“O INVASOR” – comentários ao filme
Suad Haddad de Andrade
Somos frequentemente invadidos; a raiva, a desconfiança, a inveja, a revolta, a
insegurança enfim, são muitos os sentimentos desagradáveis que podem nos
invadir a qualquer momento.
Mas também somos invadidos por bons sentimentos: sentimento de
solidariedade, de tranquilidade, de paz, de ânimo, de vontade de fazer uma boa
ação, de procurar um amigo; somos invadidos por boas idéias, por soluções
brilhantes onde antes não havia saida,etc.
Então, o bom e o ruim nos invadem. Vindos de onde? De onde vem a invasão,
de fora de nós?
O filme nos coloca está questão, entre outras. A história do filme é clara, o
desenvolvimento é linear, mas os questionamentos são muitos e vão além das
imagens e do roteiro. A seqüência pode ser resumida: os dois sócios contratam
um matador para eliminar o terceiro sócio que atravancava seus planos; o
marginal assassino decide então invadir o universo dos mandantes, se
infiltrando e pretendendo se instalar no ambiente de trabalho e na familia
deles.
Mas antes de nos determos na invasão deste marginal vamos falar das
invasões que ocorreram dentro dos dois personagens principais: eles já
estavam invadidos pela voracidade, pela cobiça, pelo desejo de grandes lucros,
pela competição. Principalmente eles estão invadidos pelo sentimento de
onipotência: ao surgir um obstáculo a seus desejos grandiosos eles pensam
uma solução rápida e, supostamente, eficiente e resolvem o problema. Eles
eliminam o sócio que emperra seus planos.
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Sabem que são tão criminosos como o matador, mas isto não tem importância,
desde que seja um trabalho bem feito e desde que o obstáculo esteja removido
e seus objetivos alcançados. Há uma total negação da realidade das leis, dos
limites, do valor pessoal de cada um, das qualidades próprias. Eles não se
questionam – buscam a gratificação de seus desejos inadiáveis.
Só que o marginal é tão onipotente quanto eles; aliás eles não se diferenciam
e esta é a grande mensagem do filme. A maneira como o invasor transita pelo
ambiente dos ricos – tanto no ambiente de trabalho como na casa da jovem –é
de completa liberdade, porque ele considera que são todos iguais naquela
situação. Se são iguais no crime também são iguais nos direitos, esta é
afirmação inusitada e surpreendente que o filme nos coloca.
O marginal é o dono da situação e toma suas decisões unilateralmente, quer
dizer onipotentemente. Ele também busca o poder. A frase do Giba, de uma
outra maneira também é dita por Anísio; Giba aponta para um operário e diz
ao Ivan: “Ele só te respeita porque você tem o poder.” E não é essa a noção
que domina a marginalidade do tráfego? Só pelo que está acontecendo no Rio
podemos ver como se sentem donos do poder e querem mostrar isto. Eles
carregam e exibem a metralhadora como se fosse um cajado real, e se
oferecem para serem filmados como os senhores poderosos, e não mais os
submissos, os dominados. Anísio diz para Marina: “Dono pode tudo”. Daí seu
sonho: Ter um palácio – ou, ter o poder. O que significa: poder tudo.
Quando o Anísio fala que primeiro ele tira as jóias( como quando subimos os
muros e escondemos o jardim de nossas casas), depois o dinheiro( nos
seqüestros p.ex.) mas que o seu troféu é a alma do outro, ele está dizendo
que a verdadeira invasão ou a invasão mais poderosa é aquela que ocorre
dentro de nós, quando somos invadidos pelo pânico, pela ódio, pelo desespero.
Esta também é a mais terrível e eficiente de todas as invasões: ao tomar conta
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da mente do outro você passa a ter controle sobre ele. Um exemplo disso é o
que ocorreu com o povo dos EE.UU depois de 11 de Setembro. Um povo
sempre muito cioso de seus direitos, defensor das liberdades humanas, se
transforma quando invadidos pelo terror e pelo medo.
De onde vem o sentimento de onipotência e a ânsia de poder?
Desde o nascimento vivemos terríveis angústias; a criança extremamente
dependente da mãe ou dos cuidados maternos, dependente em tudo para
sobreviver, vive a terrível angústia do desamparo. Nada mais terrível do que
sentir fome, frio ou dores e precisar desesperadamente do outro para
sobreviver. É então que a criança desamparada precisa negar seu desamparo e
acreditar que ela é toda poderosa, que se vira sozinha, que é grande, forte etc.
É daí que nascem os Superhomens, os heróis magníficos que nada temem e
tudo podem. Não existe criação fantástica popular que não tenha respaldo nas
nossas necessidades internas, as mais primitivas às vezes. Então, saltamos da
impotência para a onipotência com a maior facilidade. Todos abrigamos, de
certas maneira o desejo de ser um Superhomem.
Se você, adulto, passa por necessidades ou perigo de qualquer tipo; se você se
sente ameaçado de alguma maneira, o desespero que o sentimento de
impotência trás, leva a recorrermos a onipotência, como já aconteceu lá atrás,
isto é, passamos a negar nossos limites, a negar os perigos e as conseqüências
de nossos atos não pensados. É uma forma desesperada de buscar segurança.
A onipotência é uma defesa do sentimento terrível de desamparo. E a ânsia de
poder invade a pessoa. Só que isto aconteceu com os três personagens: os dois
sócios e o rapaz da periferia, o marginal.
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O filme não trás a questão de quem é o mocinho e quem é o bandido. Desde o
início o Giba já adverte o Ivan: “Não pense que você não está sujando as mãos
só porque o outro está fazendo o serviço.”
Isto é muito interessante porque desmistifica o ser humano de um de seus
grandes sonhos: o de ser belo, perfeito, por dentro e por fora. Ninguém nasceu
para ser mocinho ou bandido. Todos somos, ao mesmo tempo mocinhos e
bandidos. Depende do que se instala em nós, a cada passo. Uma das letras
cantadas no filme pelo Sabotage fala exatamente isto: “eu, você, ninguém
presta”. Todos vivemos momentos de onipotência, de negação da realidade,
sentimentos de ódio, desejos de vingança, voracidade, inveja mas também
generosidade, capacidade de acolhimento, esperança, alegria no convívio, no
aprendizado etc. E, principalmente, desenvolvemos a capacidade de conter, de
dominar os impulsos mais destrutivos.
O desejo de vencer o bandido dentro de nós é nossa permanente grande luta.
E todos nós aqui neste momento somos a prova de que o mocinho pode ganhar
a parada sobre o bandido; estamos aqui realizando o desejo de aprender, de
criar, de desenvolver, de trocar conhecimentos, de pensar. Mas cuidado, o
filme nos adverte: se formos ficar alienados, como o Marina na última cena do
filme, se quisermos acreditar que podemos dormir tranqüilos, como se nada
tivesse a ver conosco, podemos vir a acordar com a casa caindo sobre nós. Ou
como diz outro refrão do Sabotage: ”a bomba vai explodir, ninguém vai te
acudir”.
Capacidade de pensar é que falta a todos e a cada um nesta história.
Mas vejamos o Ivan – parece que ele se angustia, parece que ele percebe mais
a situação terrível em que se envolveu, parece que ele pensa. Na verdade não,
ele não tem esta condição de autocrítica; ele percebe os perigos e se assusta
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mas não há um sentimento de culpa pelo crime cometido; ele vive uma
angústia persecutória. O Ivan fica perseguido pelo que poderá lhe acontecer e
daí querer fugir. Ele não assume seu crime com o sentimento de
responsabilidade pelo ato cometido. Ele só é diferente do Giba no sentido de
que o Giba é uma máquina, não tem conflitos, e está sempre buscando as
soluções, quaisquer que elas sejam; o Giba só pensa em como eliminar os
obstáculos; sua mente é como um músculo forte, exercitado para os
movimentos de força, não para pensar. Quando é para ser pai ele é ótimo,
como esposo também, mas é tudo fragmentado e dissociado; no momento
seguinte é um depravado, um antisocial que burla as leis com a maior
tranqüilidade. Onde está a coerência, a reflexão, a noção de sua
responsabilidade diante dos outros, ou da própria família?
Quando uma pessoa não pode suportar as perdas e não tolera as frustrações ela
fica impedida de se desenvolver. Só quando elaboramos as perdas e buscamos
sobreviver a elas é que vamos nos descobrir, descobrir nossos recursos, nossa
força, nossos verdadeiros valores. Só então podemos optar e passamos a ser
realmente livres. Ambos, Giba e Ivan, são prisioneiros de sua ganância, de sua
mente entravada, voltada para um único objetivo que consiste em preservar a
crença em sua onipotência.
E o jovem marginal? Ou, o que é um marginal: é aquele que vive à margem.
No caso à margem da sociedade que detém o poder. Toda a periferia de onde
ele vem vive à margem da sociedade que tem o poder decisório que comanda
a sociedade; nós aqui representamos essa sociedade que tem o poder, não só
econômico, mas político, poder social.
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E o marginal se infiltra no universo que não é o dele, e a que ele teria que se
submeter. Ele vem de outro mundo, da periferia, que nos convém manter bem
longe de nós, ou melhor, submetida às nossas necessidades. Quem aqui não se
estremeceu ao ir se dando conta da invasão do Anísio? Invasão fria,
onipotente, impossível de ser contida. Este é um dos aspectos magníficos do
filme porque nós nos identificamos imediatamente com os sócios, e repelimos
o invasor que nos ameaça. É como se o criminoso fosse ele, e só ele. Só que
ele é o representante ou a expressão de um crime que é de outros, ou de todos
nós, e de quem ele também é vítima de alguma forma.
Mas o que mais nos assusta no Anísio é que todos identificamos, conhecemos
bem o sentimento de marginalidade e sabemos como ele é terrível. E aqui
temos um paradoxo porque repelimos o invasor e ao mesmo tempo nos
identificamos com ele.
Todos nós já experimentamos a marginalidade e sofremos com ela; e isto
desde que nascemos. Sempre que ficamos de fora de qualquer grupo nos
sentimos marginalizados e revivemos isto que já ocorreu quando bem
novinhos, quando nos demos conta que a mamãe não era só nossa e que a
mamãe e
papai formavam uma dupla da qual estávamos de fora
inevitavelmente. A marginalidade é uma condição inerente ao ser humano, ou
melhor dizendo, de alguma maneira estamos sempre sendo marginalizados.
Estou me referindo ao Complexo de Édipo, conceito nuclear da Psicanálise.
Nascemos num universo socializado, onde sempre somos no mínimo três: eu,
o objeto de meu interesse ou do meu desejo e um outro que sempre ameaça
roubar o que é meu. Mesmo que este outro não exista de fato estou sempre
com medo de que ele apareça. Todo o nosso desenvolvimento, nossa saúde
mental vai depender de como convivemos com esta situação triangular, onde
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ocorre o risco da marginalidade e que, inevitavelmente, está sempre se
reproduzindo em qualquer situação.
Decorre disto uma sensação extremamente familiar a todos nós: o medo de
perdermos nosso lugar, a angústia de não ter um lugar garantido, sólido, e a
necessidade de cuidarmos da preservação do que é nosso. No processo de
desenvolvimento pessoal estamos sempre elaborando a situação edípica. Isto
é, estamos sempre tentando suportar a exclusão.
Quando da primeira exclusão sabemos que os pais vão ajudar o filho a crescer
e a ocupar seu lugar, aquele que lhe é próprio, aquele que lhe cabe. Ele não
precisa roubar o lugar do pai nem fica diminuido porque o pai tem um lugar
mais importante que o seu. Ele pode esperar e vir a ocupar seu lugar, aquele
que ele vai construir. E vai ocorrendo uma distribuição de poder, uma
mobilização em que cada um tem sua vez e seu lugar de acordo com seus
próprios recursos.
Mas se o pai permanece eternamente no poder sem nenhuma flexibilidade sem
nenhuma alteração nas regras decisórias, o filho vai reagir. Não tem outra
saida, ele tem que protestar, porque de fato ele está sendo lesado.
Nos tempos atuais: a periferia provocou uma explosão de persecutoriedade
enorme ao invadir a área de poder máximo; o 11 de Setembro foi uma invasão
da periferia ao centro do poder. Um ataque violento que despertou uma reação
também muito violenta. Não vou discutir aqui quem vem primeiro, se o ovo
ou a galinha, se a globalização provocou o 11 de Setembro ou se o 11 de
Setembro fez surgir, ou criou um Busch. Mas está claro que a violência foi
uma reação ao centro do poder que exige a permanência da periferia numa
situação secundária e submissa.
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Agora, vamos ver o outro lado da questão ou vamos examinar uma outra
história: quando um metalúrgico assume a presidência de uma grande nação
não é a periferia
chegando ao núcleo do poder? Mas aqui temos uma
diferença: o lema é “Paz e Amor” e ele veio trazido por milhões invadidos
pela esperança, pelo sonho de dias melhores, pelo entusiasmo, pela alegria.
Esta é aquela boa invasão de que falei no início. Que elas se proliferem entre
nós e entre todos os homens!
Também aparece no filme um outro tipo de marginalidade importante, que
tem estas mesmas características de ser o reverso da medalha: é o Sabotage;
no filme ele tem um tipo de marginalidade explícita, porque ele veio também
da periferia, é amigo do Anísio. Mas ele representa um outro tipo de
marginalidade muito importante – ele é o artista que compõe e canta a trilha
sonora e esta trilha sonora é uma descrição magnífica do quadro que se
desenrola no filme. O artista vê e prevê o que está acontecendo no seu
universo e para conseguir isto ele tem que, de alguma forma, se colocar na
marginalidade, ou à margem, para olhar com certa distância o que está
acontecendo. Portanto é próprio do artista ser um marginal porque só quando
ele se afasta do grupo é que ele pode ver o que acontece. Esta é uma
marginalidade sadia, oportuna, e que tem dado ao ser humano, desde sempre,
o seu colorido mais extraordinário.
Retornando ao filme vamos examinar o relacionamento do Anísio com a
Marina. Ela não oferece qualquer resistência a sua invasão; é absolutamente
tranqüilo o envolvimento dos dois. Isto decorre do fato de que ela está
totalmente enfraquecida: ela não tem um lugar na sociedade em que vive, não
tem um projeto, não tem uma identidade. Qualquer um que lhe oferecesse
drogas, sexo, facilidades para se divertir ou se manter alienada ela acompanha.
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Ela não quer saber quem ele é, como não quer saber quem ela é. Este
desinteresse, esta falta de definição é o grande problema e só existe quando
você extingue ou mata sua vida interior. O Anísio nunca poderia prejudicá-la
mais do que ela própria estava se prejudicando ao abdicar de fazer escolhas e
de pensar quem ela é e o que quer da vida. Marina sofria da mais terrível
invasão: da sensação de incapacidade, de indiferença, descrença em si própria
e principalmente invadida pela destrutividade interna que minava seus
recursos pessoais.
É evidente que o tema social do filme é extremamente importante porque
expressa uma revolução ainda apenas se configurando em todo o mundo. Só
que este é um movimento natural, que mais cedo ou mais tarde acabaria se
manifestando, como no processo de desenvolvimento humano. Ninguém quer
ser tutelado, infantilizado, eternamente.
Mas o vértice pessoal também é trazido de maneira brilhante e se nem sempre
pudermos atuar dentro do universo maior, cabe cuidarmos de nosso mundo
interno para que não sejamos vítimas da nossa própria destrutividade, da qual
a cegueira e a negação são importantes sintomas.
Ribeirão Preto, 28-03-2003
Mais importante do que as invasões externas são as internas quando somos
como que invadidos por sentimentos extremamente perturbadores como
onipotência, voracidade, inveja, desejo de controle ou negação da realidade.
Ambos aspectos aparecem bem neste filme forte, contundente, que nos obriga
a refletir a nossa realidade social do momento.
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