ALARGANDO O CÍRCULO
Os grandes macacos merecem direitos humanos?
Luiza, dois aninhos, estava me olhando com aquele misto de curiosidade e receio típico dos
bebês por trás das grades da casa onde mora com a mãe. De repente, começou a “brincar de
cuti”, como dizem lá na minha terra. Aposto que você conhece a brincadeira, mesmo que
estranhe o nome: ela se escondia atrás da parede e logo depois espichava o pescoço para
mostrar a carinha de novo, repetindo o processo várias e várias vezes. Crianças novinhas,
por um desses mistérios do Universo, adoram fazer isso. (O adulto que entra no jogo fica
encarregado de exclamar “cuti!” toda vez que o bebê mostra o rosto de novo, daí o nome da
brincadeira.)
Luiza é um bebê chimpanzé, o que explica o meu espanto ao vê-la brincar exatamente
como uma criança humana da mesma idade. O fato é que nenhum compêndio sobre
comportamento primata, nenhum documentário de TV é capaz de preparar alguém para o
primeiro contato direto com um grande macaco – a categoria que engloba, além dos
chimpanzés comuns, os bonobos (ou chimpanzés-pigmeus), gorilas e orangotangos. As
últimas décadas de pesquisa mostraram com riqueza de detalhes como a vida social,
comportamental e cognitiva desses bichos é complexa e – sem querer fugir do clichê –
demasiado humana. O que nos leva à questão óbvia: o que devemos fazer com esse
conhecimento?
Alguns dos mais destacados cientistas e filósofos do mundo, entre eles o zoólogo Richard
Dawkins e a primatóloga Jane Goodall, dizem saber a resposta. Para eles, a única atitude
moralmente aceitável é instituir uma Declaração Universal dos Direitos dos Grandes
Macacos, promulgada pela ONU, à semelhança da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Esse é o objetivo do GAP (sigla inglesa para “Projeto Grandes Macacos”), que
prevê três direitos inalienáveis para esses primatas: o direito à vida; o direito à liberdade: e
o direito a não ser torturado.
Parece loucura? Não depois de uma visita ao lar de Luiza, o santuário de chimpanzés em
Sorocaba, no interior paulista, que é o braço brasileiro do GAP. (Nós já tivemos ocasião de
mencionar o local alguns capítulos atrás: foi lá também que um dos “moradores” me
bombardeou com pedaços de fezes endurecidas). Nesse lugar, o empresário de origem
cubana Pedro Ynterian abriga cerca de quarenta animais, quase todos oriundos de
zoológicos ou circos, muitos com histórico de maus-tratos. A analogia que vem à mente
para descrever o santuário é uma mistura de orfanato com hospital psiquiátrico.
Para os bichos mais jovens ou para Luiza, que tem a sorte de contar com a companhia da
mãe desde o nascimento, ainda são grandes as chances de levar uma vida normal. Os
adultos, porém, têm seqüelas visíveis. O lado ruim de pertencer a uma espécie muito
inteligente e com vocação para a vida social complexa é que qualquer perturbação nessa
trajetória pode causar problemas sérios.
É o caso de vários dos chimpanzés do santuário, muitos dos quais “adotados” ainda bebês
por famílias humanas, sem que elas se dessem conta de que, em quatro ou cinco anos, o
bichinho de estimação teria dentes afiados e uma força equivalente à de um homem adulto.
O resultado para os bichos: dentes arrancados ou marcas de correntes pesadas no corpo.
Viver cercado por gente também deixou os macacos totalmente despreparados para o
contato com membros da própria espécie – quase todos os machos do santuário são
impotentes, e as fêmeas, caso engravidem, correm o risco de não saber cuidar dos próprios
filhotes, ou até de machucá-los. Há pouquíssima esperança de que mesmo os mais jovens
consigam aprender a se virar sozinhos na natureza algum dia, o que significa que, para
todos os efeitos, eles estão “condenados” à vida em ambientes humanos para sempre. Por
isso, santuários de chimpanzés no mundo todo não costumam encorajar a reprodução em
cativeiro, ao menos por enquanto, porque não há esperança de devolver os animais ao seu
habitat.
Somam-se ao efeito devastador do cativeiro sobre esses bichos os efeitos de que eles são
capazes. Os grandes macacos se reconhecem no espelho, como você deve se lembrar; são
mestres em fabricar e usar instrumentos; e possuem suas próprias tradições culturais (que
variam de lugar para lugar, e de bando para bando). Têm laços familiares e amizades
duradouras, além de alianças “políticas”. E, ao que tudo indica, travam “guerras” em que
membros de outros grupos são atacados, feridos e até mortos, e fêmeas do bando perdedor
podem ser incorporadas à comunidade que venceu a disputa.
Esse potencial bélico, no entanto, não é nem de longe suficiente para protegê-los de nós.
Entre a caça para a obtenção de carne e a destruição de seu habitat, os grandes macacos
estão sendo empurrados para a extinção. Nenhuma das espécies dos bichos conta hoje com
uma população superior a poucas dezenas de milhares de indivíduos, e o ritmo da
devastação das florestas onde vivem é tão acelerado que os orangotangos, por exemplo,
talvez não existam mais na natureza por volta de 2020, se nada mudar.
Olhando a questão exclusivamente do ponto de vista científico, não dá para pensar numa
perda mais irreparável. A proximidade evolutiva entre nós e eles significa que chimpanzés,
gorilas e orangotangos são o modelo mais próximo que temos para entender as origens da
humanidade, as raízes daquilo que nos torna únicos como espécie. Não dá para dizer que
eles são uma janela para o passado – nenhuma população de seres vivos fica simplesmente
“parada no tempo”, “sem evoluir” – , mas comparações com a biologia, o comportamento
e a herança genética deles decididamente podem dizer muito sobre nossas próprias origens,
de uma maneira que os simples fósseis são incapazes de evocar.
O trabalho do GAP tem conseguido alguns avanços importantes em busca de melhores
condições de vida para essas criaturas únicas – o governo britânico, por exemplo, proibiu
recentemente o uso de grandes macacos para pesquisa médica. Por outro lado, é
compreensível que muita gente critique o que considera exagero nesse tipo de iniciativa.
Para começo de conversa, a semelhança impressionante entre nós e eles não anula o fato de
que ainda há um abismo nos separando. As pessoas adoram citar o número mágico de 99%
de semelhança nas “letras” químicas de DNA entre humanos e chimpanzés. Mas, como
bem lembra o meu amigo Marcelo Nóbrega, essa diferença aparentemente mínima se
reflete em nada menos de 55% de nossos genes: essa é a fração das nossas proteínas
(codificadas pelos genes) que são diferentes das dos nossos primos. E, afinal de contas, será
que já não temos problemas suficientes para fazer com que respeitem os direitos humanos?
Para que inventar?
Em última instância, e independentemente do que o GAP conseguirá, esse me parece um
daqueles casos em que a nova perspectiva do mundo trazida pela ciência precisa ter um
impacto sobre a maneira como lidamos com esse mundo. No fundo, o que menos importa é
saber se os grandes macacos são capazes de sentir e pensar exatamente como nós. Nós não
condicionados a dignidade humana de um deficiente físico ou mental à sua capacidade de
entender o teorema de Pitágoras ou de usar um computador, mas ao fato de pertencer à
família humana. Da mesma forma, está mais do que na hora de respeitar a complexidade e
o potencial de outras formas de vida não pelos moldes nos quais queremos encaixá-las, mas
pelo que elas são – membros da nossa família, parentes apenas um pouco mais distantes.
Não vejo como esse salto de imaginação possa desviar nossa atenção do esforço para que
os direitos da humanidade sejam mais respeitados. Não dizem por aí que o que mais falta é
tolerância com as diferenças? Pois os grandes macacos nos põem diante do desafio de
encarar a quintessência do diferente e, ao olhá-lo com devido cuidado, reconhecer
finalmente que ele é também nosso igual.
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