Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo
Ano II – nº16 – 5/7/2013
Que túmulo, que nada!
Numa noite em que seu amigo Johnny Alf se apresentava
numa boate paulistana, o poeta e letrista Vinicius de Moraes
teria se envolvido num bate-boca com um grupo de pessoas por
causa do barulho que faziam e proferido uma frase que ficaria
célebre: “São Paulo é o túmulo do samba”.
Os paulistas jamais perdoaram essa declaração, pela qual o
“poetinha” é lembrado até hoje, 33 anos após sua morte. E o
motivo de não o terem perdoado não foi bairrismo, mas sim o
fato de que isso está longe de ser verdade.
São muitos os exemplos da pujança da música popular paulista, principalmente o samba. Neste J&Cia Memória da Cultura
Popular, Assis Ângelo resgata do acervo do seu Instituto Memó-
ria Brasil uma extensa reportagem sobre o tema que publicou
na edição de 10 de fevereiro de 1992 do extinto suplemento
D. O. Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo; além da
entrevista, publicada na mesma edição, com um dos mais típicos
representantes do samba paulista, Germano Mathias. E, como
sempre, acrescenta novas e valiosas informações.
Túmulo? Deixar estar! Do lado de lá, Adoniran, Vanzolini e
muitos outros devem estar pegando no pé de Vinicius por aquela
frase infeliz.
Boa leitura!
Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli
Assis, no acervo do IMB
Sim, sinhô, São Paulo tem samba
Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções fotográficas de Andrea Lago e Darlan Ferreira
Muitos sabem que sou nordestino de
origem e paulistano por adoção e graça
dos vereadores de São Paulo, que me
premiaram com um título de Cidadão em
agosto de 1988, o que muito me honra,
aliás.
Pois bem, a mistura de gêneros, todos
os gêneros – musicais, inclusive –, sempre
me chamou a atenção e me levou a trilhas
desconhecidas da história em busca de
saberes e esclarecimentos para tantas
interrogações que me incomodam.
Por isso, até aqui, já foram muitas as
reportagens e artigos que publiquei como
resultado de pesquisas.
Há duas décadas, um dos temas mais
interessantes que escolhi para seguir
trilhas tem a ver com a origem do samba
como gênero musical.
O ponto de partida foi o maxixe sambado ou o samba amaxixado Pelo telefone,
uma criação coletiva assinada por Ernesto
Joaquim Maria dos Santos, o Donga, com-
positor, e Mauro de Almeida, jornalista,
que iam cantar e batucar – e beber e traçar
feijoada – nos fins de semana na casa da
baiana, filha de Oxum, Hilária Batista de
Almeida (1854-1924), a Tia Ciata.
Donga e Mauro eram cariocas.
A composição Pelo telefone foi registrada na quarta-feira 27 de dezembro de
1916 na Biblioteca Nacional e lançada pela
Odeon no início do ano seguinte, para o
carnaval.
O sucesso foi imediato, via gravação em
disco de 78 rpm (rotações por minuto) da
Banda Odeon (nº 121.313, matriz R-204)
e via gravação também em disco de 78
rpm de Bahiano (nº 121.322), de batismo
Manuel Pedro dos Santos (1887-1944),
considerado o primeiro cantor profissional
do País.
Em São Paulo, o ponto de iniciação
do gênero foi Pirapora do Bom Jesus e
região – incluindo Campinas e Sorocaba
– nos fins da segunda metade do século
19, mas ganhou forma na capital paulista
nos primeiros anos do século 20.
São vários os tipos de samba: de umbigada, de roda, de bumbo etc., e também
de sotaques.
Musicalmente falando, o sotaque de
São Paulo é bastante diferente do sotaque
do samba do Rio de Janeiro e de outras
regiões, como Bahia e Minas Gerais, berço, aliás, de grandes compositores como
Ary Barroso e intérpretes, como Noite
Ilustrada; e do samba de bumbo que lá se
praticava desde o século 18.
O samba do Rio pode se dizer que é
“leve”, pelo uso mais frequente de tamborins e pandeiros.
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O samba de São Paulo é “pesado”, por
ter parentesco com o jongo, o samba-lenço e o de bumbo.
Mário de Andrade chamava o samba
paulista de samba rural paulista.
No carnaval de 1914, o itirapinense Dionísio Vicente Barbosa (1893-1977), oriundo
da primeira leva de negros libertos em São
Paulo, juntou amigos e passou a cantar e a
pular nas ruas da capital nos dias de carnaval. A partir disso, ele e amigos fundaram
o Cordão da Barra Funda, que virou Grupo
Carnavalesco da Barra Funda, que virou
Camisa Verde, que virou Camisa Verde e
Branco.
Em 1954, o Camisa participou dos festejos do 4º Centenário de São Paulo já na
categoria de escola de samba.
Em novembro de 1931, Januário França
e Henrique Costa, acompanhados pelo
Grupo do Veneno, gravaram para a etiqueta
Columbia o antológico disco de 78 rpm (nº
22062-B) com o samba Bambas da Barra
Funda, assinado por Januário – a respeito
de quem ainda hoje quase nada se sabe –
e que fala do movimento que daria forma
definitiva e vigor ao samba na capital de
São Paulo, que diz assim:
Vem ver o samba
Que é formado e batucado
Pelos bambas da Barra Funda
Oi, tem macumba, tem canjerê
Quem duvidar do que eu digo
Venha ver...
Dos antigos – na verdade, o mais antigo
(1924-2013), autor de joias do gênero como
Ronda e Volta por cima, a primeira lançada
por Inezita Barroso em 1953 e a segunda
por Noite Ilustrada, em 1962. Disco raro do acervo do IMB que reúne o ator, jornalista
e dramaturgo Plínio Marcos e os compositores Zeca da
Casa Verde, Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro,
todos já desaparecidos
Você sabia?
Que o jornalista e estudioso da cultura popular Assis Ângelo é presidente
do Instituto Memória Brasil (IMB) e que
o escritor e também jornalista Roniwalter Jatobá é o vice-presidente?
Individualmente, pode se dizer que o
negro Geraldo Filme (1928-1995) foi um
dos maiores – e mais conscientes – representantes da raça e do gênero, como o são
até hoje os paulistanos Germano Mathias,
Eduardo Gudin e Osvaldinho da Cuíca, que
Osvaldinho da Cuíca e Assis
Que é de autoria do presidente do
Instituto Memória Brasil, Assis Ângelo,
o primeiro livro sobre música e futebol,
intitulado A presença do futebol na
Música Popular Brasileira?
Que entre as milhares de raridades do acervo do IMB há entrevistas
com Nélson Gonçalves, Sílvio Caldas,
Roberto Fioravanti, Francisco de Assis
Bezerra de Menezes e Carmélia Alves?
O disco de 78 rpm com os Bambas da Barra Funda é
um marco do samba paulista
–, o grupo musical Demônios da Garoa passou à história como intérprete de Adoniran
Barbosa e do samba tradicional de São Paulo, mesmo gravando obras de compositores
de outros Estados, como Noel Rosa, J. B. da
Silva, o Sinhô; Lauro Maia e Chico Buarque,
entre outros.
Nos últimos anos têm surgido muitos
cantores e grupos de samba muito bons,
principalmente na periferia paulistana.
Entre esses grupos, destaque para o
Quinteto em Branco e Preto, da zona Leste, e o Samba da Vela, da zona Sul, de que
tanto gostava o compositor Paulo Vanzolini
é ritmista, cantor, compositor e o 1º Cidadão
Samba de São Paulo, escolhido em concurso
promovido pela Secretaria de Turismo da
cidade, em 1974. Mas são Paulo deu muito mais compositores de sambas, como
Oswaldo Gogliano, o Vadico, o principal
parceiro de Noel, coautor de Pra que mentir,
Feitio de oração, Feitiço da Vila e Conversa
de botequim, entre outras; Pedro Caetano,
David Nasser, Dênis Brean, Elzo Augusto,
Oswaldo Molles, Paulinho Nogueira, Tito
Madi e muitos outros.
Para escrever a reportagem São Paulo e
o “samba mais pesado”, que você ler agora,
eu fui a campo e entrevistei bambas como
os já referidos Geraldo Filme e Paulo Vanzolini; Inezita Barroso, uma das maiores
intérpretes de Noel Rosa, ao lado de Aracy
de Almeida; Raul Duarte, Germano Matias,
Moraes Sarmento, Juvenal Fernandes; e
os maestros Camargo Guarnieri e Mário
Albanese, que ao lado de Ciro Pereira criou
o ritmo jequibau.
Boa leitura!
Que o primeiro livro sobre Inezita
Barroso, intitulado A menina Inezita,
é infanto-juvenil e foi escrito pelo presidente do Instituto Memória Brasil e
publicado pela Cortez Editora?
Que no acervo do Instituto Memória Brasil há livros de mais de 200
anos, entre os quais uma edição de
La Fontaine (Fábulas) em português,
impressa em Paris em 1886?
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São Paulo e o “samba mais pesado”
(íntegra da reportagem publicada na edição n° 117, de 10 de fevereiro de 1992, do D. O. Leitura, extinto suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de São Paulo)
“A música de São Paulo, mais precisamente o samba, é música pé-no-chão. Não é samba de morro.
É samba de rua, sem pompas. De frigideira e lata de graxa.”
Por Assis Ângelo – Fotos de Wilma A. Arruda
Decididamente, o tema é polêmico. E vai
longe, muito longe. Não foi à toa, aliás, que
deu no que deu a fala atravessada de Vinícius
de Moraes (19/10/1913 – 9/7/1980), segundo a qual São Paulo “é o túmulo do samba”
[N. da R.: a propósito, confira em http://
migre.me/fFxT6 uma declaração de amor de
Assis a São Paulo]. Palavras o vento leva, mas
verdade seja dita: o poetinha-compositor
disse o que disse num instante de elevado
etílico, como uma vez me garantiu, dando
de ombros, o mestre Adoniran Barbosa
(6/8/1910 – 22/11/1982), a quem mais diretamente a infeliz frase foi dirigida e, como se
sabe, genial e diplomaticamente negada e
logo depois rebatida com Bom dia, tristeza
(Vinícius/Adoniran), lançado pela maravilhosa Araci de Almeida em 1957. Essa música,
um samba, foi feita por “correspondência”,
mas essa é outra história... O fato, porém,
é que Vinícius disse o que disse e, por isso,
foi crucificado e infernizado por paulistas e
paulistanos até o fim da vida. Frases de efeito
à parte, uma certeza:
Sim, São Paulo tem música! E da boa,
diga-se de passagem.
Muito antes de proferir a infeliz frase,
Vinicius de Moraes, que jamais conheceu
(pessoalmente) Adoniran, escreveu e musicou, junto com o jornalista e compositor
pernambucano Antonio Maria (17/3/1921
– 15/10/1964), um dobrado a que deu o
título de Dobrado de amor a São Paulo,
de 1953, lançado em 1954 pela mesma
Araci. Araci Teles de Almeida (19/8/1914 –
20/6/1988), a mais fiel intérprete de Noel
Rosa (11/12/1910 4/5/1937), também sua
amante, era carioca do subúrbio do Encantado. Mas isso, certamente, é de menor
importância. O dobrado:
do com o samba, que vem do semba, do
negro e tem compasso binário. Simples,
sem mistério. A história é mais ou menos
conhecida.
A partir dos inícios da primeira década
deste século, através de baianos anônimos
que se fixaram no Rio, como Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854 – 1924) e
suas quituteiras, o gênero musical samba,
registrado como tal num disco de 78 rpm
da fábrica Odeon, nº 121.313, em 1917,
espalhou-se Brasil afora que nem fogo em
palheiro. Estamos, aqui, falando de Pelo Te-
lephone, de Donga (Ernesto Joaquim Maia
dos Santos, 5/4/1889 – 25/8/1974) e Mauro
de Almeida (22/1/1882 – 19/6/1956).
Enfim, a música de São Paulo, ou a música que se faz em São Paulo, tem influências
várias. De índios, religiosos europeus e
imigrantes de todos os quadrantes. Nesse
ponto, em particular, a contribuição ou
influência dos italianos do Brás e Bexiga,
bairros paulistanos de longa e respeitada
tradição, têm presença marcante, sem
dúvida. O mesmo se pode dizer dos nordestinos de diversos estados que escolheram
São Paulo, quatrocentos anos
E eu, coitada
Quatrocentos desenganos de amor
Conjunto Demônios da Garoa é marca de tradição do samba paulista, mesmo gravando obras de autores de outros
estados, como Chico Buarque
Eu daqui não saio mais, São Paulo
Isto aqui está bom demais, São Paulo
Ai, que bem isto me faz
Se o frio me aperta eu pego o cobertor
Abraço mais o meu amor
E vou até de manhã, em São Paulo
Isto aqui está bom demais, São Paulo
Eu daqui não saio mais...
Chuva, garoa,ventania
Troco a noite pelo dia
O tempo passa devagar
Sinto um bem-estar no coração
Vem o dia
E o Sol me encontra
Na avenida São João.
A música de São Paulo é resultado de
uma enorme mistura de ritmos, sons,
coisas, como de resto é a música feita na
Bahia, Paraíba e Rio de Janeiro. E na Cochinchina. Por razões que a própria razão
desconhece, o Rio é facilmente identificaa cidade de São Paulo como alternativa de
vida (1), já que aquela região é costumeira
e duramente castigada pela seca e praga
de todos os tipos, o que os fazem fugir
e procurar meios para uma vida melhor
noutros lugares.
A toada A triste partida (2), do cearense
Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da
Silva, 5/3/1909), é exemplo claro do que
digo:
Setembro passô, com oitubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus qui é de nóis?
Assim fala o pobro do sêco Nordeste
Cum medo da peste
Da fome feroz
(...)
Nóis vamo a Sum Palo, qui a coisa tá feia.
Por terras alêia
Nóis vamo vagá
Se o nosso distino num fô tão misquinho
Pro mermo cantinho
Nós torna a vortá...
Não nos alonguemos mais nesta questão.
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Há música em São Paulo, eu dizia. E caminhos e obviedades há aos montes neste
sentido. Inezita Barroso:
– O samba de São Paulo não tem absolutamente nada a ver com o samba carioca,
que, aliás, tem outra origem, outra ramificação. O samba paulista, facilmente identificável, é um samba mais pesado, autêntico,
afro, folclórico. O samba paulista tem muito
a ver com o jongo (3), com o samba de lenço
(4) (ou samba-lenço) e com o batuque. O
samba de São Paulo ou, como se queira,
o samba paulista, é negro e mantém suas
origens, ao contrário do samba que se faz
no Rio de Janeiro.
O “samba mais pesado” a que se refere
a intérprete paulistana Inezita Barroso,
nascida na Barra Funda em 1925, região
tida como berço do mais autêntico samba
no Brasil, é o samba em que se introduzem
bateria e tambores; ao contrário do chamado “samba leve”, do Rio, caracterizado
por instrumentos ”leves”, como tamborim
e pandeiro. Inezita, que também é instrumentista e professora de Folclore em duas
universidades paulistas – a Capital, no
bairro da Mooca; e a de Mogi das Cruzes –,
aposta na tese de que o autêntico samba
de São Paulo procede da zona rural, mais
precisamente da região do Vale do Paraíba, onde historicamente a presença de
escravos foi mais marcante no Estado. O
certo, mesmo, é que toda cultura tem uma
característica própria. Câmara Cascudo
(30/12/1898 – 30/7/1986):
“Todos os países do mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais,
possuem um patrimônio de tradições que
se transmite oralmente e é definido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é
milenar e contemporâneo. Cresce com os
conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou
nacionais. Esse patrimônio é o folclórico.
Folk, povo, nação, família, parentalha. Lore,
instrução, conhecimento, sabedoria, na
acepção da consciência individual do saber.
Saber que sabe. Contemporaneidade, atualização imediatista do conhecimento (5).
Pois bem, aí está a sábia impressão do
mestre Cascudo. Inquestionável. Todo povo
– e aí entenda-se o conjunto de pessoas, de
uma sociedade – tem saber, hábitos, cultu-
ra. E é exatamente isso o que mais identifica
um povo, uma nação. Musicalmente, pode-se dizer, com toda convicção, que são os
compositores quem melhor traduz a vida e
o comportamento de uma cidade, de uma
sociedade. Seja qual for, pequena ou não.
Nesse ponto, concordo plenamente com
o mestre e compositor paulistano Mário
Albanese, quando diz que“qualquer música
tem uma característica local” e que, por isso
mesmo, “até o que se entende por folclore
sofre uma certa transformação”. Se para pior
ou melhor, esta é outra questão. Albanese,
criador de um gênero musical, o jequibau,
junto com Ciro Pereira, em 1965, tem absoluta certeza da existência de uma música
com “cara” paulista. E essa característica
deve-se aos compositores locais, segundo
ele: Para reforçar o que diz, cita autores
do naipe de uma Zica Bergami, Zequinha
de Abreu, Tito Madi, Adoniran Barbosa,
Geraldo Filme e Paulo Vanzolini. O próprio
Paulo Vanzolini também reforça o parecer
do maestro, citando como exemplo Victor
Dagô, Oswaldo Moles (talvez o principal
parceiro de Adoniran), Raul Duarte, Otávio
Gabus Mendes e Zelão, um crioulo nascido
no Morro do Piolho, Cambuci, São Paulo,
“violinista e cantor dos grandes”, na opinião
do próprio Vanzolini, autor de Ronda (sam-
ba de 1946, gravado em disco pela primeira
vez por Inezita Barroso em novembro de
1953, num disco de 78 rpm nº 801217-B, da
RCA Victor) e Praça Clóvis (samba de 1957,
lançado em 1968 por Chico Buarque de
Hollanda, no LP Onze Sambas e uma Capoeira, nº XRLP 5321-B, da RGE). Vanzolini vê
“alguma influência” do samba feito no Rio e
a moda de viola ou caipira no que se pode
chamar de “música paulistana”. A opinião
dele é idêntica à opinião de Inezita Barroso,
também vista por ele como “uma grande
interprete dos sambas de Noel”.
Para muita gente boa, como Geraldo
Filme, autor importantíssimo na história
do samba em São Paulo, nascido na Barra
Funda, a obra do carioca Noel de Medeiros
Rosa completou-se com a indispensável
parceria de um paulista, filho de imigrantes italianos, de nome Osvaldo Gagliano
(24/6/1910 – 11/6/1962) (6), nascido no
mesmo bairro do Brás de famosos personagens, como o compositor e violinista
Alberto Marino (23/3/1902 – 11/2/1967),
que também era descendente de italianos
e autor de algumas pérolas já devida e
naturalmente integradas ao cancioneiro
paulistano, como Rapaziada do Brás (valsa
de 1917, gravada dez anos depois pelos
saxofonistas J. Pizarro e O. Pizarro, e pelo
próprio autor em solo de violino, escondido
no anagrama de Bertorino Alma). Filme, um
sambista incomum, é autor de pelo menos
três títulos que enaltecem e enobrecem
enormemente São Paulo, a cidade, dois dos
quais fazem referência explícita ao festivo
bairro do Bexiga, Vai no Bexiga pra ver e Silêncio no Bexiga, ambos de 1980, gravados
pelo próprio autor em LP homônimo nº
29800358, lançado pelo Estúdio Eldorado,
em 1980, com apresentação do teatrólogo
Plinio Marcos, que a certa altura escreve:
“A obra de Geraldo Filme é uma referência
para todos os que quiserem saber da história da cidade de São Paulo”.
É verdade. E como Geraldo Filme há
outros nomes importantes preocupados
, ou que um dia se preocuparam, em deixar registradas suas observações sobre a
cidade de São Paulo. Nomes, por exemplo,
como Bezerra de Menezes, autor de Perfil
de São Paulo, 1954; Dênis Brean, David
Nasser (7), Billy Blanco, Lauro Muller, Renato
Leite, Silvio Caldas, Mário Zan, J..M. Alves,
Paraguaçu e Tom Zé, Tonico e Tinoco e Alvarenga e Ranchinho, além de poetas-letristas
sensíveis como Marcelo Tupinambá, não
podem ser esquecidos num trabalho que se
proponha a falar sobre a vida e a memória
musical da cidade de São Paulo, “musa” ou
tema direto ou indireto de cerca de 1.400
títulos, desde século XVIII. São Paulo, na verdade, é uma espécie de Babel; uma mistura
de raças, credos, povos e formas. Em cada
uma de suas esquinas há uma surpresa, um
susto, uma beleza, uma novidade enfim. Há
tudo em São Paulo, como um dia lembrou
inspirada composição o italiano Ambrogio
Gaigher:
Inezita Barroso (com Assis) consagrou-se com o samba
Ronda, que ela mostra no disco que gravou em 1953
Mario Albanese
...Quantos prédios, quantas praças
Quanta indústria São Paulo já tem
Quanta gente, quantos carros
O trabalho não falta à ninguém
(...)
Em São Paulo nós temos de tudo
São Silvestre a corrida maior
Toda gente que vem a São Paulo
Diz que nada no mundo é melhor
Quanta raça de estrangeiros
Todo mundo vem aqui pra viver
Qualquer um vive em São Paulo
Ninguém sabe distinguir quem é... (8)
Voltemos à música paulista. Ou paulistana, como se queira. A música de São Paulo,
mais precisamente o samba, é música pé-no-chão. Não é samba de morro, é samba
de rua, sem pompas, de frigideira e lata de
graxa, como, aliás, durante quase 40 anos
seguidos tem feito Germano Mathias, um
paulistano nascido no bairro do Pari, que
diz ser o que faz “um samba malandreado”.
Esses, digamos, primitivos instrumentos
“musicais” substituíram, de certa forma,
os tradicionais tamborins, hoje, definitivamente, marca registrada nas escolas do
Rio. Esses instrumentos saíram da cozinha
direto para os terreiros da Barra Funda e, de
lá, para outros recantos da cidade. Apesar
disso, não se pode afirmar que o ritmo que
mais caracteriza São Paulo é o samba tradicional, tampouco o samba-lento, a seresta,
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o cururu ou a toada. Incorreto, também,
seria afirmar que o jequibau, ou jaquibau
– um neologismo rítmico criado em 1965
pelos compositores Mário Albanese e Ciro
Pereira –, representa São Paulo, embora
tenha ele sido criado em São Paulo e por
paulistanos. O jequibau, para quem ainda
não sabe, é um ritmo desenvolvido em
cinco tempos (compasso considerado de
identidade mista, por ser de fácil adaptação
a qualquer molde musical), amplamente
apreciado e divulgado na Europa e Estados
Unidos da América por gente como Andy
Williams, VicDamone, Percy Faith, Charlie
Bird, Norman Luboff, Vicki Carr, Saddao
Watanabe, Tira Reys etc., e no Brasil por
Geraldo Filme, Miriam Batucada e outros autores e intérpretes paulistanos
Hermeto Paschoal, Pedrinho Mattar, Jair
Rodrigues, Moacir Franco, Hebe Camargo
e Zimbo Trio, entre outros de razoável talento e intimidade com o chamado grande
público.
Os baianos levaram o samba para o
Rio de Janeiro, da mesma forma que os
paulistas, paulistanos, mineiros, cearenses
e pernambucanos têm-se feito presentes
noutras partes do País, inclusive entre os
próprios cariocas, como Antônio Maria
(17/3/1921 – 15/10/1964), que era de Recife; Ari Barroso (7/11/1903 – 9/2/1964), que
era de Ubá-MG; e Ataulfo Alves (2/5/1909
– 20/4/1969), também era mineiro, de Miraí,
como Mano Décio, que nasceu em Juíz de
Fora. No contraponto, pode-se dizer que
o Rio Grande do Sul também deu “paulistas”, como Mateus Nunes, o Caco Velho
(12/2/1909 14/9/1971) e, claro, também
mineiros como Alberto Alves da Silva, o
famoso Nenê da Vila Matilde, fundador da
escola de samba do mesmo nome, nascida
no dia 31 de dezembro de 1931. Por outro
lado, e em relação ao Rio de Vinícius de Mo-
raes, não se pode esquecer de modo algum
as origens de David Nasser (1/1/1917), que
era paulista de Jaú, por exemplo (9). E o que
dizer de baianos, como Caetano Veloso e
João Gilberto, que deixam definitivamente
sua marca poético-musical nas capitais de
São Paulo e Rio de Janeiro? O fato é que o
Brasil se cruza no céu e na terra com todos
os gêneros e tendências musicais. É como
se o Brasil estivesse em constante estado de
ebulição. Talvez até seja isso mesmo, e seu
símbolo um caldeirão fumegante prestes
a explodir.
A música de São Paulo é nova, como
nova é, de resto, a música brasileira, embora
tenha como referencial direto uma missa, A
missa a São Paulo, de 1750, composta por
Calixto e Anchieta Arzão, A rigor, porém, a
nossa música sequer completou o primeiro
centenário. Antes de se falar em música
no Rio, conta Geraldo Filme, “falava-se em
música em São Paulo , Maranhão e Bahia.
O samba do Rio, que foi levado pela Tia
Ciata e suas companheiras baianas, vem
do candomblé; o de São Paulo vem do
batuque rural, do batuque “pesado”, que é
o batuque da região mogiana.
José Jambo Filho, o Chiclé, ritmista e
ex-presidente do G.R.E.S. Vai-Vai (hoje presidente do Conselho Deliberativo da Liga
Independente das Escolas de Samba de
São Paulo), concorda com Geraldo Filme e
até vai um pouco mais longe, ao dizer que
o “samba paulista é ligeiro e vem dos cordões, tem originalidade e muita percussão,
ao contrário do samba que se faz no Rio de
Janeiro que, aliás, ensaia uma assimilação
tímida do que se faz em São Paulo”. Cliclé
é paulista, de Santos, nascido no dia 18 de
junho de 1931.
O radialista paulistano (do bairro de
Santa Cecília) Raul Duarte, autor de uma
verdadeira obra-prima chamada No meu
Canindé, de 1958, é, aos 80 anos, uma voz
discordante na questão sobre se há ou não
música própria em São Paulo. Ele entende
que todo e qualquer ritmo musical “tem origem não totalmente explicada”, e pergunta:
– O fado nasceu em Portugal? O samba nasceu no Rio? O próprio Adoniran
Barbosa fazia, de propósito, samba com
linguagem errada. Os melhores sambas de
Noel são de Vadico, um paulistano nascido
no Brás. Na verdade, pra mim, o samba
nasce é no coração e não na cidade ou no
campo. Ari Barroso e Ataulfo Alves eram
mineiros, não eram? No entanto, fizeram
o que fizeram e pouca gente sabe, hoje,
que ambos não eram cariocas. Engraçado
isso, não é?
Raul Duarte, autor de cerca de 30
músicas, todas gravadas, foi um grande
descobridor de talentos, entre os quais
Mário Ramos, o Vassourinha (16/5/1923 –
3/8/1942), e Isaurinha Garcia. Ele diz que
o Rio de Janeiro tornou-se o epicentro
cultural do Brasil durante um certo tempo,
por ser, então, a capital da República, e,
por isso mesmo, muito agitada, com seus
cassinos fabulosos e outras coisas mais.
“Quer dizer, se o Rio não fosse a capital do
País num tempo de grandes novidades não
teria, certamente, havido essa onda de que
foi lá que nasceu o samba, não é mesmo?
Agora, me diga, alguém ousaria falar mal
do Piauí? Não, não. E sabe por quê? Porque
não daria Ibope, ora”.
Outro radialista, também paulistano,
Clóvis Messias, da Vila Matilde, amigo de
Orlando Silva (3/10/1915 – 7/8/1978) e outros cantores de grande destaque nos anos
50, é incisivo quando diz que “a educação
musical de São Paulo tem vindo através
do rádio carioca”, no que, aliás, concorda
Paulo Vanzolini. Para Clóvis, a afirmação de
Raul Duarte é procedente no que se refere
à agitação e à condição de Capital Federal
do Rio de Janeiro:
– Sem dúvida, era pra lá que todos os
artistas se dirigiam, esperançosos de alcançar o estrelato e ficarem famosos da noite
para o dia e com muito dinheiro no bolso.
Isso quase sempre dava certo, pelo menos
pra quem tinha talento, como Vadico, que
encontrou no Rio, através de Noel Rosa, a
grande oportunidade de alçar voo alto e
ganhar identidade musical própria, mesmo
à sombra de Noel. Conheci muito de perto
o Vadico, mas nem por isso entendo que o
que ele fazia era música paulista. Não, ele
era um ótimo pianista, romântico e boêmio
e, claro, fazia samba com muita categoria.
Moraes Sarmento, também radialista
e grande conhecedor da Música Popular
Brasileira, com 55 anos de estrada rodada sobre as ondas hertzianas, acha – ao
contrário de Clóvis Messias –, que “em São
Paulo há música, e da boa”, lembrando,
inclusive, que algumas escolas de samba
paulistanas, como a Nenê da Vila Matilde,
por exemplo, já têm indiscutível tradição,
“e qualidade”, ressalta. Para Moraes, além
de bons compositores, São Paulo também
tem excelentes intérpretes,“como Adoniran
Barbosa, Geraldo Filho e Isaurinha Garcia”,
entre outros, “sem falar no grupo Demônios
da Garoa, que há meio século traduz na
música toda a beleza e complexidade que
a cidade de São Paulo tem”.
Paulo Vanzolini foi um sambista que contrapôs sua obra à de Adoniran Barbosa
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O compositor, editor e pesquisador
musical Juvenal Fernandes, um paulistano
nascido no dia 19 de outubro de 1925,
autor de uma dezena de livros e dezenas
e dezenas de músicas, algumas dessas em
parceria com Osvaldo Guilherme, Dênis
Brean, Tonico, J. M. Alves, Capitão Furtado e
Nélson Cavaquinho, respondeu afirmativamente numa única palavra a questão sobre
se há ou não música na Paulicéia:
– Lógico.
Instigado, estendeu-se:
– São Paulo é uma cidade pioneira em
tudo. Em São Paulo tudo está sempre em
Assis, com Moraes Sarmento
constante transformação. Se não existisse,
São Paulo seria criada do dia pra noite. Aliás,
é isso mesmo o que acontece: São Paulo
está sempre se renovando. É como se a
cada dia surgisse uma cidade nova, dentro
dessa cidade maior que é a própria São
Paulo. A música de São Paulo é o samba,
um samba diferente do samba feito no Rio,
mas samba. Do bom.
Outro compositor, também maestro
e professor de formação erudita, paulista de Tietê, chamado Mozart Camargo
Guarnieri, autor de riquíssima discografia
e famoso no mundo todo, com a humildade e a calma que lhe são peculiares, diz
que “pessoalmente em nada contribuiu,
sequer musicalmente, para o engrandecimento de São Paulo”, mas “São Paulo tem
música, sim, quem disse que não tem?”
Camargo Guarnieri, nascido no dia 1º de
julho de 1907, em homenagem à cidade
de São Paulo, compôs em 1954 uma suíte
do Quarto Centenário. Ele lamenta o atual
estágio de estagnação musical e o sumiço
de Luiz Gonzaga,“que deixou um grande
vazio, pois era um dos grandes”, ao mesmo
tempo que reconhece a importância da
obra do paraibano Geraldo Vandré e do
mineiro Milton Nascimento:
– Esses dois (Geraldo e Milton) encontraram o caminho certo da música.
São Paulo também, ao que tudo indica.
No estilo, Adoniran foi único; como Paulo Vanzolini
1 – Números do IBGE indicam que há em São Paulo cerca de 3,5 milhões
de nordestinos fixos ou em trânsito.
2 – Ler e ouvir Cante lá, que eu canto cá (Filosofia de um Cantador Nordestino), de Patativa
do Assaré, Editora Vozes, RJ, 1978; Poemas e Canções nº XSB-2198, CBS-Epic, SP, 1979.
3 – Variante do samba, com presença marcante no interior de São Paulo, Espírito Santo,
Minas e até no Rio de Janeiro.
4 – Tipo de dança coreografada, na qual os participantes divertem-se enfileirados; a
ver com o batuque e o samba rural propriamente dito.
5 – In Seleta, de Luís da Câmara Cascudo, Livraria José Olympio Editora, RJ/
InstitutoNacional do Livro/MEC, 1972.
Notas
6 – Noel Rosa e Oswaldo Gagliano (Valdico) compuseram em parceria, entre outros,
Feitio de Oração, Silêncio de um minuto, Pra que mentir e Feitiço da Vila.
7 – Dênis Brean, paulista, é o autor de Bahia com h e de Boog-yoog na favela. entre
outras nacionalmente famosas.
8 – Disco compacto duplo Esperanto, CGD-0001-A, Gravadora Gaigher Ltda, DiademaSP, 1987.
9 – David Nasser, um dos maiores jornalistas da história da imprensa brasileira, é autor
de sambas como Dominó e Normalista e de marchas ainda executadas durante o
carnaval em todo o Brasil, como Chico Viola morreu e Confeti.
Germano
Mathias
Por Assis Ângelo
Germano Mathias, com h, é o seu nome completo. É nome artístico também. “Se podemos simplificar a vida,
por que não?”, filosofa esse paulistano da Barra Funda, que carrega nas costas um peso muito grande, o de dar
continuidade a uma obra que tem muito a ver com a cara de São Paulo e sua música. O nome de Germano
Mathias lembra outros nomes que São Paulo aprendeu a respeitar. Adoniran Barbosa, Isaurinha Garcia, Dênis
Brean, Oswaldo Moles, Vassourinha, Demônios da Garoa, Zequinha de Abreu, Mário Zan, Geraldo Filme,
Oswaldinho da Cuíca e tantos outros.
Nesta entrevista a Assis Ângelo, pesquisador da Música Popular Brasileira e autor de vários livros a respeito, o
compositor e cantor Germano Mathias fala da sua carreira e da cidade que o viu nascer em 1934.
Germano Mathias deixa
no samba sincopado a
sua grande marca
Assis Ângelo – Germano Mathias, sambista paulistano de boa
cepa.
Germano Mathias –
Perfeitamente. Mathias
com “h”.
AA – Por quê?
GM – Porque quando eu nasci, 1934, ainda
se escrevia farmácia
com “ph”. Por isso, é claro. Mathias tinha que ter
um “h” no meio, né? O
meu nome de batismo
é Germano Mathias. E o
nome artístico também.
AA – Você nunca
usou pseudônimo?
GM – Ah, já! Usei
vários. Com um deles,
“Barra Funda”, assinei
o meu primeiro samba que era assim (can-
tando): “Na Barra Funda/Nunca mais/Eu
voltarei/Cantei meu samba/Nunca mais/
Eu trabalhei/Faz sete anos/Que eu vivo/Na
malandragem/Quero trabalhar/Mas me
falta coragem/Tenho de tudo/Até anel de
doutor/Trabalhar é pra relógio/Eu não sou
despertador/Sou malandro bem vestido/
Uso terno, chapéu e sapato/Uma nêga no
basquete/Dinheiro comigo é mato”. Compus isso antes de começar no rádio, antes
mesmo de servir Exército, em 1952.
AA – Esse sambinha foi gravado?
GM – Não, não gravei, porque a melodia
dele eu roubei de outro samba, intitulado
Minha nêga na janela, feito em parceria com
Doca, e o primeiro por mim gravado em
disco (selo Polydor).
AA – Diz o ditado que ladrão que rouba
ladrão tem cem anos de perdão. Mas, no
caso, ladrão que rouba a si próprio deve ter
cem vidas perdoadas, não é?
GM – Pois é, eu roubei de mim mesmo
uma melodia de um samba que era meu
mesmo.
AA – Quem é, mesmo, Germano Mathias?
GM – Um sambista paulistano, como
você mesmo falou há pouco. Nasci no bairro da Barra Funda, zona oeste de São Paulo,
no dia 2 de junho de 1934. O meu pai, Júlio
Mathias, é carioca e está aí, firme que nem
numa rocha. A minha mãe, dona Zulmira,
é falecida. Ela, como eu, era paulistana da
gema. Irmãos? Dois, um por parte de pai. A
minha família é toda de origem portuguesa.
Quer dizer, embora paulistano, nas minhas
veias corre o sangue luso. Sim, até os meus
avós eram portugueses.
AA – Música. Alguém na família tem ou
teve alguma afinidade? Como foi que o
samba entrou na tua vida?
GM – Ah, meu chapa, eu sou uma personalidade paradoxal!
AA – Como assim?
GM – Bom começa pela cor. Eu era para
ser crioulo e não sou, como se vê. Sou branco, até com pinta de alemão. Lembra do Garita, o famoso Garita da gafieira paulistana?
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Toda vez que a gente se via, ele dizia: “Pôxa,
eu pensei que você fosse embaixador da
Romênia! Com essa pinta, você era pra ser
embaixador e não sambista!” O Garita era
um gozador inveterado, com uma pontinha
de verdade, não é? Agora pra ficar com
jeitão de sambista, sabe o que faço? Eu
uso chapéu, ó, bem malandreado. Além do
chapéu, sapatos bem lustrados e aquelas
roupas bem tradicionais de sambista de
antigamente. Que tal?
AA – Nada mal. Pai carioca, mãe paulistana, avós portugueses...
GM – Pois é.
AA – ...Não é preto, mas é sambista e faz
o diabo com uma tampa de lata de graxa
niquelada. Como foi que a música entrou
na tua vida?
GM – Ah! Eu sempre tive verdadeiro fascínio pela música brasileira. Sempre fiquei
assim magnetizado pela música regional,
de raízes, entende? Quer dizer, sempre
gostei de boa música e não só do samba.
Coisa brasileira é comigo mesmo, sabe eu
sou assim, uma espécie de folclorista. Gosto
de côco, baião e chorinho, por exemplo.
Gosto do que é tradicional. Mas gosto
também do folclore de outras nações. Da
música russa, por exemplo. Da balalaica, do
fado português, do tango argentino. Gosto
da coisa típica, do povão, de tudo que tem
cheiro de povo. Não gosto de coisa muito
sofisticada, entende? Se é pra ouvir coisa
sofisticada, vamos então logo ouvir música
erudita, música clássica, que é ponto máximo da música, não é?
AA – Apesar desse seu gosto musical
bastante variado, até hoje, que eu saiba,
você só gravou samba, esse sambinha sincopado danado de safado, correto?
GM – Mais ou menos, pois também
gravei um samba-canção e algumas poucas
marchinhas de carnaval. A minha voz é pequena, invocada. A minha voz tem cinco “f”,
ou seja: é fina, feia, fraca, fedegosa e fulêra.
Quer dizer, com todos esses “f” não dá para
arriscar outro gênero musical, não, além do
sambinha aí meio feijão-com-arroz.
AA – No dia 26 de outubro de 1955, a
Rádio Tupi de São Paulo te contratou como
artista exclusivo e assinou a tua Carteira de
Trabalho com uma curiosa inscrição: “Can-
tor e executante de instrumentos exóticos”.
O que vinha a ser isso?
GM – É que eu sou um multinstrumentista. Toco campainha, caixa de fósforos,
lata de graxa e o que vier! Agora, falando
sério: que eu toco muito bem uma tampa
de lata de graxa niquelada, ah! isso eu toco.
Também sou bom num sambinha com
frigideira.
AA – Como é isso?
GM – Você não sabe? Nos anos 40, por aí,
as escolas de samba ainda não dispunham
dessa parafernália de hoje. As escolas de
samba no início da minha carreira faziam
ritmo com frigideiras. Frigideiras niqueladas,
não essas que se usa no fogão, entende?
Frigideira dá um ritmo bem estridente, bem
bonito. De longe ouve-se o som. O samba
pra ser bom tem de ser cantado com bossa
e muito ritmo. Também tem de ser coreografado. Quer dizer, o sambista não pode só se
limitar a cantar. Aliás, o sambista nem precisa
ter uma voz forte, bonita. Isso quem precisa
é o Pavarotti. O que o sambista precisa ter é
muito ritmo e não semitonar além da conta.
O sambista tem de saber sambar, tem de
saber tocar instrumentos de percussão e
cantar com bossa, assim meio malandreado,
entende? É disso que o sambista precisa, o
resto é bobagem.
AA – Você estudou música?
GM – Que nada! Nunca entrei numa
escola de música. Tudo que sei, e nesse
ponto, modéstia à parte, eu sei bastante,
aprendi espontaneamente, de orelhada,
de tanto observar.
AA – O samba mudou nos últimos 40,
50 anos?
GM – Que nada, o que muda é o sambista. E, claro, os interesses das gravadoras. Em
1955, quando comecei, a visão do pessoal
das gravadoras era outra. Artista, com “a”
maiúsculo, sempre tinha vez. Nêgo tinha
talento, tinha tudo. Entrava na gravadora e
gravava. Não era como hoje, não é? Gravei
17 LPs e vários compactos, além de discos
de 78 rpm. Sabe, eu, pessoalmente, nunca
fui gravar disco não. Sou melhor de palco.
Gosto de brincar, sou gaiato. Sou do samba
gaiato. Acho que no palco sou melhor que
no disco.
AA – Você não grava há quanto tempo?
GM – Há uns dois anos eu gravei um
disquinho que nem chegou a ser comercializado, com uma musiquinha até bonita,
assim ó (cantando): “Vamos ouvir o poeta/
Que conta nos temas/De amor por alguém/
Sua presença na rima/Pinta no clima/De um
tempo qualquer/É cantiga nova/Se o nome
é mulher...” e por aí vai. Chama-se Costela
predileta, de Elzo Augusto.
AA – O samba paulista é logo identificado por nomes como Adoniran Barbosa,
Paulo Vanzolini, Germano Mathias, Talismã,
Zeca da Casa Verde e mais alguns cabras
bons. Quer dizer, isso contraria completamente a famosa opinião do poetinha
Vinícius de Moraes, segundo a qual São
Paulo é o túmulo do samba, não é?
GM – Eu acho que o Vinícius estava
brincando quando disse aquilo. O samba
de São Paulo é muito bom. Além dos nomes que você citou, há o Geraldo Filme, o
Oswaldinho da Cuíca, e muita gente mais,
como Henricão, Vassourinha, Laurinho da
Saudade e outros que se foram desta pra
melhor. A gente perde um pouco é no
setor feminino, que tem poucas sambistas.
Isaurinha Garcia, Miriam Batucada. Sim,
temos poucas sambistas. Não temos quantidade, temos qualidade. O samba paulista
é da melhor qualidade, sim senhor!
AA – E na vida paulistana, o que mudou
dos anos 50 pra cá?
GM – Ah, nesse ponto mudou muito.
No meu tempo, no tempo que eu era mais
novo, São Paulo era uma cidade muito
gostosa, muito bonita. As boates, as mulheres, os cabarés, tudo era melhor, tudo
funcionava perfeitamente a todo vapor.
No meu tempo havia boemia. Hoje, não.
O que há hoje é muita violência. Sou mais
São Paulo de ontem.
AA – Você não sai à noite?
GM – Não. Na verdade, saio muito pouco. É preciso muito cuidado pra sair à noite,
pois há muita gente ruim à solta, assaltando, matando por bobagens. No meu tempo
não era assim. Os próprios malandros se
incumbiam de proteger os frequentadores
da noite, porque os malandros de verdade,
malandros no bom sentido, sabiam que
era dos frequentadores da noite que saía
o dinheiro, que era com eles que saíam as
mulheres. Dá pra entender? Os malandros
viviam de quê? Viviam de expedientes,
não é? Viviam de mulheres, de jogo, dessas coisas. Os malandros do meu tempo
andavam bem vestidos, bem arrumados,
cheirosos, penteados. Essa era a maneira
deles viver. Violência, que violência? Mas
os malandros acabaram, foram substituídos por bandidos. Os bandidos são uns
coitados, uns ignorantes. Bandido, bandido mesmo, é incapaz de ganhar dinheiro
inteligentemente. Sabe, até as mulheres
mudaram. Antes eram mais femininas, não
disputavam tão ferozmente o mercado
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profissional. As mulheres sentiam-se bem
protegidas pelos homens. Bom, mas tudo
isso acabou. Se sinto saudade? É claro! No
meu tempo era mais fácil viver. Tinha mais
emprego, mais oportunidade. Não tinha
crise, tudo dava certo. Havia mais respeito,
mais consideração. Hoje, nêgo que não
tem dinheiro, por exemplo, está frito, está
perdido.
AA – São famosas as batucadas na praça
da Sé.
GM – Na praça da Sé, na praça Clóvis,
na praça da República. A gente unia o lazer
ao trabalho. Até os engraxates eram diferentes. Eles disputavam entre si pra saber
quem era o melhor num lustre de sapato.
Quer saber mais? Enquanto lustrava os
sapatos dos fregueses, os engraxates batucavam, cantavam. Era bonito, era folclórico.
E hoje? Hoje os engraxates são rápidos,
não batucam, não cantam, não conversam
como freguês. A ordem entre eles é faturar
o mais rapidamente possível.
AA – Qual a música que mais identifica
São Paulo?
GM – Todas, todas as músicas de Adoni-
ran. Especialmente aquela que diz (canta):
“Silêncio, é madrugada/No morro da Casa
Verde/A raça dorme em paz/E lá embaixo/
Meus colegas de maloca/Quando começa
o samba/não para mais”. Esse samba é a
cara mais bem feita da periferia de São
Paulo. Já o centrão da cidade eu vejo naquela música do Bezerra de Menezes, que
diz (canta): “Aonde estão teus sobrados/
De negros telhados/E teus lampiões...” É
ou não é cara da cidade de antigamente?
Tem outra, Lata de graxa, de Mário Vieira
e Geraldo Blota, que gravei em 1958, que
conta como érea a São Paulo do meu
tempo (cantando): “No coração da cidade/
Hoje mora uma saudade/A velha praça da
Sé/Nossa tradição/Da praça da batucada/
Agora remodelada/Só ficou recordação/
Até o engraxate/Foi despejado/E teve que
se mudar/Com sua caixa/Ai, que saudade/
Da batucada/Feita na lata de graxa”.
AA – Bonita, Germano! O samba não
muda, você disse. E as escolas de samba?
GM – As escolas evoluíram, o desempenho delas nas avenidas é mais bonito. Tudo
é mais organizado.
AA – É comum às escolas de samba
homenagear personalidades.
GM – Isso eu acho bom. Lembrar as
coisas boas, as pessoas importantes de
um país, é um gesto muito bacana. Eu,
inclusive, já fui homenageado. Foi em
1988. Fui lembrado pela escola de samba Flor da Penha. Uma escola pequena,
modesta, humilde. Era do terceiro grupo,
passou para o segundo com o samba-enredo Esquentando a memória do povo,
feito em homenagem ao papai aqui, que
chegou até a desfilar em carro alegórico.
Fiquei emocionadíssimo, porque tudo foi
feito de forma muito espontânea. E ouvir
o povão cantar em minha homenagem,
ah!, a emoção que senti é indescritível. O
samba é assim (canta): “Flor da Penha /
Muita lenha/Vai queimar/Pra esquentar
a memória do povo/Na rua enaltece um
artista popular/Que é sambista/Mas não
tem bumbum pra lua/O Moleque’Barra
Funda’/Bem menino/Nas rodas de samba
se encaixa/O que marcou demais/O seu
destino/Foi o batuque/Na lata de graxa/
Malandreando, malandreando/É malan-
dro de araque/Sempre sambando/O seu
samba tem destaque/Vive cantando/Onde
quer que ele esteja/A tristeza vai embora/
Quando ele comemora/Faz a festa e festeja/
Viva, viva Germano/Teu Mathias com ‘h’/
Faz agá pro desengano/E tem lenha para
queimar”. Que tal?
AA – Bonito. Chorou muito?
GM – Sim, às pampas. A emoção foi
ainda maior quando eu soube que a escola
havia ganhado, que passara do terceiro
para o segundo grupo.
AA – Morro da Casa Verde, samba de
Adoniran Barbosa que você cantou há
pouco, realmente retrata muito bem um
bom pedaço da cidade de São Paulo. E você
mesmo, não fez nada pra São Paulo?
GM – Fiz, sim. Fiz e gravei algumas, como
Figurão, de 1958, composta em parceria
com meu amigo Doca. Mas tem uma aí
inédita, também do meu parceiro Elzo
Augusto, que se chama Samba da periferia.
AA – Vamos encerrar esta nossa conversa com ela?
GM – Vamos. Essa música é assim (cantando): “Sou samba/Venho da periferia/
Não alugo moradia/Vivo na voz do povão/
Sou pobre/De pobreza absoluta/Marginal
filho da luta/De gente sem um tostão/A
cores tudo é lindo/Lindo, lindo/Meu endereço é bem vindo/Sou dessa gente/Gente
que num ônibus lotado/Vai batalhar um
trocado/Pendurado igual pingente/Sou
samba do reduto de Itaquera/Brasilândia,
Sapopemba e Cachoeirinha/Sou fruto da
cabeça da galera/Burilado e batucado/na
garrafa de caninha/Sou samba/Venho da
periferia/Não algo moradia/Vivo na voz do
povão...”. É isso aí.
Germano em vídeo
Cenas do documentário Ginga no asfalto, produzido e dirigido por Guilherme Vergueiro e André Rosa, em que Germano Mathias
canta acompanhado por Guilherme Vergueiro, Raul de Souza, Luizinho 7 cordas, Alex Buck e quinteto Preto e Branco. Gravado em São
Paulo em 2007.
Samba da periferia (http://migre.me/fFzdF)
Guarde a sandália dela / História de um valente / Nega Dina (http://migre.me/fFzj2); a última música desse link, identificada como Quem
roubou meu samba, é na realidade Figurão, que Germano compôs com Doca
Expediente – Jornalistas&Cia Especial Memórias da Cultura Popular é uma publicação mensal da Jornalistas Editora Ltda. (Tel. 11-38615280) em parceria com o Instituto Memória Brasil • Diretor: Eduardo Ribeiro ([email protected]) • Produção do conteúdo:
Assis Ângelo ([email protected]) • Editor-executivo: Wilson Baroncelli ([email protected]) • Diagramação e Programação visual: Paulo Sant’Ana ([email protected]). É permitida a reprodução desde que citada a fonte.
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