadas de
uma montanha, enquanto
dormia na Pousada Sankay,
dos seus pais, na Enseada do
Bananal. “Um dia voltaremos a
Atacama. E, com certeza, a morar à beira-mar”, diz Geraldo,
certo de que a experiência
trouxe força para superar a dor
da perda e esperança para trilhar outros caminhos.
Mais de cinco anos depois
do episódio, ao qual Geraldo
chama de “tragédia” e Sonia, de
“acidente”, o casal Faraci fala
com tranquilidade dos tempos
tenebrosos que passou. Na sala da residência construída
com madeira e outros materiais vindos da Pousada Sankay,
hoje em ruínas, o casal reservou um canto para preservar a
memória da filha – arte e delicadeza se somam no espaço,
parecido com um altar. Na parede do fundo está a foto da
menina sorridente, e, nas laterais, registros de momentos
em que ela tocava guitarra
com a sua banda de garagem;
encostados num móvel, instrumentos como teclado, gaita
e o primeiro violão; numa coluna, quadro de medalhas, entre elas as conquistadas em
campeonatos de caratê e kobudô; e, em prateleiras, vela acesa, imagens de santos católicos
e objetos pessoais. Nada chama tanto a atenção, no entanto, como um pote sobre a mesa contendo parte das cinzas
de Yumi. “Lançamos um pouco no oceano, em Ilha Grande,
numa cerimônia debaixo
d’água com a presença de 80
amigos, e um pouco do alto do
Topo do Mundo, na Serra da
Moeda”, conta a mãe.
Ilha Grande é a senha para
que venha à tona a história
que mudou a vida do belo-horizontino Geraldo e da carioca
Sonia, que se mudou ainda criança para a capital mineira. Tudo começou na década de
1990. Cheios de planos e com a
filha pequena, os dois decidiram atender ao “chamado do
mar” e iniciar vida nova em família, numa praia. “Meu pai,
Akira, tinha um terreno no Bananal e nos ofereceu a propriedade. O lugar não tinha
água encanada nem luz elétrica, só tínhamos gerador. Mesmo assim encaramos o desafio
de erguer a Pousada Sankay”,
conta Sonia, explicando que os
ideogramas japoneses formadores da palavra significam
montanha (san) e mar (kay).
MERGULHOS Impossível traçar a trajetória dessas duas vidas e do empreendimento em
Ilha Grande sem falar de Yumi.
“Sempre pensamos em dar a
ela uma vida saudável, sem o
estresse da cidade grande. Nossa filha foi criada no meio da
natureza, nadava bem, era instrutora de mergulho. Foi alfabetizada por nós, era fluente
em inglês e japonês. Tivemos o
privilégio de acompanhar as
etapas do seu crescimento,
comparecendo às reuniões na
escola, mesmo quando a pousada estava lotada”, diz Sonia,
com o semblante calmo de
quem cumpriu bem a missão.
Muitas lembranças são citadas com alegria discreta e fazem parte das memórias familiares: “Certa vez, estávamos na varanda e Yumi disse
que o cadarço do tênis estava
andando. Era nada mais nada
menos que uma cobra coral”,
recorda-se a mãe.
Tudo corria bem até que
chegou o réveillon e os Faraci
fizeram festa para desejar feliz
2010 a 54 convidados, incluindo sete amigos da filha chegados de BH. “Yumi pediu ao DJ
para tocar, especialmente, Macarena, para fazer a coreografia, e Viva La Vida, da banda
Coldplay, que ela amava. Dançamos até duas da madrugada.
Nossa filha preferiu dormir
com a turma, cedendo seu
quarto para o avô. Quando
eram 3h15, a terra da montanha, de 380 metros de altura,
desceu trazendo pedras, lama
e raízes”, conta Geraldo.
PORTAS FECHADAS A longa
noite não terminaria tão cedo
– na verdade, duraria todo o
ano seguinte. “Ao ouvir barulho e gritos, pulei da cama e
consegui salvar Natasha, amiga de minha filha. Mas demorou muito para Yumi ser encontrada”, diz Geraldo, com a
voz firme. Na manhã seguinte,
chegou o resgate. “Na pousada,
ocorreram estragos apenas no
quarto de Yumi, mas, na região
do Bananal, não foram poucos:
nove pessoas de uma família
haviam morrido”, conta ele. A
solidariedade de vizinhos falou
mais alto e muitos donos de
pousadas abrigaram os hóspedes. “Sem amigos não se faz
nada na vida”, acredita Sonia.
Com a interdição da Sankay
pela Defesa Civil, veio o inevitável colapso financeiro. A família retirou o que pôde, incluindo 68 portas, janelas, pisos, roupas de cama, eletrodomésticos, móveis e outros
objetos. “Não foi fácil desfazer
uma vida em apenas dois dias.
Vendemos tudo, fizemos o
acerto com os funcionários, devolvemos o sinal de pagamento aos hóspedes, embora alguns não tenham aceitado, e
fechamos a empresa. Em Angra dos Reis, fiz um brechó em
casa e vendi até meus sapatos e
roupas. Teve uma mulher que,
para ajudar, comprou até o que
não precisava!”, conta Sonia.
Nesse torvelinho, o casal retornou a BH e foi morar com a
mãe de Geraldo até que, há
dois anos, se mudou para Brumadinho. Como os danos na
pousada foram causados pela
natureza, não houve pagamento de seguro. O que aliviou a barra foram os R$ 10 mil
pagos por seguro da UFMG, específico para estudantes.
Ao interagir com os vizinhos, Sonia conheceu ceramistas e viu que tinha jeito para
essa arte. Acabou montando
um ateliê e já apresentou peças em exposições. Vivendo
com o dinheiro da aposentadoria e o fruto de economias,
os dois contam que o mundo
virou de cabeça para baixo,
mas eles conseguiram entrar
nos eixos. “Aprendi a praticar o
desapego. Antes, tinha tudo
sob controle, era pura matemática”, afirma Sonia, que trocou de matéria. Com um sorriso franco, revela que passou a
valorizar a espiritualidade.
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