GEORGE MACÊDO VELAME
FIGURAÇÕES DA LITERATURA NA REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da
Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do
Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da
Universidade do Estado da Bahia, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Estudo de Linguagens.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva
Salvador – Bahia
2013
1
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Velame, George Macêdo
Figurações da literatura na revista Língua Portuguesa/George Macêdo Velame.
– Salvador, 2013.
107f.
Orientador: Márcia Rios da Silva.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas. Campus I. 2013.
Contem referências.
1. Figurações da literatura. 2. Revista Língua Portuguesa. 3. Jornalismo Cultural.
4. Representação. 5. Literatura. 6. Autor. . I. Silva, Márcia Rios da. II. Universidade
do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD : 410.376
2
GEORGE MACÊDO VELAME
FIGURAÇÕES DA LITERATURA NA REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da
Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do
Departamento de Ciências Humanas, campus I, da
Universidade do Estado da Bahia, como parte dos
requisitos para a obtenção do grau de Mestre em
Estudo de Linguagens.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Silva Carvalho
Universidade do Estado da Bahia
___________________________________________
Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel
Universidade Estadual de Feira de Santana
Salvador – Bahia
2013
3
Dedico este trabalho a todas as obras literárias que já
naufragaram na minha alma, em especial, à apresentação
de Fiódor Pávlovitch Karamázov em Os irmãos
Karamázov. Sem ele, minha existência não teria tomado o
rumo que tomou.
4
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, às professoras Márcia Rios da Silva e Rosa Helena Blanco
Machado, pois sem elas não teria conseguido chegar a esse momento.
Agradeço aos meus pais e a toda minha família pela paciência e carinho.
Ao oftalmologista Oscar Villas Boas, por ter me salvado da cegueira e
me acalmado em momentos de desespero.
Aos amigos, por compreenderem o distanciamento.
À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia), pela
bolsa de pesquisa, com a qual pude contar durante os dois anos de sua
vigência.
Aos membros da Banca Examinadora, Prof.ª Dra. Maria do Socorro Silva
Carvalho e Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel, pela leitura cuidadosa e
atenciosa do texto na qualificação e pelas preciosas sugestões que busquei
seguir na finalização do trabalho.
Aos
colegas mestrandos
e
aos
professores
do
PPGEL,
pela
oportunidade de concluir a pesquisa e pelas palavras de conforto e incentivo
ditas em momentos chaves, assim como pelas discussões teóricas.
A todos os livros que habitaram e vivem na minha alma proporcionando
certas ressacas literárias.
E em especial, à minha sobrinha linda, com a qual luto diariamente para
que se torne uma leitora. Mas como é difícil.
5
Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se,
e que extravasa qualquer matéria vivível
ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de vida que atravessa o
vivível e o vivido. A escrita é inseparável
de devir.
Gilles Deleuze
6
RESUMO
Esse estudo tem por objetivo analisar as edições da revista Língua
Portuguesa publicadas entre 2005 e 2007, com o intuito de entender as
figurações de literatura produzidas em tal periódico, o qual elege o autor como
uma figura central, o que endossa uma tradição acerca da noção de literário.
Nesse sentido, inicialmente aborda-se esse periódico como uma produção do
jornalismo cultural, recorrendo-se às contribuições de Jorge Rivera e Daniel
Piza. Em seguida, procede-se a uma análise da concepção de literatura que
orienta tal produção, com apoio das contribuições oriundas dos estudos
literários e de cultura, as quais problematizam os conceitos de literatura
elaborados pelo campo da produção erudita. Por fim, aborda-se criticamente a
figura do autor promovida pela revista, com o apoio dos estudos de Michel
Foucault, Roland Barthes e outros pesquisadores que trazem investimentos de
análise sobre essa questão.
PALAVRAS-CHAVE: Figurações da literatura, Revista Língua Portuguesa,
jornalismo cultural, representação, literatura, autor.
7
ABSTRACT
This study aims to analyze the Língua Portuguesa editions of the
magazine published between 2005 and 2007, in order to understand the
figurations of literature produced in this journal, which elects the author as a
central figure, which endorses a tradition over the notion of literary. Accordingly,
initially covers up this newsletter as a production of cultural journalism, resorting
to the contributions of Jorge Rivera and Daniel Piza. Then it proceeds to a
design review of the literature that guides such production, with the support of
contributions from literary studies and culture, which problematize the concepts
of literature produced by the field of scholarly production. Finally, we discuss
critically the figure of the author promoted by the magazine, with the support of
the studies of Michel Foucault, Roland Barthes and other researchers who bring
investment analysis on this issue.
KEYWORDS: Figurations of Literature, Magazine Língua Portuguesa, cultural
journalism, Social Representation, literature, author.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 10
1. FOLHEANDO A LÍNGUA PORTUGUESA................................................ 17
2. LENDO A LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA..............................46
3. COMPONDO NA LÍNGUA UM RETRATO DO AUTOR ............................67
4. FECHANDO AS PÁGINAS DA REVISTA .................................................97
5. REFERÊNCIAS.........................................................................................100
6. ANEXOS....................................................................................................104
9
INTRODUÇÃO
Que figurações de literatura emergem da revista Língua Portuguesa?
Essa foi a primeira questão levantada no início da pesquisa, afinal, os
conceitos de literatura propostos ao longo da história, desde que houve uma
institucionalização da literatura, são variados. Mas qual o caminho percorrido
até chegar à indagação inicial?
O texto que agora segue à leitura iniciou-se ainda no curso de Letras da
Universidade do Estado da Bahia, Campus I, mais exatamente no decorrer das
análises desenvolvidas no projeto de Iniciação Científica (IC). Com duração de
um ano (2006-2007), o subprojeto Em busca do texto do prazer?
considerações em torno da atividade de leitura fazia parte do projeto geral:
Pactos de leitura: recepção, representações sobre literatura e docência em
Letras, sob a coordenação da Profa. Dra. Márcia Rios da Silva e tinha como
objetivo analisar as representações sociais sobre leitura entre os estudantes de
Letras da Universidade do Estado da Bahia. Nessa pesquisa, observou-se uma
manutenção da representação da leitura como conhecimento, mesmo entre os
estudantes que já estavam finalizando o curso de Letras e haviam entrado em
contato com os estudos sobre leitura e recepção no decorrer da graduação.
Dessa forma, se em um espaço em que o saber instituinte age com mais
densidade o conhecimento instituído resiste de alguma forma, o que acontece
nos meios de comunicação que dialogam com os conhecimentos produzidos e
veiculados nas universidades?
Tal inquietação deveu-se a outra formação universitária que tive, o
jornalismo, em paralelo ao curso de Letras. Na Faculdade de Comunicação da
Universidade Federal da Bahia, foi observada, no decorrer da graduação, uma
grande interface entre o conhecimento científico e o jornalismo, mais
especificamente, nas editorias voltadas para a divulgação desse conhecimento,
espaço em que o professor-pesquisador, muitas vezes, pode enunciar sem a
intermediação do jornalista. Nessas editorias pude averiguar todo o processo
de feitura das matérias, inclusive elaborando algumas. Desse fazer,
depreenderam-se algumas considerações: o chamado discurso jornalístico não
dá conta da complexidade das análises propostas pelos pesquisadores. São
10
campos com valores distintos, sempre dialogando em tensão; o discurso
jornalístico sempre re-apresenta o discurso científico. Esse último é o centro da
inquietação. Como o jornalismo re-encena o discurso elaborado pelas
ciências? Ao produzir os dois tipos de discurso, a interface me interessava: o
espaço da tensão, do diálogo.
Nessa paisagem surge a revista Língua Portuguesa como objeto da
pesquisa. Ao estagiar em escolas públicas do Ensino Médio, no curso de
Letras, pude observar a utilização da revista, por muitos professores, como
forma de capacitação ou aconselhamento profissional. Nesse sentido, o
discurso produzido pelo periódico realmente estaria capacitando? Quem
elabora esse discurso? Na busca por responder a essas questões iniciais,
verificou-se a existência re-elaborada do discurso científico na revista, a
presença de professores universitários na redação e a recorrência do escritor
na capa. Tais características foram suficientes para elegê-la objeto de
pesquisa. Dessa forma, quais as figurações de literatura são produzidas por
essa revista, que veicula sempre um autor na vitrine, mas que se coloca no
mercado como um periódico sobre a língua portuguesa? Considerando a tríade
autor-obra-leitor, assentada pela tradição dos estudos literários, o autor seria o
único elemento dessa tríade valorizado na revista? Como Língua Portuguesa
aborda a literatura? Como dialoga com os conhecimentos produzidos pelos
estudos literários?
Desses questionamentos, vem a problematização final: que figurações
de literatura são elaboradas pela Língua Portuguesa? Na busca por uma
resposta, foram analisadas 26 edições da revista publicadas entre 2005, ano
de lançamento, e 2007. A delimitação do número de edições ocorreu tendo
como horizonte o período que a publicação levou para se consolidar de vez no
mercado, tal como afirma o editorial de aniversário de dois anos da revista,
publicado em agosto de 2007.
São dois anos de existência com algumas conquistas, bem
palpáveis, que a nós muito orgulha. Este foi o ano, por
exemplo, em que a publicação foi escolhida como revista
segmentada do ano e seu editor, o jornalista do ano, no III
Prêmio Anatec de Mídia Segmentada.
Pouco depois desse reconhecimento do mercado que produz
revistas para públicos específicos, Língua também mereceu
11
deferência acadêmica, ao ser classificada pela Capes –
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (veja nesta edição, em Vírgulas) como um periódico
de qualidade científica, Nacional B, no jargão das prógraduações brasileiras. (LP, nº 24, 2007, p. 4)
Como o objetivo desta pesquisa é analisar a representação sobre
literatura, as seções voltadas para aspectos do idioma não entraram no corpus,
o que não quer dizer que tenham sido dispensadas quando das análises
efetuadas. Assim, visando tal intento, foram contempladas as seções Figuras
da Linguagem, Obra Aberta, Técnica, Frases e Versão Brasileira.
Na seção Figuras da Linguagem, que traz matérias da capa, prevalece
uma concepção de literatura a partir do binômio autor/obra. A voz do autor
desvenda a obra e o processo criativo, assim como reitera o prestígio do
sujeito. Nessa seção, espaço em que ocorre a maioria das entrevistas, o sujeito
da escrita literária enuncia o eu. Para Leonor Arfuch (2010), a entrevista,
enquanto gênero discursivo, possui várias funções e valores biográficos,
podendo se tornar, ao mesmo tempo, autobiografia, biografia, confissão e
história de vida, e concomitantemente, promove a imagem pública do homem
de letras. Em Língua portuguesa, há uma centralidade da entrevista para a
composição interna do periódico, a partir da qual se desenvolvem outros temas
e matérias.
As seções Obra aberta e Técnica já se relacionam de forma mais
próxima dos métodos formais de análise literária e de construção textual. A
primeira trata de interpretações relacionadas à forma, nas produções literárias,
mas sem abdicar da figura do autor. A despeito das teorias imanentistas que
excluem o sujeito autoral, a revista, mesmo se valendo desses instrumentos de
análise, elege o autor como possibilidade interpretativa válida. Procedimento
semelhante ocorre na seção Técnica, espaço em que se ensinam
possibilidades, mecanismos de composição textual que levam a certas
produções de sentido, mas que é perpassado pela visão clássica de gênio,
como aquele que detém uma competência e engenho na arte de escrever.
Nos números da revista analisados neste estudo, foi observada a
proposta de segmentação do público-alvo através das seções e propagandas.
A revista buscou firmar-se no mercado que foi criado pelo boom do ensino
12
superior no Brasil, no início do séc. XXI, quando começaram a surgir várias
revistas segmentadas por área do conhecimento, voltadas para o público
universitário. Língua Portuguesa foi a terceira publicação periódica da editora
Segmento, que já editava a revista Educação (1997) e Ensino Superior (1999)
e tornou-se a primeira, da editora, a se dedicar exclusivamente à língua
portuguesa. O público alvo é bem definido: estudantes universitários e
professores da educação básica.
A revista Língua Portuguesa, ao longo dos seus sete anos de existência,
pôs na vitrine autores representativos do cânone nacional – Carlos Drummond
de Andrade, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Vinicius de
Moraes, e Lygia Fagundes Telles, entre outros. Esse fato ilustra e demonstra a
linha editorial da revista, o que, de certa forma, contribui para a permanência
das figurações hegemônicas da literatura, uma vez que o jornalismo, segundo
Pena (2005), possui como característica ajudar a sedimentar ou desconstruir
representações sociais, noções, visões de mundo ao tempo em que cria uma
audiência com pautas comuns entre eles.
O sentido atual da palavra literatura, segundo Antoine Compagnon
(2006), Terry Eagleton (2006), Tzevtan Todorov (1980), é bem recente, data do
século XIX. Para Compagnon, qualquer abordagem acerca de literatura, interna
ou externa, não dá conta de uma conceitualização, posto que se parte de um
consenso sobre o que é ou não literatura. A falta de um conceito ontológico
sobre literatura demarca seu caráter ideológico, isto é, por não ser uma
categoria “objetiva”, segundo Eagleton, o conceito de literatura tem relação
com os juízos de valor originados em ideologias sociais. Portanto, estão
intimamente ligados aos critérios pelos quais certos grupos sociais exercem e
conservam o poder sobre outros. É nessa perspectiva que as figurações de
literatura produzidas e veiculadas pela Língua Portuguesa serão abordadas.
Entre os principais colaboradores da revista estão os professores
universitários. Nesse sentido, a revista buscou o especialista para dialogar
diretamente com o público. Vale ressaltar que, segundo Piza (2003), todo
jornalismo cultural faz a mediação entre a arte, o pensamento, a cultura e o
público. No caso de Língua Portuguesa, entre o conhecimento sobre a língua e
o público. A presença do especialista nas redações do jornalismo cultural é
motivo de controvérsia, pois, segundo Silviano Santiago (2004) e Daniel Piza
13
(2003), esse é um dos motivos da decadência e perda da influência dessa
especialização jornalística. Entretanto, a presença do especialista na Língua
Portuguesa facilitaria a mediação, na medida em que o uso de jargões técnicos
da área de Letras por parte desses professores, ao invés de afastar, facilitaria a
comunicação, já que o público-alvo pertence à mesma área do conhecimento.
A presença do especialista tem a função de legitimar os discursos
produzidos na revista, uma vez que as matérias são assinadas por professores
universitários cuja competência já foi atestada pelas instâncias de legitimação.
Dessa maneira, utilizando o “discurso competente”, aqui compreendido tal
como proposto por Marilena Chauí (2011), conhecimento fora do tempo e que
rejeita o novo, o instituinte, a revista Língua portuguesa dissimula a ideologia
no discurso neutro da ciência.
Segundo Jorge Rivera (2003), o jornalismo cultural atua em uma zona
heterogênea, na medida em que coexistem duas concepções de cultura, a
antropológica e a erudita. Essa coexistência é matriz da variedade de produtos
e meios pelos quais o jornalismo cultural se faz existir. Vale destacar que,
diferentes de outras editorias, as publicações em cultura focam a análise, a
opinião, a crítica. Dessa forma, Rivera afirma ser o jornalismo cultural uma
especialização do jornalismo cujo interesse é atender à demanda do público
por certos temas culturais tratados com maior profundidade do que no
jornalismo diário.
Através de sua função comunicativa, o jornalismo, segundo Meditsch
(2002), produz uma categoria específica de conhecimento sobre a realidade,
assim como reproduz o saber elaborado por outras instituições sociais em um
processo de recriação. Dessa forma, segundo Felipe Pena (2007), o jornalismo
interfere diretamente na formulação de nossas imagens sobre a realidade, as
chamadas representações sociais, em nossos valores, práticas, em nossa
maneira de ver e nos relacionar com o mundo. Sendo assim, a compreensão
de quais figurações o jornalismo cultural veicula torna-se relevante na medida
em que demonstra se os questionamentos acerca do conceito de literatura já
foram incorporados no discurso da mídia especializada, tendo em vista que
essa mídia busca a segmentação do mercado como estratégia para atingir
grupos que se encontram tão dissociados entre si, formando audiências
específicas e criando laços identitários entre os leitores, o que aumenta a
14
possibilidade de adesão a certas noções. E aderir é, ao mesmo tempo, excluir,
ou seja, reiterar as possíveis noções hegemônicas de literatura é marginalizar
outras produções textuais não consagradas.
Será por esse pressuposto que analisaremos as figurações da literatura
produzidas
pela
Língua
Portuguesa.
Figurações
são
noções,
ideias,
concepções, entendidas como representações sociais, tal como as formulou o
teórico Serge Moscovici. Para esse pensador, as representações sociais são
formas de conhecimento prático, socialmente elaborado e compartilhado que
colaboram com a construção de uma realidade comum. Portanto, orientam a
comunicação e compreensão do mundo em que vivemos. As figurações se
manifestam como elementos cognitivos – conceitos, teorias, imagens,
categorias – e são entendidos a partir de seu contexto de produção, isto é,
levando em consideração as funções ideológicas e simbólicas a que servem e
das formas de comunicação onde circulam.
Esta dissertação está estruturada em três seções. Na primeira, intitulada
“Folheando a Língua Portuguesa”, abordamos a revista Língua Portuguesa
enquanto jornalismo cultural, sua representatividade e relação com o
conhecimento produzido nas universidades. Nela, situamos a emergência do
jornalismo cultural, sua estruturação e relevância para a temática da
dissertação. Além disso, caracterizamos a Língua Portuguesa, seu públicoalvo, seu projeto editorial, seu projeto gráfico. Assim, temos nessa seção, uma
apreciação sobre o recorte temático da revista.
Na segunda seção, “Lendo a literatura de Língua Portuguesa”,
contemplamos as discussões propostas por Terry Eagleton (2006), Tzvetan
Todorov (1980) e Antoine Compagnon (2006) acerca de conceitos de literatura
elaborados historicamente, com vistas a problematizar figurações de literatura,
precisamente as que relacionam literatura à nação e à linguagem nãopragmática. Para uma apreciação da ideia de literatura como representação da
nação, buscamos entender o modo pelo qual a literatura serviu aos projetos de
construção da identidade nacional por ser um texto privilegiado. Para tal são
trazidas as contribuições de Benedict Anderson (1989), Zilá Bernd (2011) e
Luiz Costa Lima (1996). Nessa mesma seção, abordamos a literatura como
forma não-pragmática da linguagem. Com base nos estudos elaborados por
Tzvetan Todorov (2007) e Chklovski (1973), traçamos um percurso histórico
15
dessa noção, assim como abordamos o aspecto autotélico da literatura
produzido nessa segunda figuração.
Posteriormente, na terceira e última seção, intitulada Compondo na
Língua um retrato do autor, discutimos a figuração central da literatura na
revista, o autor. Tal figuração é entendida como uma representação elaborada
pelo campo instituído da literatura e assimilada pelos grupos sociais que
alcançaram uma experiência de escolarização e letramento. Para tanto,
elegem-se nessa seção as contribuições de Serge Moscovici para se pensar a
figura do autor como uma representação socialmente elaborada e partilhada
por
determinados
grupos
sociais.
Torna-se
ainda
imprescindível
a
problematização de Michel Foucault e Roland Barthes acerca da noção de
autor produzida no ocidente, bem como a contribuição dos estudos literários
sobre essa questão. Por fim, será considerada uma formulação acerca do
gênero discursivo designado de entrevista, ao qual a revista em estudo recorre
para dar corpo à figura do autor.
16
1. FOLHEANDO A LÍNGUA PORTUGUESA
A revista Língua Portuguesa foi criada por Luiz Costa Pereira Junior –
hoje editor-chefe e principal responsável pelas matérias de capa. Graduado em
Comunicação Social pela Universidade Federal de Alagoas (1991) e
doutoramento em Filosofia e Educação pela Faculdade de Educação da USP,
o jornalista buscou, ao criar a publicação, inserir as discussões em torno da
língua portuguesa na pauta cotidiana. No primeiro editorial, declarou ser a
revista um instrumento de discussão da língua, com a pretensão de capacitar o
leitor para o domínio da língua portuguesa, leia-se norma padrão, tanto oral
quanto escrita, pois esse conhecimento se “tornou indispensável para a vida
profissional e é por intermédio dela que se garante a própria cidadania” (LP,
nº1, 2005).
É importante salientar a relevância do editorial, que, segundo Jorge
Pedro Sousa (2001), é um gênero jornalístico argumentativo que demonstra
posicionamento de um periódico sobre determinado assunto. Por isso, o
editorial é sempre de responsabilidade da direção do órgão jornalístico e,
muitas vezes, motivado por assuntos existentes na edição. O autor defende a
ideia de que o editorialista deve ser sensível à cultura da empresa, aos valores
veiculados pelo periódico e ao público. Um editorial exige uma conclusão, não
pode ser dúbio. Os argumentos devem ser sempre claros e embasados. Só
assim podem aconselhar, sustentar opiniões, unir pessoas em torno de
posições compartilhadas e consolidar pontos de vista.
A revista Língua Portuguesa, através desse espaço por onde enuncia a
sua política editorial, deixa transparecer, no primeiro editorial, sua função
disciplinadora ao ter no centro de sua argumentação a competência linguística
como base para o sucesso profissional e o exercício da cidadania.
Compreendendo a disciplina como uma modalidade de poder, tal como
concebida por Michel Foucault (1997), a saber, que se caracteriza por medir,
corrigir, hierarquizar, quanto tornar possível um saber sobre o indivíduo, podese afirmar que o discurso de capacitação traz consigo a busca pela correção do
sujeito em uma tentativa de torná-lo útil e dócil. Assim, a incorporação, por
meio da capacitação, do saber sobre a língua proporcionaria a esses leitores
17
uma maior utilidade profissional (social e econômica) e política. É importante
salientar que a fabricação de corpos dóceis não quer dizer obedientes, mas
maleáveis, moldáveis. Essa produção do sujeito não ocorre em razão de uma
imposição, mas mediante a atuação do poder disciplinar ao nível dos corpos e
dos saberes que resultarão tanto em formas particulares de estar no mundo –
eixo corpóreo – quanto na forma como cada sujeito conhece o mundo e nele se
situa – eixo dos saberes. Sendo assim, a disciplina funciona como uma matriz
que permite a inteligibilidade, a comunicação e a convivência na sociedade.
Para Foucault, o poder não é algo fixo que pode ser entregue ou
tomado, mas que se exerce; só existe em ação. O poder, nesse caso, é algo
que circula e funciona em cadeia; nunca está localizado, mas existe em uma
malha por onde trafegam os indivíduos. Portanto,
a “disciplina” não pode se identificar com uma instituição nem
com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade
para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de
instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de
aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do
poder, uma tecnologia. (FOUCAULT, 1997, p. 177)
A proposta de capacitação, defendida pela revista, caminha também em
direção à Lei nº 9.394/1996, que estabelece os princípios e fins da educação
nacional e afirma que a educação deve preparar para o exercício da cidadania
e qualificar para o trabalho. Sendo assim, o periódico busca cumprir com uma
função histórica do jornalismo de revista, que é ajudar na formação e na
educação de grande parcela da população, necessitada de informação
específica, mas que não se dedica aos livros (SCALZO, 2008).
Essa relação é apontada pelo editor-chefe Luiz Costa Pereira Junior, no
editorial de aniversário de um ano da revista, como um dos motivos de seu
sucesso, pois “nunca se viu tanta faculdade no Brasil em razão da abertura
promovida na era FHC – hoje, são 1700 no setor privado, todas mandando
seus alunos escreverem monografias, trabalhos e dissertações” (LP, nº 10,
2006). Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), em 2005, ano de lançamento da revista, havia 2.165
instituições de educação superior com 1.480 cursos de Letras e suas diversas
habilitações.
18
No mesmo ano ingressaram nas instituições de ensino superior
1.678.088 alunos, sendo 62.181 no curso de Licenciatura em Letras e 10.568
em Bacharelado em Letras. Em 1995, primeiro ano do senso de ensino
superior do INEP, eram 894 instituições. Destas, 109 possuíam curso de Letras
com um total de 21.837 alunos ingressantes. A partir dessas informações podese deduzir que houve no período de 10 anos um aumento de 242% no número
de institutos de ensino superior, de 1.358% no número de cursos de Letras e
333% no de alunos calouros nos cursos de Letras, promovendo assim o que
Luiz Costa Pereira Junior observa como um segmento, um mercado ainda não
explorado, voltado exclusivamente para o idioma, demanda que a revista
Língua Portuguesa tenta satisfazer com o seu lançamento.
Apesar do aumento na oferta do ensino superior e nas vagas para os
cursos de Letras, esse público-leitor não é o único desejado pela revista. A
exigência por um maior domínio do idioma passa também a criar um segmento
que, segundo o editor-chefe da Língua Portuguesa, nasce da relação entre
língua e mercado de trabalho. Essa visão adotada pela revista é reiterada no
editorial de aniversário de um ano, quando se afirma ser essa uma das causas
do sucesso do periódico.
É de imaginar que a retomada do fôlego econômico do país
estimulou o relacionamento de empresas em seu próprio
idioma. Há hoje um maior número de negócios mediados por
tecnologias que enfatizam a comunicação – mensagens
eletrônicas e apresentações com projeção, que não podem
exibir tropeços. E, em reuniões de trabalho, o bom
desempenho retórico virou chave empresarial (LP, nº 10, 2006,
p. 5).
É nessa configuração que a revista Língua Portuguesa é lançada e se
consolida dentro de um mercado editorial voltado ao idioma, que vende
aproximadamente 25 milhões de exemplares ao ano1. No primeiro ano de vida,
foram lançadas 10 edições da revista – as três primeiras, bimestrais – e três
especiais, todas com tiragem de 41 mil exemplares (hoje a tiragem é de 150
mil, maior que revistas consolidadas na área de cultura, como a Bravo, cuja
1
Dados apresentados pela revista Língua Portuguesa, em seu nº 10 de 2006.
19
tiragem é de 48.500 exemplares2). Entretanto, o início da publicação com
edições bimestrais denuncia certa desconfiança por parte da editora, por não
saber se haveria demanda para uma publicação ligada ao idioma vernáculo.
Aliás, a revista defende ser o primeiro periódico em todo o mundo, algo
questionável, a ter como único foco o idioma, o que justificaria a cautela. Esse
fato demarca que, apesar de haver marcas indicando certa demanda, isso não
foi suficiente para a editora apostar de vez no projeto, o que só ocorreu depois
do estreitamento entre revista e leitor.
A língua portuguesa é abordada pela revista dentro de cinco seções
fixas com suas respectivas subseções. A seção central, Figura da Linguagem,
foca o idioma enquanto arte, isto é, como uso peculiar da linguagem:
“Montando ou desarticulando palavras, incorporando o visual, fragmentando a
sintaxe, Drummond é mestre” (LP, nº23, 2007, p. 43); “O escritor mostra que é
possível escrever com a riqueza da prosa barroca do século 17 sem cair nas
armadilhas do rebuscamento” (LP, nº9, de 2006 p. 34). Esse modo de abordar
a língua já se encontra perceptível nas capas: “Mais aclamada autora do país
mostra como a criação literária pode surgir dos desafios do idioma” (LP, nº7,
2006); “autor mostra como escreve obras que unem erudição e cultura popular,
e diz que uso de adjetivos divide linhagens de escritores no Brasil” (LP, nº 21,
2007).
Como possibilidade artística, o idioma também aparece na seção
Retórica na prática, espaço em que o idioma e seus mecanismos textuais de
produção de sentidos são analisados e ensinados. Nessa seção se observa a
presença marcante da literatura em duas subseções. Uma delas, Obra aberta,
título homônimo ao do livro de Umberto Eco, é o espaço em que se “ensina” a
analisar uma estrutura narrativa ou poética, tendo por pressuposto uma
abordagem imanentista de trechos de obras literárias; na subseção Técnica,
tem-se um espaço onde se descrevem e se ensinam procedimentos da escrita
dos gêneros narrativos de massa.
A seção Retórica na prática também contém a ideia de idioma voltado
para o mercado de trabalho, reproduzindo a crença, bem antiga, de que uma
boa retórica resulta no sucesso profissional. Na subseção Corporativo, discute-
2
Disponível em http://www.midiakitbravo.com.br. Acesso em 10/10/2012.
20
se o uso da linguagem empresarial, isto é, como conseguir melhores resultados
produtivos por meio do idioma:
É por meio de uma linguagem comum que se estabelece, de
maneira mais explícita, a pertinência ao meio, o sentimento de
pertencer não somente à empresa como também ao mundo
empresarial, à administração que se transformou em um
business-show (LP, nº 3, 2005, p. 33).
As informações curtas, as notícias sobre o idioma são veiculadas na
seção Abertura. Esta se encontra subdividida em Mural, o local de informações
curtas e variadas sobre a língua, e Vírgula, subseção que se ocupa com as
notícias, informações sobre lançamentos, exposições e eventos que ocorrerão
no mês do lançamento da revista.
Na seção Gramática Cotidiana, o idioma é reduzido a questões
gramaticais normativas e suas possibilidades de análise e aplicação. Há uma
clara proposta de dar suporte ao professor através de análises sintáticas feitas
em diversos gêneros textuais, desde uma carta até uma notícia jornalística. A
subseção mais importante é a Dito & escrito, espaço destinado à análise dos
“descuidos” gramaticais cometidos pela imprensa.
Outra forma de abordar o idioma está presente na seção Interfaces.
Como o título já denuncia, diz respeito à relação dos estudos sobre a língua
com outras áreas do conhecimento ou outras línguas. A subseção Versão
brasileira, por sua vez, diz respeito às traduções, não de qualquer autor ou
obra, mas do cânone, seja ele literário ou teórico. Essa subseção é marcada
pela grande influência do mercado editorial, uma vez que só é analisada a obra
que está sendo lançada no período de produção da revista. As subseções
Etimologia e Berço das palavras discorrem sobre a origem e significado das
palavras. Enquanto a primeira é mais técnica, mais analítica, a segunda se
propõe a ser mais “descontraída” e informar curiosidades sobre as palavras.
Um assunto recorrente na Língua Portuguesa é o estrangeirismo. Esse é
um tema que pauta matérias e entrevistas, inclusive a subseção voltada para a
área de negócios: “É preciso tomar cuidado com expressões ou palavras em
inglês, que traduzem práticas ou tendências no ambiente de negócios, para
que a tradução não aumente a traição” (LP, nº. 20, 2007, p. 53). Em entrevista
21
ao escritor José Saramago, é lançada a seguinte pergunta: “O povo português
sente de alguma forma ameaçado o seu idioma?” (LP, nº. 3 de 2005, p. 19).
Tal recorrência temática deixa transparecer uma relação entre idioma e
nação, entre uma característica cultural e seu povo, que será abordada sempre
pela função esclarecedora que a revista se atribui. No entanto, essa “função”
não é exclusiva da Língua Portuguesa, iniciou-se, de modo mais abrangente,
nas revistas especializadas da década de 60 do século XX. Segundo Maria
Celeste Mira (2001), no Brasil são consideradas segmentadas revistas com
tiragens abaixo de 100 mil exemplares. Porém, a autora destaca que,
independente da tiragem, toda revista nasce segmentada, isto é, direcionada
para um público específico, com demanda distinta. Segundo Mira, as grandes
fronteiras entre os públicos são os gêneros, geração e classe social. Vale
ressaltar que tais fronteiras não são estanques, uma vez que cada segmento é
perpassado por outro(s). Por exemplo, o segmento gênero pode ser
perpassado pelo segmento de classe, como no caso da revista Nova, dirigida
ao público feminino, mas não à mulher de todas as classes sociais. Então não
há, para essa revista, a leitora das classes menos favorecidas, mas a mulher
de classe média, bem sucedida.
O processo de surgimento de revistas especializadas no Brasil, segundo
a autora, inicia-se nos anos de 1960 com a modernização e racionalização da
técnica no país. Nesse período a editora Abril lança a Cláudia (1961), que se
desenvolve junto com a chamada sociedade de consumo e as causas
feministas, consolidando a imprensa feminina no país. A Quatro Rodas (1960),
ligada à implantação das indústrias automobilísticas e de turismo, e a Veja
(1968), reflexo da aceleração do tempo que o modernizar sempre carrega
consigo, consolidando a revista de informação semanal. Antes desse período,
a Cruzeiro – criada em 1928 por Assis Chateaubriand – era a revista da
“nação”, de “toda a família”.
Em comparação com as revistas citadas da década de 60 do século XX,
a Língua Portuguesa se assemelha à ideia que essas possuíam: a de descobrir
o Brasil. Enquanto a “Claudia refere-se sempre à “mulher brasileira”, Quatro
Rodas, ao motorista ou ao “turista brasileiro”, Realidade e Veja, ao “leitor
brasileiro”” (MIRA, 2001, p. 42), a Língua Portuguesa busca mostrar a língua
22
nacional ao seu povo. Tal afirmação torna-se possível uma vez que a ideia é
explicitada em vários editoriais e principalmente no primeiro:
a língua que usamos revela o que somos, e nem sempre nos
damos conta. Está na música, na arte, no trabalho, na política,
em toda a cultura, traz preconceitos, as ênfases do passado e os
papéis que adotamos nas nossas relações sociais. (...) o manejo
da língua revela a importância do português não apenas como
ferramenta de comunicação, mas como chave para a alma
brasileira. Ao falar, o brasileiro expressa sua identidade, que
nunca é uniforme, e o país respira sua diversidade, que insiste
em nos unir. (LP, nº1, 2005, p.3. grifos nossos).
A relação entre língua e identidade nacional, veiculada na revista, iniciase historicamente no Romantismo, período em que a língua passou a
expressar não mais as questões da fé, mas a cultura de uma nação através de
antologias de textos literários de autores nacionais (HAUSER, 2003). Um dos
principais responsáveis pelo conceito de “caráter nacional”, o teólogo alemão
Johann Gottfried von Herder (2011), criticou as concepções estéticas voltadas
à imitação dos antigos, defendendo a ideia de particularidade cultural de cada
nação e de cada época, cujos valores deveriam ser julgados individualmente.
Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm (1998), entre 1830 e 1880,
prevaleceram três critérios que permitem a um povo ser classificado como
nação: “O primeiro destes critérios era sua associação histórica com um Estado
existente ou com um Estado de passado recente e razoavelmente durável"; "o
segundo critério era dado pela existência de uma elite cultural longamente
estabelecida, que possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito"; "o
terceiro critério, que infelizmente precisa ser dito, era dado por uma provada
capacidade para a conquista".
Ademais, a língua é parte essencial, como afirmou Anderson (1989), do
projeto de construção das nações modernas, da identidade nacional, uma vez
que é um dos elementos que criam o vínculo de pertencimento, por parte dos
indivíduos, à comunidade imaginada. No entanto, defende Hobsbawm (1998),
no decorrer do século XIX, observaram-se mudanças, operadas pelos
ideólogos liberais burgueses, nas concepções acerca do Estado-nação,
23
assumindo papel central temas como religião, etnicidade e lembranças
históricas comuns.
Entretanto, por dialogar com os conhecimentos produzidos nas
Universidades, a revista Língua Portuguesa é perpassada pelos sentidos
produzidos nos estudos sobre identidade, em que se fala mais em identidades
plurais, ou, ainda, em identificações que teriam caráter provisório, uma vez que
estão em contínuo devir, e pelo domínio disciplinar da sociolinguística e seus
estudos sobre a variação linguística. Sendo assim, apesar de relacionar língua
com identidade de um “povo”, a revista busca também noticiar variações do
idioma.
A maioria das subseções possui colaboradores fixos, jornalistas e
professores universitários. Colaboraram nas edições analisadas nessa
pesquisa, Marcelo Coelho3, Beth Brait4, Geraldo Galvão Ferraz5, Josué
Machado6, Gabriel Perissé7, Luiz Costa Pereira Júnior8, Marcio Cotrim9, Luis
Adonis Valente Correia10, José Luiz Fiorin11, Mario Eduardo Viaro12. Já entre
colaboradores que não possuem uma coluna, ou subseção fixa, mas estão
presentes com certa frequência, destaca-se Aldo Bizzochi13, responsável por
assinar os textos que discutem a linguagem e a linguística.
É importante sublinhar que a presença desses professores universitários
na redação da Língua Portuguesa proporcionou a classificação, do periódico,
em B214 no Qualis, valor que outros periódicos da mesma área não possuem,
como Discutindo Literatura, B5, e Biblioteca Entre Livros, B4, ano base 2012. O
Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Coordenação de
3
Responsável pela seção Obra aberta de 2005 a 2007. Jornalista. Membro do conselho
editorial da Folha. Mestre em sociologia. Escreve para o caderno Ilustrada, do jornal Folha de
São Paulo, desde 1990.
4
Assinou Obra aberta de 2007 a 2010. Doutora em linguística e professora da Pontifícia
Universidade de São Paulo (PUC).
5
Crítico literário responsável pela subseção Técnica.
6
Jornalista responsável pela subseção Dito & Escrito.
7
Professor do Programa de Educação da Uninove (SP). Assina a Versão brasileira.
8
Editor-chefe e responsável pela Figuras da linguagem.
9
Escritor, jornalista e advogado. Assina Berço da palavra.
10
Consultor empresarial. Responsável pela subseção Corporativo.
11
Doutor em Linguística. Responsável pelos textos que versam sobre linguística, semiótica e
pragmática.
12
Doutor em Linguística pela USP. Assina a seção Etimologia.
13
Doutor em Linguística pela USP.
14
Dado
disponível
em
http://qualis.capes.gov.br/webqualis/publico/pesquisaPublicaClassificacao.seam?
conversationPropagation=Begin. Acesso em 13/11/2012.
24
Aperfeiçoamento de Pessoal de nível superior, CAPES, para estratificação da
qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação no Brasil.
Tal classificação foi concebida para atender às necessidades do sistema de
avaliação e é pautado nas informações fornecidas por meio de coleta de
dados. Como resultado, o site da CAPES disponibiliza uma lista com a
classificação dos veículos dos programas de pós-graduação para a divulgação
da sua produção.
A classificação em B2, pela CAPES, da Língua Portuguesa só foi
possível na medida em que os membros que compõem a revista são tomados
como autorizados, isto é, os discursos proferidos pelos colaboradores foram
legitimados segundo os cânones da esfera de sua própria competência, sendo
assim, autorizados. O discurso competente é o proferido e aceito como
verdadeiro ou autorizado (nesse caso, os termos se equivalem), tendo perdido
os laços com o lugar e o tempo de sua origem. No entanto, apesar de vivermos
em uma época em que a ideologia cientificista é hegemônica, essa ideologia
repele e reprime o discurso científico instituinte ou fundador, uma vez que a
indeterminação do presente foge ao controle.
Buscando diferenciar essas duas modalidades do discurso científico,
Marilena Chauí (2011) nomeia o discurso fundador, instituinte como saber,
sendo este uma negação reflexionante, ou seja, é o trabalho para elevar à
dimensão do conceito uma situação de não-saber. Só há saber quando a
reflexão aceita a indeterminação que a faz brotar. Já na ideologia, no discurso
competente, as ideias assumem uma forma de conhecimento, de ideias
instituídas e, portanto, fora do tempo. A ideologia, para a Chauí, é um corpo
sistemático de representações e de normas que nos “orientam” a agir e a
conhecer. Para tal, o discurso ideológico busca coincidir com as coisas, anular
as diferenças entre pensar, ser e o dizer, através de uma lógica que busca
obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada. Isto é, a imagem residente na classe dominante. Portanto, sob
o signo do especialista, do discurso competente, Língua Portuguesa dissimula
a ideologia no discurso neutro da cientificidade ou do conhecimento. Este,
afirma Chauí, não é um risco, mas uma arma para o projeto de dominação e de
intimidação social e política, pois a racionalidade não tem rosto e se oculta o
lugar de onde é pronunciada.
25
O discurso competente não existe, na revista, apenas na presença dos
sujeitos autorizados pela burocracia e organização hierárquica social, mas
também pelos conhecimentos veiculados pelo periódico. Esses são retirados
do seu contexto de feitura, isto é, estão fora do tempo e do lugar, todavia
encravados na sociedade.
Como pudemos observar, a língua pode ser percebida como matéria
prima base: do ponto de vista editorial, porque toda a revista é concebida em
torno do idioma; e do ponto de vista comercial, pois a demanda de leitura vai
buscar informações sobre a língua. No entanto, a estratégia de sedução do
público-leitor ocorre mediante a veiculação da figura do escritor na capa, pois
esse é visto pela publicação, entre outras coisas, como um ícone da utilização,
valorização, defesa e propagação do idioma. As perguntas feitas pela voz
institucional nas entrevistas são um índice dessa visão.
O escritor, presente em 84% das capas analisadas, é de tamanha
importância para a revista que se transforma em elemento de identificação de
uma edição: as cartas dos leitores sempre se referem às revistas anteriores
pelo escritor que se apresenta na capa, não pelo número ou mês do seu
lançamento. Esses escritores são sempre nomes de prestígio, nacionalmente
reconhecidos,
seja
pela
academia,
como
Nélida
Piñon,
seja
pelo
mercado/leitor, exemplo de Paulo Coelho. As entrevistas são feitas pelo editor
chefe da revista, Luiz Costa Pereira Junior.
A valorização da figura do escritor não é uma invenção do jornalismo
cultural exercido pela Língua Portuguesa. Inicia-se, segundo Silviano Santiago
(2004), concomitante ao excesso de especialização dos suplementos literários.
Estes, ao fazerem uso da linguagem acadêmica, afastaram leitores. Com isso,
os jornais tentaram compensar esse distanciamento trazendo para a seção de
literatura uma abordagem já utilizada na cobertura de outras áreas artísticas.
Ali, a literatura deixa de ser a análise de obra e passa a se
confundir com a figura singular do escritor, à semelhança do
que já ocorria com o músico, o ator de cinema, teatro e
televisão. O escritor vira ícone pop. A literatura passa a fazer
parte do que se chama de variedades, enriquecendo a galeria
das estrelas contemporâneas, depois chamadas de
personalidades e, hoje, de celebridades. (SANTIAGO, 2004, p.
164)
26
As capas fazem parte de um projeto editorial que tem por função chamar
a atenção do leitor, levá-lo a uma experiência visual e guiá-lo pelas páginas de
acordo com o que se pretende em termos editoriais. Para o seu êxito,
diferentes tipos de elementos gráficos são utilizados e compõem a
diagramação prevista pela linha editorial. Esses elementos são necessários
para que o leitor seja conquistado e que se interesse em ler a publicação. Com
isso, será a relação dialógica entre o que pretende o periódico e o que
interessa ao leitor a determinar os caminhos visuais que tomará a publicação.
Cada periódico pede um tipo de diagramação. Por isso, o projeto gráfico
está intimamente relacionado ao projeto editorial. A diagramação não existe em
si mesma, mas coexiste com o texto, proporciona uma identidade visual ao
impresso, ao utilizar uma diagramação padrão, usar repetidas vezes um
mesmo elemento gráfico ou uma tipografia para todos os textos. Desse modo,
é essencial na estratégia de comunicação e fidelização da revista junto ao seu
público leitor.
A imagem, elemento essencial nessa comunicação revista/público,
funciona
como
outra
possibilidade
de
leitura
complementar
para
a
compreensão da publicação. Por essas questões, percebe-se o lugar
estratégico que ocupa na abordagem e sedução do leitor.
Se o trecho parecer irrelevante e pouco envolvente, será saltado.
Se for apenas parcialmente interessante ou parecer longo
demais, eles dirão “Acho que vou ler isso mais tarde”, o que
equivale ao beijo da morte, pois o exemplar será colocado no
alto da pilha do vou ler depois, que, quando estiver alta o
suficiente, irá todinha para o lixo reciclável. É por isso que temos
de usar todos os truques psicológicos, intelectuais e visuais (ou
seja, edição) para fazer as pessoas reagirem da primeira vez
que vêem a matéria. Esta deve ser irresistível ao ponto das
pessoas pensarem que vão perder se não lerem agora (WHITE,
2005, p. 10).
Verifica-se, então, a existência de duas etapas na diagramação. É a
primeira informação que o leitor tem da revista, além de realizar a
apresentação do seu conteúdo. E constitui-se em um fio condutor que guia o
público pelas páginas, seções e entrevistas. Através de marcas gráficas, podese induzir o leitor a acreditar que uma informação é mais importante que outra
ou o que merece ser lido primeiro. Tais marcas estão presentes na revista
27
desde a capa até o sumário. Na Língua Portuguesa, o sumário não segue
sempre a progressão numérica, mas separa as matérias de capa em um
quadro, ressaltando com a cor, geralmente preta, a matéria principal (Anexo 1).
Isso conduz o leitor a observar primeiro a informação destacada em detrimento
das outras, criando assim a hierarquia interna, produto da linha editorial da
revista. Essa disposição espacial hierárquica inicia-se na capa, com uma única
foto para quatro ou cinco chamadas (Anexo 2), determinando o posicionamento
dos elementos. Só uma chamada é “digna” de imagem, de ser posta na vitrine
e ser o carro-chefe da revista. As outras ficam em segundo plano, deixando a
maior fatia da capa para a imagem e nome do artista/escritor entrevistado ou
que terá a matéria veiculada na edição.
As capas são formadas por signos icônicos – fotografias, desenhos – e
linguísticos – chamadas, cabeçalhos. Vale ressaltar que, nas capas, os signos
icônicos estão em primeiro plano. O cabeçalho diz respeito às informações
sobre nome, edição, data, número de publicação e outras informações. Já as
chamadas são os títulos das matérias mais importantes da edição e têm como
função prender a atenção do leitor, fazê-lo comprar e ler a revista. A chamada
principal corresponde à matéria considerada mais relevante pelos editores.
Portanto, suas marcas gráficas têm que destacá-la das outras chamadas de
capa, o que ocorre de forma clara na Língua Portuguesa (Anexos 1 e 2).
Os dois tipos de signos presentes nas capas são essenciais para atrair a
atenção dos leitores, apesar de haver na área jornalística uma discussão sobre
quem é mais importante. Marília Scalzo defende que “a chamada principal e a
imagem da capa devem se complementar, passando uma mensagem coesa e
coerente” (SCALZO, 2008, p. 53), tese que seguiremos de agora em diante.
Dito isto, vale lembrar que a capa é o primeiro signo a ser percebido pelo
público. Seja numa propaganda da revista na televisão, em outro periódico, ou
em uma banca de revista, a imagem está lá, impõe-se diante dos olhos.
Posterior ao primeiro contato vem o manuseio, quando o leitor folheia as
páginas à procura de algo que chame sua atenção. Porém é a capa que o
prende. Uma boa revista necessita de uma capa que a ajude a seduzir leitores,
convencendo-os a adquiri-la. Por isso, precisa ser o resumo de cada edição
uma vitrine que mostre o que o leitor encontrará, pois tem uma função
estratégica de definir a compra de seu produto por potenciais compradores
28
(SCALZO, 2008). Sendo assim, as capas antecipam certo perfil do públicoleitor.
No caso da revista Língua Portuguesa, um leitor interessado não só
pela língua, mas, também, pela literatura. No mercado competitivo das revistas,
a identidade é essencial, e a capa incorpora tal característica, demonstrando
essa identidade que cria uma ligação entre o leitor e a revista. Em uma
publicação especializada, como a Língua Portuguesa, que visa a um público
segmentado, quanto mais a capa representar em termos conceituais esse
leitor, maior será a sua capacidade de sedução (WHITE, 2005).
Em relação à composição das capas da Língua Portuguesa, é
importante notar que a segmentação do público ocorre também na estratégia
de utilizar a figura de escritores conhecidos dos seus leitores, uma vez que
84% das capas trazem escritores (em 19 delas) ou compositores de música
(em três delas) que, no momento do lançamento da publicação do periódico,
estão envolvidos com a escrita literária, isto é, lançando livros de literatura. A
veiculação desses compositores/escritores na capa revela também uma
estratégia das editoras que possuem os direitos sobre as obras, uma vez que,
como defende Tânia Pellegrini [199_], a literatura hoje é um produto cultural
integrado aos mecanismos da indústria cultural, do mercado editorial, portanto,
faz uso dos mais variados meios de divulgação.
Como bem lembra Marília Scalzo (2008), a capa revela a que público se
endereça, assim como cria uma expectativa no leitor. No caso da Língua
Portuguesa, a identidade da revista já se faz presente no imaginário desse
público. Este espera por um escritor na próxima capa, e vai além, sugere
nomes de autores como Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Rachel de Queiroz,
Camus, através da seção “cartas do leitor”, para futuras edições.
As capas são compostas por dois tipos de signos, o icônico e o
linguístico. Na Língua Portuguesa, o signo icônico hegemônico é a fotografia
que se expande por toda a capa e só não está presente em duas edições, a de
nº 19 de 2007 – Clarice Lispector – e a nº 24 do mesmo ano – Guimarães
Rosa.
Sobre a fotografia, as ideias apresentadas por Marília Scalzo (2008)
mostram a sua importância. Antes do contato linguístico, na revista, há a
imagética. Esta provoca reações emotivas, convida o leitor a mergulhar em um
29
assunto ou matéria. Num mundo carregado de propostas visuais, o uso da
fotografia tornou-se mais relevante. A autora valida o seu argumento
apresentando números de uma pesquisa feita pela revista Veja, em que
apenas 9% dos leitores leem uma matéria sem imagem, enquanto esse
número chega a 15% se há ilustrações. Podemos questionar a intenção da
autora em absolutizar esses números, isto é, de torná-los regra, uma vez que
isso não é possível, tendo em vista que cada revista possui o seu público-leitor
específico, seus interesses, gostos, suas demandas. Mas os tomaremos como
índices de uma tendência que já vem há algum tempo.
Dessa maneira, a imagem é o foco da capa na revista Língua
Portuguesa. Esta pode ocorrer de diversas formas, entre as quais está a
imagem “sangrada” - que acontece quando a imagem ultrapassa alguma, ou
mais de uma, das extremidades da folha e é cortada -, a mais usada nas capas
do periódico em questão (Anexos 3 e 4). "O sangramento produz uma ilusão
que faz com que a imagem pareça se estender para o espaço além do limite da
página [...] Aumenta a página na imaginação do observador, e isso fortalece o
impacto não só da página, mas também do assunto da foto” (SCALZO, 2008, p.
58). Sendo assim, a figura do escritor, predominante nas capas analisadas, é
reiterada não só pelo conteúdo da entrevista/matéria contida na revista, mas
pelo uso de sua imagem e o que ele remete no imaginário do leitor.
A manutenção da figura do escritor como de identificação da revista
ocorre, pois, como afirma Van Dijk, “a produção jornalística privilegiaria
acontecimentos
produzidos/definidos
por
figuras
públicas
e
setores
preponderantes da vida social e política, reproduzindo uma estrutura social
favorável a essas elites” (VAN DIJK apud SOUSA, 2001, p. 42).
Maria Celeste Mira também chama a atenção para a questão ideológica
da notícia. “O fato de selecionarem e organizarem a notícia e a forma
impessoal e objetiva de expor dão a entender que o que se lê é uma avaliação
neutra dos fatos. Obviamente, toda informação é produzida e tende a refletir o
ponto de vista hegemônico” (MIRA, 2008, p. 89).
O público da Língua Portuguesa é formado, majoritariamente, por
professores, ou futuros professores e profissionais liberais, que consomem a
figura do escritor e informações sobre a língua e cultura, desejosos de obter um
conhecimento legitimado, tendo em vista o fato de o periódico ser um espaço
30
de propagação do discurso competente. Sobre a questão do conhecimento,
Marília Scalzo (2008) afirma que uma revista, até por causa de sua
periodicidade, cobre funções culturais mais complexas que a simples
transmissão de notícias. Traz análises, reflexão, experiência de leitura e lazer.
Na história das revistas, estas tomam dois caminhos: o da educação e o do
entretenimento. Enquanto o jornal ocupa o espaço público, a revista entra na
esfera privada, na casa dos leitores, tratando-os por “você”.
A relação de intimidade entre revista e leitor fica mais visível, na Língua
Portuguesa, na seção intitulada “cartas”, local onde se materializa o público
consumidor. Segundo José Melo (1985), a carta do leitor é
um texto que circula no contexto jornalístico, em seção fixa de
revistas e jornais, denominada comumente de cartas, cartas à
redação, carta do leitor, painel do leitor, reservada à
correspondência dos leitores. É um texto utilizado em situação
de ausência de contato imediato entre remetente e destinatário,
que não se conhecem (o leitor e a equipe da revista/jornal,
respectivamente),
atendendo
a
diversos
propósitos
comunicativos: opinar, agradecer, reclamar, solicitar, elogiar,
criticar entre outros. (MELO,1985, p. 1)
Ao todo foi veiculado na revista um total de 260 cartas entre agosto de
2005 e dezembro de 2007. Dessas, 147 se dirigem a matérias referentes à
literatura, cerca de 56% do total. A carta do leitor, assim como o artigo de
opinião, é envolvida por uma intenção persuasiva, tendo em vista que é uma
manifestação do público consumidor. Entretanto, é importante salientar que a
carta do leitor é um texto contextualizado, isto é, uma resposta a outro texto da
revista ou jornal. Sendo assim, é um diálogo entre a revista e seu público leitor.
Muitas vezes essas cartas não são originadas na esfera privada do leitor, mas
na redação dos jornais e revistas tendo como ponto de partida leitores fictícios,
idealizados pelos produtores culturais. No entanto, para essa pesquisa,
tomaremos os dados coletados desse espaço da revista como uma tendência,
uma vez que não podemos afirmar categoricamente a existência corpórea de
tais sujeitos, mas só de alguns.
A partir dessas informações foi possível observar e comprovar a tese do
editor chefe da revista, Luiz Pereira Junior, de que o sucesso da revista se
31
deve também ao boom de universidades privadas, promovido e iniciado no
governo Fernando Henrique Cardoso, uma vez que 65% das cartas analisadas
são oriundas de estudantes universitários, muitas vezes agradecendo
conselhos de ensino de língua e literatura. Outras muitas, pedindo reportagens
sobre escritores. Os outros 35%, de professores, da educação básica e
superior, e até de docentes estrangeiros, como na citação abaixo, em que duas
professoras francesas manifestam a sua satisfação perante um periódico que
trata apenas da língua.
É uma revista que não existia e valoriza os estudos de língua
com uma abordagem para um público amplo, sem ser
demasiadamente linguística. Desperta o interesse pelo assunto
e é muito bem-vinda em nosso departamento, na Sorbonne15.
Li com muito interesse a revista Língua. Mesmo sem ser
linguística, aprendi muita coisa de maneira lúdica, sobre as
diferenças entre o português europeu e o brasileiro. Gostei
especialmente do que escreve Marcelo Coelho. Gostei muito
da iniciativa16. (LP, nº 10, 2006, p. 3).
Sendo assim, a revista procura organizar e sintetizar a enorme torrente
de informações sobre a língua, buscando um público leitor que se interessa
pelo tema. Esse público também será cobiçado pelos anunciantes. No início,
estes eram raros, tendo em vista a periodicidade da publicação, bimestral, e
uma editora, Segmento, não muita conhecida.
Atualmente, a Língua Portuguesa apresenta um número pouco variável
de páginas dedicadas à publicidade, gira em torno de onze por edição. Dessas,
67% dizem respeito à divulgação de revistas culturais como a Cult, a BrHistória
(publicada pela editora Duetto, que pertence ao grupo Ediouro), e da própria
editora da Língua, a Segmento, que promove outras publicações. Outros
anúncios menos frequentes pertencem à Companhia Vale do Rio Doce, rádio
Eldorado, e lançamentos culturais da Folha de São Paulo, além, é claro, das
universidades privadas.
15
Jacqueline Penjon, pesquisadora, livre-docente responsável pela pós-graduação do
departamento de Língua e literatura Lusófana da Sorbonne Nouvelle Paris III.
16
Pierre Rivas, brasilianista, professor de Literatura Comparada da Universidade de Paris X,
Nanterre.
32
Maria Celeste Mira (2008) afirma que a publicidade influencia a revista
não apenas no seu conteúdo, mas em todas as suas possibilidades, desde o
formato até a escolha das cores do periódico. Essa influência decorre do poder
financeiro da publicidade, já que, na maioria dos casos, a venda de revistas
não paga a sua produção, tornando-a cara. Sendo assim, as propagandas
possibilitam preços mais baixos e uma circulação nacional. No caso da Cult, é
perceptível o interesse do jornalista Geraldo Ferraz, que promove a revista na
qual é editor-chefe e colunista, transferindo potenciais consumidores ao seu
maior produto, a Cult, tal como ajuda a manter uma produção da qual é
colaborador. Esses tipos de anúncios revelam a que consumidor a revista se
dirige, visto que, segundo Mira, o editor transforma-se em um especialista em
grupos de consumidores, pois há a necessidade de compreender a que público
a revista se destina, de modo que possa vendê-la a anunciantes. Com isso fica
clara a relação entre revista e publicidade, já que os anunciantes sempre
possuem um grupo pré-definido de consumidores que pretendem atingir.
Tendo em vista essas informações sobre os anunciantes, pode-se
observar, mais uma vez, a que tipo de público a revista se destina: profissionais
da área de letras e interessados pela língua como forma de cultura (entendida
aqui como cultura letrada, erudita), na medida em que temos entre as ofertas
uma revista cultural, a Cult, BrHistória, lançamento de livros e produtos
culturais como Cds.
O recorte de classe não diz respeito apenas ao público, mas
também aos seus produtores que, muitas vezes, compartilham o
mesmo universo cultural e sabem como agradar aos
compradores de suas revistas. (MIRA, 2008, p. 116).
Vale ressaltar que, quando a editora busca um grupo mais específico de
leitores e anunciantes, lança edições especiais de temática variada, como
“Linguagem e psicanálise”, “Linguagem e futebol”, “Literatura e vestibular”,
entre vários outros títulos. Uma vez que, quanto mais segmentado é o público,
mais instável é o mercado, pois, apesar do público dessas revistas ser
interessado no tema, a demanda pode durar pouco, desaparecendo na mesma
velocidade em que apareceram (MIRA, 2008).
33
Caracterizada
a
revista,
faz-se
necessário
observar
em
que
especialização do jornalismo ela se insere. O jornalismo cultural tem como
marco inicial a fundação, em 1711, da revista diária inglesa The Spectator.
Nesta, Richard Steele (1672-1720) e Joseph Addison (1672-1719), fundadores
da revista, tinham como finalidade levar para os clubes e assembleias, casas
de chá e cafés a filosofia dos gabinetes e bibliotecas, escolas e faculdades,
tendo em vista a ideia de que o conhecimento era divertido e não mais a
atividade sisuda e estática, quase sacerdotal, que os doutos pregavam e
praticavam. Segundo Daniel Piza (2003) e Jorge Rivera (2003), essa revista
inglesa tratava de tudo: livros, óperas, costumes, festivais de música e teatro,
além de política, estando relacionada à cidade. A The Spectator possuía como
público-alvo o homem urbano, preocupado com as novidades da moda, das
artes, dos costumes.
Sendo assim, Piza e Rivera afirmam que o jornalismo cultural, produto
ligado à avaliação de ideias, artes e valores, tem início no século XVIII com a
consolidação da imprensa inventada por Johannes Gutemberg em 1450, e do
humanismo renascentista que se espalhara da Itália para toda a Europa. O
jornalismo europeu se torna tão influente na modernidade quanto as revoluções
políticas, descobertas científicas e a educação liberal. A Inglaterra será a matriz
dessa influência, pois vivia um clima de liberdade de expressão na vida pública,
que não existia em outras localidades. Nesse período, além de Steele e
Addison, William Hazlitt escreveu para o The Examiner, Charles Lamb, para o
London Magazine, e Samuel Johnson, para o The Rambler.
O jornalismo cultural não se resumiu à Inglaterra e à França. Na
Alemanha, G. E. Lessing (1729-1781) ganhou fama no século XVIII como
crítico de teatro e literatura. No século XIX, foi a vez de Heinrich Heine (1797 1856), que, além de crítico, era poeta. Nos EUA, a figura maior da crítica, no
século XIX, Edgar Allan Poe (1809-1849), tinha o sustento ligado à sua
produção para revistas e jornais e não aos seus contos e poemas. Estes só
seriam respeitados em decorrência das traduções feitas na França por Charles
Baudelaire. Na segunda metade do século XIX, o jornalismo se multiplicava
nos EUA à medida que o país crescia e sua cultura se consolidava. Outro
escritor que também trabalhou como crítico em periódicos foi Henry James.
34
Seu famoso ensaio “A arte de ficção” foi publicado pela Longman`s Magazine
em 1884.
Apesar do prestígio conseguido pelo jornalismo cultural e a presença de
escritores nas redações, Silviano Santiago (2004) afirma que houve uma
desliteraturização da grande imprensa entre o fim do século XIX e início do XX.
O cosmopolitanismo e, em particular, o imperialismo, passou a ocupar o
espaço nobre dos jornais e revistas – antes preenchido pela literatura –,
alimentando a curiosidade burguesa sobre o mundo. Surge, então, a figura do
correspondente no exterior. Este será responsável pelas fotografias e relatos
exóticos proporcionados pelo mistério das regiões e povos desconhecidos,
rivalizando assim com os textos literários. Vale destacar que, apesar dessa
perda de espaço, os escritores e críticos continuaram a manter um diálogo
intenso com o público letrado, divulgando os novos valores estéticos,
proporcionando o enriquecimento do debate de ideias e obras.
Outro fator, segundo Silviano Santiago, que contribuiu para a
desliteraturização foram as novas formas artísticas proporcionadas pelo
desenvolvimento tecnológico que concorrem com a literatura pelo espaço
dentro do jornal. Uma marca desse fator foi a migração das histórias de
folhetins do jornal. Primeiro, para o cinema, depois para o rádio e, por fim, para
a televisão.
No Brasil, segundo Piza, o jornalismo cultural iniciaria e ganharia força
no final do século XIX e, assim como em todo Ocidente, possui a característica
de ter escritores nas suas redações. Machado de Assis (1839-1908) seria um
dos principais responsáveis por esse início, ao começar a carreira como crítico
de teatro e polemista literário. Outro escritor, e o grande crítico do período,
José Veríssimo (1857-1916), foi o editor da Revista Brasileira, que marcou
época.
Sérgio Gadini (2003), no entanto, defende um marco anterior ao
afirmado por Piza, assim como aponta os anos 1930 como início do efetivo
crescimento do jornalismo cultural no Brasil.
Como se sabe, esse processo só vai acontecer no Brasil – ainda
que de forma lenta, devido ao alto índice de analfabetismo, baixa
concentração urbana, dentre outros fatores – a partir do século
XIX, tendo como marco a vinda da família real em 1808. Na
35
prática, em termos urbanos e públicos, só vai ser possível falar em
consumo e crítica cultural algumas décadas mais tarde. Ou, para
ser mais exato, a partir das últimas décadas daquele século. E, de
modo mais significativo, a partir dos anos 1930. (GADINI, 2003, p.
217)
Jorge Rivera (2003) segue um caminho semelhante e complementar ao
de Gadini ao afirmar que esse crescimento, nas primeiras décadas do século
XX, está relacionado ao surgimento das vanguardas artísticas que publicaram
várias revistas – Klaxon, Antropofágica, Terra Roxa, Estética, Diretrizes, entre
outras – com suas propostas estéticas e ideológicas.
Até o início do século XX, o jornalismo era feito de escasso noticiário,
muito artigo político e debate sobre livros e arte. Com a modernização da
sociedade, a imprensa também mudou. O jornalismo passou a se basear na
objetividade, no relato de fatos e nas reportagens, enquanto o jornalismo
cultural deixou as conversações sofisticadas de Addison e Steele e as
resenhas incisivas de Krauss, Shaw e Émile Zola para se ater às críticas mais
breves, às entrevistas e reportagens.
Nesse contexto aparece o novo sustentáculo do jornalismo cultural, as
revistas, incluindo-se na categoria os tabloides literários semanais ou
quinzenais.
Estude os “ismos” todos lançados nas três primeiras décadas do
século (XX) e você terá de estudar as revistas em que eles
foram formulados e debatidos. Assim foi com o surrealismo
francês, o futurismo russo, o imagismo americano: a expansão
das vanguardas estava diretamente ligada à expansão da
imprensa, dos recursos gráficos, do público urbano ávido por
novidades. (PIZA, 2003, p. 19)
No Brasil, essa tendência esteve presente através da revista Klaxon,
que, nesse período, veiculava as ideias do modernismo paulista. Esse
jornalismo cultural praticado no início do século XX era mais incisivo e
informativo, menos moralista e meditativo. Entretanto, continua a exercer uma
enorme influência, chegando a “servir de referência não apenas para leitores,
mas também para artistas e intelectuais de outras áreas” (PIZA, 2003, p. 20).
O jornalismo cultural no Brasil do século XX percorre uma história
semelhante à dos países da Europa ocidental e dos EUA. Depois da geração
36
que possuía nomes como Machado de Assis e José Veríssimo, as revistas e
jornais vão abrigar em suas redações o crítico profissional e informativo. Essa
nova conjuntura não impede que muitos escritores passem primeiro pela crítica
nos periódicos antes se tornarem autores consagrados, entre esses, Lima
Barreto. Outro grande nome da crítica no país foi Mário de Andrade. Suas
críticas sobre música publicadas no Diário de S. Paulo, nos anos 30 do século
XX, por exemplo, têm um valor mais jornalístico que literário.
O auge do jornalismo cultural no Brasil, segundo Daniel Piza, dura 20
anos, dos anos 40 aos 60 do século passado. O fim desse período está ligado
ao surgimento, em maior quantidade, das faculdades de comunicação no país,
na medida em que os profissionais formados nesses novos cursos
universitários ocuparão os espaços nas redações, limitando, dessa maneira, o
exercício da atividade jornalística pelos profissionais oriundos de outras áreas.
No período áureo do jornalismo cultural houve dois grandes nomes: Otto
Maria Carpeaux (1900-1978) e Álvaro Lins (1912-1970). Esses dois críticos
alavancaram o jornalismo cultural com a combinação de jornalismo com
enciclopedismo. Ambos trabalharam no Correio da Manhã, que tinha como
redatores Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Holanda, além do poeta
Carlos Drummond de Andrade como colunista.
Tal momento do jornalismo cultural brasileiro estaria ligado ao
surgimento do suplemento literário e à presença de uma geração de
intelectuais sem formação universitária, como é o caso do Carpeaux, Álvaro
Lins, Sérgio Milliet – esses críticos não utilizavam uma linguagem técnica, o
que facilitava o diálogo com o público em geral – e de escritores como Mário de
Andrade, José Lins do Rego e Oswald de Andrade. Com o suplemento, como
afirma Silviano Santiago (2004), a literatura passou a ser o algo a mais que
fortalece semanalmente os jornais, com matérias densas, opinativas, analíticas,
reflexivas, que tentam preencher de maneira mais profunda e inteligente o lazer
de fim de semana do leitor apressado do dia-a-dia.
Conforme Silviano Santiago,
O suplemento tem sua raiz fincada no calendário burguês: a
notícia que transmite a ação ocupa o leitor burguês durante os
dias de trabalho, enquanto a matéria literária e/ou artística que
reclama o tempo da contemplação o envolve durante os dias
de lazer. (SANTIAGO, 2004, p. 163).
37
Entretanto, essa característica de ser um espaço especializado que
pode ser descartado sem prejuízo do todo, uma vez que é suplementar, não
afeta o diálogo entre o crítico e o público, pelo menos nesse período. Os
críticos continuaram a ter prestígio formando opiniões e sendo responsáveis
pelo sucesso ou fracasso de uma obra ou autor.
No final dos anos 1950, o Jornal do Brasil (JB), Última Hora e Diário
Carioca estabeleceram outro padrão editorial e gráfico. Enquanto o Correio da
Manhã se pautava na opinião, o JB, que começou o processo de modernização
em 1956, priorizou o visual e a reportagem, sendo responsável por solidificar o
lide no jornalismo brasileiro. O JB cria logo em seguida o Caderno B, que se
tornaria o precursor do moderno jornalismo cultural brasileiro. Também em
1956 foi criado, agora em São Paulo, o Suplemento Literário de O Estado de
São Paulo, que reuniu intelectuais que já militavam no jornalismo cultural, como
Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado. Ao
longo das décadas surgiram outras publicações culturais no país como Senhor
(final dos anos de 1950), o Pasquim (final de 1960), Opinião (anos 1970).
Nos anos 1980 a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo consolidam
os seus cadernos culturais Ilustrada e Caderno 2, respectivamente. A primeira
se enveredava pela polêmica e por assuntos mais ligados à cultura jovem
internacional, além de se ater a reportagens que apresentavam tendências de
comportamento. Já o Caderno 2 conseguia inserir em uma mesma publicação
literatura, música pop, arte, teatro e cinema americano. Uma característica do
jornalismo cultural dos anos 1980 é a presença de assuntos da cultura de
massa.
Na contemporaneidade, segundo Piza, o jornalismo cultural vem se
expandindo para os livros, por meio de coletâneas de ensaios e críticas, além
de biografias e por meio da internet, através dos fóruns e revistas digitais.
Entretanto, em vários países há um sentimento de “crise” desse tipo de
jornalismo, seja pela perda da influência – não definem tanto o sucesso ou o
fracasso de uma obra – ou pela falta de engajamento dos intelectuais no
debate cultural fora das paisagens contemporâneas da literatura.
Sobre a perda de influência, Silviano Santiago (2004) afirma que está
diretamente relacionada a uma mudança nas instâncias de legitimação. Se
38
antes bastava o parecer favorável dos críticos, seja um impressionista, seja um
acadêmico, hoje a primeira instância está localizada no público, isto é, no
mercado. Uma evidência dessa mudança é a existência e a importância dada à
lista dos livros mais vendidos.
Outro ponto importante na explicação da “crise” do jornalismo cultural,
pelo menos no que diz respeito à literatura, é o fim da crítica de rodapé. Esta,
como já foi observada, nutria-se de grande prestígio junto ao público, mas foi
questionada, segundo Cláudia Nina (2007), pelos primeiros formandos das
faculdades de Letras no início de 1940. Esse questionamento aprofundará a
separação entre literatura e imprensa no século XX. A “cisão” foi
exigida pelos professores universitários, com formação nas
grandes teorias e metodologias de leitura do século 20
(formalismo russo, estilística, new criticism, estruturalismo, etc),
inconformados que estavam com o “impressionismo” (quer dizer:
com a superficialidade) do ensaio e da crítica literária escritos
por intelectuais sem formação acadêmica e disciplinar.
(SANTIAGO, 2004, p.162)
Afrânio Coutinho, professor e crítico literário baiano, influenciado pelo
trabalho de René Wellek e pelo new criticism, foi um dos principais críticos da
“análise impressionista” existentes nas redações. Autor da seção Correntes
cruzadas, publicado no suplemento literário do Diário de Notícias, de 1948 a
1966, Coutinho defendia que a crítica literária veiculada nos jornais deveria
fazer uso de uma metodologia de análise e não se pautar no tom subjetivo e
personalista tão típico da crítica de rodapé. Esta era praticada pelos homens de
letras, de erudição, que privilegiavam as impressões que a obra produzia, e
não os seus aspectos formais, como pretendia o critico literário baiano.
A entrada dos profissionais formados nas universidades de Letras nas
redações trouxe, principalmente na década de 60 do século XX, uma
linguagem técnica, muitas vezes hermética, dificultando a interação com o
público não especialista (NINA, 2007). Tal situação abriu caminho para a
ascensão dos releases e da agenda cultural, nos anos de 1970 e 1980, nos
cadernos de cultura. As matérias tornam-se superficiais, voltadas para os
lançamentos do mercado editorial.
39
Nesse sentido, Silviano Santiago (2004) defende uma aproximação dos
acadêmicos com o público via jornalismo cultural, de modo a criar uma crítica
literária participante, enriquecendo, assim, o debate cotidiano de ideias. No
entanto, essa defesa, como o próprio autor levanta, traz consigo alguns
problemas. Entre eles, a perda do rigor científico, mas o uso dos jargões
acadêmicos afasta o público mais geral.
Essa aproximação clamada por Santiago ocorre no jornalismo cultural
feito pela revista Língua Portuguesa, até porque, como é uma publicação
voltada para o público, em grande parte, universitário, há uma busca, por parte
dessa comunidade de receptores, pelo conhecimento, seja ele instituinte ou
instituído. Em contrapartida, a existência de acadêmicos no interior da revista
não materializa a preocupação que Piza (2003) e Santiago (2004) nutrem do
uso de uma linguagem mais técnica, uma vez que a maior parte do público alvo
(área de letras) compreende o vocabulário técnico utilizado. Tal situação
demarca uma tentativa, por parte da Língua Portuguesa, de viabilizar um saber
especializado.
O campo do jornalismo cultural não é uniforme, os seus conceitos se
misturam, dificultando a sua compreensão, como bem afirma Jorge Rivera no
seu livro El periodismo cultural. Em primeiro lugar, afirma o autor, porque o
termo, jornalismo cultural, refere-se aos sentidos stricto e lato da produção
jornalística e cultural; em segundo, por relacionar jornalismo cultural à cultura
letrada, erudita, ou ilustrada (adjetivo, aliás, que nomeia o caderno de cultura
da Folha de S. Paulo, chamada de Ilustrada); em terceiro, por ser considerado
um espaço de debate intelectual, sendo, assim, fora do campo jornalístico.
Portanto, para Rivera (2003), o jornalismo cultural situa-se em uma zona
heterogênea, tanto de meios quanto de produtos, e aborda os bens simbólicos
– campo das belas artes, letras, cultura popular e as ciências sociais e
humanas –, sob diversos propósitos: analisar, divulgar, entreter, tendo sempre
em vista a produção, circulação e o consumo desses bens. Desta forma, a sua
área de atuação é ampla, sob o ponto de vista formal, de suportes e de
conteúdo.
Diferente da definição de Jorge Rivera, Sérgio Luiz Gadini busca
abandonar as generalizações que o conceito de cultura pode oferecer. Para
40
tanto, centra o seu conceito nas categorias de conteúdo do jornalismo cultural:
literatura, música, cinema, teatro, artes plásticas etc.
Compreende-se por Jornalismo Cultural os mais diversos produtos
e discursos midiáticos orientados pelas características tradicionais
do jornalismo (atualidade, universalidade, interesse, proximidade,
difusão, objetividade, clareza, dinâmica, singularidade, etc) que ao
pautar assuntos ligados ao campo cultural, instituem,
refletem/projetam (outros) modos de pensar e viver dos
receptores, efetuando assim uma forma de produção singular do
conhecimento humano no meio social onde o mesmo é produzido,
circula e é consumido. (GADINI, 2004, p. 1).
Entretanto, ao se prender às seções do jornalismo cultural e à prática
jornalística, Gadini peca ao deixar de investigar, de modo mais incisivo, o
objeto de que fala essa especialização do jornalismo, no caso, a cultura,
posição oposta à abordagem de Jorge Rivera. Para o pesquisador argentino, a
evolução do campo do jornalismo cultural combinou-se a duas concepções de
cultura: a antropológica e a ilustrada, o que a faz oscilar, como já mencionado,
entre o sentido restrito e um mais geral.
Numa visão antropológica, cultura compreende todo o conhecimento de
um povo, seus costumes, suas tradições. Através desse prisma, o crítico e
ensaísta Alfredo Bosi (2003, p. 319) afirma a cultura como "conjunto de modos
de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social". Entretanto, como
afirma Rivera, o recorte feito pelo jornalismo cultural, via de regra, também
aborda a cultura como sinônimo de ilustração, educação, refinamento e
conhecimento estético, aproximando-se, dessa maneira, do projeto iluminista
de difundir o pensamento intelectual, o saber e bens culturais produzidos a
partir do pensamento romântico do século. Sendo assim, Rivera (2003)
compreende o jornalismo cultural como um campo em que coexistem essas
duas concepções de cultura.
Em A ideia de cultura (2005), Terry Eagleton analisa a etimologia da
palavra cultura e suas mudanças através do tempo. O sentido da palavra
mudou, assim como seu uso. Já foi empregado para se referir ao cultivo na
agricultura, pois “um de seus significados originais é ‘lavoura’ ou ‘cultivo
agrícola” (EAGLETON, 2005, p. 9), assim como, com o decorrer do tempo,
passou a se referir ao cultivo de aspectos cognitivos. O que era considerado
41
um termo concreto passou a ser uma abstração relacionada às questões do
intelecto. Nesse caso, cultura seria aquilo que nos rodeia e usamos para
cultivar nossos conhecimentos.
Cultura, então, é o verso inconsciente cujo anverso é a vida
civilizada, as crenças e predileções tomadas como certas que
têm de estar vagamente presentes para que sejamos, de
alguma forma, capazes de agir. Ela é aquilo que surge
instintivamente, algo profundamente arraigado na carne em vez
de concebido na mente. (EAGLETON, 2005, p. 46)
Para o autor, não refletimos sobre as próprias crenças ou costumes,
apenas agimos balizadas pela cultura que se encontra internalizada,
incorporada, o que faz com que pareça “natural”. Nesse caso, não poderíamos
racionalizar sobre a cultura.
Essa preferência por uma identidade cultural em vez de outra é
irracional. (...) O racismo e o chauvinismo, que procuram
justificar essa preferência com base na superioridade de uma
identidade cultural sobre outra, são apenas tentativas espúrias
de racionalizá-las. (EAGLETON, 2005, p. 89)
Dessa forma, só identificamos outras culturas como tais porque não a
vivenciamos, não estamos inseridos nela, uma vez que a nossa cultura está
internalizada. De forma mais clara, não consideramos que vivemos em uma
cultura, pois essa é inerente à nossa existência. Vale lembrar que “todas as
culturas estão envolvidas umas com as outras; nenhuma é isolada e pura,
todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente diferenciadas e não
monolíticas” (EAGLETON, 2005, p. 28).
Sendo assim, para Eagleton, aceitamos esse Outro a partir do momento
em que negociamos a contradição, evitando enxergá-lo como homogeneizado:
“Toda cultura, portanto, tem um ponto cego interno em que ela falha em
apreender ou estar em harmonia consigo mesma.” (EAGLETON, 2005, p. 139).
Quando entendemos esse aspecto, conseguimos apreender melhor essa
cultura. E são os sujeitos que não estão inseridos em uma cultura que
conseguem enxergá-la a partir de um excedente de visão. Quando estamos
inseridos em uma dada cultura, a propensão é ver tudo como norma. Na
maioria das vezes não questionamos porque existimos, agimos de certa forma
42
e não de outra. Além do que, muitas vezes nem percebemos a razão dos
nossos modos de agir. Tal percepção só ocorre na medida em que
comparamos o nosso modo de existir com outros.
A ideia de cultura proposta por Eagleton ajuda a entender o nível de
autoconsciência na revista Língua Portuguesa, isto é, nela os modos de viver,
agir e pensar veiculados pelo periódico são tomados como naturais ao não
serem postos em confronto com outras possibilidades. Mas como isso seria
possível? Em relação ao objeto dessa pesquisa uma matéria comparando a
literatura escrita com a oral serviria para repensar a literatura como a arte da
palavra escrita e como autor. Quem seria o autor nos contos orais? Como
determinar a origem de uma narrativa oral? Como uma narrativa não possui um
autor, uma assinatura? Indagações não possíveis ao observarmos apenas a
cultura veiculada na Língua, já que o autor e a origem são tomados como
“óbvias” dentro do modo de vida difundido no periódico. Nesse caso, outras
possibilidades narrativas lançariam novos questionamentos para as produções
textuais que são abordadas pela revista, auxiliando, dessa maneira, na
compreensão e alargamento dos próprios costumes e práticas.
Voltando à definição de jornalismo cultural proposta por Rivera, essa, ao
invés de restringir a área de atuação, amplia. Enquanto as outras editorias
buscam a informação, a descrição, o contraditório, os fatos, nas publicações de
cultura o tema, a matéria recebe um viés interpretativo, opinativo, analítico,
crítico, em que é importante o sujeito que escreve, não havendo, portanto, a
imposição do discurso de objetividade. Assim, o jornalismo cultural pode ser
visto como uma especialização, fruto da necessidade da imprensa em atender
a um público segmentado, que se interessa por temas da cultura tratados com
mais profundidade do que se costuma observar no jornalismo diário. Ressaltese que essa abordagem vai muito além da divulgação dos produtos das
chamadas sete artes ou da veiculação do entretenimento. É a comunhão entre
as acepções de cultura, pois, como afirma Rivera (2003), que essa
especialização jornalística consegue lidar bem com as produções simbólicas
populares, eruditas e de massa.
A Língua Portuguesa materializa essa organização. Diferente de
publicações como Cult e Bravo – esta divide as seções da revista de modo
próximo às categorias de conteúdo propostas por Gadini –, que apresentam um
43
sentido stricto de cultura, considerando o conteúdo das matérias e o público
alvo, Língua Portuguesa busca uma visão mais abrangente, isto é,
antropológica e erudita. Tal afirmação é possível observando, entre outros
índices, as capas e os temas das suas matérias.
Enquanto a capa da revista nº 3, de 2005, traz o consagrado escritor
José Saramago, que está inserido na cultura erudita, a capa da publicação nº
16, de 2007, traz o compositor de rap Gabriel Pensador, que ganha destaque.
É importante salientar que uma publicação cultural necessariamente não
precisa falar de todos os aspectos da cultura, pois, como afirmam Piza, Gadini
e Rivera, cada publicação tem seu público alvo e deve se concentrar em se
comunicar com ele, sem deixar de lado sua função educacional, isto é, em
tentar contribuir com a formação e aumento do repertório do leitor.
O recorte temático de uma publicação cultural, como é a Língua
Portuguesa, depende da abrangência do projeto editorial. Nesse sentido,
Rivera hierarquiza os graus de especialização. A cultura superior se
caracteriza, de modo geral, por repertórios restritos de caráter linguístico,
histórico, artístico, filosófico, entre outros, que não se propõem à divulgação,
mas a uma abordagem acadêmica, uma investigação teórica alicerçada pelo
conhecimento científico ou o exame de uma obra canônica. Na cultura tida
como baixa, as ofertas temáticas são mais limitadas: crônicas esportivas,
pornografia, literatura macabra. A cultura média,
talvez a zona mais expansiva da invenção da imprensa – é a que
oferece, em troca, maiores possibilidades de heterogeneidade e
misturas. Condicionada pela exemplaridade modelar da cultura
superior, é responsável pela intensa massa de adaptações,
textos de divulgação, revistas, projetos editoriais, coleções
fasciculares e outros artefatos destinados a reconhecer,
sintetizar e difundir os patrimônios do conhecimento nas esferas
mais variadas, e daí a frondosidade potencial de seus repertórios
temáticos, que atravessam, sem sentimento de culpa, as
culturas clássicas, as vanguardas, a atualidade, os meios
massivos, as literaturas marginais, as ciências políticas, as
questões substanciais das ciências "duras", etc. etc (RIVERA,
2003, p. 29-30).
Tendo em vista a estratificação temática proposta por Jorge Rivera,
podemos inserir Língua Portuguesa na categoria de cultura média, uma vez
que não se propõe a discutir novas teses nem examinar uma obra de arte
44
exaustivamente, mas, como afirma em seu primeiro editorial, ser um veículo de
aperfeiçoamento intelectual, de discussão da língua, mediando o contato do
leitor com o conhecimento científico. Sendo assim, essa revista tem a
pretensão de “reconhecer, sintetizar e difundir os patrimônios do conhecimento”
produzidos pelos estudos acadêmicos da área de Letras. Com isso, consegue
caminhar
pelas
culturas
clássicas,
vanguardas,
produtos
de
massa,
ressaltando, é claro, que o conhecimento acadêmico vinculado na revista é o
instituído. Portanto, o público a que se destina não é o dos especialistas, mas o
“médio”, aquele que possui certo conhecimento geral, não aprofundado e que
não teria habilidade nem interesse de compreender uma publicação que se
destina à cultura superior, seja pela falta de conhecimento, seja pela ausência
de domínio dos jargões acadêmicos.
45
2. LENDO A LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA
Na revista Língua Portuguesa, em diferentes seções, três perspectivas
orientam um entendimento de literatura. Pela primeira, a literatura é concebida,
metonimicamente, como parte da língua, do idioma de um povo. Tudo que diz
respeito à literatura diz respeito à língua, pois esta é o material com o qual o
artista cria sua arte e, afinal, é uma revista sobre língua. Tal visão se estende
na vinculação da literatura à ideia de nação. Pela segunda, prevalece uma
visão imanentista das produções literárias ao se explorarem nas análises
aspectos supostamente intrínsecos à obra ou relacionados ao processo de
escrita. Em terceiro, a literatura centrada no escritor, figura que na revista atua
como força centrípeta, uma vez que é responsável pela concepção da estrutura
da obra, assim como é o que “melhor” domina a língua.
Dessa forma, no processo de figuração da literatura, Língua Portuguesa
incorpora tais perspectivas, que não se encontram estanques, imiscíveis entre
si, podem estar entrelaçadas. É importante salientar que a literatura não se
encontra entre as folhas dessa revista por causa dos escritores ou por ser a
narrativa primordial da nação, mas porque o meio pelo qual ela se expressa é a
língua. Uma coisa é o porquê de a literatura e a figura do escritor serem
veiculados, outra é a figuração central da literatura. São questões diferentes.
Ao estampar um escritor na capa, o periódico ativa referências não linguísticas
que permeiam o imaginário, a memória do leitor, como temas, obras,
passagens. Contudo, tal ativação faz parte da estratégia, por parte da revista,
de sedução dos leitores, que buscam, sobretudo, informações sobre a língua
portuguesa.
Na Língua Portuguesa, a principal figuração encontra-se na concepção
de literatura centrada no autor. Tal afirmação é possível ao se constatar
algumas características desse periódico: o escritor é apresentado ao público
como figura identitária da revista, é o ícone do uso do idioma; a entrevista, ou
matéria de capa não versa só sobre o idioma, havendo questões de ordem
temática e, principalmente, da história de vida do entrevistado; a seção Frases
é a única que não tange discussões sobre o idioma, sendo os enunciados
escolhidos mediante a importância de quem as pronunciou, logo, do autor; a
presença forte da ideia de gênio. O foco no autor se confirma, basicamente,
46
através de cinco seções: Figuras da Linguagem, Frases, Versão brasileira,
Obra aberta e Técnica.
A origem da palavra literatura remete ao vocábulo latino litteratura, que,
por sua vez, tem origem no radical littera, que significa saber oriundo da arte de
escrever. Na Europa, a palavra literatura, até o século XVIII, remetia ao
conhecimento, ao saber, às artes e ciências em geral. Quando se queria
designar as produções textuais que hoje são classificadas como literatura,
utilizavam-se palavras como “verso”, “poesia” e “prosa” (COMPAGNON, 2006;
SOUZA, 2009; TODOROV, 1980). O sentido atual da palavra literatura é bem
recente, data do século XIX, e em outras línguas, como em muitas africanas,
não há um termo genérico para designar todas as produções literárias.
Entretanto, segundo Tzvetan Todorov (1980), uma noção pode existir sem que
“lhe corresponda nenhuma palavra precisa do vocabulário” (p. 12). Tal relação,
segundo esse pesquisador, lança dúvida ao caráter “natural” da literatura.
Em O demônio da teoria (2006), Antoine Compagnon observa que,
qualquer que seja a abordagem sobre a literatura, esta sempre se posiciona
em uma dicotomia: o texto como documento – visão histórica e extraliterária –
ou texto como fato da língua – visão linguística e literária, a arte da linguagem.
Porém, segundo o autor, nenhuma dessas abordagens consegue definir o que
é o texto literário: “emprega-se, frequentemente, o adjetivo literário, assim
como o substantivo literatura, como se ele não levantasse problemas, como se
se acreditasse haver um consenso sobre o que é literário e o que não é” (p.
29). Para Todorov, a certeza de que a entidade literatura existe vem da
experiência, uma vez que a estudamos na escola, na universidade e nas
livrarias há um local reservado para ela. Sendo assim, a entidade literatura
“funciona ao nível das relações intersubjetivas e sociais” (TODOROV, 1980,
p.12). Esse fato apenas demonstra que em uma sociedade, em uma cultura, há
um elemento identificável ao qual nos referimos com a palavra literatura. Por
outro lado, tais elementos identificáveis como literatura não possuem uma
natureza comum.
Buscando entender a construção de conceitos sobre literatura, Todorov
divide as possibilidades de conceituação em dois eixos: funcional, apreendida
na experiência cotidiana, produto das relações sociais, e são numerosas, e a
estrutural, concernente à “natureza”, à “essência” que os elementos
47
identificáveis como literatura possuem. Vale ressaltar que a entidade funcional
não corresponde necessariamente à estrutural e se aproxima muito, no que
tange à sua natureza, ao conceito de representação social proposto por Serge
Moscovici, uma vez que é produzida socialmente e funciona na relação entre
sujeitos. Todorov (1980) se debruça com maior vigor sobre a entidade
estrutural da literatura, isto é, o que diz que é e não o que ela faz. Sendo
assim, examina os dois tipos mais frequentes de soluções propostos para a
questão da “essência” da literatura, ou, como denomina o autor, a entidade
estrutural da literatura.
A primeira definição estrutural, adotada desde a Antiguidade, com
variações de termos ao longo dos anos, diz respeito ao caráter ficcional da
literatura. Entretanto, Todorov questiona se essa definição não está
substituindo uma consequência daquilo que é a literatura por sua definição.
Nada é preciso mudar em sua composição, mas apenas dizer
que não estamos interessados em sua verdade e que a lemos
‘como’ literatura. Pode-se impor uma leitura ‘literária’ a
qualquer texto: a questão da verdade não será colocada
porque o texto é literário. (TODOROV, 1980, p. 14).
Nesse caso, a ficção seria mais uma propriedade da literatura do que
sua definição. E ainda assim, uma propriedade que não se observa em todo
texto tido como literário. Utiliza-se a palavra ficção para o romance, a novela, o
drama, mas não para a poesia. Esta não é fictícia nem não-fictícia, uma vez
que a poesia nada conta, nem designa evento algum, não evoca qualquer
representação exterior, mas formula impressões, meditações, bastando-se a si
mesma. Portanto, se tudo aquilo que se denomina de literatura não é
obrigatoriamente ficcional, o inverso também ocorre, nem toda ficção é
literatura (TODOROV, 1980).
Terry Eagleton (2006) problematiza diferentes noções e conceitos de
literatura e defende a tese de que tais conceitos nunca são metafísicos, mas
funcionais, servem a uma determinada época, a determinados interesses.
Entre os conceitos discutidos está o de ficção, e, neste caso, o autor chega à
mesma conclusão que Todorov: ficção não serve como conceito ontológico de
literatura. Para tal, questiona a distinção entre “fato” e “ficção”, observando que
48
a palavra “novel” foi usada na língua inglesa entre o fim do século XVI e início
do XVII tanto para os acontecimentos reais como para os fictícios e que as
notícias de jornais poderiam ser consideradas fatos. A segregação que
atualmente se faz entre essas categorias não era aplicada nesse período.
Portanto, a definição de literatura está relacionada ao modo como um leitor se
porta diante de um livro e não à natureza daquilo que é lido (EAGLETON,
2006).
Então, para ser estrutural, segundo Todorov (1980), o termo imitação
tem seu sentido ampliado, o que o torna vago, exigindo, assim, um
complemento, uma especificação: a imitação deve ser artística. Surge,
portanto, a segunda grande definição de literatura: “é a linguagem nãoinstrumental, cujo valor está nela mesma, ou como diz Novalis, uma expressão
pela expressão” (TODOROV, 1980, p. 15). Tal definição surge no século XVIII,
ligada à noção de belo, aqui entendido como realização de si, sendo defendida
pelos românticos alemães e se tornará, segundo Todorov (1980),
a base das primeiras tentativas modernas para criar uma
ciência da literatura. Seja no Formalismo Russo ou no New
Criticism americano, é sempre do mesmo postulado que se
parte. É a função poética que enfatiza a própria mensagem.
Ainda hoje, é a definição dominante, mesmo que sua
formulação varie. (p.16).
Entretanto, para Tzvetan Todorov (1980), essa conceitualização de
literatura não merece ser qualificada como estrutural, pois busca o que a
poesia deve fazer e não o que é. Esse enfoque funcional foi completado por um
ponto de vista estrutural: o caráter sistêmico, isto é, o termo belo foi substituído
por forma, que, por sua vez, deu lugar ao termo estrutura. A literatura, então,
seria um sistema que chama a atenção para si própria, tornando-se autotélica.
Todorov faz duas críticas a essa noção de literatura. A primeira refere-se
à estrutura: a linguagem literária não é a única sistemática, outros domínios
também possuem uma organização rigorosa, inclusive até mesmo o emprego
de mecanismos idênticos, como rima e polissemia. A outra crítica versa sobre o
fato de que nem todo romance tem como finalidade a linguagem. Esta proposta
serve para determinados projetos estéticos, como o de James Joyce ou o do
49
nouveau roman. Em contrapartida, a estética do realismo busca representar
objetos, eventos, ações, personagens. A linguagem, nessa estética, portanto,
chama a atenção para o mundo representado e não para si mesma.
Corroborando com as críticas proferidas por Todorov sobre a concepção
de literatura como forma peculiar da linguagem, Eagleton (2006) afirma que
pensar a literatura, tal como fizeram os formalistas russos, é reduzi-la, em sua
totalidade, à poesia. As consequências estruturais desses enfoques funcionais
são a tendência ao sistema e a valorização de todos os recursos simbólicos do
signo.
Observando a relação dos dois elementos que compõem o conceito de
literatura analisado, Todorov (1980) afirma que não há uma implicação lógica
entre ficção e autotelismo. Essas foram engatadas sem serem relacionadas;
dão conta de muitas obras qualificadas como literárias, mas não de todas, e a
relação entre elas é de afinidade e não de implicação, o que mantém o termo
vago e impreciso. Além disso, afirma que o contraste entre linguagem literária e
não-literária não é válido, uma vez que a não-literária não é homogênea, cada
discurso possui o seu sistema, tese defendida também por Terry Eagleton
(2006).
Em sua busca por um conceito estrutural de literatura, Todorov deixa de
lado um aspecto importante: o julgamento de valor. Para Eagleton (2006), o
julgamento tem relação direta com o que se considera literatura. Não há obra
ou tradição literária que seja valiosa em si, uma vez que a valoração ocorre em
situações específicas, à luz de determinados objetivos, de acordo com certos
critérios. Portanto, mudando-se os pressupostos com os quais se julga uma
obra, muda-se a hierarquia, o seu posicionamento dentro de uma cultura ou
mesmo a sua classificação como obra literária ou não. Vale ressaltar que tais
critérios modificam-se no tempo e no espaço. Diferentes períodos históricos
constroem “diferentes” obras, de acordo com seus próprios interesses. “Todas
as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que
inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura
de uma obra que não seja também uma ‘reescritura’” (EAGLETON, 2006, p.
19). Essa é uma das causas pela qual a classificação de qualquer objeto
cultural como literatura torna-se instável. Desse modo, a literatura, para o autor,
seria um tipo de escrita altamente valorizada, não resultante de uma essência,
50
mas do sistema de juízo de valor de uma determinada sociedade. Tal conceito
explica a falta de características comuns entre os vários tipos de textos que se
encontram dentro do que chamamos literatura.
Para Eagleton, esse sistema de valores, em grande parte inconsciente,
que informa e evidencia as afirmações fatuais, é uma parcela da ideologia.
Eagleton entende por ideologia a “maneira pela qual aquilo que dizemos e no
que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de
poder da sociedade em que vivemos” (2006, p. 22); como sendo as formas de
sentir, avaliar, acreditar e perceber, que de algum modo, se relacionam com a
reprodução e manutenção do poder social. Segue um caminho semelhante o
crítico literário Roberto Reis em seu estudo sobre o cânone. Para Reis, o
conceito de literatura é ideológico e tem cumprido uma clara função social: no
século XIX foi empregado para legitimar o indivíduo e a burguesia, e mais
tarde, valorizar certo tipo de escrita, praticada pelas elites letradas.
Um texto não é literário porque possua atributos exclusivos que
o distinguem de outro texto, mas porque os leitores (entre eles
incluídos os críticos), por inúmeras razões, o veem como tal.
Assim dimensionada, a literatura se converte numa forma de
práxis discursiva e social, não apenas representando mas
também criando a realidade. (REIS, 1992, p. 72).
Portanto, apesar da literatura não ser uma categoria “objetiva”, como
demonstram Todorov, Eagleton e Reis, também não é subjetiva, pois o
conceito de literatura não tem relação com os interesses individuais, mas com
julgamentos de valor. Esses juízos têm raízes em ideologias sociais e se
referem aos critérios pelos quais certos grupos sociais exercem e conservam o
poder sobre outros, sendo assim, intersubjetiva. Língua Portuguesa confirma a
ausência de um conceito objetivo da literatura ao acolher visões diferentes
acerca dessa prática de escrita, reafirmando, dessa maneira, o caráter
privilegiado da escrita literária, o seu prestígio. Basicamente, para o periódico a
literatura se define por ser uma literatura não-pragmática; numa operação
metonímica, a literatura é o autor e sua obra; e ainda, representa a nação.
Na Língua Portuguesa a ideia de literatura como uma produção textual
que representa a nação circula na capa do periódico, em alguns editoriais ou
pode se fazer presente, no entendimento da revista, em obras que foram
51
escolhidas para análise na seção Obra Aberta. Segundo Zilá Bernd (2011), a
literatura teve um papel exponencial no projeto de construção da identidade
nacional por ser um texto privilegiado, na medida em que pode conter outros
textos, como o filosófico, científico, o histórico etc. Certamente nem todos os
textos literários serão chancelados para compor o cânone brasileiro. Mas
quando a literatura se torna nacional?
Para Luiz Costa Lima (1996), os termos literatura (na acepção moderna)
e Estado-Nação são historicamente distintos. No século XVI já estava
constituído o dispositivo político, simbólico e jurídico que sustenta e justifica o
poder do Estado. No entanto, a literatura, em seu sentido moderno, só se
configura nas décadas finais do século XVIII. Contudo, esse hiato não impediu
os Estados nacionais europeus, que disputavam a hegemonia no continente,
de se apropriarem e utilizarem a literatura como arma antes do fim do século
XVIII. Sendo assim, o Estado se apodera da literatura antes mesmo dela “se
apresentar como o território próprio e por excelência do sujeito individual”
(LIMA, 1996, p. 33).
As consequências dessa apropriação são variadas e extensas, uma
delas, afirma Lima (1996), diz respeito ao controle do imaginário. Tal controle
seria feito através de uma legislação específica referente à literatura. Isto é,
havia uma política poética que legislava partindo de categorias como tempo,
uso da linguagem, o privilégio de certos recursos em detrimento de outros, a
obediência aos limites da verossimilhança.
Com o advento do romantismo, surge uma nova proposta poética – que,
em sua origem, é revolucionária –, constituída basicamente de dois critérios: o
sujeito criador e o não-pragmatismo da arte. Entretanto, afirma Costa Lima
(1996), no romantismo normalizado tais critérios serão controlados. “O
romantismo normalizado pode ser definido como aquele que ajusta a ideia de
expressão individual ao espírito do povo, nele incluindo o poeta, cuja obra
refletiria o estágio de civilização alcançado por seu país” (p. 35). Logo, o
escritor era tomado como parte do todo ao qual pertencia e cujo modo de ser
refletiria a identidade da nação, assegurando, dessa maneira, as condições de
prestígio da literatura nacional.
A partir desse momento, e ao longo do século XIX, a literatura se torna
veículo pelo qual se educa e se forma o indivíduo. “O Estado-nação que se
52
preza exibe entre seus títulos um elenco de escritores, difundido por antologias
e apreciações biográfico-interpretativas. É uma das tarefas do Estado a
propagação da literatura enquanto nacional” (LIMA, 1996, p. 35). Observa-se,
desse modo, o uso da literatura, pelo Estado, como um dos mecanismos de
perpetuação de uma identidade nacional pautada na obra e no autor. Segundo
Benedict Anderson, a nação é
uma comunidade política imaginada – e imaginada como
implicitamente limitada e soberana. Ela é imaginada porque
nem mesmo os membros das menores nações jamais
conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os
encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente
de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.
(ANDERSON, 1989, p. 14).
Portanto, as comunidades imaginadas constituem-se a partir do instante
em que há uma identificação, uma vinculação imaginada entre os indivíduos
que não se conhecem e que estão inseridos em uma dada época e espaço.
Essa vinculação ocorre utilizando uma série de artifícios, como monumentos,
elaborando mitos de origem, agrupando línguas vulgares em torno de uma
única língua escrita, a literatura, entre outros. Todos esses mecanismos foram
utilizados, segundo o autor, para criar uma consciência nacional nos séculos
XVIII e XIX. Essa identidade nacional é elaborada a partir de narrativas, como
afirma Zilá Bernd (2011). Definir-se é narrar. Uma coletividade, mesmo as
imaginadas, ou um indivíduo se definiria utilizando histórias que ela narra a si
mesmo sobre si.
Um aspecto importante levantado por Anderson (1997) é a necessidade
do narrar produzida pelo esquecimento de momentos significativos, isto é, o
que não pode ser lembrado necessita ser contado. Vale ressaltar que, diferente
dos indivíduos, as nações não possuem um ciclo de início, meio e fim. Tal
ausência deixa transparecer a importância do discurso histórico, da biografia da
nação, uma vez que o início e o fim da narrativa são arbitrários, dependem,
assim, do momento inaugural eleito pelo historiador. Este o escolhe a partir dos
seus interesses e valores. Dessa forma, defende Bernd, a identidade é
indissolúvel da narrativa e consequentemente da literatura.
Tomando por base as reflexões de Bernd, Lima e Anderson, pode-se
observar a importância do discurso literário na construção da identidade
53
nacional, assim como as relações de poder na relação entre literatura e
consciência nacional. No entanto, não basta narrar a nação recorrendo à
literatura. Faz-se necessário legitimar essa literatura através de uma narração.
Assim, a história da literatura como narração da biografia dos escritores e/ou
da literatura nacional cumpre sua função legitimadora, justificando a
importância e necessidade da literatura na consolidação da identidade cultural
da nação. Todavia, é quase impossível abordar todos os escritores
pertencentes a uma comunidade imaginada e inseri-los na narrativa
historiográfica. Neste momento surge o cânone nacional, que será preenchido,
como afirma Compagnon (2006), por escritores que “melhor” encarnam o
espírito da nação, ideia muito presente em Língua Portuguesa.
Na edição número 8 dessa revista, de junho de 2006, o escritor e
compositor Chico Buarque é apresentado da seguinte maneira pelo editorial:
“ele integra a geração que, nos anos 60, fez da afirmação nacional e da
contestação à norma um índice de identidade criativa. Ele é ‘popular culto’ por
excelência: uma obra para poucos fez dele celebridade da expressão
brasileira” (p. 8). Sendo assim, o escritor é produto dessa comunidade
imaginada e não só refletiria uma identidade nacional como a legitimaria ao
afirmar a sua capacidade criativa. Tal fato o alçaria à condição de escritor
canonizado. Para a revista, Chico Buarque é porta-voz da expressão brasileira
ao narrar a nação, o que pode ser contestado, uma vez que esse compositor
questionou de modo contundente uma concepção de nacional forjado pela
ditadura militar. Ademais, no excerto do editorial uma implicação chama a
atenção: o sucesso como escritor nacional estaria condicionado ao público a
que se destina a obra, em outras palavras, em ser uma produção cultural
direcionada a um grupo social, posto que Luiz Costa Pereira Júnior afirma ser
sua arte destinada a poucos.
Segundo Roberto Reis (1992), o conceito de cânon implica um princípio
de seleção e, por consequência, de exclusão, não sendo possível, assim, se
desvincular da questão do poder. Os que selecionam estão investidos de
autoridade para tal, farão de acordo com seus valores, seus interesses de
classe, grupo social ou cultural. Vale ressaltar que a utilização dessa
autoridade ocorre em espaços institucionais, como escolas e universidades. O
54
cânone, portanto, seria um patrimônio da humanidade ou da nação, cujo valor
é indiscutível e, por isso, deveria ser preservado para as gerações futuras.
Todavia, como afirma Reis, não há critério de valoração que não esteja
impregnado de relações de poder. Nesse caso, a revista, ao declarar que o
escritor em questão produz uma obra destinada a um determinado segmento
cultural, estimula e apoia uma visão de arte elitista, baseada na segregação, na
arte para poucos. O conhecimento literário, assim, é visto como patrimônio e
privilégio de um seleto grupo, operando, dessa forma, em uma razão cíclica em
que o capital cultural se movimenta sempre dentro do mesmo conjunto, ou
melhor, produz-se um sistema em que os produtos literários, sua apreciação,
posse e fruição são universalizados, naturalizados como criação da elite
cultural e a ela se destinam (BOURDIEU, 1994).
Historicamente, a literatura é utilizada como veículo de transmissão
cultural, sendo também uma das principais instituições de reforço das fronteiras
culturais e barreiras sociais, criando privilégios e silenciamentos em uma
sociedade. Entre as formas de divulgação de obras literárias estão os jornais,
suplementos literários, currículos escolares e universitários, prêmios literários 17
e adaptações para outras mídias. Ao analisar a lista dos clássicos universais,
nacionais e as críticas literárias que circulam no jornalismo cultural, constata-se
a exclusão de produções textuais de diversos grupos étnicos, sociais e sexuais
na composição do cânone literário nacional. Tal exclusão é observada na
Língua Portuguesa. Das 26 matérias de capas, apenas três se referem a
escritoras – Clarice Lispector, Nelida Piñon e Lígia Fagundes Telles –, o que
corresponde a 11,5% do total. E constata-se, embora não se ignorem questões
históricas que barraram as mulheres da esfera pública, que essas escritoras
foram canonizadas pelas instâncias de sagração por trabalharem com temas
ou estéticas valorizadas pelo grupo social, cultural que possui autoridade para
legitimá-las. Dessa forma, o “cânone reflete os interesses e valores de classe”
(REIS, 1992, p.77), a estrutura social e o projeto de identidade nacional
elaborado pelas elites.
17
A referência a prêmios ganhos pelos escritores é uma constante em Língua Portuguesa, até
para escritores que originalmente não pertencem ao cânone, como é o caso do rapper Gabriel,
o pensador. A inserção desse autor na capa, locus do autor canonizado, é legitimada através
do Jabuti – premiação promovida pela Câmara Brasileira do Livro e recebida pelo autor pela
obra infantil, O garoto chamado Roberto, em agosto de 2006. A edição com o rapper foi às
bancas em fevereiro de 2007.
55
Ao reiterar o cânone oficial e, por conseguinte, a identidade nacional
proposta e defendida pelo grupo social hegemônico, Língua Portuguesa exerce
uma função sacralizante, isto é, “unificadora, tendendo sempre ao mesmo, ao
monologismo, ou seja, à construção de uma identidade de tipo etnocêntrica,
que circunscreve a realidade a um único quadro de referências” (BERND,
2011, p. 20).
As singularidades regionais, quando exaltadas na revista, não ameaçam
a comunidade nacional; pelo contrário, constituem uma forma de riqueza do
país e, por isso, merecedoras de enaltecimentos. Na edição número 15,
publicada em 2007, ao abordar o romance Menino de engenho de José Lins do
Rego, na seção Obra Aberta, a revista procura exaltar o regionalismo sempre
em consonância com a valorização da nação.
Publicado em 1932, Menino de Engenho é o romance de
estréia de José Lins do Rego (1901-1957) e um dos mais
importantes exemplos do regionalismo brasileiro do século 20.
A transparência da linguagem desse relato autobiográfico de
uma infância no Engenho Santa Rosa, em plena Zona da Mata
nordestina, torna dispensável muitos esclarecimentos de
vocabulário; no encontro do narrador com uma prima da
cidade, é a arte do “não dizer”, levada com extrema sutileza por
José Lins, o aspecto mais notável a comentar. Não podemos
esquecer, é claro, da enorme contribuição dada ao país pela
cultura nordestina. Principalmente na literatura. (LP, nº15,
2007, p. 34).
Na análise do trecho do romance, a revista reitera essa relação entre o
local e o nacional.
O poder selvagem do cangaceiro, matador de onças, capaz de
transformar-se em bicho, inverte-se agora: como era comum no
Nordeste brasileiro, o bandido detém em suas mãos a
administração da lei, da ordem e da justiça. O contraste entre
civilização urbana e os costumes rudes do engenho, entre
proibições e desejo, é resolvido magicamente na fantasia do
menino, e surge como uma das mais delicadas declarações de
amor da literatura brasileira. (LP, nº 15, 2007, p. 35).
56
Ao circunscrever a literatura em um único quadro de referências, pela
lógica da exclusão, e relacionar o escritor à ideia de nação18, a revista ativa
uma memória coletiva. Essa é produzida e legitimada, nesse caso, na
universidade, local originário, tanto de quem assina as matérias (docentes
universitários), quanto de quem as lê (público formado e em formação nas
faculdades de Letras). Desse modo, tanto o periódico quanto o público leitor
possui um quadro de referências semelhante na medida em que esse é
produzido e legitimado no mesmo espaço. Compartilham, dessa maneira, dos
mesmos valores e pressupostos, operando assim dentro de uma lógica cíclica.
Tal lógica tem como consequência o silenciamento da alteridade, assim
como das literaturas denominadas emergentes. Essas “novas” literaturas
buscam representar uma memória coletiva ocultada pelo monologismo da
historiografia oficial e, no estudo em questão, da revista Língua Portuguesa.
Nesse sentido, Zilá Bernd afirma que as literaturas dos grupos discriminados
“funcionam como o elemento que vem preencher os vazios da memória
coletiva e fornecer os pontos de ancoramento do sentimento de identidade,
essencial ao ato de autoafirmação das comunidades ameaçadas pelo rolo
compressor da assimilação” (2011, p. 15). Portanto, a revista, ao adotar as
práticas da ideologia humanista ainda cultivada em ambiente universitário,
reitera a literatura produzida e consumida por um grupo social, tornando-a mais
uma vez significante privilegiado da autoridade cultural.
Outro ponto a assinalar é que a manutenção, pela Língua Portuguesa,
da literatura como fonte essencial da narrativa nacional atende aos interesses
dos grupos sociais dominantes, quando a história, a indeterminação, o
presente provam o contrário, isto é, sabe-se que com a publicação de Casa
Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e da massificação do rádio, na
Era Vargas, a imagem e o meio de propagação e veiculação da identidade
nacional se deslocam da literatura para a obra de Freyre (o país passa a se
narrar como uma democracia racial. Utilizando, principalmente, Casa Grande e
Senzala e não mais apenas as obras literárias) e o rádio. Portanto, a literatura
deixa de ser a produtora hegemônica dessa narrativa, assim como o meio pelo
18
Na edição de nº 26 de 2007, Vinícius de Moraes é apresentado como ícone da literatura
brasileira. Na edição nº 24, Guimarães Rosa é considerado um dos maiores escritores
brasileiros de todos os tempos.
57
qual ela se expressa – a palavra escrita – dá lugar à “oralidade” do rádio e,
atualmente, às narrativas televisivas.
A literatura enquanto linguagem não-pragmática é outra figuração
veiculada da revista. Apresenta-se já na capa, ao resumir a atividade literária
ao ato de escrever: “Nélida Piñon, A sedução da palavra: Mais aclamada
autora do país mostra como a criação literária pode surgir dos desafios do
idioma” (LP, nº 7, 2006); visão que se apresenta nos editoriais, nas matérias,
nas análises. Portanto, vale ressaltar, a literatura, para a revista, é palavra, não
é representação ou um retrato das relações sociais, ou meio para discussão
existencial, humana. É verbo, como na chamada da edição nº 5, de 2006: “o
verbo GULLAR”; ou na apresentação do poeta Vinícius de Moraes: “Reinventar
a língua. Um grande poeta não quer menos que isso. E cada poema – mesmo
que não aparente – tem como horizonte essa reinvenção” (LP, nº 26, 2007, p.
38).
Essa concepção autotélica inicia-se no século XVIII com a estética
iluminista, encarnada em seus diversos aspectos por Shaftesbury, Giambattista
Vico, Alexander Baumgarten, Gotthold Lessing, Immanuel Kant, Benjamin
Constant, que deslocou o centro de gravidade da imitação à beleza, afirmando
a autonomia da arte (TODOROV, 2007). Essa independência é construída a
partir da concepção do belo como um fim em si mesmo, sendo que a definição
do belo encontrou a sua forma final na obra Crítica da faculdade de julgar
(1790), do filósofo Immanuel Kant.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1994) constata que há várias definições do
belo, mas todas são variantes da proposta de Kant, que afirma que a função da
arte é não possuir função. Entretanto, diferente do que possa parecer, a
estética iluminista, segundo Todorov (2007), apesar de defender a autonomia
da arte, nunca ignorou a relação que liga as obras ao real: a arte ajuda a
conhecer e agir sobre o mundo. A poesia, no caso, revelaria a individualidade
de cada coisa; é concebida como um conhecimento sensível a todos.
A mudança na relação obra/mundo tem, segundo Todorov (2007),
ligação com as transformações ocorridas pela sociedade europeia da época.
“O artista deixa progressivamente de produzir suas obras mediante a
encomenda de um mecenas, destinando-as então, ao público que as adquire: é
58
o público quem passa a ter as chaves de seu sucesso” (TODOROV, 2007, p.
53).
Essa perspectiva abandona o ponto de vista do criador como centro das
discussões estéticas, – uma vez que do Renascimento até o século XVII o
artista era comparado a Deus, pois ambos criam mundos. No caso do artista,
um microcosmo –, para adotar o receptor que só tem um único interesse:
contemplar belos objetos. Isso possibilitou organizar as artes, que até então
estavam ligadas cada uma à sua prática de origem, em torno de uma mesma
categoria: a contemplação desinteressada. Toda arte, a partir desse momento,
passa a ser definida como aspiração ao belo, privilegiando, assim, a percepção
em detrimento da criação.
A transformação social de que trata Todorov é explorada de forma mais
ampla por Pierre Bourdieu. O pensador afirma que a autonomia do campo
artístico, ocorrida no século XIX, está intimamente ligada à alteração do
entendimento da engrenagem que envolve a produção, circulação e o consumo
do material artístico, assim como pela transferência da criação artística da
coisa representada para a própria obra. Nesse sentido, conforme Bourdieu,
contribuíram muito os projetos estéticos de Baudelaire, Flaubert e Manet, em
busca de uma poética da arte pura. Essa busca, segundo o autor, procura
libertar o fazer artístico das instâncias de legitimidades externas. A literatura, a
partir de então, passa a ser lida pelos profissionais – professores, críticos e
escritores – através de um pressuposto básico: o interesse pelas proezas
técnicas de seus criadores. Tal pressuposto criou um fosso: de um lado, a
literatura de massa, e do outro, a artística. Fazer sucesso comercial torna-se
sinônimo de pouca arte, provocando o silêncio e o desprezo da crítica
especializada.
Essa ideia, segundo Compagnon (2006), trouxe um aspecto formalista,
muito mais familiar hoje do que o conceito de belo. A abordagem formal tem
como pilar central a separação da singularidade da língua literária em relação
ao uso comum. Há numerosas maneiras de se apreender essa dicotomia: a
linguagem literária é mais conotativa, e a cotidiana, mais denotativa; a
cotidiana, mais espontânea, enquanto a literária, mais sistematizada, e assim
sucessivamente. Portanto, a concepção de literatura pelo prisma formalista se
define pelo uso do material linguístico sem um fim prático, auto-referencial. É a
59
arte verbal. Essa mudança de perspectiva também é analisada por Michel
Foucault, em As palavras e as coisas (2000). Segundo Foucault, a literatura, do
romantismo a Mallarmé, fecha-se em uma intransitividade radical, e a única lei
é afirmar sua árdua existência e o seu conteúdo é a própria forma, a aplicação
de certas propriedades da linguagem.
Os formalistas, entre os quais estavam Vítor Chkolvski, Roman
Jakobson, Osip Brik, Yuri Tynyanov, Boris Eichenbaum e Boris Tomashevski,
surgiram na Rússia antes da revolução de 1917. Suas ideias ganharam
repercussão durante a década de 20 do século passado, até serem silenciadas
pelo regime stalinista que se iniciava. Rejeitaram as doutrinas simbolistas que
haviam dominado a crítica literária até aquele momento. Para isso, utilizaram
um método científico que foi posto sobre a realidade material do texto, isto é,
só a materialidade da linguagem literária importava. À crítica caberia, portanto,
apenas compreender e explicar como os textos literários funcionavam na
prática. A literatura, para esses teóricos, era uma forma particular de
organização da linguagem e não sociologia ou psicologia. Sendo assim, tinha
suas leis específicas, seus mecanismos e estruturas que deveriam ser
estudados em si mesmos e não reduzidos a outra coisa qualquer (EAGLETON,
2006).
A propriedade distintiva do texto literário foi denominada, pelos
formalistas russos, de literariedade. Em 1919 Jakobson afirmaria o seguinte: “O
objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, ou seja, o que
faz de uma determinada obra uma obra literária” (JAKOBSON apud
COMPAGNON p. 41). Assim, os formalistas russos tentavam tornar o estudo
literário autônomo em relação ao historicismo e ao psicologismo através do
delineamento do seu objeto. Soma-se a isso o fato de se oporem à definição de
literatura como documento, representação, expressão.
Segundo Viktor Chklovski (1973), em A arte como procedimento,
publicado originalmente em 1917, a literariedade é uma propriedade assentada
no critério de desfamiliarização, ou estranhamento, isto é, a literatura reforma a
sensibilidade
linguística
dos
leitores
através
de
procedimentos
que
desorganizam as formas internalizadas e habituais da sua percepção. Com
isso, ocorrerá o processo que o pesquisador alemão Hans Robert Jauss, em A
história da literatura com provocação à teoria literária (1994), chamou de
60
ampliação do horizonte de expectativa do leitor. Portanto, a essência da
literatura, para os formalistas, estaria fundamentada em invariantes formais
passíveis de análise (COMPAGNON p.41). Essa abordagem, apoiada pela
linguística e pelo estruturalismo, fecha o estudo literário na questão verbal do
texto (EAGLETON, 2006).
A visão imanente e a concepção de literatura proposta pelos formalistas
são encontradas na revista Língua Portuguesa nas seções Obra Aberta e
Técnica, bem como nas entrevistas com os autores. Nessa última, o foco é
sempre a língua, os usos ou mecanismos linguísticos empregados pelos
autores ao compor uma obra. Essa concepção da literatura fica demarcada no
trecho abaixo retirado da matéria de capa sobre Vinícius de Moraes, na qual
afirma-se categoricamente que o destino da poesia é a forma, em outros
termos, o uso peculiar da linguagem.
Reinventar a língua. Um grande poeta não quer menos que
isso. E cada poema – mesmo que não aparente – tem como
horizonte essa reinvenção. Para tanto, há que se operar dentro
da linguagem. O destino da poesia é a forma. (LP, nº 26, 2007,
p. 38).
Desse modo, ocorre uma separação, mesmo que tácita, entre prosa e
poesia, tal como observa Todorov (1980), na medida em que não é a literatura
que está condenada à forma, mas apenas uma de suas possibilidades textuais,
o poema. Tal separação ganha novos contornos na matéria Caminhos até a
poesia, da seção Técnica (edição de nº 26 de 2007), em que se afirma que a
“poesia, em termos gerais, vai mais fundo que a prosa, formalmente” (nº 26 de
2007, p. 52).
A diferenciação entre poesia e prosa, nesse caso, é balizada pela
questão formal, reafirmando, de certa maneira, não haver aspectos estruturais
unos na literatura. Voltando à citação extraída da matéria sobre Vinícius de
Moraes, pode-se afirmar que a originalidade, a singularidade, não está em uma
nova maneira de se conceber um tema já exaurido ou na inserção de um
assunto não tão comum ao universo literário, mas essencialmente na
reinvenção da linguagem. Nesse aspecto, reside a grandiosidade do poeta.
Afinal, afirma o texto, todo poeta, ainda que inconscientemente, busca a
reinvenção da língua.
61
O conceito de literatura proposto pelos formalistas não abarca todas as
produções textuais ditas literárias, uma vez que os textos em prosa do realismo
não buscam o estranhamento, assim como as narrativas de Jorge Amado ou
de Lima Barreto não se afastam da linguagem cotidiana. Sem dúvida, é
possível afirmar que tais exemplos podem ser inseridos em uma perspectiva
formal, desde que a ausência de marca seja ela uma marca, isto é, que a
desfamiliarização seja a familiaridade. Entretanto, essa inserção, esse
estranhamento ocorre na diacronia de um gênero e não da relação dicotômica,
dentro de uma sincronia, entre a linguagem literária e a cotidiana.
O conceito de literariedade contempla um tipo de produção textual, mas
não de toda a produção literária. Nesse caso, percebe-se que alguns dos
escritores veiculados na revista são aqueles que seguem uma herança da
modernidade estética: a consciência da linguagem. A palavra, para esses
escritores, é um fim em si mesmo, como se pode depreender das entrevistas.
Na edição nº 7 de 2006, em sua entrevista Nélida Piñon afirma que a paixão
pelo idioma é essencial ao sucesso na literatura (p. 13). O mesmo acontece
nas “chamadas” de capa em que a literatura é vinculada à figura do escritor e à
língua: “O idioma de Drummond. No aniversário de vinte anos da morte do
poeta, um balanço das palavras que só o escritor criou” (nº 23, 2007); “A
sedução da palavra. Mais aclamada autora do país mostra como a criação
literária pode surgir dos desafios do idioma” (nº 7. 2006); “Lygia Fagundes
Telles. Em texto exclusivo, escritora discute as motivações que levam os
autores a criar histórias e manipular o idioma” (nº 22, 2007); “O verbo de Gullar.
Poeta conjuga novo livro e impulso de pensar um idioma que vê ameaçado
pelo mau ensino” (nº 5, 2006). Sendo assim, a revista não expõe na vitrine só o
autor consagrado, legitimado, que representa a nação, mas sobretudo um fazer
literário restrito à forma, relacionado à língua.
Destaquem-se autores que são matéria de capa, mas não seguem essa
estética moderna, como o cartunista Ziraldo, o músico Antônio Nóbrega, o
sociólogo Gilberto Freyre, o escritor Paulo Coelho ou o rapper Gabriel, o
pensador. Entretanto, são sempre “vendidos”, postos na vitrine, tendo a
estética moderna como parâmetro, uma vez que o enfoque da “chamada” na
capa é sempre o trabalho com a linguagem, com a língua: “O moderno
carnaval da linguagem. Antônio Nóbrega lança Cd e show em que pesquisa a
62
influência da palavra no frevo e diz que só manifestações populares são
capazes de tirar o pó da cultura brasileira” (LP, nº 15, 2007); na edição nº16, de
2007: “Poesia da fala urbana. Premiado com um jabuti em literatura infantil,
Gabriel O pensador descreve os malabarismos do próximo CD para adaptar
sua linguagem de rapper às crianças”; na edição nº 25 de 2007: “Gilberto
Freyre. Exposição no museu da língua Portuguesa revela a importância da
linguagem de um dos maiores estudiosos da cultura e da sociedade brasileira;
na edição nº10 de 2006: “Afinal, ele escreve bem? O que torna o texto de
Paulo Coelho estimado, enquanto outros do mesmo gênero caem na vala
comum? Os segredos retóricos de um autor popular que quer prestígio
intelectual”. Assim, a reiteração da relação entre o fazer literário pautado no
culto à forma e à língua, presente nas “chamadas”, é um índice que denuncia
parte do sistema inconsciente de juízos de valor.
A abordagem da literatura enquanto língua é uma política do periódico.
No editorial publicado na revista Língua Portuguesa nº 18, 2007, o editor-chefe
Luiz Costa Pereira Júnior afirma:
Em literatura, dizia Manuel Bandeira, a poesia está nas
palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimento,
embora seja a força do sentimento ou a tensão do espírito que
promovem determinadas combinações de palavras “onde há
carga de poesia”. A poética cultural – não apenas a literária –
se instaura quando toda explicação sobre uma obra deve ser
buscada nela mesma, sem necessidade de interpretações fora
dos seus limites. (LP, nº 18, 2007, p. 5)
Portanto, o caráter autotélico, o estudo imanente é defendido como
princípio editorial pela revista, uma vez que esta se propõe a realizar o que o
editor-chefe chamou de poética cultural. Essa abordagem não ocorre só em
relação à literatura, mas a todos os produtos culturais, como no caso dos
quadrinhos. Afinal, “sua existência talvez passe longe da vista, mas sua riqueza
de possibilidade já tem sua tradição, não só em nosso idioma. É uma
estruturação de signos a ser testada por poetas, professores e estudantes de
português” (nº 18, 2007, p. 5). Logo, o aspecto formal é um pressuposto básico
no momento de valoração de uma obra pela revista, sendo aplicada
independente do suporte ou do projeto estético do artista.
63
Como dito anteriormente, a abordagem da literatura em seu aspecto
formal, na revista, não se restringe ao discurso sobre a escrita do autor. Um
exemplo de análise imanentista encontra-se na edição nº 23, de 2007, cuja
matéria de capa é Carlos Drummond de Andrade. Nela reproduz-se uma
análise do poema Áporo19, de autoria desse poeta, feita originalmente por
Décio Pignatari em Contracomunicação, livro publicado em 1971. Eis a
interpretação de Pignatari:
Múltiplos sentidos.
No poema, as marcações em negrito mostram as aliterações
(repetições de som) de consoantes fricativas, a acentuar a
ideia de um inseto sendo formado; as marcações sublinhadas
mostram uma trilha de consoantes oclusivas, que fortalecem a
sinonímia da palavra-título com a orquídea. Com isso,
Drummond materializou o percurso de sentido do inseto e o da
orquídea que convivem na palavra áporo. (LP, nº 23, 2007, p.
49)
Nessa análise, ocorre uma aplicação do método formal, produzido na
área da linguística, ao estudo da literatura, orientado pelo estruturalismo, muito
em voga nos anos 1970. Dessa maneira, preocupa-se com as estruturas da
linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer. Tal possibilidade de
produção de sentido ficaria a cargo da análise externa do “conteúdo literário”,
podendo haver, em tal perspectiva, a possibilidade e a tendência de se recorrer
à sociologia e à psicologia, por exemplo. Na análise do poema, encontra-se o
uso de jargões técnicos do campo da linguística – consoantes fricativas e
consoantes oclusivas –, produzidos por um ramo específico da linguística: a
fonética. Esta estuda os fatos físicos que caracterizam, linguisticamente, os
sons da fala humana (CAGLIARI, 2002). Portanto, a análise do poema fica
restrita a constatações técnicas baseadas no uso dos conceitos elaborados na
área dos estudos de língua.
Ademais, essas constatações técnicas, como afirmam Rallo (2005) e
Todorov (2007), devem ocorrer em função de um sentido. Para a autora, há um
19
Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape./ Que fazer,
exausto,/ em país bloqueado,/ enlace de noite/ raiz e minério?/ Eis que o labirinto/(oh razão,
mistério)/ presto se desata:/Em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se.
64
salto metodológico e lógico entre a interpretação e a descrição formal. Esta, por
mais objetiva, precisa e neutra que seja não diz nada enquanto não se coloca
em jogo uma interpretação global do texto em questão, o que não ocorre na
análise imanentista veiculada na revista, pois deixa o texto engessado e
separado da vida.
No comentário do poema Áporo, afirma-se que as possibilidades de
significado para a palavra áporo servem de pretexto para compor um “poema
de grande riqueza” (nº 23, 2007, p. 49). Nesse caso, o conteúdo do poema é
apenas uma motivação da forma, uma ocasião para um determinado exercício
formal.
Em A literatura em perigo (2007), Todorov afirma que esse tipo de
análise reduz a literatura ao absurdo, posto que, ao invés de analisar uma obra
sobre diversos métodos, estuda várias obras sob o mesmo método, no caso, o
formal. Esse foco analítico em aspectos formais do texto artístico legitima o
conceito de literatura como uso peculiar da língua, uma vez que os
pressupostos pelos quais se analisa uma obra cria uma hierarquia. Esquecese, assim, que o sentido da obra é mais importante que o método, pois este
tem que ajudar naquele. Além disso, o leitor lê as “obras literárias na procura
de encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o
mundo, para neles descobrir uma beleza que enriqueça a sua existência; ao
fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo” (TODOROV, 2007, p.33). E não
como um exercício formal que demonstra a destreza da construção engenhosa
do autor.
A representação da literatura reduzida à língua não permite que os
leitores da revista tenham uma visão amplificada das possibilidades de ser da
literatura, assim como não a percebe como forma de conhecimento. Ignoram,
assim, o que Roland Barthes postula:
A literatura assume muitos saberes. Num romance como
Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social
(colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da
natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo
ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser
expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que
devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no
monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a
65
literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais
ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela
é realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso
verdadeiramente enciclopédico, a literatura faz girar saberes,
não fixa, não fetichiza, nenhum deles; ela lhes dá um lugar
indireto, e esse indireto é precioso. (BARTHES, 2007, p. 17-18)
Portanto, o autor defende a ideia de que a literatura possui, não só um,
mas muitos saberes, tendo assim relação com o mundo exterior à obra, com o
mundo do leitor, algo que não é representado na revista Língua Portuguesa
que, presa a uma concepção restrita de língua, perde de vista a sua dimensão
transgressora.
66
3. COMPONDO NA LÍNGUA UM RETRATO DO AUTOR.
O autor possui um lugar privilegiado na Língua Portuguesa. Sua imagem
é utilizada como vitrine, um mecanismo de sedução do público-alvo. Sendo
assim, ocupa um lugar similar ao que ocupa na acepção moderna de literatura,
uma vez que esta é, entre outras coisas, os grandes escritores (COMPAGNON,
2006). Na revista Língua Portuguesa o escritor ganha vulto na seção Figura da
linguagem, espaço em que ocorrem as entrevistas, lugar onde o sujeito da
escrita literária enuncia o eu.
A promoção da imagem pública do homem de letras inicia-se no século
XIX com a institucionalização da literatura. Nesse período histórico, também se
inicia a produção de ritos de autenticação como entrevistas, encontros com
escritores, na busca por difundir a República das Letras através da imprensa,
das academias, dos concursos e das correspondências literárias, marcando
assim uma centralidade no homem de letras, naquele que escreveu uma obra
literária.
Nessa divulgação encontra-se, inclusive, o interesse pela vida ordinária
do autor. “Como é seu dia-a-dia?” (LP, nº9, 2006, p. 13), “você foi ao Rio, para
ficar, com 20 anos. Teve resistência da família?” (LP, nº5, 2006, p. 13), são
perguntas recorrentes nas entrevistas produzidas na Língua Portuguesa. Tais
indagações visam conceber o escritor como reles mortal para logo em seguida
provar a singularidade da vocação, isto é, na mesma entrevista mostra-se o
lado prosaico da vida do escritor e o processo criativo que demarca a sua
diferenciação em relação aos outros seres da mesma espécie. Tal segregação
é perceptível em questionamentos como “se com você passam enganos,
imagine com quem atua no sufoco da imprensa.” (LP, nº5, 2006, p. 15) e
“algumas de suas construções de seus textos são incomuns. Sua busca da
forma ideal exige esforço ou é natural?” ( LP, nº9, 2006, p. 14). Roland Barthes
(2001), no texto O escritor em férias, defende que essa abordagem não busca
desmistificar o escritor, mas o contrário. “Sem dúvida que participar, através de
confidências, da vida cotidiana de uma raça selecionada pelo gênio pode
parecer comovente e mesmo lisonjeiro para o simples leitor” (2001, p. 25), mas
esses fatos sociais, cotidianos, não esclarecem a natureza da inspiração “mas,
67
muito pelo contrário, é a singularidade mítica de sua condição que o escritor
acusa nessas confidências” (BARTHES, 2001, p. 25). Desse modo, a Língua
Portuguesa, através de questionamentos sobre a vida corriqueira em
contraposição ao processo de escrita, reitera e promove a sacralização do
trabalho do escritor.
O consumo da vida do autor também estaria intimamente ligado ao
modo como a literatura e as artes são veiculados pela indústria cultural, isto é,
para Nestor Canclini (2003) o tratamento dado pelos meios de comunicação de
massa às obras artísticas possui algumas características como a substituição
da obra pela vida do artista. Tal situação induz uma parte do público a um
prazer que consiste mais no consumo da imagem pública que na fruição e no
prazer estético, produtos do contato direto com a obra. O artista, então, tornase uma celebridade individual.
Outra característica dessa relação diz respeito à ideia de originalidade,
uma vez que na sociedade contemporânea a imitação tornou-se uma tática
válida na busca pela legitimação no mercado literário. Sobre essa questão
Canclini afirma:
Diante das imitações e competições, resta ao leitor o ritual das
dedicatórias e dos autógrafos que dão ‘autenticidade’ ao livro.
Em meio à venda proliferante que torna anônimo qualquer
leitor, essa relação “pessoal” com o escritor simula restaurar a
originalidade e a irrepetibilidade da obra e do leitor culto (2003,
p.109).
Nesse sentido, o discurso massivo transforma a história imediata em
espetáculo, leva ao palco a vida social, convertendo qualquer afirmação do
artista em um “show do enunciado”.
A centralidade do autor promovida pela Língua Portuguesa gera uma
narrativa biográfica que o concebe como um indivíduo de consciência plena,
aquele que tem a última palavra sobre a sua produção, remontando, assim, aos
velhos procedimentos da crítica biográfica tradicional. Segundo Evelina Hoisel
(2006), na história dessa perspectiva de análise das produções literárias, o foco
na figura do autor será percebido através de determinados aspectos:
68
[...] alguns procedimentos que sustentam o fetiche institucional
da biografia, como diálogos, entrevistas – importância da voz,
da palavra como ideal da presença viva – manifestações
institucionais, encontro com leitores, depoimentos através do
rádio. Como suas palavras, o corpo do escritor, ou melhor,
suas máscaras, costumes, são objeto de reprodução
selecionada, retocada, difundida. As descrições biográficas
salientam a importância dos cenários e paisagens que têm
ligação com aspectos da produção literária. A imagem e a vida
do autor tornam-se, assim, meios para promover seus livros e a
condição mesma para a explicação de seu texto. O sentido da
obra está fora da sua linguagem, é anterior e exterior à sua
estrutura. (HOISEL, 2006, p. 36-37)
A revista Língua Portuguesa endossa essa figuração do autor,
naturalizando
o
que
é
uma
forma
de
encenação,
respondendo
e
correspondendo, desse modo, a uma representação social, particularmente a
do imaginário social fortemente letrado da cultural ocidental. Trata-se de
representações partilhadas socialmente, forjadas e cristalizadas no campo
instituído da literatura, no qual se construiu a figura do autor, e que foram
sendo internalizadas pelos sujeitos que comungam os mesmos valores
culturais e sociais. Ao tratar de mediações culturais, pontuando questões sobre
a relação do escritor de gêneros massivos ou “gêneros de autor” com o
mercado editorial, Jesús Martín-Barbero (1997) traz uma informação que
confirma os processos de representação social da figura do autor. Na história
do gênero folhetim, em seu início, para “a maior parte do público do folhetim, o
autor importava tão pouco que ‘as pessoas achavam que eram os
entregadores [dos folhetins] que escreviam os romances” (p. 127).
Segundo Serge Moscovici (2003), as representações sociais são formas
de conhecimento prático socialmente elaborado e compartilhado que
colaboram com a construção de uma realidade comum. Portanto, orientam a
comunicação e compreensão do mundo em que vivemos. As representações
se manifestam como elementos cognitivos – conceitos, teorias, imagens,
categorias – e são entendidos a partir do seu contexto de produção, isto é,
levando em consideração as funções ideológicas e simbólicas a que servem e
das formas de comunicação em que circulam.
Moscovici estudou as formas de representação da psicanálise pelos
parisienses e procurou compreender como conhecimentos plurais contribuem
69
para reforçar a identidade dos grupos, influenciando as suas práticas, pois é
em função das representações que se movem as coletividades e os
indivíduos.20 A representação de um objeto não se reduz a sua reprodução,
pois na construção da representação o novo é remodelado a algo familiar, logo,
o objeto é modificado. O novo passa a ser o conhecido, confirmando ideias,
crenças, enquanto o desconhecido produz desconforto. Portanto, o ato de reapresentação é um mecanismo pelo qual se transforma o distante em algo
próximo e palpável.
Aqui se fazem necessárias duas considerações. A primeira diz respeito à
relação indivíduo e sociedade. Essa relação é baseada no equilíbrio, em um
caráter integrador entre os elementos, isto é, situa o indivíduo no processo
histórico ao tempo em que este é dotado de subjetividade. Sendo assim, foge
ao determinismo social e ao voluntarismo puro que vê o sujeito como possuidor
de uma liberdade absoluta. A segunda consideração diz respeito a essa
subjetividade que, ao ser posta como parte da representação, abre espaço
para a questão do afeto, ou seja, as representações não são apenas
cognitivas, mas carregam questões emotivas.
Para Moscovici (2003), as representações sociais possuem duas
funções.
A
primeira
é
a
de
convencionalizar
pessoas,
objetos
ou
acontecimentos (com os quais interage) que encontram, conferindo-lhe uma
forma definitiva, acabada, localizando-os em uma determinada categoria e
paulatinamente colocam-nos como modelo de determinado tipo, distinto e
partilhado por um grupo. A sua segunda função refere-se ao seu caráter
prescritivo, impõe-se sobre o indivíduo, tendo em vista que, antes de
nascermos, já existe uma estrutura presente, uma tradição que decreta o que
deve ser pensado.
20
Segundo Robert Farr (1995), a teoria das Representações Sociais é uma forma sociológica
da psicologia social e foi concebida originalmente por Serge Moscovici em La psychanalyse:
son image et son public- etude sur la representation sociale de la psychanalyse, publicado em
1961. A noção de representação social proposta por Moscovici é originária do conceito de
representação coletiva de Émile Durkheim. Nesta, o sociólogo francês enfatiza a primazia e a
especificidade do pensamento social sobre o individual, sendo que a representação coletiva
não resulta da soma das representações individuais que compõem uma sociedade. Vale
ressaltar que Moscovici (2003) não trabalha seguindo estritamente o conceito proposto por
Durkheim, tendo em vista que, para o autor romeno, este é estático e possui excessos de
formas intelectuais, ou seja, quase tudo é considerado representação, qualquer emoção, ideia,
crença presente na sociedade. Em contraposição, Moscovici defende a ideia de que as
representações sociais devem ser estudadas como formas de conhecimento prático, cotidiano,
que orientam o comportamento e possibilitam a comunicação.
70
Sendo
assim,
apesar
das
representações
serem
partilhadas
socialmente, penetrem e influenciem a mente de cada indivíduo, são repensadas, re-presentadas.
Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas
as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo
as descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas
e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma
reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um
conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação
presente. (MOSCOVICI, 2003, p. 37)
Vale ressaltar que, apesar de serem ideias, as representações sociais
possuem autonomia, exercem pressões e assumem uma posição de realidade
inquestionável a serem confrontadas.
Apresentado o conceito de Representações Sociais, faz-se necessário
observar o processo que as gera: a ancoragem e a objetivação (Moscovici,
2003). A ancoragem é o processo de classificar, de nomear alguma coisa,
ancorando ideias novas, reduzindo-as a categorias e imagens comuns,
procurando inseri-las em um contexto habitual. Na perspectiva de Moscovici,
essas ideias novas, além de estranhas, são ameaçadoras.
Já o processo de objetivação torna algo abstrato em quase concreto;
une o não familiar à realidade; transforma o que está na mente em algo
material, isto é, que exista no mundo físico, que seja tangível. Esse processo é
responsável pela cristalização de uma representação e constitui-se em três
etapas: a descontextualização da informação pelos critérios culturais e
normativos; a produção de uma estrutura que reproduz de maneira figurada
uma estrutura conceitual e, por fim, a naturalização que transforma as imagens
em elementos da realidade.
Em relação a uma representação social sobre o autor, já alcançado esse
processo de objetivação, tem-se na contemporaneidade novas formas de
manter a sua naturalização, e a revista Língua Portuguesa contribui para tal
processo ao criar espaço exclusivo para a figura do autor, particularmente na
seção Figuras da Linguagem, reservada a entrevistas com escritores da
literatura brasileira.
71
Na busca por compreender o gênero entrevista, no processo
contemporâneo de constituição de subjetividades, Leonor Arfuch (2010) recorre
aos estudos de Mikhail Bakhtin sobre os gêneros discursivos21. Partindo desse
dispositivo teórico, a autora afirma que a entrevista “é um gênero discursivo
secundário, complexo, mas cuja dinâmica intersubjetiva, em diversos
contextos, opera com certa semelhança em relação à conversa, ou seja, aos
gêneros primários” (ARFUCH, 2010, p. 160). Vale lembrar que, embora se trate
de uma instância de competências compartilhadas pelos interlocutores, a
indagação será exercida pelo entrevistador, que está habilitado, no contexto,
para exercer tal ato. Essa irreversibilidade das posições enunciativas, ao que
diz respeito o direito de perguntar, pressupõe uma distinção normativa das
posições. Tal estrutura comunicativa, junto com a padronização temática e de
procedimentos, torna a entrevista um gênero extremamente ritualizado, apesar
de ser edificado sobre valores como espontaneidade e fluidez.
Na entrevista midiática, a interrogação adquire mais um contorno, pois é
constitutiva da função social da imprensa o interrogar, o questionar, o inquirir.
Portanto, não só é autorizado, como se é obrigado a perguntar. No caso da
revista Língua Portuguesa, o entrevistador é a voz do periódico, na medida em
que o editor-chefe, Luiz Pereira Jr., é o responsável por conduzir o jogo
dialógico. Além desse binômio entrevistador/entrevistado, inclui-se, mesmo que
imaginariamente, um terceiro no diálogo, no caso, o público-alvo. Será para
esse destinatário que se construirá a figura do herói ou heroína.
No contexto atual, a entrevista, defende Leonor Arfuch (2010), concentra
várias funções e valores biográficos, pode se tornar, concomitantemente,
autobiografia, testemunho, biografia, confissão e história de vida. Como é
ancorada na palavra dita, traz uma sensação de “retrato fiel”, na medida em
que é atestada pela voz, no caso da Língua Portuguesa, do autor. Nesse
sentido, a entrevista faz o caminho inverso da autobiografia, isto é, vai do
público ao universo privado, uma vez que o sujeito que enuncia o eu já
21
Segundo Bakhtin, os gêneros discursivos são formas relativamente estáveis de enunciados
produzidos nas esferas da atividade humana de acordo com o contexto específico dessas
atividades; sendo assim, são sócio-historicamente determinadas. Portanto, cada esfera da
atividade humana produz seus próprios gêneros. Os gêneros são divididos em primários:
produzidos nas situações corriqueiras da comunicação, sendo predominantemente orais; e os
gêneros secundários: mais presos a contextos comunicacionais mais específicos existindo um
predomínio da escrita. (BAKHTIN, 2003)
72
conquistou notoriedade por outros meios. Arfuch ainda considera a entrevista
como a mais moderna dentro da autobiografia consagrada, pois é a mais
recente
na
genealogia,
além
de
ser
contemporânea
da
modernidade/modernização.
Desse modo, afirma a autora, a entrevista está intimamente ligada ao
capitalismo, à lógica do mercado e da legitimação do espaço público através
das palavras autorizadas de figuras consagradas tanto do campo social, quanto
do político e artístico. Tais características proporcionam à entrevista ser peçachave da visibilidade democrática, assim como da uniformidade, visto que a
modelização de condutas é um dos fundamentos da ordem social.
No decorrer de sua existência, a entrevista foi deixando o efeito
proximidade e se transformando em efeito celebridade, ou seja, em ritual
obrigatório de consagração de todo tipo de figuras, não estando mais recluso
às grandes personalidades políticas, literárias, científicas. O efeito celebridade
torna manifesta a relação implicada entre lei de mercado e modelização como
desejo de identificação, em que pessoas investidas desse valor passam a obter
categoria de símbolo.
Mesmo não sendo habitualmente considerado um texto canônico entre
os produzidos no gênero biográfico, a entrevista possui a característica de
educação, isto é, caminha “em direção a uma conclusão suscetível de ser
apropriada em termos de aprendizagem” (ARFUCH, 2010, p. 153). Vale
lembrar que no jogo dialético entre entrevistado e entrevistador, o sujeito que
enuncia o eu contribuirá, mesmo sem se propor a tal tarefa, para o acervo
comum.
Enquanto gênero biográfico a entrevista possui traços específicos: a
ilusão do pertencimento; imediaticidade do sujeito em sua corporeidade,
mesmo havendo a distância da palavra gráfica; a vibração de uma réplica
marcada pela afetividade; o acesso à vivência, mesmo quando o assunto não é
a vida. Em se tratando da Língua Portuguesa, a marca da corporeidade é a
fotografia do entrevistado. Ela está na capa, no sumário, no cabeçalho da
entrevista. Não é só o autor que fala, ele se presentifica na imagem, está in
loco.
Essa valoração da presença pretende restituir, segundo Arfuch, o
aurático, o original. Isso posto, assistimos ao acontecimento do sujeito que
73
enuncia o eu, mesmo sem acreditar no que ele afirma, pois esse dizer está
para além do querer dizer. Nesse sentido, a vida é narrada como um
personagem. Portanto, a série de entrevistas feitas para a capa da revista
Língua Portuguesa apresenta várias identidades e posições sujeito e, dessa
maneira, possibilidades existenciais, modelos de autor. Dentro desse mosaico,
percebe-se a recorrência de certos assuntos, temas peculiares ao gênero
biográfico, a exemplo de a vida como caminho, como trajetória. Tal assunto
pode ser observado na pergunta feita ao poeta Ferreira Gullar: “Você começou
estudando gramática. É preciso isso para escrever bem?” (LP, nº 5, 2006, p.
11); e na indagação feita pela revista ao escritor e cartunista Ziraldo: “o que
mudou de quando escrevia para crianças de quatro décadas atrás em relação
às da era do game?” (LP, nº 6, 2006, p. 14).
Outro tema recorrente é o da vida como viagem temporal e suas
estações obrigatórias (infância, juventude, maturidade e morte), o que se pode
notar em alguns exemplos, como na pergunta feita a Ferreira Gullar: “Quando
garoto, você não ganhou a nota máxima numa redação porque a professora
anotou dois erros. Quais?” (LP, nº 5, 2006, p. 11); e na resposta dada pelo
escritor Carlos Heitor Cony sobre a questão da finitude do ser: “Temo a morte
por causa do ritual, caixão, cremação, enterro, o lado teatral da morte. Não por
causa do processo, da fatalidade biológica. Temo sofrer confusão mental,
perder a lucidez. Meu patrimônio é minha lucidez (LP, nº 16, 2007, p. 14).
A vida como herança familiar, outro assunto característico do gênero
biográfico, também percorre de forma insistente as narrativas, exercendo a
posição institucional, como na apresentação do escritor João Ubaldo Ribeiro
feita pela revista.
O pai tratava com severidade. Ainda na infância, o obrigava a ler e
copiar sermões do Padre Vieira. Mesmo assim, adora Vieira e o
Padre Manuel Bernandes. As exigências paternas não prejudicaram
o gosto pela leitura. Leu tudo quanto podia na biblioteca, que se
alastrava pela casa, serpentando até pela cozinha e o banheiro. No
começo da adolescência, já havia lido os clássicos mundiais. (LP, nº
9, 2006, p. 11).
74
E atuando na posição do sujeito que dramatiza e narra a sua história
como no caso do escritor Ariano Suassuna ao responder à indagação acerca
da chegada dos livros à sua vida.
Veja, meu pai era um grande leitor, bem como meus irmãos mais
velhos. Enquanto eu, minha mãe e minhas duas irmãs ficávamos no
sertão (fazenda Achaun, em Sousa, Paraíba), meus irmãos moravam
no Recife. Quando passavam férias sempre me levavam livros.
Nessa época, ganhei de presente de minha mãe as obras de
Monteiro Lobato. (LP, nº 21, 2007, p. 16).
Nesse jogo dialógico entre entrevistado e entrevistador, vai se tecendo a
trama entre a vida do autor e sua obra e se edificando um modelo no qual o
entrevistado é posto como símbolo de um fazer literário e defensor do idioma.
E nesse falar sobre os livros, as questões da autoria se articulam, com ênfase
na vida pessoal. Por isso, de forma geral, nas entrevistas
pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu
nome; pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o sentido
oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida
pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu
nascer. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção
suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real.
(FOUCAULT, 1996, p. 27-28)
Esse prestar contas, esse decifrar o universo da ficção via voz do autor
pode ser observado ao longo das entrevistas produzidas pela Língua
Portuguesa, como no caso abaixo:
LP – As personagens de Benjamim têm nomes estranhíssimos:
Catana Beatriz, Benjamim Zambraia, Ariela Mazé, Zorza, Grango,
Alejandro Sgaratti, Dr. Camposceleste, Catagalo, Geovan, Gâmblo.
São apelidos de jogadores do time do seu time, o Politheama?
Chico Buarque – Não, são nomes e sobrenomes reais, do meu time
do botão. (LP, nº 8, 2006, p. 17)
Ao não se contentar com a resposta irônica oferecida pelo entrevistado,
a voz institucional volta a indagar sobre a relação vida e criação, buscando
sempre a relação vida/obra.
75
LP - Por que Budapeste, cidade que você não conhecia? Não
pensou numa cidade fictícia para ambientar a história?
Chico Buarque – Por causa da língua, que eu conhecia um pouco,
umas 20 palavras e um time de futebol. Cheguei a escrever sobre um
país imaginário, com uma língua inventada. Inventei umas palavras,
mas não dava certo, a coisa não andava. Então me lembrei das
palavras húngaras. (LP, nº 8, 2006, p. 17)
Percebe-se a tentativa, por parte do entrevistador, de relacionar a obra,
o fazer literário à vida factual do escritor. No caso da entrevista com Chico
Buarque, como se o escritor, para escrever uma narrativa ambientada em uma
cidade, tivesse que a ter vivido. Nesse caso, o que seriam dos romances
históricos?
Percebem-se, então, pressupostos e valores da crítica tradicional,
forjados no século XIX, na abordagem da literatura pela Língua Portuguesa,
por marcar uma centralidade no autor. Nas páginas da revista, os autores são a
imagem central do fazer literário, o que endossa o prestígio pessoal do
indivíduo, passando o escritor a ter uma autoridade e valor verificados não só
nas entrevistas como nos manuais de história literária, os quais são muito
utilizados por parte do público-alvo da revista, os professores da educação
básica. É importante notar que a tríade entrevistador-entrevistado-destinatário
compartilham, segundo Arfuch, dos mesmos valores. Dessa forma, o
entrevistador elabora a pergunta, tendo em vista aquilo que ele imagina que
seria de interesse do seu público-alvo.
Esse indagar sobre a existência, sobre a vida, não é aleatório. A
entrevista, segundo Arfuch, opera uma seleção hierárquica de seus
entrevistados, cobrindo todas as posições de autoridade da sociedade, de
modo que não só produz a visibilidade dessas posições como o seu reforço,
pois as confirma, conferindo-lhes, assim, uma legitimidade. E na medida em
que tais posições são materializadas por sujeitos, que as adquiriram por virtude
ou mérito, as narrativas oferecidas à leitura se transformam em modelizadoras.
Não é a toa que toda entrevista da Língua Portuguesa se inicia com uma
narrativa que informa os prêmios e os méritos dos seus entrevistados,
legitimando-os a ocuparem aquele espaço. Portanto, não é a revista que cria
os pressupostos pelos quais é erigida a hierarquia no campo da literatura, mas
76
apenas a reforça e a reproduz, ao dar voz e visibilidade aos autores que
ocupam a posição de autoridade no fazer literário.
Vale considerar que o modelo de escritor re-encenado pela revista é
baseado na estética moderna, isto é, o artífice tem consciência do objeto do
seu trabalho, no caso, o idioma, valorizando-o e promovendo-o. Esses
pressupostos podem ser encontrados ao longo das entrevistas no indagar feito
pela voz institucional sobre a estrutura narrativa ou nas falas do autor, em que
o entrevistador aborda um determinado aspecto do idioma. Nesse caso, o
escritor não só é um promovedor da língua como seu defensor.
LP– Como deu valor à força da língua portuguesa?
Ariano Suassuna – Quando era jovem, muita gente me dizia que o
português não era língua forte, ao contrário do inglês. Eu precisava
muito da musicalidade da língua, até porque queria escrever teatro.
Precisava de uma língua com ritmo e plástica musical porque o teatro
precisa disso. Acontece que comecei a ler autores estrangeiros. O
meu inglês é fraco, dá para a revista Time, mas Shakespeare, não.
Então, li em inglês Otelo com a ajuda de cópia traduzida. Em dado
momento, Otelo cheio de cólera, diz: “Blood, blood, blood”. Quando
olhei a tradução, “Sangue, sangue, sangue...”, eu disse: é, o
português é mais fraco. Mas, veja, era um erro meu de interpretação.
O original tinha sido escrito por um grande poeta. Se fosse brasileiro,
não poria “sangue”, mas uma palavra que tivesse a mesma força que
senti com o inglês dele. Fiquei na dúvida até ler Vieira: Sermão da
Quarta-Feira de Cinzas (1670). Ali percebi o português como grande
língua. Eu até poderia ser mau dramaturgo, porque era ruim mesmo,
mas não por causa da língua. (LP, nº 21, 2007, p. 17).
No trecho acima, constata-se um traço comum nas entrevistas: a relação
entre a obra e a vida do escritor, particularmente, da relação entre o objeto pelo
qual a obra será construída e a vida do sujeito que a fabricará. As perguntas
acerca do modo pelo qual o idioma entrou na vida do autor são comuns,
reiterando sempre o papel de defensor e divulgador do idioma que o escritor
tem. “O que acha da incorporação de estrangeirismos por nossa língua?” (LP,
nº 20, 2007, p. 14); “O que representa uma obra ser feita originalmente em
português e não em outra língua”? (LP, nº 3, 2005, p. 19).
Diferente de Arfuch, que aborda a biografia como uma tipologia, um
gênero, Evelina Hoisel (2006) considera que a biografia e o drama são marcas
da escritura literária. Essa perspectiva parte da concepção de linguagem como
cenário, no qual diferentes forças deixam a sua marca e onde podem ser
77
apreendidas, lidas na inscrição dos seus traços. A biografia, portanto, não é um
gênero historiográfico, assim como o drama não é uma tipologia de formas
literárias, mas forças que atuam, que acionam a produção dos signos na cena
da escritura, onde o sujeito se representa. Dessa forma, a escritura literária é,
por excelência, biográfica, vida grafada e expressa dramaticamente na
linguagem.
Sendo assim, antes de se constituir como gênero historiográfico ou
tipologia literária, a “biografia é marca indissociável, está presente na cena da
escritura onde o sujeito se dramatiza, e cuja a dramatização é apreendida no
palco da própria linguagem, no espaço do livro” (HOISEL, 2006, p. 11). Isso
posto, há um vínculo indissociável entre produtor e sua produção,
independente de ser essa uma obra artística ou científica. A escritura
biográfica, portanto, independe de um conteúdo anterior, prévio, exterior à
materialidade textual, que descortina a vida do seu produtor, uma vez que não
há sentido fora dos signos, não há referente que, para ser representado, não
passe pela linguagem e não seja forjado pela textura sígnica, em que se marca
uma ideologia, uma ética, uma biografia, entre outras.
A relação entre a obra e o autor é mais complexa que a simples projeção
do eu, ela está no próprio texto, nas pausas, na pontuação, no ritmo, na
escolha de cada palavra ou uso de uma estrutura sintática. Está no estilo. “É
através do estilo, suplemento da origem impossível de ser resgatada na sua
referencialidade, que o escritor assinala sua presença, esboça o seu gosto,
contorna e delineia sua face no claro-escuro dos signos, no preto e branco da
página.” (HOISEL, 2006, p. 14). Vale ressaltar que a escritura biográfica, tal
como conceitua Hoisel, situa-se no nível das potencialidades não realizadas da
história do sujeito, enquanto a biografia, entendida como gênero historiográfico,
apreende apenas uma parte da história do indivíduo, sendo que essa parcela é
um fragmento de uma história mais ampla e não aparente.
No entanto, esse caráter biográfico da escritura literária, na revista, é
centrado no escritor e não nas marcas existentes no texto. É o escritor, figura
centrípeta na Língua Portuguesa, que descortina as marcas.
LP – Graciliano Ramos dizia que escrever era sofrido, e é preciso
torcer, retorcer e enxugar palavras como as lavadeiras dos rios...
78
Ariano Suassuna – Para ele deveria ser mesmo, porque era muito
conciso; eu não sou. Sou prolixo, falastrão, mas volto muito ao texto.
Eu não diria retorcer, mas gosto de esculpir. Procuro sempre a
expressão, não a sobriedade. Procuro usar palavras que sejam
necessárias para expressar uma paixão. Sou um escritor
apaixonado, não sou frio, não. Preciso, inclusive, de adjetivos. Já vi
muita gente elogiando Graciliano porque não usa adjetivos, e
reclamando de mim. Uso sim. Um dos mestres que mais admiro no
Brasil, Euclides da Cunha, usava muito. A linhagem de Machado de
Assis tem certo preconceito com adjetivo, e Graciliano era dessa
linhagem. Sou da outra, da de Euclides da Cunha. (LP, nº 21, 2007,
p. 18)
Percebe-se no trecho acima que a poética contida nos textos literários é
revelada pelo produtor, pelo escritor. Ariano Suassuna apreende o seu estilo,
sua biografia dentro de uma genealogia nacional da escritura literária. É o
próprio autor que insere a sua obra na história da literatura nacional, em uma
tradição, recompondo o sistema de raízes. Portanto, apesar do estilo não
deixar de ser uma marca da estrutura sígnica, ela passa a ser apreendida pelo
olhar do produtor, reiterando, assim, o lugar privilegiado que o escritor tem
sobre a obra. Nesse caso, na Língua Portuguesa, a entrevista como gênero
biográfico não canônico não difere muito da biografia como marca, pelo menos
no que diz respeito à abordagem. É sempre a voz do produtor que ora afirma a
relação entre vida e obra, ora a vida grafada no texto. Dessa maneira, a
entrevista torna-se meio para promover seus livros e plataforma para explicar
seu texto, seu estilo, como se o sentido da obra e as marcas estilísticas
estivessem fora da linguagem, sendo exterior e anterior à sua estrutura.
Essa forma de compreender o autor e a literatura tem sua base na crítica
tradicional, cuja explicação da obra se encontra no lado de quem produz.
Antoine Compagnon (2006) compreende que a relação entre autor e texto pode
ser dividida em duas correntes: a antiga (a história literária) e a moderna (nova
crítica22). A antiga relacionava o sentido com a intenção do autor e circulava na
filologia, no positivismo e no historicismo. A ideia moderna, propagada pelo
formalismo russo, pelo new criticism e pelo estruturalismo francês, critica a
relação entre intenção autoral e sentido da obra. Sendo assim, enquanto a
22
Aqui compreendida, basicamente, como as propostas de Michel Foucault com o texto O que
é um autor?, lançado em 1969, e a de Roland Barthes com A morte do autor, publicado em
1968.
79
primeira corrente procura a explicação da obra no autor, a segunda procura no
texto uma explicação, independente da intenção do autor, buscando assim, a
independência dos estudos literários em relação à história e à psicologia.
A intenção do autor é critério pedagógico e tradicional para estabelecer o
sentido literário. A explicação do texto tem como fim essa intencionalidade. Se
a intenção reside no autor, afirma Compagnon, não há porque interpretar o
texto, já que seu sentido encontra-se exterior à estrutura textual. Logo, a crítica
literária é inútil. Além disso, a própria teoria literária torna-se desnecessária,
uma vez que o sentido é intencional, histórico, objetivo.
Essas duas correntes percorrem a revista de forma dicotômica, mas com
a centralidade no autor. Na seção Técnica e Obra Aberta, “prevalece” a
metodologia anti-humanista das ciências do texto, enquanto na Figuras da
Linguagem o sujeito mantém monopólio sobre o texto. Vale ressaltar o fato de
que mesmo em seções onde teoricamente os métodos de análise textual, que
são usados também como base para as dicas de criação literária, seriam
dominantes, elas dialogam de alguma forma com a figura do autor e sua
relação com o texto. Enquanto na seção Figuras da Linguagem há um
predomínio do modelo romântico do autor/gênio, nas seções Técnicas e Obra
Aberta o autor é visto como modelo do gênio clássico.
A seção Obra Aberta, assim como Figuras da Linguagem, inicia com
uma breve narrativa biográfica, como se pode observar: “Nelson Rodrigues
(1912-1980) foi o mais importante dramaturgo brasileiro. Filho de jornalista,
desde cedo trabalhou na imprensa: começou aos 13 anos como repórter
policial” (LP, nº 8, 2006, p. 34). Ao longo da análise, a relação entre autor e
texto é incessantemente reiterada: “com elegância, Nelson Rodrigues junta
duas conjunções sinônimas na frase”; “como no registro oral, Nelson Rodrigues
sempre que pode traz o tempo do verbo para o presente”; e o mais sintomático:
“O tom do cronista é o de uma conversa, na qual os leitores estivessem como
que cara a cara diante do autor” (p. 34-35).
Na edição nº 16, 2007, ao analisar o poema Pasárgada do modernista
Manuel Bandeira, lê-se o seguinte: “Manuel Bandeira não teve filhos; a
“inconsequência” de sua aventura na vida se transfere a outro lugar, onde pode
haver uma nora” (p. 35). Nesse caso, o eu-lírico, sujeito da enunciação, é
reduzido ao eu biográfico de história factual, onde o sujeito psicológico se
80
transfere, como a análise diz, para o poema. Vale lembrar que não se está
negando aqui a possibilidade do poema autobiográfico, o que se questiona é a
utilização da vida do autor como base para a interpretação, pois dessa maneira
reitera-se a primazia do sujeito empírico em relação aos sentidos possíveis do
texto. Logo, o autor torna-se centro da literatura e de qualquer tentativa de
compreensão da obra literária.
Há outro ponto a se destacar nessa análise proposta pela Língua
Portuguesa. Na apresentação do texto, espaço em que geralmente ocorre a
narrativa biográfica na seção Obra Aberta, encontra-se o poema reduzido a
uma análise puramente textual, de tal forma que toda a sua compreensão é
possível apenas pelo aspecto sonoro: “A clareza sonora de vou-me embora
para Pasárgada apresenta o conteúdo do poema de modo imediato, que toda
interpretação parece supérflua” (p. 34). Nesse caso, o exemplo assinala uma
característica dessa seção: a coexistência das duas correntes. Em uma mesma
crítica busca-se a análise pautada na vida do autor e a que exclui o sujeito, isto
é, o único meio para a interpretação é o texto. Essa coexistência imiscível é
bem demarcada, uma vez que, ao se referir ao autor, usa-se o seu nome civil,
enquanto que, ao referir-se ao sujeito da enunciação, busca-se o vocábulo
ligado à atividade da escrita: poeta ou escritor.
Essa aparente harmonia não-tensiva, mesmo sendo teorias opostas e
excludentes tanto em relação aos pressupostos teóricos utilizados e aos
conceitos propostos quanto em relação aos objetivos, só é possível pois a
representação social, segundo Serge Moscovici (2003), remodela o objeto
representado em algo familiar, confirmando ideias, crenças.
A crítica tradicional deixa de ser hegemônica nos estudos literários a
partir das teorias pós-estruturalistas da segunda metade do século XX. Entre
os principais escritos dessa crítica está A morte do autor, de Roland Barthes.
Nesse texto o autor denuncia a corrente tradicional, prisioneira do princípio de
causalidade que postula a explicação da obra na origem – autor, contexto
histórico etc.
O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias
de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência
dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário intimo, a
sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos
81
encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na
sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a
crítica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra
de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, que a de Van
Gogh é a sua loucura, a de Tchaikowski o seu vício: a explicação da
obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se,
através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse
sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos
entregasse a sua “confidência”. (BARTHES, 1987, p. 49-50)
Dessa forma, A morte do autor busca deslocar o sujeito criador, que é
visto pela crítica tradicional e pela revista Língua Portuguesa como o indivíduo
que precede a obra e a produz de acordo com seus anseios, desejos e
intenções. Barthes, no desenrolar do ensaio, vai distinguir o autor – ser que
alimenta o livro, pois o antecede – do scriptor – aquele que surge ao mesmo
tempo que o seu texto; estando indissociável do texto, nem precederia ou
excederia a sua escrita. (BARTHES, 1987).
O scriptor, nesse caso, seria um articulador de escritas, uma vez que se
concebe o texto, na contemporaneidade, como espaço capaz de contemplar
escritas variadas e múltiplas. Sobre essa questão Barthes afirma:
um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que
entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em
contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne,
e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o
leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se
perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um
texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino
já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem
biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos
num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.
(BARTHES, 1987, p. 53)
Sendo assim, para Barthes a morte do autor resultará no nascimento do
leitor. Vale lembrar que nas entrevistas a relação autor-texto é indagada,
explicitada pelo entrevistador e entrevistado, o que não ocorre na relação textoleitor. Essa força centrípeta, que é o autor na revista Língua Portuguesa,
promove a exclusão da demanda da literatura, o leitor. Repete-se, então, mais
uma característica da estrutura dos manuais de história literária.
Tal apagamento causa estranheza na medida em que a revista, tendo
como objetivo descortinar aspectos do idioma, desconsidera o papel do leitor
82
na produção de sentido e significado da obra. Segundo Hoisel, “o espaço da
escritura é um espaço agônico, onde o escritor e o leitor se encontram na
aventura conflituosa de experimentar os limites da linguagem”. (HOISEL, 2006,
p. 15). No entanto, a presença soberana da voz autoral na revista Língua
Portuguesa não permite ao leitor participar do jogo do texto.
Sobre a relação entre texto e leitor é de fundamental importância a
contribuição de Wolfgang Iser (1996). Segundo o autor, os textos são
compostos por espaços vazios que serão preenchidos pelo leitor mediante a
projeção. No entanto, ao acionar apenas as projeções, independente do texto,
o leitor fracassará na interação. A comunicação só galgará êxito se o texto
sujeitar o leitor a uma mudança de suas representações projetivas comuns.
Voltando para a relação autor e texto, uma pergunta se faz necessária: o
que vem a ser o autor? O autor, segundo Roland Barthes (1987), é uma
personagem moderna erigida pelo racionalismo francês e pelo empirismo
inglês. No positivismo inicia-se a tirania do autor, isto é, a crítica positivista
utilizará mecanismos autobiográficos e biográficos através dos quais institui a
voz autoral como uma consciência absoluta, plena, a única capaz de revelar o
“real” e “verdadeiro” sentido do texto. Nesse caso, pressupõe-se uma
transparência entre o sentido que o autor declara como tendo sido a sua
intenção e aquilo que se inscreve no signo literário.
Para Michel Foucault (2002), a noção do autor representa o momento
essencial da individualização na história das ideias, das literaturas, dos
conhecimentos. Mesmo quando se elabora a história de um conceito, de um
gênero literário, essas elaborações estão em segundo plano em relação à
primeira unidade, que é o autor e a obra. Nesse sentido, os textos começaram
a ter autores na medida em que os discursos se tornaram transgressores e,
com isso, passíveis de punições. Na antiguidade clássica, por exemplo, os
textos, que hoje estão reunidos sob o nome de literatura, circulavam e eram
valorizados sem se questionar quem os tinha escrito, quem eram os seus
autores. A sua autenticidade ocorria pela sua antiguidade. A
noção de autor constitui o momento crucial da individualização
na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, e
também na história da filosofia, e das ciências. Mesmo hoje,
quando se faz a história de um conceito, de um gênero literário
83
ou de um tipo de filosofia, acredito que não se deixa de
considerar tais unidades como escansões relativamente fracas,
secundárias e sobrepostas em relação à primeira unidade,
sólida e fundamental que é a do autor e da obra. (FOUCAULT,
2002, p. 267).
Para o filósofo, a função-autor, dispensada nos discursos científicos por
estes possuírem um sistema que lhes confere legitimidade, se mantém viva
nos discursos literários. Vale ressaltar que tal função não existe simplesmente
da relação entre o texto e o sujeito criador, mas se constitui como uma
“característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de
alguns discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2002, p. 246). Ou
seja, indica o modo pelo qual o discurso deve ser recebido, assim como
confere certo estatuto dentro de determinada cultura. Portanto, o que faz de um
sujeito autor é o fato de, por meio do seu nome, caracterizarmos, delimitarmos
e recortamos os textos que lhe são atribuídos.
Sendo assim, a utilização da figura do autor em capa das revistas – aqui
compreendido também o nome do escritor que é estampado na capa em letras
cujo tamanho só é menor do que o título da revista – promove no leitor uma
antecipação de possíveis temas e obras que a edição irá abordar, assim como
se utiliza do estatuto do escritor na sociedade – aqui se percebe uma ideia de
literatura vinculada a “grandes escritores”, – na sociedade para alavancar as
vendas e seduzir o público alvo.
Aqui se faz necessário um breve histórico da construção da figura do
artista no ocidente. Na Idade Média, por exemplo, não se conhecia o conceito
de personalidade artística, nem os conceitos que se relacionam a ele, como
individualidade, criação artística, genialidade, originalidade. Nesse período
histórico, a função do artista consistia em copiar, em imitar – de uma maneira
eternamente condenada à imperfeição – a beleza divina. Portanto, como seu
trabalho não consistia em criar, mas em imitar, as obras medievais eram
frequentemente anônimas. Só no fim da Idade Média a criação artística
começa a se subjetivizar. A fonte, a origem da forma artística desloca-se do
objeto criado para o sujeito criador. Entretanto, esse subjetivismo desenvolvido
ao longo do Renascimento não deve ser confundido com sua forma moderna,
haja vista que na renascença
84
o artista aprecia o seu trabalho, é consciente de que outro a
não saberia fazer melhor, nem mesmo tão bem como ele a fez;
tem ciúmes dos seus rivais, etc. Resumindo, tem consciência
da força que a sua personalidade representa. (MUKAROVSKY,
1997, p. 276)
Mas não pensa a sua obra como produto da sua personalidade, das
suas disposições e características. A obra para o artista deste período é um
produto da vontade consciente e da habilidade. Sendo assim, o valor da obra
não está na expressão da personalidade do criador, mas na captação da
ordem e constituição da natureza, não tem ligação com o gosto pessoal. Antes,
é uma apreciação objetivamente verificável: a imitação, a representação.
A mudança radical, segundo o teórico tcheco Jan Mukarovsky, ocorre no
romantismo, que culmina na noção de gênio original: “O gênio não é já uma
personalidade que cria mediante uma vontade consciente, orientada para a
realidade exterior, que descobre e transforma. O gênio é a espontaneidade
criadora”. (MUKAROVSKY, 1997, p. 276-277). A
obra
surge
de
maneira
inesperada, como expressão autêntica da personalidade do autor, como cópia
da sua constituição psíquica. Portanto, o objeto criado nasce não porque o
artista quer, mas algo misterioso dentro de si se impõe e o leva a criar.
Para Pedro Süssekind (2008), há duas concepções de gênio elaboradas
pela tradição artística no ocidente. A primeira – modelo classicista – está
associada ao domínio de uma técnica apurada, uma obra sem erros, muito
equilibrada e alcançada através do árduo trabalho. O talento, apesar de ser
considerado um dom natural, era visto muito mais como uma capacidade
mecânica que leva à perfeição pela obediência às regras da arte. A segunda,
produzida no romantismo, defende a espontaneidade na criação e a liberdade,
assim como a transgressão das regras em nome da intensidade do efeito
causado pelas obras de arte.
Essa concepção romântica do gênio, inicialmente elaborada no primeiro
romantismo alemão, opõe a liberdade do poeta ao aprisionamento imposto
pelas normas tradicionais da criação artística. Possibilita à noção de gênio
associar-se à ideia de originalidade, de singularidade e não mais de engenho,
do domínio de uma técnica apurada.
Na revista Língua Portuguesa, as duas maneiras de conceber o gênio,
abordadas anteriormente, estão intimamente ligadas aos modelos de autor
85
construídos pela revista. Vale ressaltar que os dois modelos de genialidade
coexistem, mas não tal como foram concebidos no seu contexto histórico de
produção. O gênio clássico geralmente aparece quando o foco são as obras
literárias, o texto, ou o estilo de um autor, o romântico, nas matérias sobre o
escritor. Sendo assim, o modelo clássico surge vinculado à estrutura textual; é
sustentado como uma questão técnica. Assim, se se seguir os mestres – que
ganharam esse status por dominarem uma técnica –, um indivíduo pode se
tornar um escritor competente. Quando o enfoque é o autor, esse é
representado pela aura do gênio romântico, que não se curva perante as
regras preestabelecidas, é possuidor de uma singularidade, de uma
originalidade.
A valorização do domínio da técnica de escrita pode ser observada na
seção dedicada exclusivamente a ela – Técnica. Na revista Língua Portuguesa,
número 13 de 2006, a seção em questão, escrita por Geraldo Galvão Ferraz,
trata da técnica do suspense, isto é, como “criar clima para manter o público
atento a uma história” (LP, nº13, 2006, p. 44). Na matéria há afirmações como:
“autores mais competentes sabem a medida exata do que oferecem, capítulo
após capítulo, para o leitor” (LP, nº13, 2006, p. 46). Isso nos leva a constatar
que a criação, nesse caso, está vinculada à competência, ao domínio da exata
medida e não a uma capacidade inerente, que flui e que se impõe como uma
força criadora. Afinal, um gênio tal como é concebido pelo romantismo não
necessita de regras ou técnica, o talento basta. Essa exata medida pode ser
vista e aprendida com os escritores que dominam a técnica, no caso da matéria
aqui analisada, com a escritora inglesa Agatha Christie.
É clássico o caso do livro de Agatha Christie O Assassinato de
Roger Ackroyd, em que o suspense é levado até o último
parágrafo. É verdade que se trata de uma desonestidade da
chamada Rainha do Crime para com a curiosidade do leitor,
pois ela omite uma informação essencial, mas se trata de um
policial exemplar, apesar disso. (LP, nº13, 2006, p. 46)
Pode-se questionar o fato de que a escritora é citada exatamente por ser
a que proporciona regra à arte, nos dizeres de Kant, ou que a técnica proposta
na matéria não é suficiente para classificar uma obra como genial. Entretanto,
observa-se que, ao longo do texto, as noções de singularidade, de
86
originalidade, não aparecem. No caso da escritora inglesa, a noção de cânone
é empregada no sentido clássico, uma vez que o “cânone clássico eram obras
modelos destinadas a serem imitadas de maneira fecunda” (COMPAGNON,
2006, p.33,). Portanto, a autora é apresentada como modelo a ser seguido em
termos de técnica, o que se pode depreender no último parágrafo do texto:
“Nada complicado, mas tremendamente eficaz (...). Siga o mestre...” (nº 13,
2006, p.46).
Soma-se a esse fato o emprego, na matéria, de palavras que remetem à
razão – “exata”, “saber”, “competência”, “eficaz” – em oposição ao ideal do
gênio original mergulhado no caos criativo, voltado para dentro de si. Nesse
caso, o artista é convidado a se voltar para o texto e ao que se propõe a fazer
do texto. O uso da conjunção adversativa “apesar disso”, no comentário ao
romance O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, demarca uma
crítica ao rompimento das regras do gênero suspense propostas na matéria. O
romance é visto como exemplar, porém com a ressalva de que a escritora se
excedeu, levou ao limite o suspense, não buscando o equilíbrio tão importante
e laureado nos manuais estéticos do classicismo francês e do Renascimento
italiano. O que seria valorado como algo essencial à grandiosidade do texto
literário, conforme a estética moderna, singularidade perante as outras obras
do mesmo gênero, é visto como algo negativo, que não se deve almejar. Nesse
caso, o efeito é menos importante que o equilíbrio.
O modelo clássico de genialidade e de escrita se apresenta também na
seção Técnica da edição de número 23, ano de 2007. Aconselha-se o contato
com os escritores renomados, tidos como autoridade no gênero, que dominam
a técnica da construção de uma narrativa de ficção científica, de modo que o
novo escritor, ou postulante a, possa compreender as engrenagens desse tipo
de ficção. O título desse trecho da matéria reitera tal aspecto: A busca de
referências.
Um bom conselho para se escrever ficção científica é ler
bastante. Se você for do tipo que se liga em ciência, é bom ler
autores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert Heinlein.
Eles, muitas vezes, se dedicavam mais à especulação
científica do que à ficção. Mas seus livros, por mais
esquemáticos que sejam em termos literários, não deixam de
ser interessantes e muito esclarecedores para novos autores.
87
Já Ray Bradbury, Ursula K. Leguin, J. G. Ballard e Phillip k.
Dick são mais criativos do que preocupados em estabelecer
sólidas regras científicas para suas invenções. (LP, nº 23,
2007, p. 37)
Sendo assim, novamente a figura do autor é relacionada ao indivíduo
que domina uma técnica apurada, o conhecedor do engenho textual literário.
A matéria segue a prescrever as etapas de construção, uma orientação
típica do caráter normativo das poéticas clássicas. Há regras para a construção
de um ET ou mesmo para produzir o choque pelo estranhamento. Aqui poderse-ia pensar em dica. Entretanto, como visto na análise do trecho da revista
Língua Portuguesa que discute O Assassinato de Roger Ackroyd, os autores
que vão além das “dicas” são questionados, mesmo na situação de autormodelo, pois não a seguiram. Mas o ponto que chama a atenção, por tentar
mostrar como escrever sem necessitar da tão falada inspiração, segue abaixo:
Ter ideias para escrever um texto de ficção científica é
praticamente o mesmo processo de qualquer peça de ficção.
Não se precisa ter um ponto de partida complexo ou profundo.
Pode ser, por exemplo, um personagem que surge dentro da
cabeça, um cenário, uma noção científica. Um bom auxiliar é
fazer a pergunta “e se?” (LP, nº 23, 2007, p. 36).
Ainda:
Outra fonte de boas histórias de ficção científica são velhas
histórias recontadas, desde contos infantis a obras de outros
gêneros literários. Podem ser usados até mesmo textos de
não-ficção, que dão ideias a partir de explicações científicas
que possam ser extrapoladas. Ou as fontes que deem
compreensão geral da ciência. (LP, nº 23, 2007, p. 36).
Percebe-se nas citações acima que a inspiração não se encontra ligada
à força subjetiva interior ou à imaginação, brotando quando menos se espera,
mas que o texto, ou a ideia primeira, surge de uma busca no mundo exterior,
até de forma mecânica, como um trabalho de busca intelectual e preconcebido.
Na seção Técnica da revista nº 26 de 2007, a crítica contra a ideia de
inspiração é mais visível. Na matéria intitulada Caminhos até a poesia afirmase, em seu subtítulo, que, “como a prosa, poema trata de qualquer tema e não
88
depende de inspiração (p. 52)”. Esse tom permanece no corpo da matéria. No
primeiro parágrafo, a visão romântica acerca do poeta é atacada:
com a cabeça nas nuvens, descabelado, mulherengo,
tuberculoso, o poeta herda, até hoje, a imagem estereotipada
que vem do romantismo, mostrando-o como um ser de
exceção, que é guiado por algo tão impalpável quanto a
inspiração. Mas, na verdade, o poeta é um escritor como outro
qualquer e escrever poesia não é privilégio de ETs, de
ninguém. (LP, nº 26 de 2007, p. 53)
A seção Técnica tem como característica primordial a prescrição,
cumprindo, muitas vezes, o papel de manual de criação, em que qualquer
indivíduo interessado na arte literária poderá compreender os mecanismos
pelos quais os textos são produzidos e vir a se tornar escritor. Dessa forma, a
seção valoriza um modelo de autor pautado na relação, consciência do signo e
domínio da linguagem. Tal modelo não se encontra enclausurado na seção
Técnica. Faz-se presente em algumas entrevistas com escritores, como
pudemos observar, uma vez que o modelo central de escritor, proposto pela
revista, reside exatamente na consciência do signo como estrutura da sua arte,
em que se concebe o ato de escrever como uma construção engenhosa.
Entretanto, é necessário chamar a atenção para o fato de que esse
modelo clássico de genialidade não é representado em Língua Portuguesa tal
como foi concebido em seu contexto original. Isso ocorre, entre outras coisas,
porque a representação de um objeto, segundo Moscovici (2003), não se reduz
à sua reprodução. Na sua elaboração, o novo é remodelado a algo familiar,
portanto, o objeto é modificado.
O objeto representado, nesse caso, o modelo clássico e sua concepção
de gênio e escrita, é assentado em parâmetros de uma poética normativa,
baseada na autoridade dos escritores da Antiguidade para classificar os
gêneros artísticos e, por conseguinte, definir o que era adequado a cada tipo
de composição literária. A representação veiculada na revista substitui os
escritores da Antiguidade pelos modernos, mas o parâmetro normativo se
mantém, inclusive esses autores são, como já se destacou, alçados à posição
de autoridades que prescreverão as normas de cada tipo de composição.
Dessa forma, o objeto é remodelado a algo familiar, nesse caso, ao formalismo,
89
ao autotelismo hegemônico nos estudos literários a partir do século XX. Sendo
assim, a ênfase nos aspectos técnicos, estruturais da criação visa inserir a
ideia clássica de escritor e criação a uma estética moderna que supervaloriza a
estrutura textual.
Já o gênio original, como foi afirmado anteriormente, percorre as páginas
da revista mais entrelaçado na figura do autor. A estrutura do texto, as regras
do tecer literário deixam de ser o foco. A inspiração, a singularidade, a
originalidade tornam-se valores importantes. Aqui, a ideia embrionária de uma
obra não nasce de uma busca externa, consciente, o escritor a possui
internamente, latente em seu ser. A inspiração é subjetiva, como se pode
observar no trecho da entrevista concedida pelo escritor José Saramago à
Língua Portuguesa.
Revista: Ítalo Calvino disse certa vez que compunha livros a
partir da sugestão de uma única cena. Os seus lhe ocorrem de
maneira similar?
Saramago: Os meus romances nascem de uma ideia, quase
sempre súbita, repentina, algumas vezes traz já o título
consigo, outras não. (LP, nº3, 2005, p. 18)
Na indagação feita, não fica explícita uma suposta origem da inspiração,
pois o entrevistador não esclarece como surge a sugestão da qual parte
Calvino para escrever seus romances. Essa ausência de posicionamento do
periódico em relação à inspiração tende a deixar o entrevistado mais livre,
buscando a opinião do autor sobre determinado assunto. No entanto, o
entrevistado demarca sua opinião sobre a inspiração ao afirmar que a ideia
nasce de forma súbita, repentina. Essa forma de pensar o processo criativo do
qual fala e adere o escritor português José Saramago tem sua origem na
concepção de gênio proposta pelos pré-românticos alemães e sistematizada
por Immanuel Kant em Crítica da Faculdade de Julgar, publicado originalmente
em 1790. Tal concepção é comentada por Mukarovski (1997): “A obra aparece
de repente, como a expressão autêntica da personalidade do autor, como
réplica material da sua constituição psíquica: é um processo tão espontâneo
como a formação de uma pérola”. (p. 277).
O artista não procura a natureza, mas encontra-a em si próprio; ele
próprio é a força natural e, portanto, a imagem da natureza, que fala a partir
90
dele, através de sua obra, que, por tais razões, é autêntica e não apenas um
testemunho dado pelos sentidos na sua representação mecânica. Por esse
entendimento, Kant afirma que
o gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. E como
o talento, como faculdade inata produtiva do artista, pertence à
natureza, poder-se-ia dizer que gênio é a disposição natural do
espírito (engenho) mediante a qual a natureza dá regra à arte.
(KANT, 2009, p. 157).
Portanto, as regras da arte não podem ser apreendidas intelectualmente.
A arte bela é expressa através do gênio original (KANT, 2009). Por isso, o
artista no Romantismo se sente singular e enxerga o isolamento como um
privilégio ou como uma maldição (MUKAROVSKI, 1997). Esta representação
social do artista circula até hoje em nossa sociedade, afinal, quem nunca ouviu
a frase: “ele pode. Ele é artista”?
Essa regra servirá de ajuizamento para as outras obras, pois, segundo
Kant, toda arte pressupõe parâmetros que precisam previamente ser
estabelecidos para que se possa qualificar um produto de artístico. Todavia, tal
regra não encontra fundamento em um conceito. A chamada arte bela não
pode inventar por si mesma a regra. Esta é dada pela natureza através do
gênio. Disso resultam, segundo o autor, alguns princípios como a “originalidade
precisa ser a qualidade primeira”; “essa obra servirá como cânon, como regra
para julgar”; “o gênio não pode escrever por si mesmo, nem indicar
cientificamente como obtém seu produto”; “mediante o gênio a natureza dá a
regra não para a ciência, mas para a arte” (KANT, 2009, p. 158).
No Renascimento, Leonardo da Vinci afirmava que se deve levar em
consideração a opinião de qualquer pessoa porque cada homem, mesmo sem
ser artista, conhece a natureza. É importante lembrar que nesse período
histórico, segundo Todorov (2007), as produções textuais que viriam a se
chamar literatura ainda se relacionavam com o mundo; eram vistas como
representação da natureza e não com o viés autotélico da estética moderna. Já
para o ideal romântico, o artista é artista exatamente porque vê a realidade de
maneira diferente das outras pessoas, à sua maneira, de forma original e
singular (MUKAROVSKI, 1997; TODOROV, 2007).
91
Na entrevista concedida a Língua Portuguesa, Saramago reitera essa
visão ao falar de seu processo criativo. Ao falar da escolha do tema do
romance Intermitências da morte, o romancista declara: “O livro veio de uma
ideia súbita, dessas que passam logo.” (LP, nº 3, 2005, p. 18). Também
Ferreira Gullar, em entrevista a essa revista comunga da mesma visão: “meus
poemas nascem do acaso, das circunstâncias da vida. São impulsos,
impressões” (LP, nº 5, 2006 p.12). É importante destacar que, apesar de toda a
relação apontada pela revista entre autor e obra, há momentos em que essa
implicação é suspensa e criticada. Um desses poucos momentos ocorre na
noção de gênio romântico veiculada na revista. Nesse sentido, Língua
Portuguesa não compartilha daquilo que Mukarovski chama de estética
psicologista e tem como premissa a espontaneidade criadora. Os defensores
dessa estética concebem a personalidade e a obra como fenômenos paralelos
e acreditam que, ao examinarem os processos psíquicos que deram origem à
obra, examinam a própria arte.
Com o tempo, a estética psicológica foi substituída pela estética
objetivista, que declara que a relação entre personalidade do artista e a sua
obra tem muitas matrizes e é indireta. Não se trata de uma relação direta,
espontânea (MUKAROVSKI, 1997). Na introdução à matéria de capa, com o
poeta Vinícius de Moraes (LP nº 26 de 2007), há uma crítica explícita à estética
psicológica: “Ícone da literatura brasileira e da bossa nova – estilo que em 2008
completa 50 anos –, Vinícius de Moraes nunca reduziu a poesia ao ideal
romântico de fazer do verso uma extensão do poeta”. (LP, nº 26, 2007, p. 38)
A matéria em questão traz uma leitura interpretativa da poesia de
Vinicius de Moraes e tem por foco a biografia como marca e o trabalho com as
questões estruturais da sua poesia, especificamente, a reinvenção da língua e
o jogo entre luz e sombra trabalhado nas metáforas criadas por esse poeta.
Entretanto, a ideia de singularidade e originalidade ainda permeia a matéria, o
que sai de cena nesse caso é a estética psicológica.
Ainda sobre a estética psicologista, Mukarovski afirma que a tese
romântica da espontaneidade criadora do artista está ultrapassada, pois, ao
criar, o autor considera o receptor, e esse compreende a produção artística
como uma manifestação e não uma expressão do autor. Sentimos a obra de
arte como feita, intencional. Tal intencionalidade – consciente ou não –
92
pressupõe o homem; o sujeito do qual surge o produto artístico. Esse sujeito,
portanto, é o próprio princípio da unidade da obra, uma vez que escolhe o
tema, a concepção, foco, nomes etc. Sendo assim, o sujeito que escreve é ao
mesmo tempo autor e receptor, e a obra é um signo produzido pela
intencionalidade, não podendo, dessa maneira, a criação ser compreendida
como espontânea, na visão de Saramago, ou a expressão da personalidade do
artista, segundo os românticos.
A noção de gênio original, mesmo sem a estética psicologista, mas com
os seus valores de singularidade e originalidade veiculada em Língua
Portuguesa, desencadeiam e sustentam uma visão de arte elitista baseada na
segregação, na arte para poucos, no dom natural. Portanto, o conhecimento
artístico torna-se privilégio de poucos, operando por uma lógica cíclica, em que
o capital cultural se desloca para o si próprio, ou melhor, produz-se uma lógica
em que os produtos artísticos, sua apreciação, fruição e posse são
naturalizados e universalizados como criação da elite cultural e a ela se
destinam (BOURDIEU, 1994).
Para compreender melhor esse processo, é de considerável importância
a contribuição do estudo de Pierre Bourdieu sobre a gênese e a estrutura do
campo literário. Ao analisar a constituição do campo artístico e literário, o autor
explica em As regras da arte (1994) que a autonomia do campo da arte iniciase quando declinava a dependência do patronato e ascendia as fortunas dos
novos dominantes, industriais que agora conseguiam lucros nunca antes visto,
apoiado no Estado e nas novas técnicas.
Com suas ligações estreitas entre os mundos políticos e econômicos, as
elites se apoderavam progressivamente da imprensa, cada vez mais
consumida e cada vez mais lucrativa. Assim nascia um novo diálogo entre o
campo artístico e literário e o campo de poder, em que “há uma verdadeira
subordinação estrutural”, de acordo com Bourdieu, que se impunha de maneira
muito desigual aos diferentes autores, segundo sua posição no campo,
mediada ora pelo mercado ora por ligações duradouras que, por intermédio dos
salões, unem parte dos escritores e artistas a certas frações da alta sociedade
e contribuíam para orientar as generosidades do mecenato de Estado, através
da censura, das pensões, cargos, postos e distinções honoríficas, enquanto
outras instâncias de sagração, como academias, universidades, não surgiam.
93
Considerando a discussão em torno do campo artístico proposta por
Bourdieu (1994), pode-se afirmar que a ideia de gênio como produtor subjetivo
de regra e cânon a ser imitado perde a aura que lhe era dada, pois a posição
ocupada por ele é conseqüência da luta concorrencial entre os autores que
disputam status, poder, legitimidade em uma determinada área permeada por
estratégias e regras pré-estabelecidas. Portanto, a manutenção dessa noção
(artista como gênio criador) da acepção moderna de literatura propicia a
manutenção de uma aura da atividade artística, proporcionando uma
sacralização e uma segregação entre os gênios e os “meros mortais”.
Os românticos, como já vimos, pensaram o autor de maneira que a
instância responsável pela gênese absoluta da obra, isto é, a produção do
texto, tem como origem absoluta o sujeito criador. Tal visão justifica para o
leitor a estética da expressão do eu autoral. O leitor não vai encontrar uma obra
qualquer, mas uma obra assinada, produzida por um espírito puro, como diria
Immanuel Kant. Todavia, percebendo que, segundo Mukarovsky (1997), “cada
vez se compreende melhor que o conteúdo da consciência individual é dado,
até a sua maior profundidade, pelos conteúdos da consciência coletiva”, é
inviável ao artista, como queria Schlegel, criar uma obra de arte do nada, ser a
origem absoluta da obra, pois a consciência individual está ligada à consciência
coletiva. À visão de Mukarovsky pode-se acrescentar o conceito de dialogismo
proposto por Mikhail Bakhtin.
Segundo Bakhtin/Volochinov (2002), toda compreensão de um texto
implica uma responsividade e, por conseguinte, um juízo de valor, uma vez que
o leitor concorda, discorda, total ou parcialmente, completa ou traduz. Toda
compreensão é carregada de resposta. Porém, cabe aqui falar sobre a
enunciação, conceito essencial na antropologia filosófica desse pensador
russo. A enunciação é o resultado da interação entre dois indivíduos
organizados socialmente, não existe fora de um contexto sócio-ideológico, em
que cada locutor tem um local social bem definido, situacional; em outros
termos, histórico (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002).
O princípio constitutivo do enunciado é o dialogismo, entendido como um
modo de funcionamento real da linguagem. Em um enunciado, convivem pelo
menos duas vozes, e por isso, revela as duas posições: a do eu e aquela em
oposição à qual ele se constrói. Sempre em um enunciado há um contrato com
94
uma das vozes da polêmica, possibilitando dessa maneira a percepção de que
lugar fala o enunciador.
Quando enunciamos, esperamos uma atitude responsiva, do mesmo
modo que, quando somos o interlocutor em uma enunciação, somos levados a
uma réplica. Sendo assim,
a verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua. (BAKHTIN, 2002, p. 123).
O autor afirma a noção de dialogismo como princípio fundador da
linguagem: toda linguagem é dialógica, isto é, todo enunciado é sempre um
enunciado de um locutor para seu interlocutor. Logo, toda linguagem é fruto de
um acontecimento social-histórico-ideológico. Outro sentido que se configura
para o dialogismo é que um texto sempre responde a outro texto ou internaliza
vozes de outro discurso.
A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a
usam. É precisamente essa comunicação dialógica que
constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda
linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (linguagem
cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está
impregnada de relações dialógicas (BAKHTIN, 2002, p. 183).
A subjetividade, aspecto importante do dialogismo, é construída pelo
conjunto de relações sociais de que participa o sujeito. Não estando
meramente submisso às estruturas sociais nem autônomo em relação à
sociedade, este sujeito é um indivíduo histórico, social e ideológico, constituído
pela linguagem, pelo outro.
Considerando essa concepção de subjetividade proposta por Bakhtin, a
ideia de autor como origem absoluta da obra de arte, proposta por Kant, perde
a validade, posto que o sujeito constitui-se discursivamente, apreendendo as
vozes sociais da realidade em que ele está imerso. Se o sujeito é
constitutivamente dialógico, isto é, existe na relação eu/outro, que é o princípio
geral do agir, como poderia haver um sujeito que seria a origem única e em si
95
mesmo da obra? Como poderia o gênio ser produto de um dom natural, se o
sujeito está sempre em relação com o outro, se é através do outro que recebe
um nome e descobre o nome das coisas?
Considerando essas categorias conceituais propostas por Bakhtin, a
ideia de gênio produzida pela modernidade estética não encontra sustentação,
uma vez que é a consciência do autor – um sujeito constituído pelo dialogismo
– que abarca e dá acabamento ao personagem e seu mundo, e não o dom
individual e divino.
Ao adotar uma noção de gênio produzida e justificada pelo modelo
epistemológico moderno, que formatou o campo de produção erudita, a revista
Língua Portuguesa ignora a pluralidade de linguagens, como a dos quadrinhos,
da música, da literatura oral, em que a voz autoral, uma noção de gênio, é
minimizada ou inexistente. Cai por terra ainda a ideia de originalidade, que
sustenta noções como ruptura, gênio, vanguarda, vê-se abalada quando
confrontada com o conceito de dialogismo de Bakhtin (2002), pois um texto
sempre responde a outro texto, o que o impossibilita de ter uma única voz, que
seria para Kant a origem absoluta da obra bela.
A concepção de dialogismo de Bakhtin permite observar a construção da
subjetividade e compreender que o ser humano é inacabado e incompleto,
demonstrando o caratér dialógico, social, histórico e ideológico do sujeito.
Sendo assim, pode-se perceber que essa concepção não sustenta uma visão
essencialista do homem, nem a do gênio criador, uma vez que o sujeito é
constituído pelo outro, na relação com a alteridade, tal como texto sempre
responde a outro texto ou internaliza vozes de outro discurso.
A concepção de campo de Bourdieu possibilita entender que os grandes
escritores, os gênios, não se encontram no topo do cânon por sua capacidade
divina de produzir a arte bela, mas por, de algum modo, corresponderem à
lógica do campo artístico, não havendo nada de sobrenatural, e sim uma luta
pela legitimidade, pelo poder. Tal poder é reiterado em Língua Portuguesa, na
medida em que, com a pretensão de ser um instrumento de capacitação do
profissional de Letras e um divulgador da língua, silencia quanto às possíveis
discussões sobre as representações da literatura, inclusive as representações
que ela própria produz.
96
4. FECHANDO AS PÁGINAS DA REVISTA
Nesta dissertação, procedemos a um percurso de análise que
sustentasse as discussões acerca das figurações da literatura na revista
Língua Portuguesa. Inserimos esse periódico no jornalismo cultural por
entender que a língua, o idioma – recorte temático dessa revista –, é um
aspecto da cultura, tal como observam Rivera (2003) e Piza (2003). Dessa
forma, a revista analisada foi caracterizada como pertencente ao jornalismo
cultural, portanto, possuidor de certas características, como a presença de
especialistas nas redações, um tratamento mais crítico e menos informativo em
relação ao que se publica, embora não se possa ignorar que a revista elege
alguns temas, abordando-os sem questionamentos, como verdades universais.
A revista Língua Portuguesa foi selecionada para este estudo no intuito
de entender modos de apropriação, disseminação e re-apresentação dos
conhecimentos elaborados nas universidades pelos meios de comunicação de
massa, mais especificamente, pelo jornalismo cultural. O interesse da revista
pelo conhecimento instituído revela o caráter ideológico que a publicação
possui, na medida em que tal discurso busca anular as diferenças, o novo, o
instituinte, em prol da universalização da imagem residente na classe
dominante. Essa relação de dominação se esconde na suposta neutralidade do
discurso científico. E a revista cumpre uma função disciplinadora ao pôr no
centro de sua argumentação a competência linguística como base para o
sucesso profissional e exercício da cidadania.
A abordagem da figuração da literatura na Língua Portuguesa se justifica
na medida em que se destaca o caráter ideológico e a função estratégica que o
jornalismo possui na sociedade atual. A saber, interfere nas nossas
representações sociais, em nossos valores, práticas e modos de existir. Nesse
sentido, ajuda a alargar as duas funções das representações sociais propostas
por Moscovici: convencionalizar os objetos, dando-lhes uma forma definitiva, ao
mesmo tempo em que as põem como modelos e prescrever, isto é, impõe seu
caráter prescritivo sobre o sujeito, uma vez que, ao nascermos, entramos em
contato com uma tradição que determina como devemos viver e pensar.
Sendo assim, a compreensão de quais figurações a Língua Portuguesa veicula
97
pode contribuir para um maior debate sobre a disseminação do conhecimento
instituinte e do caráter ideológico das abordagens tradicionais e dos conceitos
de literatura.
Ao analisarmos as figurações de literatura produzidas pela revista,
constatamos a reiteração dos métodos tradicionais de abordagem literária,
tendo como centro uma historiografia de base positivista (relação autor/obra) e
ao seu redor as análises imanentes do texto. Nesse sentido, a Língua
Portuguesa busca encaixar uma abordagem externa em uma interna, isto é,
mesmo quando a literatura emerge em seus aspectos estruturais a figura do
autor está presente de forma central.
A reflexão sobre as figurações foi construída a partir de cinco seções:
Figuras da Linguagem, Obra Aberta, Técnica, Frase e Versão Brasileira.
Inicialmente observamos e refletimos sobre as figurações não centrais, a saber,
a literatura como narrativa nacional das comunidades imaginadas e
observamos a manutenção de uma perspectiva tradicional da historiografia
literária, na medida em que a reiteração do cânone nacional traz consigo o
apagamento das identidades culturais e suas reinterpretações da identidade
nacional. Sendo assim, a revista exerce uma função sacralizante. Outra
figuração periférica produzida pela revista diz respeito ao tratamento da
linguagem, isto é, a literatura como arte da linguagem não-pragmática. A partir
dos métodos imanentistas utilizados pelo periódico para analisar textos
literários, pudemos compreender alguns aspectos do autotelismo veiculado.
Esse separa a vida da arte, ao focar nos aspectos estruturais da obra, assim
como não contempla outras possibilidades de escrita literária, excluindo dessa
forma as produções que não possuem o tratamento específico com a
linguagem como base estética.
Por fim, compreendemos que o autor é a figuração central da Língua
Portuguesa ao ser essa a voz que descortina os aspectos da literatura, o
sujeito que enuncia o eu e explica sua obra, assim como o fazer literário no
espaço central da revista, a entrevista. Concluímos que tal figuração, a
literatura como autor e obra, exclui do jogo do texto o leitor, uma vez que o
sentido do texto está do lado de quem produz, seja na sua voz, seja na sua
vida biográfica. Tal biografia, mesmo quando abordada como marca da
escritura literária, emerge via voz autoral. E dessa figuração central
98
depreendem-se dois modelos do fazer literário: o do gênio clássico, dialogando
diretamente com a literatura como forma de linguagem não-pragmática, e o do
gênio romântico. Percebe-se, dessa forma, uma operação metonímica, a
literatura é o autor e sua obra.
Dessa forma, a revista Língua Portuguesa, que se vende como uma
possibilidade de capacitação do professor, atua como inibidor de possíveis
mudanças no ensino e nas figurações de literatura, na medida em que reitera e
promove a representação social que a literatura possui no imaginário da cultura
ocidental.
99
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ANEXOS
Anexo 1
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Anexo 2
105
Anexo 3
106
Anexo 4.
107
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