JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Direitos autorais de José Carlos de Medeiros Pereira (e de Antônio Ruffino Netto em relação à seção 7, “Sobre tuberculose”). Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - Campus da USP - Ribeirão Preto, SP 364.444 Pereira, José Carlos de Medeiros P436m Medicina, saúde e sociedade / José Carlos de Medeiros Pereira. - Ribeirão Preto: Complexo Gráfico Villimpress, 2003. 1. 364.444 - Medicina Social. 2. Sociologia - Metodologia. I. Título. ÍNDICE PREFÁCIO .......................................................................... 5 1. SOBRE MEDICINA SOCIAL ........................................ 15 1.1. Medicina, saúde e sociedade ................................. 17 2. MEDICINA PREVENTIVA, SAÚDE PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS ............................................. 33 2.1. O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento .................................................... 35 2.2. Problema social e problema de saúde pública ... 41 3. SOBRE CONTRACEPÇÃO ............................................ 67 3.1. O direito de não ter filhos .................................. 69 3.2. Aspectos sociais da contracepção .................... 73 4. SOBRE METODOLOGIA .............................................. 97 4.1. Cientificismo “versus” ideologicismo .................... 99 4.2. O específico e o geral na ciência ........................ 104 5. SAÚDE E POLÍTICA CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E EDUCACIONAL ......................................................... 109 5.1.Sociedade e educação médica .............................. 111 5.2. Saúde e política nacional de ciência e tecnologia ........... 116 6. ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA ......................... 135 6.1. Sobre a tendência à especialização na Medicina ...... .137 7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antônio Ruffino Netto) .... 149 7.1. Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso Rio de Janeiro .................................... 151 7.2. Saúde – doença e sociedade; a tuberculose – o tuberculoso ..................................... 172 8. DOENÇA DE CHAGAS — RESENHA DE TESE ..... 183 8.1. A evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo ................................................................ 185 9. VÁRIOS ......................................................................... 189 9.1. A enfermidade como fenômeno social ................ 191 9.2. Sobre a etiologia social da saúde e da doença ........... 196 9.3. Ampliando o conceito de Medicina ..................... 200 9.4. Medicina além do biológico ................................. 204 9.5. Riqueza, poder e doença ..................................... 210 9.6. Urbanização, industrialização e saúde ................. 214 9.7. Fome e suprimento de alimentos ......................... 219 José Carlos de Medeiros Pereira 5 PREFÁCIO Durante o ano de 2001 resolvi rever o conjunto de artigos de vária espécie que havia produzido durante o período em que fui professor de Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Lendo-os e organizando-os, dei-me conta de que aqueles relacionados, de modo direto ou indireto à disciplina, ainda poderiam ser úteis. Talvez haja um pouco de vaidade intelectual em tal constatação, admito. Mas entendo que, apesar de escritos há muitos anos, alguns deles pelo menos, suscitam questões, propõem interpretações e indicam formas de abordagem que poderiam ser retomadas, corrigidas e enriquecidas por outros. Pensei em reescrever algumas partes. Mas lembrei-me de um conselho que meu falecido catedrático, o Professor Florestan Fernandes, dava aos seus auxiliares: uma vez pronto um trabalho intelectual, revisto e achado conforme no momento em que foi escrito, ele não deve ser retomado. No entender dele, a obra já teria cumprido sua função para o autor. Poderia, agora, auxiliar a outros que a lessem. Se o sujeito quisesse retormar o tema, que escrevesse outro trabalho, com base na literatura subseqüente e no entendimento que passara a ter do mesmo. Ora, aposentado, minhas leituras foram dirigidas a outros caminhos. Conseqüentemente, os acrescentamentos que fizesse resultariam apenas de um maior amadurecimento dado pelo tempo e por leituras não correlatas. Fiz, no entanto, pequenos ajustes. Não compartilho mais, inteiramente, de um ou outro ponto de vista exarado na época. Por isso, tomei a decisão de alterá-los, nesse caso. Em outros, minha visão se alterou, mas não a ponto de rejeitar integralmente o que foi 6 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE escrito. Peço aos leitores que, algumas vezes, levem em consideração o momento histórico, político e intelectual em que o artigo foi dado a lume. Os leitores devem ter em conta que o período que vai da renúncia de Jânio Quadros à eleição de Fernando Henrique Cardoso foi, em geral, desfavorável ao avanço das Ciências Sociais. Pessoalmente, no entanto, sempre considerei que a ciência deve fazer as menores concessões possíveis à ideologia. Em razão, porém, da enorme tensão mundial, esta última tornou-se por demais preponderante na produção científica na área. É óbvio que as posições ideológicas influenciam o trabalho intelectual no sentido de condicionar e mesmo determinar a escolha dos temas a serem pesquisados, as técnicas de investigação e, sobretudo, as interpretações. Se em condições normais, esses excessos tendem a ser circunscritos, em tempos de enorme politização da vida social, eles tendem, pelo contrário, a avultarem. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção, como profissional da área, foi a tendência generalizada, nessa época, à popularização, na academia, mas também em outros círculos, de um marxismo vulgar, mecanicista, sem mediações. Essa corrente de pensamento foi degradada à situação de um sistema ultrasimplificador da complexidade do mundo social, especialmente por pessoas sem nenhuma formação histórica e sociológica. A sofisticação do pensamento foi varrida muitas vezes. O princípio do sim/não, preto/branco, reacionário/progressista etc. etc. freqüentemente tomou o lugar de formas mais complexas de raciocínio. Entendo que não colaborei para que tal degradação ocorresse. Os leitores aquilatarão se mantive o nível de que estou acusando outros de terem rebaixado. De qualquer modo, noto, com satisfação, que esses tempos estão ficando para trás. Sem dúvida, o modo simplista de fazer ciência também permaneceu, é preciso que se diga. Muitas vezes, contra ele, é que se apelou, canhestramente, para o marxismo. Ou seja, buscam-se dados, nem sempre bem coletados, e procura-se, sem praticamente José Carlos de Medeiros Pereira 7 nenhum marco teórico, estabelecer alguma correlação entre eles. Como afirmo no artigo “Cientificismo ‘versus’ ideologicismo”, sem esse marco, que daria sentido às relações buscadas, o investigador pode ficar ao nível do observado, da aparência, não entendendo, na verdade, aquelas relações. Com freqüência, pressupõe uma causalidade inexistente na correlação observada, chegando a conclusões errôneas. Na Medicina Social notei muitas vezes esse erro. Para dar um exemplo banal e tosco: verifica-se a existência de uma correlação positiva entre número de médicos por habitantes e boas condições de saúde. Daí não se pode inferir, sem mais aquela, que médicos estão associados, causalmente, com boa saúde. Na maior parte dos casos a boa saúde também está associada, estatisticamente, à existência de maior número de automóveis, de telefones, de aparelhos de ar condicionado e assim por diante. Ou seja, de modo geral, o que ocorre, é que os médicos, como quaisquer outros profissionais, tendem, simplesmente, a se estabelecer naqueles lugares onde poderão ser melhor remunerados. Os leitores irão verificar que naqueles trabalhos que tratam mais especificamente da Medicina Social, procurei entender a saúde e a doença, assim como a assistência médica, como fenômeno social. Ou seja, buscando as determinações, sócio-econômicas principalmente, responsáveis pela manifestação da enfermidade e pelo modo como ela é enfrentada pela assistência médica. É que nessa disciplina não se trata de estudar a história natural da doença num indivíduo mas numa população, examinando-se os diferentes riscos a que estão expostos os vários grupos constituintes da sociedade e porquê. Importam mais as relações entre os homens do que entre eles e o meio natural. A Medicina não é vista como tendo completa autonomia frente à sociedade, mas encarada, ela própria, como sendo determinada e condicionada, em grande parte, pela estrutura econômica e social. Vai-se até mais além, em alguns artigos, examinando-se as relações da ciência, e sobretudo da tecnologia, com o poder. Como não podia deixar de acontecer, numa disciplina social, a historicidade das práticas e saberes que têm 8 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE como objetivo a prevenção e a cura da enfermidade também é discutida em alguns pontos. Recomendo àqueles que desejarem situar-se rapidamente frente às questões expostas, irem ao final do volume. Em três pequenos artigos jornalísticos (“A enfermidade como fenômeno social”, “Sobre a etiologia social da saúde e da doença” e “Ampliando o conceito de Medicina”), abordo-as de modo mais ou menos sumário. Os que queiram informar-se mais a respeito do assunto podem ler o primeiro dos artigos reunidos neste volume: “Medicina, saúde e sociedade”. Nele, aproveito contribuições tanto da Epidemiologia Social como da Sociologia da Saúde para expor como a Medicina Social explica os dois processos a que me referi acima (saúde-doença e assistência médica). Esclarece-se que a disciplina concebe a Medicina como uma ciência histórico-social, encarando os homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos, mas, sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas, membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes de relações sociais específicas. Insisto que se trata de realizar uma rotação de perspectivas, vendo e examinando o mesmo objeto de investigação de um ponto de vista substancialmente diferente. Ou seja, vê-se a enfermidade não só como fenômeno natural e portanto, técnico, mas também como fenômeno social e, conseqüentemente, como problema social, político e cultural. De fato, todos os homens participam de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Por isso é que a Medicina Social não toma a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. É essencial, para a disciplina, discutirem-se os determinantes extramédicos da assistência médica, que é o outro conjunto de fenômenos pelos quais ela se interessa. Vista como uma instituição social, as práticas sociais da Medicina claramente guiam-se, o mais das vezes, por outros critérios que não somente médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. José Carlos de Medeiros Pereira 9 Nos dois artigos seguintes discuto certos aspectos de disciplinas correlatas à Medicina Social: a Medicina Preventiva e a Saúde Pública. Em “O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento”, trato de uma vinculação, que cria existir, entre mudanças no entendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quais tinha ou estava passando o projeto orientador da Medicina Preventiva. Explico-me: a interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visão culturalista (teoria da modernização) para uma visão sobretudo de natureza política e econômica (teoria da dependência). No caso da Medicina Preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturais principalmente, para a da Medicina Social, em que a doença é relacionada à estrutura social global. O segundo artigo (“Problema social e problema de Saúde Pública”) procura mostrar relações de vária ordem entre os dois tipos de problemas. Nele discuto algumas questões comuns a ambos, como as dificuldades na definição do que seja problema. A quem compete a definição? Quais os vieses, sobretudo de natureza ideológica, que interferem nessa definição e, conseqüentemente, na proposta de soluções? Insisto em que o planejamento destas depende muito do modo como se encare o sistema social, político e econômico. Depois, da capacidade de profissionais da área em interessar um grupo social suficientemente poderoso para que encampe tais soluções ou até as integre em seu projeto de transformação social. Enfatizo o fato de que é praticamente impossível um consenso a respeito do assunto, já que os vários grupos sociais têm objetivos e valores não só diversos como contraditórios. Uma certa possibilidade de superação dessas dissensões político-ideológicas estaria, em meu entender, na necessidade de os diagnósticos e soluções se alicerçarem em modelos interpretativos teoricamente mais sofisticados. Insisto em que sem que isso se dê, as intervenções planejadas para corrigir o problema podem conduzir, elas próprias, a conseqüências negativas não previstas. 10 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE O tema da contracepção sempre me atraiu porque está intimamente relacionado ao de desenvolvimento ecônomico e social. Creio que praticamente todos os que se debruçaram sem vieses ideológicos (e principalmente religiosos) sobre ele, concordam que uma das principais causas da miséria do que era chamado Terceiro Mundo estava na procriação exagerada. Paternidade e maternidade irresponsáveis, infelizmente, eram (e ainda são) estimuladas, em muitos países subdesenvolvidos, por líderes políticos, religiosos e militares. Na verdade, estão eles entre os grandes culpados pelo seu atraso em vários e importantes níveis. Nenhum país pode crescer economicamente e se desenvolver social e culturalmente quando suas taxas de natalidade são demasiado altas. Os investimentos para se manter saudável, educar e profissionalizar uma pessoa de modo a torná-la capaz de viver produtiva e responsavelmente na sociedade moderna são muito elevados. Tais líderes parecem imaginar que se Deus não prouver, o Estado proverá. De onde tirará os recursos é coisa de somenos importância. É claro que só o controle da natalidade não basta. Tanto assim que em todos os países em que o socialismo do tipo soviético ou assemelhado conquistou o poder, uma rígida política de restrição de nascimentos foi posta em prática. Nem sempre daí resultou maior riqueza. O primeiro dos artigos sobre o tema (“O direito de não ter filhos”) é restrito e mais vinculado à discussão que então se tinha estabelecido na imprensa sobre o planejamento familiar. Já o segundo (“Aspectos sociais da contracepção”) é mais amplo. Nele discuto criticamente, com certa profundidade, os argumentos de natureza econômica, social e política favoráveis e contrários à política de regulação da fertilidade. O governo de então (presidido pelo Gal. Ernesto Geisel), mudara muitas das posições assumidas pelas administrações anteriores a respeito do problema populacional. Mostro que os debates tinham, compreensivelmente, caráter profundamente ideológico. Relativizo, no entanto, o exagero das posições defendidas, já que, historicamente, as relações entre população e processos sociais complexos variaram muito no decorrer José Carlos de Medeiros Pereira 11 do tempo e de um país para o outro. Concluo, porém, que pôr à disposição da população, sobretudo das mulheres, conhecimentos e meios para que pratiquem a contracepção constitui um dos deveres do Estado moderno e um direito básico delas. A educação é uma daquelas áreas na qual quase todos se julgam com competência para meter o bedelho. Esta é uma tendência aparentemente incoercível. Os profissionais que nela militam queixamse, com razão, dessa intromissão, freqüentemente não só abusiva como inepta. Confesso que eu também, muitas vezes, nela me intrometi. Aqui, porém, trata-se de uma incursão mais restrita. Num seminário sobre educação médica fui solicitado a proferir uma palestra (“Sociedade e educação médica”). Divergi dos organizadores do evento. Em geral, entendiam, que o ensino médico poderia ter grande influência no modo como a profissão estava ou viria a ser exercida. Segui o ponto de vista normalmente defendido pelos sociólogos, destacando o papel conservador da educação. Assim sendo, é difícil transformá-la num agente de mudança social. No caso específico da educação médica, apontei o fato de que a formação do médico é determinada fundamentalmente pela prática profissional e não o inverso. Nesse sentido, o artigo “Sobre a tendência à especialização na Medicina” constitui, de certa forma, uma demonstração do que afirmei naquele seminário. Nesse trabalho, faço um apanhado das explicações do processo de especialização. No caso da expansão extraordinária da especialização na Medicina (em geral tida como excessiva, no Brasil, pelos que estudam a organização dos serviços médicos), aponto, exatamente, a política de atenção médica do sistema oficial de Previdência Social como o grande favorecedor da tendência. É claro que havia e há outros fatores: a preferência dos próprios pacientes, sobretudo dos que podem pagar; as vantagens para os próprios médicos, que, especializando-se, procuram fugir da acirrada competição profissional; o interesse da indústria produtora de equipamento médico sofisticado etc. Obviamente, essa tendência tornou os médicos menos capacitados a 12 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE encarar seus pacientes como um todo não só biológico, mas, sobretudo, psico-social e cultural. As colocações acima, no entanto, não significam que a política educacional e, sobretudo, a voltada para a ciência e a tecnologia, não possa ter enorme importância no desenvolvimento sócioeconômico de um país. As várias áreas do social se interinfluenciam. O sistema educacional, desde que devidamente gerido por uma política conveniente, pode reagir sobre o meio social global, alterando-o significantemente. Os objetivos da educação e da saúde são definidos em nível societário. Mas, dependendo da estratégia específica, as reações corporativas podem ou não trazer benefícios para aquele desenvolvimento. No artigo “Saúde e política nacional de ciência e tecnologia” indico vários pontos que, em meu entender, estavam dificultando a realização desse papel positivo. No caso da Universidade, apoiando-me em texto de Florestan Fernandes, faço referências à pesquisa inútil, ao desperdício de recursos materiais e humanos, à predominância de interesses individuais e grupais em detrimento dos objetivos mais altos da ciência, à dependência cultural prevalecente em muitos nichos acadêmicos, ao dogmatismo existente em outros etc. O arrolamento de tais pontos talvez possa contribuir para o debate a respeito do tipo de conhecimentos a serem produzidos no ambiente universitário; conseqüentemente, para que eles sejam aproveitados construtivamente pela sociedade. Em 1981 e 1982, escrevi alguns trabalhos em parceria com meu amigo e colega de Departamento, o Prof. Antônio Ruffino Netto. A tuberculose, na qual ele era (e é) interessado, é uma doença que exemplifica bem um dos pontos ressaltados nos estudos de Medicina Social. Ou seja, o de que a causa necessária de uma doença nem sempre é suficiente para desencadeá-la. Ruffino havia levantado dados sobre a mortalidade pela moléstia no Rio de Janeiro. Intrigado com as variações de velocidade de declínio apresentadas pela curva, procurou-me para que o auxiliasse a analisá-los. Da colaboração resultou o artigo “Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso Rio de Janeiro”. Verificamos a existência de 3 regressões José Carlos de Medeiros Pereira 13 distintas. Creio que conseguimos, alicerçados no exame de fatores de ordem social, econômica e cultural, esclarecer as razões das variações. De fato, no caso dessa doença, alterações nas condições de vida das pessoas são fundamentais para explicar sua incidência, prevalência e letalidade. Concluímos que, “apesar de ser marcante o impacto determinado pelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle (melhoria das condições de vida)”. Posteriormente, resolvemos produzir um trabalho mais geral. Nele, tentamos mostrar que os ciclos biológicos, descritos no que se chama a “história natural da enfermidade”, não esgotam o seu entendimento. Esses ciclos foram exaustivamente estudados pela Epidemiologia e Saúde Pública. Mas, em nosso entender, para que o estudo ficasse completo, seria preciso atentar para o ciclo social. Neste, o homem histórico, concreto, entra em relações com os outros homens. Tais relações, por sua vez, são condicionadas e mesmo determinadas pela estrutura sócio-econômica inclusiva. Daí porque termos sugerido um modelo mais holístico de interpretação, tanto da doença individual como coletiva, em que o aspecto societário fosse considerado. Indicamos que, em seu estudo, os investigadores pensassem não apenas num ciclo, representado pela letra O, mas em dois. O esquema se transformaria num 8, tendo o homem como ponto comum. “Desta forma, ficaria claro que nem sempre é inevitável que os homens participem de determinada cadeia epidemiológica. Isso levaria mais facilmente o investigador e o técnico, em suas interpretações e nas soluções propostas, a considerar a estrutura social e suas características específicas, que fazem com que a doença se individualize em uns homens e não em outros”. A tese de doutoramento do Prof. Luiz Jacintho da Silva, intitulada A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo, defendida em 1981, trata de outra doença, a de Chagas, com importante determinação social. Por isso incluí a resenha que dela fiz no livro que organizei. Como muitos diziam, a doença de 14 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Chagas propagava-se, em grande parte, porque os homens viviam em habitações mais apropriadas a barbeiros do que a eles. O autor, em seu trabalho, mostra como a alteração do espaço geográfico e sócio-econômico, pela cafeicultura, facilitou a disseminação do Triatoma infestans. Com a desarticulação desse espaço (onde a endemia estava presente) e o surgimento, nele, de outra organização social, praticamente desapareceu, no Estado de São Paulo, a transmissão natural da doença. Luiz Jacintho não só estudou o contexto histórico da doença, mas procurou inseri-lo numa totalidade. Além do mais, trata o social não só como características dos sujeitos, mas as vê como produto de forças sócio-econômicas mais profundas. Reiterando o que disse no início deste prefácio, espero que os artigos aqui reunidos tenham utlidade para muitos dos que os lerem. Entendo que, pelo menos, desempenharão funções didáticas. Um pouco mais pretenciosamente, talvez venham a ter também implicações teóricas. Dou-me por satisfeito se contribuírem para uma melhor compreensão dos determinantes sociais da saúde e da doença e da assistência médica. José Carlos de Medeiros Pereira Ribeirão Preto, setembro de 2002 1. SOBRE MEDICINA SOCIAL José Carlos de Medeiros Pereira 17 1.1. MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE* I – INTRODUÇÃO Nosso propósito é apresentar uma certa rotação de perspectivas quanto ao modo de analisar tanto o processo saúde-doença como a assistência médica. O primeiro é freqüentemente pensado como sendo quase exclusivamente biológico. Em relação à segunda ela é vista, demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por considerações de ordem médica. Ora, saúde e doença são objetos ao mesmo tempo sociais e biológicos. Os homens são sadios, enfermam e morrem não segundo apenas variáveis biológicas, mas por razões, o mais das vezes, sociais. Quanto à assistência médica, mais facilmente se percebe que ela é constituída por um conjunto de práticas sociais que obedecem a poderosos determinantes econômicos, políticos e de outras ordens também não-médicas. A assistência médica é, inquestionavelmente, objeto de estudo das Ciências Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo, de uma instituição social, com a especificidade de se constituir de um complexo de ações e relações sociais referidas à área médica. Mas pode ser objeto também de uma disciplina de fronteira à qual nos referiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, voltase, igualmente, para o estudo das determinações extrabiológicas da saúde e da doença, principalmente desta, quando encarada não em termos de indivíduos isolados, mas de uma população que apresenta segmentos sociais vivendo em condições diferenciadas. Assim, quando se analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na população * Publicado originalmente em Estudos de Saúde Coletiva, nº 4, pp. 29-37, Rio de Janeiro, novembro de 1986. 18 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinados organismos biológicos é, em grande parte, uma conseqüência de serem esses organismos membros participantes de determinadas relações sociais. II – A MEDICINA SOCIAL Sem dúvida, as várias ciências sociais poderiam dar conta da investigação dos determinantes da assistência médica, como já dissemos. Por outro lado, elas poderiam também estudar: a) os determinantes sociais que fazem com que um dado fenômeno na área da Saúde Coletiva seja considerado normal ou patológico; b) ou, ainda, os fatores e condições igualmente sociais que levariam tal fenômeno a se manifestar diversamente nos vários segmentos sociais (classes, frações de classe, grupos ocupacionais, de renda etc). No entanto, especialmente de duas décadas para cá, foi se desenvolvendo uma novel disciplina, a Medicina Social, que se voltou especificamente para o estudo dessas duas ordens de questões(15). A par de outras razões, talvez se possa dizer que, para o surgimento desta, militaram desdobramentos havidos nas investigações realizadas em dois campos de estudo aparentemente distintos. Num caso, a Epidemiologia, disciplina médica, passou a se interessar, cada vez mais, pela convergência do social e do “natural” na explicação da manifestação do fenômeno doença. Verificou que este depende, freqüentemente, de condições suficientes, de natureza social, tanto ou mais até que de causas necessárias, de natureza biológica. De seu lado, trabalhadores intelectuais na área da Sociologia e, mais recentemente, na da Economia, estabeleceram claramente que o funcionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pela assistência médica obedecem a razões extramédicas. Nada mais natural que sendo ambas as questões vinculadas, de um modo ou doutro, à Medicina, fosse adquirindo contornos a disciplina a que nos estamos referindo. Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da própria José Carlos de Medeiros Pereira 19 Medicina, gozando de maior ou menor prestígio conforme o momento histórico e os paradigmas científicos pelos quais ela se norteou, freqüentemente consideraram o fato de os homens doentes serem também participantes de determinadas relações sociais, as quais é preciso levar em conta. Especialmente nos últimos anos, por influência de tais correntes, a Medicina vai deixando de ser quase que apenas o conhecimento (biológico principalmente) da doença e dos meios de curá-la e/ou a ciência do corpo humano, normal e patológico. Um número significativo de trabalhadores na área vai percebendo, cada vez com maior clareza, que a explicação das doenças e sua cura é facilitada pelo conhecimento do contexto social em que vivem as pessoas. Bem ou mal, eles têm buscado explicá-las através da referência a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse social seja encarado como constituído por características de pessoas, na já tradicional concepção multicausal da doença. Apesar disso, na atualidade, muitos dos cultores da disciplina médica procuram ampliar o objeto da mesma, a maneira de representá-lo cientificamente e o modo de apreendê-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que a Medicina tenderá a ser concebida também como uma ciência históricosocial, percebendo que as características dos seres humanos (doentes ou não) são sobretudo um produto de forças sociais mais profundas, ligadas a uma totalidade econômico-social que é preciso conhecer e compreender para explicarem-se adequadamente os fenômenos de saúde e de doença com os quais ela se defronta. Passando a Medicina a ser encarada como atrás, suas práticas sociais puderam vir a ser, também, objeto de investigação médica e não apenas de alguma ciência social. De qualquer forma, essas novas concepções facilitaram a constituição da Medicina Social, voltada para o estudo tanto dos processos que mantêm a saúde ou provocam a doença como das práticas sociais que procuram recuperar ou manter aquela. Trata-se de uma mudança qualitativa, porque o objeto de tal disciplina não é representado por corpos biológicos, mas por corpos sociais. Não se trata, tão-somente, de indivíduos, mas de sujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relações sociais 20 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE referidas ao processo saúde-doença. Realizada tal mudança, as práticas sociais da medicina e a doença seriam objeto de investigação, especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular à Medicina desde que ela fosse concebida como uma ciência que tivesse um objeto social e natural ao mesmo tempo. A rotação de perspectivas quanto ao modo de encarar e interpretar esses objetos de estudo representa uma ruptura em relação à corrente positivista predominante. Tal rotação faz avançar a interpretação, introduzindo tipos diversos de explicação, sobretudo sociológica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserção dos fatos observados e das relações descobertas em teorias mais abrangentes; permite ver coisas novas, como se elas estivessem sendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos conhecidos são olhados a partir de outros pontos de vista, embora também conhecidos(16: 101). É certo que os paradigmas da Biologia, de modo geral usados na Medicina, são menos controvertidos. Eles permitem, inclusive, que quase todos os investigadores utilizem o mesmo modelo de análise, ao qual se conformam, Mas tal procedimento gera menores oportunidades de questionamento e, conseqüentemente, de reflexões sobre as questões estudadas(7). Ora, nas Ciências Sociais inexiste um paradigma único sobre o qual se assente um crescimento científico cumulativo. Sua existência implicaria num acordo entre seus grandes cientistas quanto à concepção da sociedade, o que seria praticamente impossível pois esta, ao contrário dos objetos naturais com os quais lida a Biologia e outras ciências naturais, é plena de divisões e conflitos dos quais o próprio investigador é parte. Mas, com isso, o avanço proporcionado pode ser significativo: uma criatividade mais expressiva, mais profícua, cientificamente falando, que acaba produzindo resultados também significativos. III – A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar a enfermidade como um fenômeno social também. Tomá-la como um José Carlos de Medeiros Pereira 21 fenômeno natural, como habitualmente se faz, tem implicações políticas inegáveis: permite transformar problemas sociais em problemas técnicos, com soluções dependentes da adoção de procedimentos igualmente técnicos e não políticos. Diga-se que o primeiro tipo de solução é o geralmente disponível pelos serviços médicos. Tal fato contribui, certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipo de explicação e não outro. Não nos esqueçamos que ela é, em grande parte, uma técnica de intervenção. Esta característica, e a formação, da mesma forma, muito técnica dos médicos, favorecem a adoção de uma concepção fragmentada do homem e da doença. Tal fragmentação, feita com o objetivo de melhor analisar, para conhecer, o objeto de estudo, impede que este seja inserido num todo social coerente. Tratando-se, porém, de objeto e de problemas sociais, idealmente se exigiria, de quem explica e propõe soluções, a percepção de como se estrutura e funciona o sistema social no qual um se insere e os outros ocorrem. A proposta da Medicina Social pretende preencher essa lacuna, procurando ultrapassar o nível de concreticidade dos fenômenos médico-sociais, não os tomando como se eles fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendo uma visão mais abrangente da doença e dos homens doentes, essa disciplina pretende chegar a uma interpretação sociologicamente mais rigorosa dos fenômenos e a uma proposição de soluções socialmente mais relevantes. Ou seja, ela se propõe ultrapassar a mera aparência dos mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essência. Para a Medicina Social boa parte das doenças constitui uma manifestação muito concreta das relações sociais (sobretudo de produção) de que os homens participam. Por isso é que elas se apresentam tão diversamente, se consideramos os diferentes segmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem, trabalham, se divertem, se relacionam enfim, a prevenção da enfermidade, mantendo-se a saúde, tem muito a ver com quaisquer melhorias nas condições de vida proporcionadas, entre outras coisas, pela diminuição da desnutrição, pelo acesso a moradias mais adequadas, pelo exercício de um trabalho física e mentalmente menos 22 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE desgastante etc. Em outras palavras, os homens enfermam e morrem desigualmente por pertencerem a uma e não a outra classe social, por exercerem diferentes ocupações, por se vincularem a este ou aquele setor econômico (rural ou urbano-industrial por exemplo), por compartilharem culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto é que os faz correr riscos desiguais de contraírem moléstias e de morrerem. Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais riscos do que os burocratas do serviço público por estarem muito mais expostos ao binômio excesso de trabalho-consumo deficiente(8). Ainda que como fenômeno biológico a doença possa ter características universais, podendo o homem ser encarado como um ser isolado, da perspectiva da Medicina Social, fora de seu contexto social esse homem é uma abstração, algo que não existe. Ele participa de uma sociedade histórica, dividida, conflituosa, competitiva, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Por isso, uma visão reducionista do problema de saúde e doença, perdendo de vista essa totalidade social, acaba não proporcionando o entendimento procurado do problema. A divisão deste em partes, para se proceder à análise, pode ser conveniente apenas quando, em seguida, faz-se a síntese, chegando a uma concepção enriquecida do conjunto do qual se partiu. Só quando se tem um mínimo de percepção dos fatores sociais produtores da enfermidade é que se pode compreender porque a presença da causa necessária de uma doença não necessariamente a desencadeia se não estiverem presentes as condições suficientes para que ela exista. É nesse sentido que se pode dizer que a verdadeira causa da tuberculose são as precárias condições de vida e não o bacilo de Koch. Na explicação cabal da produção tanto da saúde como da doença entre os homens, na quase totalidade dos casos, é preciso, pois, ter em conta as relações sociais de que eles participam numa realidade social concreta. Nesse sentido é que podemos ousar afirmar que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e José Carlos de Medeiros Pereira 23 melhores condições de vida, a incidência e a prevalência de uma doença como a de Chagas possivelmente diminuiriam em proporção maior do que quando se tentam soluções baseadas na noção de que sua causa fundamental é a presença de triatomíneos infectados. Da mesma forma poderíamos nos referir à esquistossomose. Freqüentemente se pensa em combatê-la procurando melhores moluscocidas e não em fazer com que as pessoas vivam em condições de não precisar entrar em contacto com águas infestadas. Num e outro caso,quando a explicação da doença não contempla o social, as soluções aventadas deixam intocada a estrutura social determinante da doença É o caso de muitas proposições epidemiológicas que partem do pressuposto da inevitabilidade da presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica. Ora, se suas relações com os outros homens e com a natureza fossem diferentes da que está ocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico ele não participaria de tal cadeia. Sem que essas relações sejam levadas em consideração, a Medicina, o mais das vezes, vai se limitar a enfrentar a doença já produzida. Evidentemente, este modo de proceder constitui uma solução correta em face do problema individual existente, mas não como explicação e solução, ao nível coletivo, do fenômeno doença. O pressuposto da inevitabilidade desta se suas causas necessárias não forem afastadas assenta-se na tendência das ciências naturais de se voltarem para as características universais da produção dos fenômenos. Esta tendência se vincula, por sua vez, à suposição de que se está diante de um universo contínuo, em que as diferenças pouco explicam. Ora, não é este o caso de qualquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termos societários, é cientificamente incorreto desconsiderar-se as diferenças sociais. Se não nos voltarmos para elas, nossas constatações a respeito, por exemplo, da incidência e prevalência de quaisquer doenças serão meras abstrações. Não nos dirão que grupos ocupacionais ou frações de classes sociais são afetados. De fato, como já nos dizia Marx, a população é uma abstração se deixarmos 24 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de lado suas divisões. É em decorrência do fato de as relações sociais variarem historicamente que existe, também, uma historicidade das doenças. Dependendo da evolução das condições específicas existentes numa dada formação social concreta, umas doenças surgirão e outras desaparecerão. A tuberculose, por exemplo, foi uma doença largamente disseminada enquanto perduraram as condições de existência precárias determinadas, entre outras razões, pela Revolução Industrial. Neste século, entretanto, diminuiu de muito sua morbi-mortalidade sempre que essas condições melhoraram, antes mesmo de terem sido descobertos tuberculostáticos eficazes. Da mesma forma, à medida que uma sociedade passa de predominantemente rural a urbano-industrial serão diferentes as enfermidades que afetarão seus membros. Poderão diminuir as zoonoses e verminoses mas aumentar os acidentes (de trabalho, de trânsito), as violências ou as doenças cardio-vasculares. Em termos mais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido: a doença sobe dos intestinos para os pulmões. O que é poluído agora é o ar e não o chão(1). IV – DETERMINANTES EXTRAMÉDICOS DA ASSISTÊNCIA MÉDICA Tradicionalmente concebe-se a assistência médica como o conjunto de práticas sociais da Medicina visando, especificamente, a promoção da saúde e a prevenção e cura da doença ao nível individual. Não entrariam na definição aquelas atividades promotoras de saúde não exercidas por profissionais da saúde, como também as medidas coletivas. Há um certo consenso, por exemplo, de que o saneamento é antes engenharia sanitária do que medicina. Nem mesmo as medidas levadas a cabo pela medicina preventiva são sempre encaradas como assistência médica. Estão também excluídas a indústria farmacêutica, de aparelhos hospitalares etc. Cecília Donnangelo resume o que foi dito afirmando que a assistência médica seria o “conjunto de ações José Carlos de Medeiros Pereira 25 de diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual”(3). Há outras concepções de assistência médica mas, para nossos propósitos vamos nos cingir a esta para distingui-la de Saúde Pública, no sentido de medidas orientadas coletivamente visando o atingimento dos fins mencionados acima. Ainda que a assistência médica diga respeito exclusivamente à atividade exercida por médicos, de modo algum, como já foi dito, ela se faz tendo em conta apenas critérios médicos. É que as práticas sociais referidas constituem uma instituição social cujo funcionamento e dinâmica obedecem a determinações extramédicas. Dificilmente serão os médicos que, nas condições concretas de sua atuação, decidirão quem e como alguém será atendido e considerando critérios tão-somente médicos. O mais das vezes, como umas vidas têm mais valor do que outras em termos societários, políticos e econômicos, serão nesses termos que as decisões serão tomadas. Ou seja, os pacientes serão assistidos em razão de sua capacidade de pagamento, ou porque podem exigir a assistência médica dado o poder de que dispõem ou, ainda, porque são considerados economicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nas sociedades capitalistas, em que há um quase completo domínio dos interesses econômicos, os valores alheios à medicina tenderão, em muito, a orientar as decisões. Sendo assim, há necessidade de analisar mais profundamente os aspectos sociais, políticos e econômicos responsáveis pelo desvirtuamento dessa assistência (em relação ao ideal expresso) de modo a não produzir os resultados que, medicamente, dela seriam esperáveis na redução, por exemplo, da morbi-mortalidade do conjunto da população. Nessa análise, uma das primeiras questões que chamam a atenção é a tendência de considerar a saúde e a doença como sendo de responsabilidade individual. Esta é, em grande parte, uma conseqüência de modo predominante de pensar nas sociedades capitalistas. Contudo, ela já era também a visão dominante na medicina. Mesmo antes do capitalismo a atenção médica era considerada uma questão individual(5). Além do mais, agravando o 26 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE problema, ao não se voltar para a determinação social da saúde e da doença, a assistência médica acaba atuando, muito freqüentemente, mais sobre os efeitos do que sobre as causas. A determinação social da assistência médica é claramente percebida inclusive quando se estuda sua história. Como nunca existiram sociedades históricas sem imensas desigualdades sociais, o que se vai observar é que o tratamento e prevenção da doença sempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo, especificamente, pode-se mesmo dizer que a proteção da vida e da saúde depende de um cálculo econômico. Isto é visível, por exemplo, na própria distribuição geográfica dos médicos. Eles, como diz Illich, têm tendência compreensível de se instalarem “onde o clima é sadio, a água pura e as pessoas podem pagar seus serviços”(6). Mas não é só por regiões, evidentemente, que a distribuição é desigual. O mesmo se pode dizer em relação às várias classes sociais. À distribuição desigual dos médicos pode-se acrescentar uma série de outros serviços de saúde, como hospitais, centros de saúde, laboratórios, pessoal para-médico etc. Há uma hierarquia de tratamento porque os corpos são vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizam de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido (por exemplo, num médico investiu-se mais do que num professor primário), com seu status, com seu poder. Muitas vezes, mesmo quando o Estado se volta (em termos de assistência médica) para a população marginal e o sub-proletariado é porque está preocupado em diminuir as tensões sociais, por exemplo. Evidentemente, numa sociedade capitalista, é inevitável que se façam tais cálculos econômicos e políticos e se considere a capacidade de pagamento dos que se encontram enfermos. Afinal os recursos são sempre escassos (em face do modo como são estruturados os serviços). Daí ser necessário que se tenha uma base “racional” para decidir. Ao estabelecê-la considerando coisas como a produtividade ou a capacidade (expressa na possibilidade de pagar), o sistema social vigente pode tornar a diferenciação da assistência médica relativamente aceitável para o conjunto da população, porque José Carlos de Medeiros Pereira 27 se funda em distinções tidas como socialmente normais em nossa sociedade. É claro que seria incorrer num mecanicismo pouco defensável explicar toda e qualquer transformação no âmbito da assistência médica como estando inteiramente vinculada aos interesses do capital. Em qualquer sistema sócio-econômico global as instituições sociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo. Assim sendo, a medicina, enquanto prática social, acaba tendo esse papel no capitalismo como teria em outro modo de produção. Na verdade, é muito interessante observar que a orientação coletiva da medicina, enquanto assistência médica, é muito mais expressiva com o avanço do capitalismo do que em modos de produção anteriores. Os serviços de assistência crescem quantitativamente e segmentos sociais, até então desassistidos, são incorporados ao cuidado médico. Uma outra explicação para essa incorporação, além das já mencionadas (preocupação com a produtividade e controle das tensões sociais) estaria no fato de que tanto a indústria farmacêutica como a de equipamentos cresceu enormemente nestas últimas décadas. Como o lucro dessas atividades só se efetiva através dos atos médicos, que levam ao consumo das mercadorias produzidas por essa indústria, ela pressiona sempre no sentido de que os cuidados médicos se estendam a uma porção maior da população. É evidente que a própria população, por sua vez, luta para que o Estado proporcione sempre assistência médica mais adequada, o que leva à expansão da mesma, ainda que com diferenciação muito grande de qualidade, conforme se assinalou. A discussão sobre relações da assistência com a estrutura social pode ser encarada ainda sob outros aspectos, mas vamos nos limitar a estes. Poderíamos, por exemplo, discutir o enorme desenvolvimento do aparato técnico dessa assistência; a crescente politização do ato médico; os movimentos de contestação a esse gigantismo tecnológico; a contradição gerada pelos custos crescentes dessa assistência, o que inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite; as tentativas de racionalização dos serviços médicos; o surgimento 28 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de medicinas alternativas etc. Os limites de espaço nos obrigam, entretanto, a restringirmos nossa exposição aos pontos abordados. V – CONCLUSÕES O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Social contribuiu, ao lado de outras causas evidentemente, para esclarecer a dupla natureza (biológica e social) do objeto da Medicina. O processo saúde-doença tendeu, cada vez mais, a ser percebido como sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelo funcionamento e dinâmica do sistema social inclusivo onde ele ocorre. Passaram a ser devidamente consideradas as diferenças sociais na produção dos ditos fenômenos. Percebeu-se que saúde e doença só são explicáveis quando a sociedade deixa de ser vista como um todo homogêneo, estável e ahistórico e passa a ser, ao contrário, visualizada como dividida em classes, estratos e grupos sociais, freqüentemente opostos e mesmo antagônicos. Sob esse prisma, foram inovadas as concepções metodológicas que norteavam o entendimento da enfermidade. Ultrapassando relações causais imediatas, geralmente vinculadas apenas às características do organismo biologicamente considerado, a rotação de perspectivas proporcionada permitiu chegar à noção de totalidade social. Ou seja, entender que nem mesmo são as características sociais das pessoas que explicam boa parte das doenças, mas o conjunto de forças sociais mais profundas, as quais só podem ser adequadamente compreendidas quando nos voltamos para o bosque, deixando de nos cingir tanto às árvores que o compõem. Em termos de explicação e solução do problema doença, a novel disciplina tem mostrado que encarar o homem isoladamente, ou a população indistintamente, implica, sem dúvida, em construir uma abstração inadmissível. A explicação sociológica dos fenômenos médico-sociais, contudo, refere-se, principalmente, aos processos sociais vinculados às práticas sociais da medicina (especialmente assistência médica). É que, nesse caso, os fenômenos são inequivocamente sociais, com José Carlos de Medeiros Pereira 29 a especificidade de estarem vinculados à área médica. A visão mais abrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e se transforma o sistema social, permite à Medicina Social determinar com mais precisão os aspectos extramédicos presentes na assistência médica. Tratando-se de uma sociedade dividida em segmentos sociais que mantêm entre si relações de dominação-subordinação ao nível sócio-econômico e político, entende-se que, nela, a proteção da vida e da saúde dependa de um cálculo econômico. É que, na verdade, tal assistência não é prestada, exatamente, a corpos biológicos mas a corpos sociais. O que está em jogo é a produtividade dos mesmos, seu poder, sua riqueza, seu prestígio. Quem os possui recebe tratamento (ou melhor tratamento). Não se pode, evidentemente, desconsiderar a capacidade política das classes dominadas de lutar por uma melhor atenção médica, mas a expansão da mesma, ocorrida no capitalismo, vincula-se, em grande parte, ao processo de reprodução ampliada do capital. Ou seja, valores alheios à ordem médica, em geral, orientam as decisões nesse campo. Enfim, uma diferente concepção geral do mundo e o domínio de outro instrumental metodológico, permitiram desenvolver um marco teórico de mais longo alcance seja no tocante à explicação do processo saúde-doença, seja na compreensão dos determinantes das práticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso, era necessário considerar a sociedade específica em que esses fenômenos ocorrem, com seu sistema de estratificação social, de produção econômica e de distribuição de bens e serviços. Sobretudo no caso da assistência médica, a perspectiva aberta pela Medicina Social apontou o fato de as soluções aventadas, ao nível individual e coletivo, basearamse, freqüentemente, numa percepção incorreta das relações sócioculturais e dos interesses político-econômicos envolvidos. Se a visão predominante contribui, muitas vezes, para tecnificar variados problemas que são principalmente sociais, transformando-os em problemas médicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a colocá-los no campo específico de sua resolução: o político. 30 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE RESUMO O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quanto ao estudo tanto do processo saúde-doença como da assistência médica. Nele, de início, se aponta o fato de essa disciplina ter-se aproveitado, recentemente das contribuições feitas pela Epidemiologia Social (no tocante à interpretação social do processo saúde-doença) e pela Sociologia da Saúde (quanto à determinação extramédica da assistência médica). É exposto, em linhas gerais, o modo como essa disciplina explica os dois processos. Esclarece-se como ela concebe a Medicina como uma ciência histórico-social também, encarando os homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos mas, sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas, membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes de relações sociais específicas. Indica-se como a rotação de perspectiva decorrente, ao alterar o paradigma do investigador, permite a este ver coisas novas em relação aos mesmos fatos. Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade como fenômeno social. Mostra-se como vê-la apenas como fenômeno natural tem enorme signficado político, pois transforma os problemas sociais envolvidos na produção da doença em problemas técnicos e não políticos. A Medicina Social, ao não fragmentar seu objeto, insere o fenômeno num todo social coerente, ao contrário da Medicina tradicional. Sua proposta de investigação ultrapassa o exagerado nível de concreticidade com que esta vê o processo saúde-doença, permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo. É que a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente, isolado de seu contexto social, constitui mera abstração, já que ele participa de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Conseqüentemente, não se pode tomar a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. Ou seja, a Medicina Social volta-se para as diferenças sociais, considerando-as fundamentais. José Carlos de Medeiros Pereira 31 Na parte final discutem-se os determinantes extramédicos da assistência médica. Este seria o outro conjunto de fenômenos pela qual se interessaria a disciplina examinada. Depois de se definir o que se entende por assistência médica, mostra-se como as práticas sociais da mesma configuram uma instituição social. Tomando-a como tal, verifica-se que a assistência médica raramente guia-se por critérios tão-somente médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. As mesmas diferenças de tratamento são também claramente percebidas quando se estuda a história da assistência médica. É que como os corpos são principalmente sociais, eles se hierarquizam de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido, segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistência médica se volta para as populações marginais, o mais das vezes o que se pretende com ela é diminuir as tensões sociais. O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquer transformação no âmbito da assistência médica como se vinculando inteiramente aos interesses do capital seria incorrer num mecanismo inadmissível. Crê que para explicar cabalmente o processo em discussão seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidade social, na qual os aspectos políticos e sociais, por exemplo, desempenham também um importante papel. Ainda que sendo as determinações econômicas as mais evidentes, sem dúvida, haveria ainda que discutir outros pontos, como a influência da ciência e da técnica no aparato técnico dessa assistência, a crescente politização do ato médico, os movimentos de contestação ao tipo de assistência médica hoje em voga, as tentativas de racionalização dos serviços médicos, o surgimento de medicinas alternativas etc. 32 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1 - Berlinguer, G., 1978. Medicina e Política, Cebes-Hucitec, São Paulo; 2 - Conti, L., 1972. “Estrutura social y medicina”, in ALOISI e outros, Medicina y Sociedade, Editorial Fontanella, Barcelona; 3 - Donnangelo, M. C. F., 1975. Medicina e Sociedade, Livraria Pioneira Ltda., São Paulo; 4 - Donnangelo, M. C. F. e Pereira, L., 1976. Saúde e Sociedade, Livraria Duas Cidades, São Paulo; 5 - Gonçalves, R. B. M., 1979. Medicina e História – Raízes Sociais de Trabalho Médico, Dissertação de mestrado, Faculdade de Medicina da USP, São Paulo; 6 - Illich, I., s/d. A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro; 7 - Kuhn, T. A., 1978, A Estrutura das Revoluções Científicas, Editora Perspectiva, 2a. edição, São Paulo; 8 - Laurell, A. C., 1981. “Processo de trabalho e saúde”, Saúde em Debate, nº 11, Rio de Janeiro; 9 - Laurell, A. C., 1983. “A saúde-doença como processo social”, in Nunes, E. D. (org.), Medicina Social – Aspectos Históricos e Teóricos, cap. 4, Global Editora, São Paulo; 10 - Pereira, J. C., 1983. A Explicação Sociológica na Medicina Social, tese de livre-docência em Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, mim., Ribeirão Preto; 11 - Pereira, J. 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O PROJETO PREVENTIVISTA E A NOÇÃO DE SUBDESENVOLVIMENTO* Quando, logo após a Segunda Guerra Mundial principalmente, começou-se a discutir mais intensamente as razões do subdesenvolvimento, surgiu uma extensa e variada literatura a respeito, produzida sobretudo nos Estados Unidos, que relacionava o subdesenvolvimento à inexistência, nos países do Terceiro Mundo, de uma mentalidade e um conjunto de valores que propiciassem o crescimento econômico. Esta literatura se referia, entre outras coisas, à falta de mentalidade empresarial, à inexistência de valores positivos ligados ao trabalho duro e continuado (considerando-se os povos africanos, asiáticos e, de certa forma, também latinos, como demasiadamente adeptos do ócio), à ausência de preocupação com o amanhã, o que faria com que a poupança e o investimento fossem relativamente baixos e assim por diante. Conseqüentemente, a superação da situação de subdesenvolvimento foi vista como dependendo, em grande parte, de um intenso esforço de modernização cultural. Ou seja, ela se faria através de um processo de mudança cultural ao cabo do qual os povos desses países passassem a ter mentalidade, valores, instituições etc. mais próximos aos imperantes na Europa Ocidental (não latina especialmente), Japão e Estados Unidos. Em face dessa interpretação do processo de desenvolvimento/subdesenvolvimento, caberia aos países tidos como desenvolvidos o papel de mentores da transformação apregoada. * Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 35(8) agosto de 1983, pp. 1075-7. Um trecho foi alterado porque divergia acentuadamente do modo de pensar atual do autor. 36 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Contribuiriam para a modernização proposta oferecendo cursos de formação e treinamento de modo a formar quadros superiores para os países mais ou menos à margem da civilização ocidental (entendase, ainda não suficientemente vinculados ao modo de produção capitalista); fornecendo assessores às instituições governamentais desses países; produzindo programas radiofônicos, televisivos e cinematográficos em que o estilo de vida mais adequado à situação de desenvolvimento e crescimento econômico fosse propagado; enviando missionários que convertessem esses povos a um catolicismo menos tradicionalista ou, o que seria melhor, à forma de cristianismo considerada como mais burguesa (as várias seitas protestantes); exportando capitais e managers que difundissem as modernas técnicas de organização empresarial etc. Enfim, seria “dever” dos países desenvolvidos compartilhar sua civilização com os subdesenvolvidos. Paulatinamente, contudo, especialmente depois dos anos 60, foi ficando claro para os estudiosos do problema do subdesenvolvimento menos comprometidos com o status quo, que a condição de subdesenvolvimento tem raízes que vão além de um suposto atraso cultural. É preciso sempre se perguntar: atraso em relação a que? De fato, cada cultura tem valores próprios, de modo geral adequados à consecução dos fins maiores a que se propõe. Sem dúvida, há excessiva justificação ideológica nas teorias que consideram o subdesenvolvimento como decorrente, fundamentalmente, da espoliação sofrida pelos atuais subdesenvolvidos em face dos desenvolvidos. Mas há que se tomar tal possibilidade em consideração, sobretudo no caso de alguns desenvolvidos, como a Grã-Bretanha em face da Índia por exemplo. Ou seja, se os fatores culturais não podem ser desprezados, igualmente não podem ser os econômicos, especialmente no caso de algumas relações históricas que se estabeleceram entre alguns países no decorrer do processo de desenvolvimento capitalista mundial. Vai uma distância muito grande entre considerar um fator como sendo causal a considerá-lo como determinante. Os processos sociais, na quase totalidade, possuem fatores multicausais. José Carlos de Medeiros Pereira 37 Na verdade, tanto a chamada “teoria da modernização” como a do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista, a par de serem ideologicamente viesadas, possuem seus méritos específicos, sobretudo se, no caso da segunda, pensarmos mais em termos de dependência do que propriamente em termos de espoliação. Ambas, possivelmente, exageram na tendência de tomar a aparência das coisas pela sua essência. Em suma, o aprofundamento da discussão a respeito das razões do subdesenvolvimento mostrou que a referência ao “atraso cultural” é uma explicação muito parcial da questão. Concluiu-se que enquanto não fosse suplantada a dependência econômica, dificilmente o seria a cultural, inclusive científica e tecnológica. O enfrentamento daquela (a econômica) torna-se difícil, por sua vez, pelo fato de que a dependência representada pelo subdesenvolvimento cria também mentalidades dependentes, internalizando-se a dominação. De modo assemelhado as coisas se passaram ao nível da medicina preventiva. O projeto preventivista proposto para o desenvolvimento na América Latina (a partir dos Estados Unidos) foi um projeto em grande parte colonizador, como os demais projetos sociais elaborados segundo a visão que se tinha do subdesenvolvimento atrás exposta (a do atraso cultural) Segundo ela entendia-se que os povos subdesenvolvidos eram doentios porque, sobretudo,muitos aspectos de sua cultura eram inadequados em termos de produção da saúde: hábitos de higiene e alimentares, noções a respeito da saúde, métodos de prevenção e cura, habitações; enfim, um modo de vida errôneo, incorreto, que acabava facilitando a disseminação da doença e abreviando a morte. Os países desenvolvidos tinham, nesse campo, outra tarefa de cunho missionário, colonizadora e civilizadora, que era a de levar a esses povos atrasados os benefícios da ciência e da técnica, da educação e da medicina modernas, ensinando-os a ter uma vida mais sadia. Influenciando as escolas médicas, esta visão do problema levou ao desenvolvimento de uma medicina preventiva bastante normativa, ainda que não necessariamente sob esta denominação. Assim é que praticamente até o início da década de 60 não havia 38 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE departamentos que ensinassem aquela disciplina, mas sim higiene e saúde pública. Sem dúvida, para estas, de modo geral, sempre foram atraídos muitos médicos com uma preocupação mais social do que individual dos problemas da saúde, interessados antes em conservála do que em tratar da doença. Contudo, dada aquela interpretação das razões da doença, a higiene e saúde pública tornaram-se freqüentemente policialescas. Não é à-toa, por exemplo, que os serviços de saúde pública passaram a fazer inúmeras recomendações ou mesmo determinações quanto ao uso de alimentos, ao modo como as casas deveriam ser construídas (em termos, por exemplo, de metragem dos cômodos, instalações sanitárias, etc) e assim por diante. Um entendimento do problema de saúde a esse nível levou, conseqüentemente, a uma continuada tentativa de normatizar a vida da população à semelhança dos demais órgãos governamentais. Os preventivistas viram-se a si mesmos como donos do saber e aos outros como ignorantes a serem ensinados, sua atuação pouco diferindo, quanto a este aspecto, da maneira de agir dos demais médicos. Conseqüentemente, tenderam, freqüentemente, a afastar a população do processo de tomada de decisões no tocante a uma esfera fundamental da existência, qual seja a relativa à saúde e à doença. Posteriormente, houve uma evolução da compreensão do problema, no sentido de se perceber que muitas daquelas recomendações, que entram em choque com o modo de ver das populações, são inaplicáveis, na prática. Mais ainda, concluiu-se que nem tudo aquilo que o povo crê e pratica é necessariamente maléfico à saúde e que, além do mais, dada a responsabilidade governamental em prover a população de bens e serviços considerados como geradores de saúde, seria conveniente educar a população para pleitear tais bens e serviços (por exemplo, saneamento básico). Esta foi uma característica do período da medicina comunitária. Só muito mais recentemente, quando se reinterpretou o subdesenvolvimento sócio-econômico é que houve, entretanto, uma José Carlos de Medeiros Pereira 39 radical alteração no modo de se entender a doença a nível coletivo. Em razão dela, o projeto preventivista chegou, finalmente, a encampar a proposta da medicina social, que interpreta o processo de saúde/ doença nos países do Terceiro Mundo, como sendo, fundamentalmente, conseqüência do subdesenvolvimento, nos termos em que se discutiu no final da primeira parte deste artigo. Isto é, enquanto não houver uma alteração significativa das estruturas sociais, políticas e econômicas responsáveis pela situação de miséria material e nãomaterial em que vivem os povos subdesenvolvidos, muito pouco se poderá fazer para melhorar sua condição de saúde. Modificado assim o projeto preventivista, em razão da alteração da compreensão do processo de subdesenvolvimento, aqueles profissionais agora voltados para a medicina preventiva e social tendem a alterar sua postura no trato com a população. Na prática concreta se dirigirão a ela, cada vez menos, supomos, como se fossem donos de um saber e de uma cultura superior que se atribuíram a missão de ensinar e orientar os ignorantes. Isto porque terão em conta que os homens doentios e sem educação formal elevada são, eles próprios, vítimas de uma situação pela qual não são nem individual nem coletivamente responsáveis. Desta forma, ainda que compreendam a necessidade de enfrentar, com os recursos normais e próprios da medicina, a doença que as relações sócio-econômicas vigentes tendem a produzir em determinados conjuntos de indivíduos, considerarão outros aspectos da relação entre estrutura social e processo saúde-doença. Também, tampouco, dentro da nova visão, se negará a possibilidade de se levar a população a sentir, pensar e agir de modo diferente frente a esse processo (embora respeitando mais sua própria visão sobre o assunto), como queria a medicina comunitária. O que vai distinguir tais profissionais será sua visão mais politizada da questão. Isto significa que pensarão o problema e atuarão não só como técnicos da área, mas perceberão que, sem um projeto político que seja encampado por segmentos sociais significativos, não ocorrerão aquelas mudanças sócio-econômicos capazes de aliviar a situação 40 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE de pobreza material e não-material responsável pela doença coletiva evitável. Em nada altera o entendimento de que a solução do problema desta é político o fato de que variará o projeto ao qual cada pessoa, individualmente, se ligará. RESUMO É discutida uma possível vinculação entre a mudança no entendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quais tem passado o projeto que orienta a medicina preventiva. A interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visão culturalista (teoria da modernização) para uma visão econômica (teoria da dependência). No caso da medicina preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturais, para a medicina social, em que a doença coletiva é relacionada à estrutura social e global. José Carlos de Medeiros Pereira 41 2.2 PROBLEMA SOCIAL E PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA* 1. INTRODUÇÃO Há grandes semelhanças na discussão do que seja problema social e problema de saúde pública. Em primeiro lugar, elas surgem já na dificuldade de definição de ambos; depois, no estabelecimento do que seja normal e patológico e nas interferências de natureza ideológica tanto na definição como nas soluções. O planejamento destas, em ambos os casos, vai depender, por sua vez, do modo como se encare o sistema social, político e econômico e, freqüentemente, da capacidade dos profissionais do setor de interessar um grupo social suficientemente poderoso para que se empenhe nelas, incluindo-as no seu projeto de transformação social. Não menos importantes são as semelhanças decorrentes do fato de muitos problemas de saúde pública serem, ao mesmo tempo, problemas sociais, e vice-versa, embora haja uma tendência indevida, na medicina, de incluir como problemas médicos questões que, na verdade, são fundamentalmente sociais. Essas similitudes é que pretendemos abordar no presente artigo. 2. QUEM DEFINE? O NORMAL E O PATOLÓGICO DO TÉCNICO E O DA POPULAÇÃO. Temos verificado que médicos, em geral, e sanitaristas e preventivistas, em particular, praticamente não se preocupam com a * Artigo publicado originalmente em Temas IMESC 4(1): 5-20, 1987. 42 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE questão de a quem cabe a definição do problema de saúde pública, ao contrário do que ocorre, pelo menos com alguns sociólogos, em relação aos problemas sociais. Nisto, certamente, interferem os vieses profissionais de ambos. Os médicos, por exemplo, tendem a considerar que questões de saúde e doença são de sua inteira responsabilidade, enquanto os sociólogos são menos exclusivistas no que tange à discussão de temas sociais. De qualquer modo, as dificuldades são assemelhadas. Na discussão dos sociológos há, de princípio, uma divergência significativa: quem é que vai considerar como socialmente indesejáveis atitudes, comportamentos, processos, relações, instituições sociais? Indesejável para quem? Para toda a sociedade ou para um seu segmento? Por trás da definição dificilmente vamos deixar de encontrar atitudes valorativas quanto ao que seja normal, sabidamente uma noção muito relativa. Dado que em toda sociedade complexa encontram-se grupos sociais heterogêneos, classes com interesses divergentes, contraditórios e mesmo antagônicos, o que um grupo pode perceber como patológico, outro pode ver como perfeitamente normal. O mesmo, pelos menos em parte, aplica-se à definição de problema de saúde pública. Esta é uma das dificuldades quando se reserva a definição de problema social à população. Não sendo homogênea e predominando nela os interesses e a ideologia dos grupos dominantes, aquilo percebido como socialmente indesejável pode ser uma inovação capaz de contribuir para a melhoria das condições de vida da maioria da coletividade. A visão conseqüentemente, é, em geral, conservadora, havendo a tendência de conceber o status quo como normal. De qualquer modo, quando se percebe algo como gravemente indesejável do ponto de vista social, lança-se mão dos conhecimentos técnicos e científicos para corrigir as assim tidas como disfunções do sistema vigente. É verdade que essa mesma ordem pode ser considerada, ela própria, como indesejável por grupos minoritários. Esta, no entanto, é uma dificuldade insanável. O que é concebido como problema social varia de uma classe ou fração de classe para outra, ou conforme a religião, a subcultura do grupo, etc. Por exemplo, um grupo de José Carlos de Medeiros Pereira 43 criminosos pode ter valores discrepantes em relação ao restante da sociedade, mas perfeitamente aceitos no interior do grupo e, portanto, sociologicamente normais se esse grupo restrito for tomado como paradigma. Tomar o geral, o comportamento médio ou mediano como normal não oferece, na verdade, maiores problemas cientifícos quando se trata de um sistema social relativamente estável. A dificuldade surge nos momentos de transição, quando comportamentos comuns não respondem às exigências do sistema social emergente. Neste momento é possível ao sociólogo, como veremos, considerar como patológico aquilo que ainda tem a aparência de normal. Outra possibilidade de definição de problema social é atribuí-la ao discernimento do cientista social, principalmente do sociólogo. Também, neste caso, é difícil não haver interferências ideológicas. Por exemplo, o sociólogo, segundo sua concepção, pode entender como inexorável a tendência de transformação de um dado sistema social, que se encontra em transição, no sentido de ele se constituir em plenamente capitalista. Então, muito daquilo que estivesse obstaculizando a emergência do novo tipo social poderia ser tido como problema social. Suponhamos, para continuar o exemplo, uma população vivendo em economia de subsistência. Ainda que ela não estivesse sentindo sua situação como socialmente indesejável, esse tipo de economia pode representar um problema em termos do modelo representado pelo sistema capitalista de produção. Pode-se estabelecer um conflito entre a noção de normal do cientista social e a da população envolvida. Mais grave ainda é quando se realiza uma intervenção planejada para alterar uma situação social vista pelo grupo técnico-científico como problemática e que tem, como conseqüência não planejada, a criação de outra, esta sim considerada pela população como socialmente indesejável. Continuando ainda o exemplo, suponhamos que a população vivendo em economia de subsistência tivesse sido inserida na economia de mercado e que, não tendo sido devidamente preparada para isso, passasse a sentir dificuldades de integração à nova situação. Nesse caso teríamos alterado uma condição existencial vista como problemática pelo sociólogo e criado 44 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE um problema social inexistente antes, do ponto de vista da população. É claro que, em qualquer intervenção planejada nos processos sociais, há de se ter em conta as possíveis conseqüências negativas da mesma para a população alvo. É certo que os sanitaristas dificilmente concedem à população a responsabilidade pela definição do problema de saúde pública, mas dificuldades assemelhadas, decorrentes de conflitos com a população, criam-se também para eles. Como alguns sociológos, eles podem achar a definição de problema pela população como científicamente inaceitável, dada a quantidade de preconcceitos sobre a saúde e a doença existentes no seu meio. Mas ao reservarem a si a incumbência, podem entrar em conflito com ela, ou, mais precisamente, com certas parcelas da mesma interessadas na manutenção de um dado estado de coisas. Teremos oportunidade de discutir adiante a própria definição de problema de saúde pública, mas suponhamos que certos hábitos e comportamentos sejam considerados, pelos sanitaristas, como tendo conseqüências negativas para a saúde da população que os pratica. Ora, dificilmente se consegue fazer a correção planejada de condições sócio-culturais e econômicas sem maiores resistências, mesmo quando a alteração pretendida for no nível individual (a referida mudança de hábitos); mais ainda quando o nível no qual se pretende interferir é o institucional ou o estrutural (modificação da arquitetura ou da distribuição de renda). Seja, para exemplificar, uma intervenção numa área relativamente simples como a da moradia. Imaginemos que se tenha chegado à conclusão de que a melhor forma de combater a doença de Chagas, numa dada região, seja a construção de casas de alvenaria de certo padrão. A resistência à alteração poderá ser grande por parte dos proprietários rurais que estejam destinando aos seus trabalhadores habitações sanitariamente impróprias. 3. OS CONFLITOS DE OBJETIVOS Poderia parecer que os conflitos entre o pessoal técnico- José Carlos de Medeiros Pereira 45 científico e a população, ou certas parcelas dela, no caso do problema de saúde pública, seriam menores porque o ideal de saúde é muito mais facilmente aceito por todos os segmentos sociais do que objetivos de natureza social. Isto só em parte é correto. É verdade que há padrões quantitativos e qualitativos mais precisos em se tratando do que seja saúde e doença, sobretudo em termos individuais, do que os que indicam o normal e o patológico sociais, ainda que a definição de saúde comumente usada, difundida pela Organização Mundial da Saúde, deixe muito a desejar (“estado de completo bem-estar físico, mental e social e não, apenas, ausência de enfermidade”). Aqui nos deparamos com duas dificuldades principais: 1) a de que o problema de saúde pública pode, ao mesmo tempo, ser um problema social e, mais do que isso, fundamentalmente, um problema social; 2) a decorrente do fato de não haver coerência entre os objetivos de pessoas, grupos ou coletividades. Eles podem, inclusive, ser contraditórios. Discutiremos aqui esta segunda questão, deixando a primeira para mais adiante. Médicos e sanitaristas, quando se trata de problemas de saúde individual ou coletiva, geralmente raciocinam como se pessoas e grupos sociais tivessem como principal motivação, em suas vidas, a conquista ou manutenção da saúde. Isto só é verdadeiro em alguns momentos de sua existência. A razão é simples: os homens, seja individual, seja coletivamente, comportam-se socialmente tendo em conta objetivos diversos, contraditórios ou até mesmo antagônicos, situados em diferentes esferas do social, como já dissemos. A intervenção planejada de cientistas, técnicos sociais, médicos ou sanitaristas, numa determinada realidade médico-social, vai portanto, encontrar, sob esse ponto de vista, escolhos outra vez assemelhados. Por exemplo, um objetivo econômico, como o de ganhar mais, pode conflitar com o de gozar mais saúde, porque o atingimento do primeiro pode implicar um modo de vida estressante, fatigante, depauperante etc. O sentir-se bem física, mental e socialmente pode exigir, por exemplo, em certos casos, até que se beba e que se fume. A variedade e diversidade de objetivos perseguidos na vida em sociedade por 46 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE indivíduos, grupos e classes torna inimaginável um homem tendo como único objetivo na vida (seja o de ter saúde, seja o de apenas ganhar dinheiro). Imaginá-lo assim seria concebê-lo como um ser alienado e, portanto, sem saúde. Estaríamos diante de uma contradição. Os vários fins que os homens perseguem estão ligados, por sua vez, a valores socialmente aceitos, pelo menos num determinado ambiente social, já que o que um grupo social pode ter como valor positivo, outro pode ter como valor negativo. Repetindo o exemplo, num grupo heterodoxo os valores aceitos como desejáveis serão, com grande probabilidade, contestados pelos grupos majoritários da sociedade na qual todos se incluem. Mas, dentro de um mesmo grupo social, os valores socialmente aceitos como meritórios são freqüentemente contraditórios. Valoriza-se, por exemplo, o homem economicamente bem-sucedido e o homem honesto, mas as duas coisas nem sempre andam juntas. Em nosso tipo de sociedade, aceitar o primeiro valor pode implicar desobedecer ao segundo. Por isso é que, em grande parte, as pessoas se neurotizam. Elas introjetaram, em seu processo de socialização, valores discreprantes. Para se conseguir atingir um fim socialmente valorizado numa esfera, podemos ser obrigados a deixar de lado outro fim, igualmente valorizado em outra esfera. Em alguns ambientes sociais pode ser de bom tom fumar e tomar bebidas alcoólicas. Isto daria prestígio, que é um objetivo importante na vida das pessoas, ainda que pudesse prejudicar a saúde (ou talvez por isso mesmo), violando o valor de se ter boa saúde. Os fins fundamentais, que normalmente guiam os homens de nossa sociedade, são obter riqueza, prestígio e poder. Eles são prioritários, superando de muito, no dia-a-dia, o objetivo de manter a saúde, ainda que a despreocupação com ela vá prejudicar a consecução daqueles outros objetivos, em deteminadas situações e momentos. Como estamos vendo, os fins e os valores a eles ligados não são necessariamente racionais quando os vemos por um único prisma. Na verdade, o termo racional só se aplica aos meios, nunca aos fins. Fixados estes, são racionais os meios que, dentro das condições dadas, levem á sua realização. Não há discussão quanto à José Carlos de Medeiros Pereira 47 racionalidade de fins, porque a esfera dos valores vincula-se aos aspectos emocionais da vida humana. Nesta área, um valor é igual a outro. Não se pode nunca imaginar, portanto, que um comportamento, por produzir enfermidade num prazo mais ou menos longo, seja sempre abandonado quando se mostra sua relação com aquela. Os homens, de modo geral, vivem o aqui e o agora, raramente o amanhã, sobretudo o amanhã distante. Dificilmente sacrificam o presente para obter uma possível satisfação no futuro. Assim sendo, não será pelo fato de que a saúde e a doença, orgânicas ou psíquicas, são mais facilmente discerníveis do que o normal e o patológico sociais que os sanitaristas e epidemiologistas não se conflitarão, freqüentemente, com os grupos de risco cujos comportamentos queiram alterar. 4. O PROBLEMA DA SAÚDE PÚBLICA Fizemos até aqui referências a algumas semelhanças entre o problema social e o de saúde pública quanto a dificuldades de várias ordens no relacionamento entre o cientista ou o técnico, de um lado, e a população, ou parte dela, de outro. Não tivemos ainda, no entanto, oportunidade de definir o que seja problema de saúde pública. Digase de passagem que, freqüentemente, mesmo em manuais de Saúde Pública, a questão é deixada de lado, como se fosse assunto mais ou menos óbvio. Como não é, surgem mal-entendidos. Tabagismo, cardiopatias congênitas, hipertensão arterial, doença de Chagas, acidentes de trânsito etc. são ou não problemas de saúde pública? Por quê? Os autores, comumente, não nos dizem. Ficamos, às vezes, com a impressão de que considerar um problema de saúde que esteja afetando um segmento da população como problema de saúde pública depende tão-somente da decisão do trabalhador qualificado do setor saúde que lida com ele. Ou seja, sanitaristas, epidemiólogos, médicos voltados para o social estão tão acostumados a se atribuir a tarefa (e os outros a aceitar que assim seja), que acabam não se colocando, nem para si mesmos, a questão de quais critérios estão utilizando. Na verdade, hoje, em alguns meios, dependendo da formação 48 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE científica e da postura ideológica do grupo de profissionais do setor, antes de se voltarem para critérios, seus membros estão discutindo se o problema é técnico ou é político-social. De fato, dado o crescente processo de medicalização vigente na sociedade ocidental, muitos problemas sociais acabaram transvestidos em problemas de saúde, pública ou não. Seria o caso, por exemplo, da desnutrição ou subnutrição em certos grupos sociais de países subdesenvolvidos. A não discussão do que seja o problema em exame leva, como não poderia deixar de ser, à supressão do debate a respeito de causas e soluções. Diminui o número de contribuições para o entendimento do problema, ainda que, por vezes, para alguns dos engajados ideologicamente de modo consciente no assunto, este seja um dos objetivos secundários (ou mesmo primários) pretendidos. O não esclarecimento dos critérios utilizados permite mais facilmente a desqualificação de quaisquer opositores que não vejam o problema tecnicamente e critiquem as posturas adotadas pelo pessoal técnicocientífico da área da saúde frente a um pseudo ou verdadeiro problema de saúde pública. Por vezes, os sanitaristas, ou pelo menos parte deles, assemelham-se aos tecnocratas da economia que conduziram nossa política econômica nas duas últimas décadas. Só que, no caso, trata-se de tecnocratas da saúde, donos da verdade no que diz respeito a esse setor da realidade. As dissensões quanto ao que seja problema de saúde pública, de um certo ponto de vista, entretanto, são bem menos graves do que aquelas que se travam em torno do que seja problema social. É que os vários grupos sociais divergem, e sempre divergiram, em relação ao seu modelo de sociedade ou, simplesmente, ao que seja normal e patológico. Aqui, o desacordo constante é a regra. No que toca à saúde, há um certo consenso quanto ao que ela seja ou, pelo menos, ao que seja doença. Todos, na pior das hipóteses, concordam que a saúde é sempre melhor do que a doença. É claro que, quando se trata de discutir o normal e o patológico médicos, em termos societários, a coisa muda, ou pode mudar. Assim, considera-se anormal que o indivíduo A, especificamente, sofra de doença de Chagas, mas José Carlos de Medeiros Pereira 49 a mesma opinião pode não prevalecer quando se trata de discutir se é normal ou não um determinado grupo social dela padecer. Sob esse prisma social, alguns sanitaristas e outros profissionais que se voltam para a Saúde Pública parecem se aproximar um pouco de certos sociólogos vinculados ao funcionalismo, que tendem a considerar normal aquilo que é comum numa dada sociedade e patológico o que se apresenta como desvio (por exemplo, um comportamento). Cremos, no entanto, que, em sua maioria, sanitaristas e médicos voltados para o social estão suficientemente atentos para o erro, cientificamente falando, de se tornar o geral como paradigma de normal, no que se refere à saúde coletiva. Se bem que, em alguns manuais de Epidemiologia, de Saúde Pública ou de Administração Sanitária, surja uma pergunta inquietante: a de se as ações de saúde pública não interfeririam negativamente na seleção natural. Obviamente, se tal pergunta é feita, é porque se está supondo que pobres e doentes estão nessa situação não em virtude de como se estrutura e organiza o sistema social no qual se inserem, mas em razão de seus genes. Quando o desvio, pelo menos em relação a um modelo ideal de normalidade admitido pela população, pelos técnicos, ou por ambos, assume a dimensão de um problema social ou de saúde pública? É aquele desvio estatisticamente relevante? Talvez dependa do tipo de desvio, pois uns se referem a coisas socialmente relevantes e outros não. Assim, certos desvios em relação aos costumes sexuais socialmente aceitos podem ser freqüentes e nem por isso tidos como problemas sociais. Já o homicídio, por exemplo, é estatisticamente pouco freqüente na quase totalidade das sociedades. Mas o descumprimento da norma de não matar é sempre tido como grave, como um crime. Assim, se sua freqüência aumentar em determinada época, comparada a outras, em uma mesma sociedade, ou quando se a compara com outras, o fenômeno passa a ser considerado como sério sintoma de desorganização social. O mesmo raciocínio se aplica ao problema de saúde pública. Não se convertem em tal todos os problemas de saúde sofridos por uma população ou um seu segmento. Nisso, como já dissemos, os manuais são muito imprecisos. A 50 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE dificuldade já começa pelas próprias definições de saúde pública. Em geral, elas são por demais abrangentes. Em vez de se aterem à determinação, a mais precisa possível, da extensão e dos limites do conceito, enumerando-lhe, inclusive, os atributos essenciais e específicos, de modo que a coisa definida não se confunda com outras, parece que os estudiosos da Saúde Pública entendem que dar excessiva extensão ao que ela seja constitui a melhor maneira de lhe dar importância. Por exemplo, quase todos se referem à definição de Winslow, de 1920, ou nela se apóiam. Segundo esse autor, a Saúde Pública é “a arte e a ciência de prevenir a doença, prolongar a vida e fomentar a saúde e a eficiência, mediante o esforço organizado da comunidade”. Esse objetivo seria alcançado através “do saneamento do meio, do controle das infecções transmissíveis, da educação dos indivíduos em higiene pessoal, da organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico precoce e o tratamento preventivo, do desenvolvimento de um mecanismo social que assegure a cada pessoa um nível de vida adequado para a conservação da saúde”. Ou seja, o objetivo da Saúde Pública seria “proporcionar a cada cidadão condições de gozar de seu direito natural à saúde e à longevidade”. Convenhamos que a amplitude da definição é tal que uma enormidade de ações ao nível social, econômico ou político poderiam ser consideradas de saúde pública. E, com base nela, praticamente todos os problemas de saúde podem ser facilmente convertidos em problemas de saúde pública. Se os autores obedecessem à regra de que a definição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido, tais dificuldades inexistiriam ou seriam menores. Em nossa busca de definições de problema de saúde pública encontramos uma, cientificamente aceitavel, em Forattini (1). Referese ele a uma definição de Nathan Sinai, citada por Mário M. Chaves, na qual o autor estabeleceria três critérios para que um problema de saúde se transformasse em problema de saúde pública: 1) “representar causa freqüente de morbidade e de mortalidade”; 2) “existirem métodos eficientes para sua prevenção e controle”; 3) não estarem eles “sendo adequadamente empregados pela sociedade”. Forattini acrescenta José Carlos de Medeiros Pereira 51 um quarto critério: “ao ser objeto de campanha destinada a erradicálo ocorrer sua persistência além do prazo previsto”. Poderíamos também nos valer dos critérios estabelecidos por Nelson Moraes (2) para avaliar a importância de uma doença transmissível e aplicá-los a qualquer problema de saúde, a fim de verificar se ele adquiriria o status de um problema de saúde pública. Os critérios seriam os seguintes: distribuição geográfica, população em risco, potencialidade endemo-epidêmica, morbidade, mortalidade, letalidade, conseqüências econômico-sociais, disponibilidade de recursos profiláticos e terapêuticos eficazes, viabilidade econômica-financeira do programa de controle e implicações internacionais. O mais grave defeito nessas definições, principalmente na referida por Forattini, é que elas visualizam a sociedade como se ela fosse um todo homogêneo. Não consideram a diversidade de situações existenciais gozadas pelos vários grupos sociais, fundamentalmente pelas várias classes sociais e frações. Quando essas divisões não são consideradas, os índices e coeficientes relativos à saúde tornam-se, em grande parte, abstrações. Especificamente no caso de enfermidades sociais vinculadas a precárias condições de vida, sua prevalência pode ser alta no grupo que vive aquelas condições e praticamente inexistente em grupos sócio-econômicos privilegiados; isto num caso extremo. Mas como quase todas as doenças são determinadas socialmente, em maior ou menor grau, atingindo grupos de risco definidos, o critério de freqüência da morbi-mortalidade fica, muitas vezes, adstrito aos grupos que sejam, de alguma forma, poderosos, com maior capacidade de vocalização e de pressão sobre os serviços de saúde estatais. Assim sendo, a malária, por exemplo, por afetar, geralmente, segmentos populacionais despossuídos de riqueza, poder e prestígio e, conseqüentemente, de condições de reivindicar e de se fazer ouvir pelos meios de comunicação de massa, pode se transformar num problema de saúde pública de menor expressão do que a poliomielite, simplesmente por esta afetar, com maior freqüência do que a malária, pessoas pertencentes às classes 52 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE dominantes. Conseqüentemente, o critério de “freqüente morbimortalidade” deveria ser qualificado, indicando-se o número de casos ou de óbitos provocados pela doença não na população como um todo, mas em segmentos específicos da mesma. A dificuldade talvez esteja no fato de que, quando se consideram as divisões da sociedade na qual o problema esteja ocorrendo, ele pode adquirir outras conotações que não apenas a técnica. 5. O ASPECTO IDEOLÓGICO Referimo-nos já a alguns aspectos ideológicos no que diz respeito tanto à definição de normal e patológico médico-sociais, como de problema social e de saúde pública. A postura ideológica, geralmente, não chega ao nível de consciência dos sujeitos envolvidos na questão. Inclusive, diz-se que uma ideologia eficiente é a que apresenta tais características. No caso do problema social, quando se entende que uma dada situação é socialmente indesejável, o que se está afirmando, muitas vezes, é que ela prejudica a eficiência e a funcionalidade do sistema social, vistas ambas sob a ótica dos grupos dominantes, especialmente. Até mesmo pode ocorrer que esta também seja a ótica dos dominados, por eles terem adotado a ideologia dos dominadores. No caso de problema de saúde pública, a questão pode adquirir contornos assemelhados. Por exemplo, ele pode ser considerado como importante ou não, simplesmente em função da região onde ocorra, independentemente do segmento populacional que esteja atingindo. Suponhamos que, num caso, afete larga porção de grupos sociais que constituem a mão-de-obra de setores econômicos relevantes, em termos do sistema capitalista de produção existente, e que, em outro, atinja populações que vivem em regiões em que predomina a economia de subsistência. A esquistossomose, por exemplo, será um problema de saúde pública muito mais relevante quando atingir bóias-frias envolvidos no corte da cana e na colheita do café em São Paulo do que quando afetar populações nordestinas vivendo, no Sertão ou no Agreste, em economia de subsistência. Em José Carlos de Medeiros Pereira 53 outras palavras, as conseqüências sócio-econômicas do problema são vistas, quase sempre, do ponto de vista das classes possuidoras, situadas em regiões econômica, social e politicamente dominantes. A eficiência e a funcionalidade prejudicadas não são as de qualquer subsistema social, mas as de um determinado. É claro que há também o reverso da medalha. Dado que a definição de problema de saúde pública é, freqüentemente, tarefa que os sanitaristas e os outros profissionais da área atribuem a si próprios; dado também que muito deles, em determinados lugares e momentos, estão situados mais ou menos à esquerda do espectro político-ideológico, há a possibilidade de problemas de saúde que possam render maiores dividendos políticos ao grupo serem transformados em problemas de saúde pública importantes. É interessante destacar aqui como a ideologia serve a diferentes propósitos, até mesmo contraditórios. Vejamos o caso do marxismo mecanicista, que tende a enfatizar exageradamente a determinação econômica de qualquer fenômeno e processo social. Por essa via, as ações na área da saúde são vistas como sempre determinadas por forças econômicas incontrastáveis e a serviço de interesses subalternos dos capitalistas. Os homens, nesta perspectiva, são transformados em autômatos destituídos de vontade. Ora, como o político-ideológico é outro nível de análise significativo do marxismo dialético, os mecanicistas acabam deixando de considerar sua própria e relevante influência sobre os acontecimentos. De qualquer forma, vista a questão sob o prisma ideológico, o problema de saúde pública pode ganhar contornos interessantes, seja quando se procura sua gênese, seja quando nos voltamos para as soluções. A discussão destas se fará mais adiante, mas aqui gostaríamos de acentuar o fato de que uma visão romântica e voluntarista é, às vezes, apanágio dos dois grupos de técnicos ideológicamente em oposição. Uns, os que encaram os problemas como sendo apenas técnicos, vêem sua solução como dependendo tão-somente de ações racionais, cientificamente conduzidas, desconsiderando os aspectos políticos, econômicos e outros envolvidos. 54 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Outros, se formos para o extremo oposto, praticamente só vêem o aspecto político. Desses, uns há que entendem que só após a “revolução” algo se fará; há outros que supõem que ela é iminente, sendo possível apressar sua irrupção desde que assumam uma posição mais decisiva em seu desencadeamento e condução. 6. O PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA COMO PROBLEMA SOCIAL As relações entre problema de saúde pública e problema social podem ser ainda mais estreitas. É que muitos problemas de saúde pública são também problemas sociais e outros, ainda, supostamente de saúde pública, são, na verdade, problemas sociais transvestidos de problemas de saúde pública, como já tivemos oportunidade de assinalar. Ambos os tipos de problemas, às vezes, relacionam-se por estarem vinculados ou ao modo de funcionamento “normal” (no sentido de dentro do esperado, de comum) do sistema sócio-econômico, ou porque têm sua origem na desorganização desse mesmo sistema. No caso do modo de produção capitalista ou de qualquer outro précapitalista, as divisões sociais, às vezes com extremas desigualdades na distribuição de bens e serviços, de status e papéis, de obrigações e direitos, provocam problemas de saúde pública, segundo as definições atrás, e também problemas sociais, no sentido de situações sociais consideradas por todos como indesejáveis. Ou seja, sendo estas sociedades socialmente muito heterogêneas, com diversas classes sociais e frações, com grupos de risco específicos, tais problemas surgirão inevitavelmente, mantendo-se as características próprias daquela formação social concreta. De outro lado, nas sociedades relativamente complexas (seja do ponto de vista social, econômico, político ou cultural), a desorganização social pode facilmente se instalar, sobretudo nos momentos de transição, de mudança para os tipos sociais emergentes. O solapamento de situações tradicionais pode, de um lado, transformar-se em foco de tensões sociais e, de outro, não só estas tensões isoladamente, mas as próprias José Carlos de Medeiros Pereira 55 transformações, sobretudo econômicas, podem provocar problemas de saúde pública. Suponhamos a concentração da propriedade rural, em virtude de as atividades agrícolas na região (por exemplo, monocultura da cana ou mesmo da soja) não mais comportarem a pequena propriedade. A mecanização se instaura, o trabalho rural pode não ser mais contínuo, ocorrem fases de desemprego ou subemprego para os trabalhadores rurais (ainda que vivendo na zona urbana, por causa da intensa migração rural-urbana), as cidades incham em suas periferias. É inevitável, nesses casos, que assistamos a processos de desorganização social, de um lado, e ao surgimento de problemas de saúde pública, de outro. É claro que há problemas de saúde pública que não são problemas sociais. Suponhamos que, num determinado momento, concluam os sanitaristas que o tabagismo é um problema de saúde pública. Pelo menos em nossa sociedade não há indicações de que o vício de fumar seja considerado pela população, ou pelos sociólogos, como tão socialmente indesejável que se tenha transformado em problema social. Pode ser que, da mesma forma, uma dada enfermidade cardiovascular, com tênues relações com a estrutura social, venha a ser considerada problema de saúde pública sem ser, ao mesmo tempo, um problema social. Há, por outro lado, problemas sociais que pouco ou nada têm a ver com a saúde. Os preconceitos em geral, pelo menos para os sociólogos (não necessariamente para a população), são tidos como problemas sociais. Ora, nem sempre eles gerarão problemas de saúde. Outro exemplo: pensemos em movimentos políticos radicais, tanto de direita como de esquerda. Não há indicações de que sejam ou se transformem facilmente em problemas de saúde pública. Não cremos que o fato de um problema de saúde pública ser, ao mesmo tempo, um problema social, facilite sua solução. Não se pode generalizar, é bem verdade, mas, se houver relação, vai ser no sentido de a solução ser apressada, ou encontrar menores resistências, quando o problema de saúde pública gerar um problema sócio-econômico, afetando os interesses de um ou mais grupos 56 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE dominantes. A relação inversa, em que um problema sócio-econômico gera um problema de saúde pública, possívelmente não merecerá uma atenção maior se a solução do segundo implicar que, para que o primeiro seja sanado, se atinjam aqueles interesses. Um exemplo, no primeiro caso, seria o da ancilostomíase. Como, do ponto de vista econômico, é uma doença que diminui, em maior ou menor grau, a capacidade de trabalho e, portanto, a produtividade dos trabalhadores rurais em geral, há maior preocupação estatal, e das classes proprietárias, em que o problema seja solucionado. Um exemplo oposto seria o da desnutrição e da subnutrição. Comumente, elas são causadas por uma desigual distribuição de renda, da propriedade, de bens e serviços etc. Fundamentalmente, pois constituem um problema social. Como sua solução vai depender de mudanças mais profundas na estrutura sócio-econômica, um enfrentamento decisivo do problema dificilmente ocorrerá. É claro que se os problemas de saúde pública estiverem vinculados a problemas sociais cuja gênese se situar no nível institucional ou pessoal, tais resistências tenderão a ser menores, ou mesmo inexistirão, no caso do nível pessoal. Em geral, todos os problemas de saúde pública que afetam definidamente interesses econômicos e sociais de grupos poderosos encontrarão maior receptividade em sua solução. Por outro lado, aqueles problemas dessa ordem vinculados, em sua gênese, a esses mesmos interesses, possivelmente não serão enfrentados com vigor, a não ser, talvez, quando os procedimentos utilizados forem só técnicos. Por exemplo, a doença de Chagas poderá ser combatida sem maiores resistências desde que se esteja utilizando o expurgo de barbeiros através do uso de inseticidas. Mas se a solução aventada implicar em melhoria das condições habitacionais da população em risco, possivelmente aquelas resistências crescerão. Os interesses afetados dos grupos dominantes, e que dificultam soluções, não são apenas de ordem econômica; podem ser sócio-políticos também. Assim, suponhamos que o combate a um problema de saúde pública dependa da racionalização dos órgãos públicos voltados para a questão, por estarem excessivamente burocratizados, porque o empreguismo é José Carlos de Medeiros Pereira 57 demasiado, e também a incompetência. Se essa racionalização afetar interesses clientelísticos de pessoas e grupos políticos ligados ao poder, porque implicaria, por exemplo, na demissão de funcionários ociosos ou incompetentes e na contratação de outros em função do mérito, é possível encontrar-se igualmente resistência daqueles, que se sentirão prejudicados pela adoção das medidas organizativas. Evidentemente, se um problema é, simultaneamente, de saúde pública e social, e se assim for considerado por todos, pela população e pelos profissionais da área, se houver resistências, elas não serão manifestadas claramente. Nas atuais condições de esclarecimento da população, dificilmente haveria algo semelhante à revolta contra a vacina obrigatória e contra os mata-mosquitos que Oswaldo Cruz e o governo Rodrigues Alves foram obrigados a enfrentar no começo deste século. 7. PRIORIDADES E MUDANÇA DE OPINIÃO Ainda no tocante às soluções, em ambos os tipos de problema não há critérios bem definidos quanto ao estabelecimmento de prioridades, o que não é de se espantar, dada a vinculação freqüente deles, já assinalada, com interesses político-econômicos e sociais de grupos dominantes. Por vezes, enfatiza-se até mesmo um problema menos relevante, do ponto de vista social e sanitário (por exemplo, com o uso dos meios de comunicação de massa) , para que outros, mais importantes daquele ponto de vista, sejam obscurecidos. Foi o caso, talvez, de se exagerar a questão da violência urbana, no começo da década de 80, como problema social, em face do desemprego e subemprego explosivos da época. Pode-se também dar grande destaque à AIDS como problema de saúde pública, toldando outros, como o da malária ou o da febre amarela. Essas coisas ocorrem não só porque as propostas de solução de problemas relevantes, sociais e de saúde pública, podem afetar o funcionamento e a dinâmica “saudáveis” do sistema sócio-econômico vigente (da ótica de alguns); elas se dão também pelo excessivo tecnicismo dos profissionais da área e por influência dos meios de 58 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE comunicação. No caso destes, é evidente que a AIDS constitui muito mais notícia jornalística do que a prosaica malária, por exemplo. Assemelham-se os problemas sociais e os de saúde pública, igualmente, nas tentativas de seu enfrentamento mediante legislação repressiva. Esta é uma característica bem latina, sobretudo latinoamericana, indicando nossa herança cultural ibérica comum. Homens de governo, políticos em geral, mas também sanitaristas, freqüentemente entendem que um dos bons caminhos para fazer face a determinados problemas é legislando a respeito. Isto, às vezes, é realmente correto. Ocorre que, comumente, há pouca preocupação com o fato de essa legislação ser ou não socialmente aceitável, anódina, ou ainda com a existência ou não de condições concretas para fazêla cumprir. Os exemplos a respeito são abundantes. Quando se trata de problemas relacionados a grupos ou pessoas cujos comportamentos geram doença (hábitos alimentares, modos de trabalhar, vícios etc.) ou são eles próprios tidos como problemas sociais (discriminação racial, por exemplo), muitas vezes se tenta alterá-los através de influências educacionais formais ou, o que é mais comum, informais, usando os meios de comunicação de massa e outros recursos. A mudança de opinião pressuposta, para que hábitos e comportamentos se alterem, não é fácil de ser conseguida. Em áreas em que predominam as emoções, argumentos racionais evidentemente têm pouca efetividade. Os exemplos de pessoas e grupos admirados é que costumam exercer influência positiva. Ocorre que pessoas e grupos formadores de opinião variam amplamente, conforme a subcultura, a classe social, o grupo etário etc. No passado, as classes ditas altas, os sacerdotes, a aristocracia e outros grupos situados no topo da hierarquia social exerciam bastante bem essa função. Hoje, no entanto, os padrões reconhecidos de estratificação social são muito fluidos para que isso se dê com a intensidade anterior. Há líderes de opinião para cada momento e para cada meio sócio-cultural. Os meios de comunicação atuais, especialmente a televisão, criam ídolos e os consomem com grande rapidez. Crianças e adolescentes, sobretudo, pelas próprias condições de sua situação José Carlos de Medeiros Pereira 59 de transição, mudam muito de ídolos. De qualquer forma, professores, médicos, sacerdotes e outros profissionais de igual categoria não são necessariamente os melhores formadores de opinião em relação a variados problemas, inclusive em relação àqueles que lhes dizem respeito. Pelé, realmente, pode ser mais ouvido no tocante a consumo de medicamentos (pelo menos em certos grupos sócio-culturais) do que um médico. Aqueles que pretendem conseguir mudanças de opinião da população para conseguir solucionar problemas sociais ou de saúde pública poderiam muito bem se alicerçar em C. Wright Mills(3). Verificou ele que livros, revistas, artigos, conferências etc. antes reforçam nossa opinião do que mudam, porque tendemos a ler e a ouvir apenas aquilo que vem ao encontro dos nossos pontos de vista. Geralmente lemos e escutamos o que é de nosso agrado. Mudanças de opinião vinculam-se muito mais a contatos face a face com pessoas que admiramos, gostamos e respeitamos. Será difícil, por exemplo, que numa conferência na qual se esgrimam argumentos contra o tabagismo, dada por pessoas desconhecidas, encontrem-se muitos fumantes inveterados. Se queremos atingir um dado grupo (o dos adolescentes, por exemplo) , precisamos saber quais são seus grupos de referência positiva, quais seus ídolos, e transformá-los, se possível, em formadores de opinião contra o hábito ou comportamento que queremos modificar. 8. CONSEQÜÊNCIAS NEGATIVAS DA INTERVENÇÃO E AMPLITUDE DOS MODELOS EXPLICATIVOS Apesar de tudo, os problemas que se apresentam ao administrador de saúde, ao técnico em planejamento e a outros profissionais dos setores que estamos tratando, em muitos casos, podem ser de fato solucionados na esfera puramente técnica. Isto ocorre, sobretudo, em se tratando de problemas de saúde pública. Se todos o reconhecem como tal e o querem ver solucionado, se há condições técnicas para isso, e a correção não se faz a contento, há 60 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE uma grande possibilidade de que a falha seja do órgão técnico encarregado. Já nos referimos à freqüente incompetência burocrática. O mais das vezes, porém, problemas que não são apenas técnicos são enfrentados como se o fossem, e não por desejo e imposição de grupos dominantes. Em um e outro caso, por vezes, os encarregados de amainar, controlar ou mesmo solucionar inteiramente tais problemas, baseando-se em diagnósticos imperfeitos, que demonstram incompreensão de aspectos cruciais da economia e sociedade modernas, tomam decisões que levam a soluções com conseqüências negativas não previstas. Em outras palavras, quando não se considera o comportamento dos agentes sociais envolvidos, sua volição, as muitas combinações de fatores e condições de várias ordens (não só econômicas), a intervenção deliberada, planejada, nos processos sóciosanitários deixa a desejar. Na verdade, o alcance da intervenção na solução dos problemas depende muito de se operar com paradigmas teóricos suficientemente relevantes na explicação dos mesmos. Há, nesse ponto, uma certa dessemelhança ente sanitaristas e sociológos e outros cientistas sociais. Os primeiros tendem mais (embora haja exceções notáveis) ao exagero nas colocações ditas práticas, ficando na periferia das questões ao só considerarem as causas mais imediatas e visíveis. Disso podem resultar equívocos graves. É como se um psicológo só tivese em conta, como causa da neurose, a incapacidade do paciente em se ajustar ao seu meio social, sem se perguntar se esse meio é, em si mesmo, patológico, caso em que o não-ajustamento poderia ser mais saudável. As boas soluções dos problemas sociais e dos de saúde pública vinculados a eles vão depender, pois, do desenvolvimento de construções teóricas, no campo sócio-econômico, principalmente, que dêem conta dos fatores e condições que levam à sua produção e impedem os grupos e agentes sociais envolvidos de resolvê-los. É que, conseguida a explicação do fato, já se terá dado um grande passo em direção à solução. Infelizmente, são freqüentes as situações em que os responsáveis por ela têm uma visão limitada da questão causal e dos interesses conexos, demonstrando um conhecimento leigo da José Carlos de Medeiros Pereira 61 vida em sociedade e do funcionamento e dinâmica do sistema econômico. Há, evidentemente, como assinalamos, o outro lado da moeda. Sociólogos, principalmente, voltados ao estudo de problemas sociais, freqüentemente se preocupam em demasia com os aspectos teóricos das questões, negligenciando a prática concreta, a efetiva solução dos mesmos. De qualquer forma, o exagero nas colocações ditas práticas, inevitavelmente limitadas, tem uma explicação simples. Sabidamente, qualquer intervenção planejada na realidade social encontra sempre menos resistência quando se trata de interferir no nível individual. Como já foi dito, realizar mudanças controladas no plano institucional ou estrutural é bastante difícil. Quaisquer que sejam as alternativas que se colocam para o planejador, contudo, a solução de um problema que envolva o comportamento de pessoas e grupos sociais só pode ser conseguida, em grande parte, através da elevação do nível de consciência social das questões. Para isso, por vezes, realmente será preciso lançar mão de legislação restritiva para os recalcitrantes, mas sempre como solução parcial, auxiliar. Inclusive porque seria de todo inconveniente, depois de tantos anos de regime relativamente totalitário, contribuir para aumentar o autoritarismo que, de modo geral, sempre vigiu entre nós. As tentativas de tentar normatizar a vida de membros de certos grupos e o funcionamento de algumas instituições só se impõem, no caso de problemas de saúde pública, quando muitos estão sendo prejudicados pelas ações egoístas de uns poucos. Seja como for, a correção espontânea de hábitos e comportamentos prejudiciais à saúde não é fácil porque, como já foi dito, ela geralmente só é importante para as pessoas quando é perdida. Repetindo, em condições normais, mesmo vícios nocivos à saúde, a longo e médio prazo, podem até ser considerados, a curto prazo, em determinadas circunstâncias, como contribuindo para a saúde, nos termos da definição da OMS. Em suma, os planejadores não podem ter uma visão simplista das motivações humanas, porque, nesse caso, as tentativas de solução serão quase sempre condenadas ao fracasso, ou serão simplesmente inócuas. 62 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9. CONCLUSÕES Neste artigo, tivemos o intuito de mostrar algumas semelhanças no modo de definir, dignosticar e solucionar problemas sociais e de saúde pública. Uma das primeiras semelhanças surgiria já na própria definição: a que segmento social caberia considerar alguma coisa, no plano social ou sanitário, como constituindo um problema? Entre sociólogos, há divergências a respeito: uns crêem que a incumbência cabe à população; outros, a algum de seus segmentos; outros, ainda, somente aos técnicos e cientistas sociais; outros, por fim, à população e aos técnicos simultâneamente Entre os sanitaristas, epidemiólogos e outros profissionais da área da saúde, parece-nos que há uma crença definida de que a incumbência lhes deve caber. De qualquer forma, a definição está intimamente ligada ao entendimento do que seja normal e patológico; em termos sociais e sanitários, este entendimento varia amplamente, sobretudo quando se trata de ações, relações, processos sociais etc. O consenso é maior no caso da saúde, se bem que, mesmo aí, há diferenças, especialmente quando os supostos ou reais problemas de saúde pública relacionam-se a problemas sociais. Em grande parte, a dificuldade de se chegar a uma noção mais ou menos aceita por todos quando ao que seja normal e patológico liga-se ao fato de os vários grupos sócio-culturais terem objetivos diversos e até mesmo contraditórios, não só em relação aos outros grupos, como em relação aos seus próprios objetivos. Os homens visam alcançar vários fins ao mesmo tempo, não necessariamente articulados entre si. Conseqüentemente, atingir um muitas vezes prejudica a consecução de outros. Além do mais, os valores pelos quais se guiam podem ser igualmente contraditórios. Em se tratando de saúde, por exemplo, nem sempre ela se coloca como prioritária; no aqui e agora, outros objetivos que com ela conflitam podem ser vistos como mais relevantes. Isto tudo é perfeitamente explicável. Afinal, os valores que lhes dão origem e significado vinculam-se bastante ao nível irracional da existência, ao emocional, principalmente, daí os fins não serem escolhidos racionalmente. Desse modo, nem José Carlos de Medeiros Pereira 63 sempre se conseguem mudanças tão-somente pela racionalidade dos argumentos apresentados. Na verdade, o caráter ideológico das questões avulta aqui, quer se trate de problemas sociais, quer de saúde pública. No caso destes, vários agravantes ainda chamam a atenção. Um deles é o não estabelecimento de critérios claros e objetivos do que seja a própria saúde pública. As definições não delimitam bem a extensão do conceito, ou seja, não seguem, em geral, a regra de que uma definição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido; são por demais amplas. De outro lado, também não são estabelecidos critérios relativamente precisos para considerar um problema de saúde como sendo de saúde pública. Mais ainda, a indefinição a respeito e os interesses em jogo (é claro) fazem com que muitos problemas sociais sejam transformados em problemas de saúde, pública ou não. Resultado: problemas que demandam soluções, sobretudo políticas, são enfrentados apenas tecnicamente. Em parte, parcela ponderável de sanitaristas e epidemiologistas não se dá conta disso, em virtude de sua visão limitada da sociedade e da economia. Muitas vezes vêemnas como um todo homogêneo, não distinguindo claramente suas várias divisões, pincipalmente aquelas que opõem as classes sociais umas às outras. A despolitização dos problemas, freqüentemente, faz com que alguns, mais ou menos irrelevantes, sejam vistos como prioritários, em detrimento daqueles realmente importantes, pelo menos em termos do conjunto da população. Se os problemas de saúde pública, e mais ainda aqueles estritamente sociais, ligam-se a condições e fatores sócioeconômicos e políticos, é evidente que se coloca a necessidade de intervenção deliberada na realidade social. Espera-se, nesse caso, que alguns segmentos sociais (inclusive os constituídos por planejadores sociais e da saúde) realizem uma mudança controlada, isto é, planejada. De fato, seria mais ou menos utópico esperar que a correção desses problemas se desse espontaneamente. Aqui, nos dois tipos de problemas, surgem novas dificuldades. Muitos desses problemas, claramente, vinculam-se ao nível institucional ou mesmo 64 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE estrutural. Ocorre que a intervenção nesses planos, sobretudo no segundo, é sempre muito controversa, provocando o máximo de resistências. No plano individual já ocorre o contrário: freqüentemente a interveção nele é vista positivamente. Mas, de modo geral, é inócua quando os problemas são mais graves. Apesar disso, parte ponderável dos planejadores em ambas as áreas, mas principalmente na sanitária, tende a enfrentá-los mediante intervenção nesse plano pessoal (em parte por formação precária, mas também por razões ideológicas, ou simplesmente porque são funcionários, servindo a governos marcadamente interessados em despolitizar os problemas). Ou seja, agem como se não houvesse contradições maiores entre os vários segmentos sociais, decorrentes inclusive de sérios conflitos de interesse. É claro que, por vezes, técnicos e cientistas sociais e da área de saúde têm uma relação de negatividade com a ordem social vigente. Nesse caso, não se preocupam tanto com a funcionalidade sincrônica do sistema; ideologicamente, visam antes sua superação. Contudo, radicais e reformistas, por formação ou por condições objetivas, costumam ficar ao nível do discurso. A revolução se torna uma virtualidade, algo a ser examinado no âmbito da academia. Seja como for, diagnósticos imprecisos ou mesmo errôneos, pelo não entendimento dos fatores causais mediatos e mais abrangentes, podem levar a intervenções infelizes. Por vezes, elas provocam conseqüências negativas não previstas até mais graves do que o problema que se pretendeu enfrentar. Isto mostra a necessidade de os planejadores se guiarem por modelos interpretativos mais sofisticados, teórica e politicamente corretos. De fato, em qualquer sociedade mais complexa, muitos problemas sociais ou de saúde pública só podem ser adequadamente solucionados se a intervenção se faz nos níveis fundamentais, e não nos mais ou menos marginais à questão. Para isso, contudo, um projeto de transformação precisa ser incorporado por um grupo politicamente capaz de implementá-lo. José Carlos de Medeiros Pereira 65 RESUMO Neste artigo são discutidas algumas questões mais ou menos comuns a ambos os tipos de problemas e certas relações que entre eles existem. Uma questão comum seria a da definição de problema; a quem compete ela? Mostra-se como variam as noções de normal e de patológico e como esta variação, em grande parte, está associada às divisões, sobretudo em classes sociais, existentes nas sociedades complexas. O autor enfatiza o fato de os vários grupos sociais terem objetivos e valores não só diversos como contraditórios, o que dificulta o estabelecimento do consenso, principalmente em relação às soluções. Ele explica algumas influências ideológicas e insiste na necessidade de os diagnósticos e soluções propostos se alicerçarem em modelos interpretativos teoricamente mais sofisticados. Sem que isso se dê, é possível que as intervenções planejadas para corrigir o problema conduzam, elas próprias, a conseqüências negativas não previstas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1 - Forattini, O. P., 1976. Epidemiologia geral, Edgard Bluchher/EDUSP, p. 60, São Paulo; 2 - Moraes, N., Oito doenças transmissíveis de importância no Brasil, Diálogo Médico, 2(2) s. d.; 3 - Mills, C. W., 1965. Os meios de comunicação de massa e a opinião pública. In Poder e Política. Zahar, Rio de Janeiro. 66 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 3. SOBRE CONTRACEPÇÃO José Carlos de Medeiros Pereira 69 3.1. O DIREITO DE NÃO TER FILHOS* O planejamento familiar está sendo discutido na imprensa por autores das mais variadas tendências ideológicas e formações intelectuais. O ponto de vista adotado varia amplamente. Ora se procura mostrar o dedo alienígena, ora os interesses de pessoas, grupos e instituições. O enfoque por vezes é econômico-social, mas predomina, creio, o político-ideológico. O que sempre me chama a atenção nesse debate é que, raramente, nas colocações feitas por autores de diferentes correntes ideológicas e científicas, transparece a preocupação com os possíveis interesses e direitos das pessoas que mais sofrem o problema: as mulheres em idade fértil, sobretudo as pertencentes aos grupos social, econômica e culturalmente marginalizados. Nesse ponto se dão as mãos alguns autores que se filiam ao pensamento de esquerda, os conservadores bispos e papas da Igreja Católica (pelo menos no tocante a este ponto) e os pensadores que poderiam ser considerados como situados à direita do espectro político. Podem discordar se deve ou não o Estado ou qualquer instituição social interferirem, no sentido de pôr à disposição da população conhecimentos, instrumentos e medicamentos que permitam a realização da anticoncepção. Mas, de modo geral, estão aparentemente concordes em que a população não precisa ser ouvida, certamente porque a encaram como composta de pessoas destituídas de direitos específicos e de capacidade de decidir por si mesmas. O atual Papa (João Paulo II), por exemplo, parece ter uma concepção de que aos homens não é permitido pensar com suas * Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(12), 1984, pp. 2171-2. 70 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE próprias cabeças. O sentir e agir dos mesmos, no que diz respeito a um assunto tão íntimo, como o das relações sexuais, inclusive entre marido e mulher, são invadidos com uma sem-cerimônia que, a mim pelo menos, choca. Mas se trata de posição que não tem nenhuma relação com o mundo moderno e que, de fato, não afeta senão a uma minoria muito pequena de crentes que levam demasiado a sério posições tão dogmáticas. Pelo que sei, as mulheres católicas engravidam e abortam por razões que nada têm de religiosas e que estão muito mais relacionadas à pobreza e à ignorância. Quanto aos autores mais conservadores, sua concepção do problema do planejamento familiar me desgosta pelo fato de tenderem a estabelecer uma relação demasiado direta, mas inversa,entre crescimento econômico e desenvolvimento social e diminuição de taxa de natalidade. Lendo alguns de seus artigos temos a impressão de que o determinante na promoção da riqueza social é a diminuição do número de filhos. Ocorrendo isso, quase automaticamente (assim parece em alguns textos) diminuiria a população de marginais, de pobres, de deserdados pela estrutura sócioeconômica vigente. É claro que, no atual estágio de avanço do capitalismo, com o uso de tecnologia poupadora de mão-de-obra, um excesso de população adulta desqualificada e com restrito poder de consumo, transformou-se em disfuncional para o sistema. Não lhe interessa a existência da mesma porque ela pouco ou nada contribui para o processo de valorização do capital, e também por exigir freqüentes vezes, recursos materiais e humanos para ser controlada socialmente (por ser foco de tensão social). A proposta desses autores, ainda que outros sejam contra ela simplesmente por ser conservadora, no fundo, por vias transversas, atende às solicitações das milhões de mulheres que desejariam ter condições de fugir à maternidade indesejada e que, em elevadíssima proporção, as leva ao aborto provocado. No caso dos que se manifestam sobre o planejamento familiar, e que são, de um modo ou de outro, vinculados ao pensamento de esquerda, o problema é mais bem percebido. Ou seja, entende-se José Carlos de Medeiros Pereira 71 que, historicamente, a queda nas taxas de natalidade ocorre à medida que se produz um processo de desenvolvimento econômico e social. Eles têm claro que a variável determinante é o desenvolvimento, sendo o crescimento demográfico antes efeito do que causa. No entanto, padecem, freqüentes vezes, de uma visão mecanicista da questão, pois não percebem que estamos diante de uma totalidade em que crescimento demográfico e desenvolvimento sócio-econômico se condicionam e estimulam reciprocamente. Certamente não é pelo simples fato de se controlar o número de nascimentos que o país aumentará sua riqueza social. Mas é também verdadeiro que, diante de uma política econômica corretamente conduzida em direção àquele objetivo, a restrição ao crescimento demográfico pode produzir efeitos positivos. Sobretudo quando o tipo de tecnologia utilizado tende a poupar mão-de-obra. A concordância com as colocações normalmente feitas por autores à esquerda, não significa, contudo, que devamos endossar uma freqüente conseqüência por vezes tirada dessas teses por alguns deles. No caso, a de que não se deve pôr à disposição dos segmentos sociais inferiorizados de vários modos (sobretudo econômica e culturalmente) conhecimentos e condições materiais para a prática da anticoncepção. É como se puníssemos duplamente esses segmentos: por não terem esses conhecimentos e condições, negamos a eles o direito que reconhecemos às camadas sociais privilegiadas. Pior ainda é quando a luta contra esse direito se estriba numa equivocada teoria: a de que o aumento da população lúmpen levaria a um grau tal de tensão social que provocaria uma radical alteração da ordem social em direção ao socialismo. Não vou discorrer a respeito do assunto, mas apenas lembro que uma revolução social se faz através da ação de classes e frações de classe com consciência de objetivos políticos definidos. O lúmpen, via de regra, sempre serviu aos interesses das classes conservadoras. É notório que há grupos vinculados ao pensamento de esquerda que têm uma posição mais consistente. Que defendem o direito da 72 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE mulher ao uso de seu corpo, inclusive sexualmente, sem a conseqüência de uma maternidade indesejada. E que, ao mesmo tempo, lutam para que a redução das taxas de natalidade se faça pelo caminho seguido pelas nações hoje tidas como social, econômica e culturalmente avançadas, isto é, pelo do desenvolvimento sócio-econômico. Qualquer, porém, que seja a motivação ideológica, julgo que o direito de mulheres de qualquer classe social a recusar uma maternidade indesejada deve ser um ponto a ser aceito sem qualquer contestação. José Carlos de Medeiros Pereira 73 3.2. ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO* I .INTRODUÇÃO. De vez em quando recrudescem entre nós os debates a respeito da participação governamental no planejamento familiar. De uns anos para cá, o Executivo federal, depois de décadas de resistência a qualquer interferência nessa área da regulação da fertilidade, parece ter aceito a necessidade de se fazer algo no sentido de favorecer a redução das taxas de crescimento populacional. Até recentemente, as medidas tomadas foram sempre no sentido inverso, ou seja, com o fito de promover esse crescimento. Alguns poderiam dizer que tal guinada decorre de pressões do FMI. Entretanto, já em 1974 o governo brasileiro aceitara, numa reunião promovida pela ONU, em Bucareste, que cabia ao Estado proporcionar informação e serviços que permitissem aos casais o planejamento de sua prole. A política natalista que até então vigorava, pelo menos ao nível do discurso, vinha ao encontro das posições defendidas pela Igreja Católica e por muitos dos altos membros das Forças Armadas, ainda que por razões diferentes. Para os segundos, especificamente, os grandes espaços geográficos vazios do País só poderiam ser ocupados se a população crescesse em ritmo acelerado. A presença do Gal. Geisel na Presidência da República, luterano relativamente infenso às pressões da Igreja Católica, e a crise econômica que acabou se abatendo sobre o Brasil, dando um * Artigo Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vol 37, nº 11, novembro de 1985, pp. 1772-1782 74 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE fim à euforia dos tempos de “milagre”, fizeram com que as posições governamentais fossem mudando. Até mesmo na cúpula da Forças Aramadas elas tenderam a se alterar. Tanto assim que, mais recentemente, o Brig. Waldir de Vasconcelos, chefe do Estado Maior das mesmas, tem defendido, freqüentemente, a necessidade premente de o Brasil passar a desenvolver uma política antinatalista. Mas já em 1977 o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social aprovara o planejamento familiar como parte do Programa Nacional de Proteção Materno-Infantil. Em 1981, por outro lado, surgiu o Grupo de Parlamentares para Estudos de População e Desenvolvimento com o objetivo de atuar no Congresso e pressionar o governo para adotar uma política demográfica do tipo mencionado. Em 1983, no âmbito do Ministério da Saúde, formula-se o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, que, entre outros fins, propõe a implementação de métodos e técnicas de anticoncepção. Os debates travados a respeito do assunto, de modo geral, têm caráter profundamente ideológico, como não poderia deixar de ser. É que as conotações políticas da questão são inegáveis. Cremos que estas são afirmações de senso comum, apesar de todos os esforços das partes envolvidas de racionalizarem suas posições com argumentos técnicos a propósito de virem ao encontro de valores sancionados positivamente em nossa sociedade (proteção à saúde, promoção do desenvolvimento econômico e social, melhoria de qualidade de vida de crianças e mulheres etc.). Não há nada de extraordinário nisso, já que decisões realmente significativas para vida social se vinculam sempre a uma determinada maneira de encarar o mundo. Em face disso o que pretendemos fazer será uma síntese crítica dos argumentos que têm sido aduzidos pró e contra o planejamento familiar. Nessa exposição não teremos, de modo algum, a pretensão de sermos neutros. Inclusive porque somos daqueles que crêem, com Weber, que não há qualquer parentesco interno entre objetividade e ausência de tomada de posição. José Carlos de Medeiros Pereira 75 II. ARGUMENTOS ANTINATALISTAS DE CARÁTER ECONÔMICO. Ainda que normalmente os contendores concordem, um pouco hipocritamente, cremos, que no nível estritamente individual, a contracepção seja um direito humano básico, a nível global a discussão assume outras conotações. Assim, no primeiro nível, eles podem entender que, de fato, a mulher tem todo o direito de decidir, sem interferência de qualquer autoridade, seja religiosa, política, científica ou de qualquer natureza, se deseja ou não conceber. Sob outra ótica, entretanto, argumentos de índole social, econômica, política, militar, sanitária etc. são esgrimidos pelos que são pró ou contra uma dada política demográfica. Na verdade, a discussão a respeito da contracepção (e sobre a maneira de ela ser realizada), apresenta facetas múltiplas já que depende da ótica através da qual o problema é encarado. Tal ótica é tão variada que enquanto uns consideram elogiosa, aceitável e democrática uma dada medida, outros a ela se oporão encarando-a negativamente. Comecemos por argumentos de natureza econômica favoráveis a uma política antinatalista. No Brasil, poderíamos tomar Mário Henrique Simonsen, exministro tanto da Fazenda como do Planejamento e reputado professor de Economia, como apresentador de pontos de vista típicos daqueles que apoiam tal política por razões de natureza econômica. Diga-se de passagem que ele era ardoroso propugnador do desenvolvimento de atividades de regulação da fertilidade mesmo quando o governo brasileiro a elas se mostrava avesso. Num artigo intitulado, significativamente, “Aritmética dos coelhos” 1 , ele apresenta uma série de argumentos dessa ordem. Eles, geralmente, assumem que os países mais ou menos subdesenvolvidos se caracterizam por seu explosivo crescimento demográfico. Em face disso, haveria uma excessiva pressão sobre o emprego, sobretudo quando tais países, em seu esforço de industrialização, se utilizaram de técnicas de capital intensivo, poupadoras de mão-de-obra. Não 1 Cf. Cap. IV de Brasil 2001, APEC, Rio, 1969. 76 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE teria sentido, a esta altura dos acontecimentos, discutir se o modelo econômico-industrial adotado poderia ser outro; que não deveríamos ter copiado técnicas de países industriais avançados com características demográficas muito distintas. O que importaria é que, hoje, teríamos um grave problema de ajustamento entre a estrutura econômica e a demográfica. E enfrentá-lo dependerá da perspectiva ideológica de cada um. Autores como Simonsen supõem sempre, evidentemente, que há uma inegável relação causal negativa entre crescimento econômico e desenvolvimento social de um lado, e grande expansão da população de outro. Tal expansão impediria ou, pelo menos, tornaria mais difícil a realização daqueles outros processos. Deixando de lado a relação positiva inversa, traduzida no fato de que, em contrapartida ao fato apontado, teríamos a redução dos índices de natalidade à medida que houvesse um processo de desenvolvimento econômico e social, nosso autor arrola 4 principais argumentos para mostrar apenas o quanto é contraproducente um elevado crescimento demográfico sobre o processo mencionado atrás. O primeiro desses argumentos seria o que ele chamou de “efeito aritmético”. Sustentando aqui, como Malthus, de que PIB e população são variáveis independentes, conclui que quanto maior é a população de um país, maior o divisor pelo qual terá que ser dividido esse PIB. Não crescendo o dividendo (o PIB) na mesma proporção do aumento da população, a renda “per capita” (o quociente) poderia até retroceder. É claro que não se diz nada a respeito da estrutura da distribuição de renda, a qual pode ser tão desequilibrada que, mesmo quando há recessão econômica, uns continuam se apropriando de parcelas crescentes da renda nacional. Em outras palavras, a discussão é abstrata, puramente matemática, contábil por assim dizer. Um segundo ponto discutido diz respeito ao “efeito infra-estrutura social”. Por tal efeito ele se refere à possibilidade de uma grande população fazer com que haja desvios de muitos recursos para investimentos sociais, como habitação, saúde, educação, infra-estrutura urbana etc. Desconsiderando o fato de que são os homens que produzem e não os equipamentos, ele se José Carlos de Medeiros Pereira 77 limita a estabelecer que como esses investimentos geram pouco produto, piora a relação entre capital investido e produto obtido. Um terceiro aspecto negativo de um grande crescimento demográfico seria o “efeito pirâmide etária”, que se poderia expor assim: quando é muito elevada à proporção de jovens e crianças, aumenta o número de pessoas inativas que deverão ser sustentadas pela população economicamente ativa. Em outras palavras, esses jovens e crianças desviam uma quantidade muito grande de recursos que poderiam ser aplicados na melhoria do nível de vida de uma população menor. Por fim, teríamos o “efeito emprego”: havendo grande expansão demográfica, precisa-se de maior número de empregos e, para gerálos, pode ser necessária a utilização de técnicas de baixa produtividade “per capita”, o que impediria o país de sair do subdesenvolvimento. Como sempre, não se diz que a decisão quanto a adotar esta ou aquela tecnologia dificilmente é dos governos e sim dos empresários. Ora, estes usam técnicas de capital intensivo inclusive quando há excesso de mão-de-obra, por outras razões que nada tem a ver com emprego. Como se vê, trata-se de um conjunto de argumentos bem típicos do sr. Simonsen. Eles nos dizem, em síntese, que o fator mais importante da produção é o equipamento e não os homens. Diminuindose a quantidade destes, sobretudo de pobres, teríamos um mundo melhor porque sobraria mais ainda para os que possuem o fator de produção escasso, ou seja, o capital. Seria graças a este, fundamentalmente, que ocorreria o processo de crescimento econômico. Segundo esta visão da questão, por outro lado, estão inteiramente afastadas as possibilidades de se alterar o sistema sócioeconômico e político vigente. Tem-se a impressão de que as leis que regeriam esse sistema seriam permanentes e não, como de fato são, construções humanas, histórico-sociais e portanto passíveis de modificação se surgirem outras relações de dominaçãosubordinação. Mas Simonsen também produziu, em nosso entender, argumentos de melhor quilate científico, técnico e político favoráveis à sua posição. Por exemplo, ele descrê, com razão, dos efeitos 78 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE benéficos de uma grande população sobre a expansão do mercado. Ainda que a posição de seus oponentes sobre o assunto possa ser parcialmente correta em algumas situações, concordamos com ele que uma grande população pobre não necessariamente leva o mercado a expandir-se. A respeito disso, nosso autor chama a atenção para o fato de que se a grandeza da população fosse o principal estímulo ao crescimento econômico e à expansão do mercado, então China e Índia e não Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão seriam os principais países do mundo, economicamente falando. Ele, igualmente, aponta para algumas conseqüências sociais deletérias quando há um rápido crescimento da população, especialmente urbana. Nesse caso, muito freqüentemente, as cidades tendem simplesmente a inchar, num processo sociopático, em que surgem problemas sociais graves, como analfabetismo, alcoolismo, prostituição, aumento de criminalidade, subalimentação, más condições de moradia e de saneamento, marginalidade cultural (dada a dificuldade de as levas de migrantes rurais ajustarem-se com rapidez e adequadamente ao sistema urbano e muitas vezes também industrial) etc. Um outro argumento de peso levantado por Simonsen é que boa parte da população, especialmente feminina, realmente não deseja ter mais filhos. Só os tem por não dispor ou do conhecimento de medidas contraceptivas ou de condições econômicas para delas fazer uso. O resultado pode ser um extraordinário aumento do número de abortos provocados. Neste último ponto somos levados a concordar com o ex-ministro uma vez que, segundo alguns, está por centenas de milhares o número de abortos provocados anualmente no Brasil. III – ARGUMENTOS NATALISTAS TAMBÉM DE NATUREZA ECONÔMICA. Contra os argumentos, sobretudo de ordem econômica, levantados por Simonsen e outros neomalthusianos, dos quais tomamos o autor citado como modelo, outros se colocam seja contra o planejamento familiar, seja contra o controle populacional, esgrimindo, José Carlos de Medeiros Pereira 79 da mesma forma, considerações de ordem econômica. Esses autores entendem que a visão do problema se altera radicalmente se levamos em conta a possibilidade de alteração da estrutura sócio-econômica existente. Assim, em relação aos efeitos do crescimento da população sobre a renda “per capita”, afirmam que, dependendo das condições existentes, uma população em rápido crescimento pode representar um fator de primeira plana no crescimento econômico. Crêem, por exemplo, que um país como o Brasil poderia usar com mais intensidade o fator trabalho de que temos em abundância. É claro que eles estão supondo que as instituições estatais têm razoáveis condições de interferir no uso de uma tecnologia intermediária, que usasse mais mão-de-obra. Argumentam que há uma indiscriminada e desnecessária adoção de tecnologia poupadora de mão-de-obra não só por empresas multinacionais mas também pelas nacionais e estatais, inclusive estimuladas por empréstimos favorecidos obtidos junto ao sistema financeiro estatal. A conseqüência, segundo a visão do problema por parte desses autores, é a transformação de uma larga faixa de nossa população em marginal (econômica, social e culturalmente) sobretudo por não encontrar no sistema econômico um lugar adequado. Transplantando modelos econômicos inconvenientes às nossas necessidades e condições é que transformamos homens em fator de produção relativamente supérfluo, e o capital em fator básico. Exemplificam os que defendem essa posição, com o caso dos próprios Estados Unidos, cujo crescimento econômico e desenvolvimento social está bastante vinculado a um grande crescimento populacional, graças, inclusive, ao recebimento dos excedentes populacionais europeus. (E também, diga-se de passagem, a uma política liberal de farta distribuição de terras, sem entraves legais maiores, ao contrário do que ocorreu sempre no Brasil em que elas sempre foram monopolizadas por uma pequena fração da população bem situada política e economicamente. Tal política, evidentemente, transformava rapidamente os agricultores em consumidores de bens industrializados, estimulando a economia industrial). 80 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE Aqui seria preciso fazer um pequeno reparo na argumentação. É que o crescimento econômico dos Estados Unidos deveu-se, sem dúvida, entre outros fatores, ao crescimento da população. Mas é conveniente ressaltar que o ônus inicial da formação dessa mão-deobra, que, em parte, já chegava adulta, coube aos países de origem. Seria o caso, no Brasil, do Estado de São Paulo, que foi a região que mais recebeu imigrantes europeus e japoneses (e também mineiros e nordestinos), já adultos, ou seja, em idade produtiva. Isto significa que o custo de sua formação recaiu sobre outros países e regiões. De qualquer modo, citam-se, como exemplos favoráveis ao argumento de que a população, pelo menos numa fase inicial do processo de crescimento econômico, é um fator estimulante deste, os casos do Brasil e do México. Realmente, eles foram os países latino-americanos que mais cresceram economicamente no período posterior à Segunda Grande Guerra. Concomitantemente, foram os que mais cresceram populacionalmente. É claro que este é um tipo de associação perigosa, quando se transforma uma das variáveis em fator causal da outra. Mas talvez seja possível dizer-se que, de fato, em certos momentos históricos, a população em expansão representou um papel que se lhe está atribuindo aqui. Trabalhando nessa direção, alguns julgam, comparando França e Alemanha, que o crescimento econômico da primeira, em relação à segunda, foi obstado por uma precoce e exagerada política de planejamento familiar. O exemplo dos Estados Unidos e de países da Europa Ocidental, entretanto, não é conclusivo quanto à população crescente ser, sempre, independentemente das condições históricas e sociais, um fator positivo conducente ao crescimento econômico. Em determinados momentos de sua história, reduziu-se o crescimento demográfico desses países quando sua população mais urbanizada e mais culta, lançou mão do planejamento familiar. Ao mesmo tempo havia a substituição de homens por máquinas. Ou seja, a substituição de uma tecnologia por outra não foi tão brusca, ainda que tenha produzido excedentes populacionais freqüentemente absorvidos pelas Américas. No Brasil e em países em condições semelhantes, a adoção de tecnologias de capital José Carlos de Medeiros Pereira 81 intensivo ocorreu em grandes proporções antes que a taxa de crescimento demográfico se reduzisse suficientemente para não haver repercussões sociais negativas graves. Em outras palavras, a variável população, se vista sob o ângulo puramente quantitativo, tem maior ou menor significado na promoção do desenvolvimento econômico na dependência de outras condições que interagem com ela. Seria um erro analisá-la isoladamente. Os que criticam as tentativas de promoção de medidas que permitam algum tipo de planejamento familiar também afirmam que os países superpopulosos não necessariamente são protótipo de todos os subdesenvolvidos. De fato, os defensores de planejamento ou controle familiar geralmente lançam mão de exemplos algo extremos, com o que retrucam os natalistas afirmando que nem todos estão no caso da Índia. Mesmo quando a terra é realmente escassa e falta capital, se este vier de países economicamente avançados e utilizando-se tecnologia capaz de proporcionar uma razoável taxa de emprego, uma população em expansão, no entender desses críticos, poder-se-ia constituir num fator potencialmente importante para a realização do crescimento econômico. Cremos nós que o argumento é de quilate discutível, pois a situação de subdesenvolvimento, em grande parte, alicerça-se nesse domínio do capital oriundo dos países centrais da economia capitalista. Continuamente estamos assistindo à instalação, em larga escala, de filiais de empresas desses países nos subdesenvolvidos populosos sem que isto, nem sempre, produza os resultados positivos esperados no tocante ao processo de crescimento econômico. No mais das vezes o que se tem criado é uma relação de dependência econômica e mesmo política dos subdesenvolvidos para com os capitalizados. E como, normalmente, a longo prazo, há uma transferência de renda do país que recebe o capital, para o de origem do mesmo, essa aplicação de capital pode,às vezes, se constituir num verdadeiro presente de grego. É bem verdade que, possivelmente, quem pensa nesse tipo de solução, encara-a como provisória, supondo que, aos poucos, diminua sensívelmente o crescimento populacional, 82 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE já que esta é uma tendência universal em todas as sociedades urbanoindustriais. Os neomalthusianos, ainda, são criticados pelos natalistas pelo fato de ficarem muito presos aos aspectos matemáticos do problema descuidando exageradamente dos sociais e políticos. Afinal, a questão não se resume a uma divisão do produto interno bruto pela população para saber a quanto montaria a renda “per capita”. De fato, freqüentemente, eles tomam os recursos como fixos, como o fez Malthus. Ou seja, tendem a partir da suposição de que os recursos naturais e, de certa forma, o capital, são relativamente fixos. Nestes termos, é claro, a variação da população é que sobretudo fixaria as condições para que um país fosse rico ou pobre. Conseqüentemente aquela teria que ser manipulada. Isto, de certa forma, significa desconsiderar o papel exponencial do trabalho na criação da riqueza material. Não se deve exagerar no entanto, em tal tipo de crítica, pois seríamos injustos para com os neomalthusianos se ignorássemos que eles se preocupam com a relação entre a população economicamente ativa e a inativa e com a qualidade dessa população (em termos de qualificação, escolaridade, hábitos de poupança, valorização do trabalho etc.). IV – CRESCIMENTO POPULACIONAL, DESEMPREGO E TECNOLOGIA. Examinando-se com atenção os argumentos de ordem econômica antinatalistas e considerando, por outro lado, a especificidade do problema conforme o país e o momento histórico, percebemos que as relações entre tamanho da população, emprego e crescimento econômico não são invariáveis. Elas dependem da existência de outras condições econômicas, sociais e políticas, como existência ou não de terras pouco cultivadas, das possibilidades de acesso a elas, de capital, do estado das relações entre as várias classes sociais, da cultura, do grau de educação formal da população, do regime político e assim por diante. José Carlos de Medeiros Pereira 83 Em primeiro lugar, de uma perspectiva histórica, um economista como Albert HIRSCHMANN, por exemplo, entende que “as pressões demográficas têm sido parte integrante do processo de crescimento de todos os países que hoje são considerados economicamente avançados”. No entanto, para que esse processo ocorra, é preciso que sejam também utilizadas as técnicas cada vez mais produtivas, sem o que a renda e o produto nacionais teriam expansão apenas vegetativa. A utilização dessa tecnologia exige, entretanto, um montante de capital crescente por emprego criado. No caso dos países subdesenvolvidos, como já se disse, o desenvolvimento tecnológico não guardou uma estreita relação com a disponibilidade de mão-deobra, por razões que não nos cabe aqui analisar. Como resultado, em muitos deles, apesar, às vezes, de uma enorme expansão da produção, a absorção de mão-de-obra tem sido inferior ao ritmo de crescimento da população em geral e da urbana em particular. Ainda que grande número de autores e mesmo organismos internacionais profliguem a adoção de tal tecnologia alegando que ela implica no uso desproporcional de um fator de produção escasso nesses países (o capital) em face da grande disponibilidade dos fatores trabalho e recursos naturais, a solução tanto pelo lado da tecnologia como pelo da população não é fácil. Pareceria, à primeira vista, que o dilema se resolveria pelo lado da tecnologia, adotando-se, por exemplo, uma tecnologia intermediária, já que a manutenção de uma atrasada simplesmente condenaria o país à estagnação. É fato que em alguns setores (pois não é possível generalizar), ela poderia ser adotada, de modo que fosse mínima a redução de emprego e máximo o rendimento do capital. Freqüentemente, contudo, e repetindo o argumento, os que defendem esse tipo de solução não consideram um aspecto básico: que nos países que deveriam adotá-la predomina o sistema capitalista de produção. Isto significa, entre outras coisas, que a escolha da tecnologia não é exatamente um assunto de alçada do governo, embora nele possa interferir. De fato, no geral, são os próprios empresários que decidirão, e o farão tendo em conta condições muito 84 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE concretas. O economista Jan TINBERGEN, há muitos anos, notava a respeito que, mesmo que um país em desenvolvimento possua excesso de mão-de-obra, a tecnologia moderna pode vir a ser a preferida por uma série de razões, inclusive coisa como a existência ou não de mão-de-obra qualificada, sua rotatividade, o tipo de legislação trabalhista existente, a freqüência de greves, o tamanho do mercado, as previsões quanto a mudanças na demanda etc. Como a opção por uma dada tecnologia, portanto, não se faz de uma forma tão fácil como sugerem muitos autores, outros, colocando-se numa perspectiva diferente, julgam que solução melhor seria interferir de algum modo no ritmo de crescimento populacional. Entendem que se conseguisse reduzi-lo mais rapidamente, antes que os processos de urbanização, de secularização e de racionalização do comportamento o fizessem, o problema sócio-econômico e político representado pela dificuldade de conciliar a criação de empregos (por parte do sistema econômico) com o número dos que os procuram seria, pelo menos parcialmente, enfrentado. A respeito do assunto focalizado, o que podemos dizer com certeza é que não há soluções iguais para todos os países. O problema varia de um para outro e mesmo de uma região para outra dentro do mesmo país. Não podemos comparar a Índia com o Brasil nem o Nordeste com São Paulo. Não se pode generalizar indevidamente, desconsiderando-se as especificidades de cada situação: a estrutura social, as condições políticas, o sistema econômico, os recursos naturais etc. Exemplificando: os problemas são diferentes, do ponto de vista de criação de empregos em face do uso desta ou daquela tecnologia, até mesmo se se trata de população concentrada na região urbana ou de população rural. É que, no caso desta última, podem ser exigidos relativamente poucos investimentos para que ela se torne mais produtiva, dependendo do sistema econômico de que se trata. Na verdade, a preocupação maior com a criação de empregos para a população citadina está relacionada, em boa parte, segundo entendemos, com o fato de que os problemas econômicos, sociais e políticos que surgem, quando aqueles faltam, José Carlos de Medeiros Pereira 85 afetam mais diretamente os segmentos afluentes da sociedade os quais, em toda parte, tendem a se concentrar nas zonas urbanas. No entanto, a urbanização sociopática pode ser, simplesmente, uma decorrência da não solução da mesma questão do emprego no meio rural, em momentos anteriores. No mais das vezes, a migração ruralurbana acelerada vincula-se ao não encontro, pela população rural, de condições de existência minimamente satisfatórias em seu meio. Ou seja, ela é antes expulsa por esse meio do que propriamente atraída pela cidade, ainda que tal atração seja, igualmente, uma motivação poderosa para que ela se ponha em movimento. Sendo assim, não resta dúvida, segundo julgamos, que, realmente, o uso de uma tecnologia menos poupadora de mão-de-obra no setor primário da economia poderia ser em muitos países, mesmo capitalistas, uma solução viável para o problema de um temporário excesso de população em face das possibilidades de absorção de mão-de-obra oferecidas pelo sistema econômico. Não devemos, contudo, acreditar em soluções fáceis. Se uma dada tecnologia é adotada, é porque ela se mostrou mais conveniente para os proprietários dos meios de produção, gerando mais lucros. Seria infantil querer que tais proprietários utilizassem uma tecnologia de trabalho intensivo, na agropecuária, se as condições de mercado indicam o contrário. Por exemplo, um trator, ainda que caro, e de manutenção dispendiosa, pode substituir um tal número de trabalhadores, que seu uso se impõe. É preciso que se diga, porém, a respeito de muitas das investigações e ensaios produzidos no tocante às questões abordadas, que esses trabalhos, inúmeras vezes, padecem do defeito de tentar reescrever a história e a política econômica do país. Nada adianta, é evidente, mostrar como teria sido diferente o rumo dos acontecimentos se outras medidas tivessem sido tomadas no passado, se ficarmos apenas nesse nível de crítica. O que importa é buscar as raízes históricas dos problemas atuais para delas tirar algumas ilações válidas para o presente. Cremos, por exemplo, que se pode mostrar quão negativa é para as próprias classes dominantes a tomada de decisões, no âmbito da política econômica, visando quase 86 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE que exclusivamente o curto prazo; é que elas podem implicar na criação de conseqüências futuras danosas para essas mesmas classes. Assim seria o caso de uma política econômica que não tivesse atentado para a geração do desemprego, ao estimular o uso de uma dada tecnologia. É fato que os empresários se voltam fundamentalmente para seus interesses imediatos, centrados na possibilidade de obtenção do maior lucro possível no menor espaço de tempo. Como classe, entretanto, seus objetivos são mais amplos. Ora, uma das funções da tecnocracia estatal é exatamente fazer-se consciência crítica do sistema, constituindo-se em guardiã desses objetivos, antecipando suas conseqüências futuras das ações presentes e atuando de modo a que os mesmos objetivos continuem a ser atingidos. Nesse sentido, pode-se perfeitamente discutir uma reorientação da política econômica de tal ordem que estimule a criação de empregos. Isso de um lado; de outro se pode discutir, igualmente, as conseqüências econômicas, sociais e políticas de se adotar uma política de favorecimento da contracepção. Em certas circunstâncias, algo poderia ser adotado de ambas soluções parciais (planejamento familiar e uso de uma tecnologia intermediária). Só as condições concretas, em cada momento histórico, dirão de sua oportunidade. A reconstrução histórica nos mostra que tanto o capital nacional como o multinacional viram na grande oferta de mão-de-obra uma extraordinária vantagem relativa. O que deixaram de considerar é que a adoção de uma tecnologia mais ou menos sofisticada teria também conseqüências nos níveis social e político, além do econômico. Nesta altura dos acontecimentos, as tensões sociais e políticas, representadas pelo excesso de desemprego e subemprego, tornamse politicamente perigosas. Daí a reação de muitos desses interesses, como se disse, no sentido de favorecer o planejamento familiar e mesmo o controle de natalidade. Mas isto não significa que os próprios segmentos sociais envolvidos negativamente na questão não possam também ser, de uma forma ou de outra, beneficiados por uma política de favorecimento da contracepção. Sobre a questão discorremos mais adiante. José Carlos de Medeiros Pereira 87 V – PLANEJAMENTO FAMILIAR E MUDANÇA SOCIAL. É evidente, pelo que já expusemos, que tanto os favoráveis como os contrários ao planejamento familiar estão se posicionando frente a aspectos do processo de mudança social que lhes parecem relevantes. Pode-se dizer que o debate se sofisticou. Recordemo-nos de que, num passado recente, se defendia o crescimento demográfico sob o argumento, por exemplo, de que havia grandes vazios demográficos a serem ocupados ou porque Deus havia ordenado aos homens que crescessem e se multiplicassem. De um lado, hoje ficou claro que a ocupação de vastos territórios é muito mais uma questão de capital e de técnica do que se supunha. É que a criação de uma infraestrutura representada por estradas, pontes, armazéns, máquinas etc. implica em tão vultosos investimentos que, às vezes, apenas o Estado tem condições de realizá-los. De outro, a crescente secularização do comportamento e da cultura fez com que o discurso da Igreja Católica a respeito de relações sexuais e de uso de medidas anti-concepcionais se tornasse algo ultrapassado, mesmo para seus fiéis. Aparentemente estaríamos em face de um embate entre conservadores e “mudancistas”, embora, em outros níveis do social, as posições possam ser exatamente inversas. Assim, os que são contrários a qualquer tipo de alteração nos valores e nos comportamentos tradicionais que dizem respeito à decisão de ter ou não filhos, constituiriam, segundo parece, os conservadores. No entanto, é óbvio que o aumento populacional indiscriminado tem efeitos importantíssimos sobre o sistema social, incluindo as esferas econômica e política. Conseqüentemente, entre os que adotam essa posição, embora alguns possam de fato ter em mente a manutenção de um dado estado de coisas, outros estão engajados ideologicamente na mudança. Em termos concretos, ainda que nem sempre conscientemente, todos os contrários à contracepção, dadas as conseqüências sociais do comportamento que apregoam e defendem nesse campo restrito da atividade humana, são 88 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE “mudancistas” (apesar de não necessariamente progressistas). Isto apesar de estarem defendendo a tradição. Por outro lado, os que são favoráveis ao planejamento familiar e, mais ainda, a um controle mais rigoroso do crescimento populacional (tal como se fez na Índia por exemplo), aparentemente se estão colocando contra a tradição. Eles tentam alterar valores, normas, atitudes e comportamentos no campo da reprodução humana. Muitos também pretendem, através dessa possível diminuição do ritmo do crescimento populacional, provocar um aumento da riqueza individual, porque seria diminuído o desemprego e o subemprego e facilitada a adoção de uma tecnologia mais produtiva. Eles parecem, pois, ser os defensores do progresso. Contudo, e isso teremos oportunidade de discutir mais demoradamente no prosseguimento deste trabalho, o mais das vezes, sobretudo do ponto de vista político, eles são conservadores. É que sua motivação, freqüentemente, é a de diminuir as fontes de tensões sociais relevantes (desemprego, crescimento sociopático das cidades, criminalidade, aumento da população econômica, social e culturalmente marginal, e outros fenômenos tidos como se situando na esfera da patologia social), tensões estas que poderiam redundar em conseqüências políticas prejudiciais para seus interesses. Temos aqui como que um paradoxo, já que enquanto o sentido posto na ação pelos sujeitos situa-se ideologicamente num lado do espectro político, esta ação social, vista em termos de suas conseqüências, pode se situar no outro lado desse espectro. Apesar de tudo, encarada a questão à luz da experiência histórica de vários países, parece-nos que as tentativas de planejamento familiar, como programa de governo visando reduzir o ritmo do crescimento populacional, tiveram efeitos mínimos. Ou seja, como ensaios de mudança social planejada, frustraram-se. Dizemos isto porque as maiores modificações ocorridas nessa área de comportamento constituem, sobretudo, um reflexo de outras alterações mais significativas que já se produziram na concepção de vida e na visão de mundo da população como um todo ou de segmentos expressivos da mesma. Se tal visão não tiver sofrido uma alteração José Carlos de Medeiros Pereira 89 prévia, pouco ou nada se consegue quando se tenta induzir as pessoas a reduzir sua prole. E se a mudança na concepção geral do mundo e da vida já se operou, de nada adiantarão recomendações, exortações e ameaças (como as dos Papas, por exemplo) quanto ao que deveria ser o comportamento “correto” nessa esfera específica do social. A grande mudança no campo da reprodução humana é espontânea. Independentemente de qualquer programa de planejamento, tende a diminuir o número médio de filhos quando: a) avança o processo de industrialização e de urbanização; b) se eleva o nível educacional da população; c) a secularização da vida social se torna a regra, dessacralizando-se as representações quanto à posição dos homens nele; d) a racionalização do comportamento se expande, tornando as pessoas mais propensas a agir tendo em conta objetivos concretos a serem alcançados mediante ação planejada; e) o processo de individualização avança, fazendo-as cada vez mais infensas ao estabelecimento de normas de conduta determinadas discricionariamente por autoridades de qualquer tipo; f) os meios de comunicação de massa generalizam certos tipos de conhecimento; g) o sistema econômico mais complexo e produtivo põe à disposição da população produtos industriais de consumo e de massa a preços reduzidos; h) a mulher participa mais decisivamente das atividades econômicas e se depara com a possibilidade de realizar projetos de vida fora dos limites estreitos do casamento e da maternidade. Em outras palavras, vários processos convergem, produzindo o resultado assinalado. A concepção de mundo se altera, aumenta o conhecimento a respeito dos mecanismos de reprodução e de contracepção, outras possibilidades são visualizadas pela mulher nessa sociedade em mudança, aumenta o custo econômico de ter filhos nas condições imperantes nas cidades etc. etc. Talvez o crucial é que, participando mais intensamente da vida social e econômica, a mulher pode optar agora por ter menos filhos, inclusive porque estes, ao contrário do ocorria na sociedade tradicional, especialmente rural, deixam de constituir uma espécie de seguro para a velhice dos pais. Nesse processo de transformação social, os direitos 90 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE humanos básicos passam a constituir um ponto de referência para todas as sociedades nas quais estão avançando as concepções de justiça social e de liberdade de decisão. Entre certos segmentos sociais foi, pois, se desenvolvendo a noção de que entre esses direitos estava o de poderem as mulheres, legitimamente em termos morais, não terem (através da contracepção) gestações indesejadas. Tal direito básico da mulher acabou, inclusive, sendo reconhecido no âmbito das Nações Unidas. Cada vez se lhe reconhece o direito de exercer plenamente outras atividades que não apenas a de, fundamentalmente, procriadora, e a prerrogativa de por ela não optar desde que tal função tolha aquelas outras. Contra tal visão do problema colocam-se grupos religiosos, especialmente a Igreja Católica. Em nosso entender, esses grupos calcam-se em valores que poderiam até ser de adesão obrigatória em outros tempos e situações. Por exemplo, dados os elevadíssimos índices de mortalidade infantil e geral, produzindo como resultado uma baixa esperança de vida nos séculos anteriores ao Renascimento, é perfeitamente compreensível que se punisse e rejeitasse a mulher que se recusasse a conceber. Ou seja, era uma moral válida para outras condições históricas. Mas supor valores eternos, válidos para todos os tempos e todas as classes sociais é, sociologicamente falando, um contra-senso. Em favor da atual posição de alguns setores da Igreja Católica, pode-se dizer, entretanto, que deixaram, de lado uma ambigüidade dificilmente sustentável no tocante ao assunto em causa. Referimonos ao fato de que essa Igreja, geralmente, repelia qualquer medida que levasse à contracepção e ao mesmo tempo defendia o “status quo” no terreno social, político e econômico. Ora, sem mudanças sociais, principalmente no campo econômico, era previsível que, dadas as condições em que se estão processando as transformações econômicas no mundo subdesenvolvido, o grande aumento populacional levasse antes à miséria crescente do que ao crescimento econômico e ao desenvolvimento social. A posição doutrinária em relação à contracepção permaneceu, mas houve um avanço no referente ao social. Pelo menos um Papa anterior José Carlos de Medeiros Pereira 91 ao atual, Paulo VI, teve oportunidade de criticar os neomalthusianos afirmando que “o problema do mundo é o de aumentar a quantidade de alimento à mesa e não o de reduzir o número de comensais”. Isto implica, segundo entendemos, na possibilidade de aceitar reformas sócio-econômicas e políticas de certa profundidade. VI – OUTROS ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO Em partes anteriores deste artigo cremos haver mostrado que não há uma relação unívoca entre crescimento populacional (ou falta dele) e crescimento econômico e desenvolvimento social. Os exemplos históricos serviriam para confirmar qualquer hipótese, o que significa que, isoladamente, a variável população não é determinante, como nenhuma outra, diga-se de passagem, quando se trata de explicar processos sociais complexos. É a totalidade social, a interação do conjunto das variáveis, representadas por condições sócio-políticas e econômicas, que transformará ou não o crescimento populacional em alavanca do crescimento econômico. Ou, inversamente, em obstáculo à consecução desse fim, ou ainda de outros socialmente valorizados. A respeito dessas relações é interessante a argumentação de Raymond ARON. Segundo ele, se a adoção de medidas visando à contracepção levasse um país a avançar economicamente, então a França constituiria, hoje, o primeiro sistema econômico do mundo, já que essa prática, por parte de sua população, é secular. No entanto, a França foi economicamente superada por países menos desenvolvidos à época, sobretudo Alemanha. No caso desta, as evidências parecem indicar que seu grande crescimento populacional produziu efeitos positivos em sua expansão econômica e no aumento de seu poderio militar. Este último aspecto, o militar, é freqüentemente invocado como razão para que a população de um país não pratique o planejamento familiar. No passado recente, este era um argumento ponderável, já que exércitos numerosos, compostos de homens jovens, constituiam um indicador da potência de uma nação. Ainda hoje, apesar de todas 92 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE as transformações que se operaram na tecnologia guerreira, para alguns países esta é uma variável que merece muita consideração. Assim, muitos deles, com sérias preocupações militares, procuram estimular os casais a terem filhos em maior número, sobretudo quando se deparam com a quase estagnação da população. Foi o caso, entre outros, da extinta União Soviética e de Israel. Esta, contudo, evidentemente, é uma preocupação limitada a uns poucos países. Talvez, mais do que todas, as questões de natureza política são as mais importantes quando se trata de discutir as conseqüências sociais (no mais amplo sentido), de estimular ou não uma política de limitação de natalidade. Desde há muito, por exemplo, organizações internacionais ligadas fortemente aos Estados Unidos parecem temer as tensões sociais resultantes do aumento do desemprego quando a população cresce em ritmo elevado, mas não a economia. Como não poderia deixar de ser, isto não é afirmado claramente. Aparentemente, a preocupação é sempre com a miséria das populações afetadas e com aspectos ecológicos. Atente-se para esta afirmação de MacNamara (que foi Secretário da Defesa, no governo Kennedy) numa reunião do Banco Mundial, do qual era Presidente, em setembro de 1969: “O maior obstáculo isolado ao processo econômico-social da maioria dos povos do mundo subdesenvolvido é o selvagem crescimento da população desses países. O objetivo final é a elevação da dignidade do homem para habilitá-lo a viver uma vida plena e livre. Para esse alvo final, o desenvolvimento é o meio adequado. Todavia, taxa alguma de desenvolvimento pode sobrepor-se à proliferação indiscriminada da população em um planeta limitado”. Da mesma forma, muitos dos grupos políticos de esquerda são contrários a qualquer restrição ao crescimento populacional. A motivação subjacente é a de que as pressões populacionais constituem um fator que poderia levar a transformações políticas de monta. Cremos, pessoalmente, que esta constitui uma visão errônea do problema de mudança social, embora um autor como Sartre, em sua interpretação das causas da revolução cubana, tenha entendido que uma das razões de seu sucesso radicou no fato de que a população José Carlos de Medeiros Pereira 93 jovem do país não estava encontrando empregos sob o regime deposto. É preciso porém que se diga também que esses grupos rebelam-se contra o fato de se negar à população carente outros direitos básicos, como, por exemplo, o direito ao trabalho e a uma vida decente, considerando a excessiva atenção dada à questão do planejamento familiar uma técnica política diversionista por parte das classes dominantes. Crêem que a solução correta de qualquer crescimento mais ou menos explosivo da população está na promoção do desenvolvimento econômico e social, como historicamente se tem verificado. VII – CONCLUSÕES. Parece-nos ter ficado evidente, depois da exposição anterior, que dificilmente se consegue resolver problemas sociais, políticos e econômicos de certo vulto através do planejamento familiar. Embora, em interação com outras medidas, ele se possa constituir num instrumento de combate à miséria em que vive a maior parte da população mundial, isoladamente considerado representa uma medida apenas paliativa. Não há dúvida que quando um país se desenvolve social e economicamente, o planejamento familiar passa a ser posto em prática por um número crescente de pessoas. Preocupar-se tãosomente em adotar uma política de limitação de nascimentos, recusando-se a realizar mudanças político-econômicas substantivas, é, conseqüentemente, uma política quase anódina das classes dominantes tanto dos países desenvolvidos como dos em desenvolvimento, se com isso pretenderem diminuir as tensões sociais e mesmo promover o crescimento econômico. Desde que o problema comporta variadas facetas, cremos que a maioria dos argumentos apresentados por natalistas e antinatalistas são, sobretudo, tentativas de “racionalização”. Por outro lado, julgamos eticamente pouco defensável a posição de negar à população carente, marginalizada social, econômica e culturalmente, os conhecimentos e os meios para praticar a 94 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE contracepção, desde que as mulheres (e também os homens) desses segmentos sociais assim o desejem. Em muitos casos, são as mulheres desse meio social o sustentáculo econômico de suas famílias. São por isso obrigadas, por vezes, a fazer um cálculo econômico entre ter ou não filhos. Mas permanece correta a descoberta de KUBAT e MOURÃO, num estudo levado a efeito em Osasco para determinar o número ótimo de filhos desejados pela população, de que a preocupação com o assunto está diretamente relacionada ao domínio, por parte dos cônjuges, de outros componenetes do ambiente social. Quem não sabe se vai ter trabalho e alimento amanhã, não planeja o nascimento de filhos. Independentemente, porém, do estabelecimento de relações entre crescimento demográfico e quaisquer outras variáveis, entendemos que a decisão de engravidar ou não é uma decisão que diz respeito primordialmente à mulher e ao seu parceiro, cônjuge ou não. O interesse no assunto por parte de outros personagens (sejam eles profissionais, padres ou políticos) deve ser sobretudo acadêmico, ainda que possam, em suas respectivas esferas de atividades, contribuir para que se efetive o direito da mulher de conceber ou não segundo seu desejo. RESUMO O autor discute criticamente alguns argumentos de natureza econômica, social e política favoráveis e contrários a uma política de regulação da fertilidade de modo a reduzir as taxas de crescimento populacional. Procura explicar mudanças nas posições do governo brasileiro a respeito. Entende que os debates têm, compreensivelmente, caráter profundamente ideológico. Discorre mais amplamente sobre os argumentos de ordem econômica pró e contra o planejamento familiar. Examina as possibilidades de aumentar as taxas de emprego através do uso de tecnologia menos poupadora de mão-de-obra como uma solução alternativa às tentativas de redução do ritmo de crescimento populacional. Encara estas tentativas de regular a fertilidade como uma experiência de mudança José Carlos de Medeiros Pereira 95 social planejada e julga-as frustradas, tendo em conta os exemplos históricos. Considera ainda alguns outros aspectos do problema, como o político. Conclui que as relações entre população e processos sociais complexos como o crescimento econômico e o desenvolvimento social variam historicamente e de um país para outro. Julga o planejamento familiar um instrumento pouco efetivo no combate à miséria. Contudo, crê que pôr à disposição da população conhecimentos e meios para praticar a contracepção constitui um dos deveres do Estado moderno. Isto porque entende que é um direito básico da mulher decidir se deseja ou não ter filhos. 4. SOBRE METODOLOGIA José Carlos de Medeiros Pereira 99 4.1. CIENTIFICISMO “VERSUS” IDEOLOGICISMO* Pelo cientificismo do título não quero me referir apenas à crença exagerada nos resultados da ciência, definição à qual frequentemente se referem os dicionários. Pela expressão quero me referir, especialmente, a um certo dogmatismo no modo de entender o fazer ciência. Esta visão enraiza-se na crença, em princípio correta, de que não há (ou de que não deve haver) pré-juízos na ciência. Em face disso, foram criados preceitos de como evitar os vieses a que o investigador poderia ser levado, se não controlasse seus preconceitos e prenoções. Isto pode significar, contudo, às vezes, realizar a investigação sem praticamente ter um marco teórico. Assim, a decisão de o investigador ater-se única e exclusivamente aos fatos implica em certas consequências para as quais é preciso atentar. Lembremo-nos de que o positivismo postula, depois de o investigador ter obtido os fatos, que ele busque as possíveis relações entre eles. Em seguida seria procurada uma explicação para tais relações. Só em último lugar é que se poderia generalizar o conhecimento adquirido, extrapolando-o para outras situações que se apresentassem de modo igual ou assemelhado. Notemos, porém, que ao estabelecer uma inteira submissão aos fatos, o positivismo, frequentemente, apenas transforma as normas dominantes na sociedade, em orientadoras da maneira “científica” de ver o mundo. Isto porque é evidente que só vemos aquilo para o qual fomos treinados (socializados) para ver, deixando de lado, geralmente, tudo o que não esteja dentro dos limites de nossos estreitos interesses. Assim, para dar um * Publicado originalmente em Medicina, vol. 15, nº 4, outubro-dezembro de 1982. 100 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE exemplo primário, o homem rural e o citadino vêem diferentemente a natureza. Da mesma forma o cientista. Ele seleciona o que pretende ver em função de suas preocupações e, dependendo de sua maneira de interpretar o mundo, verá uns fatos e não outros, buscará pesquisar uns temas e não outros, e assim por diante, Em suma, ninguém parte realmente das observações dos fatos para buscar relações entre eles, e sim de hipóteses a respeito de relações. Ocorre que se o investigador não tiver um marco teórico suficientemente abrangente para dar sentido às relações que encontra, ficará quase sempre no nível do observado, da aparência, sem chegar a entender o porquê das relações encontradas. Por isso é frequente, na história da ciência, um erro persistir porque a concordância nos resultados obtidos pelos vários pesquisadores foi uma decorrência de seus preconceitos comuns. Não só ninguém, de fato, parte dos fatos, como preconiza o positivismo, como, se ficar apenas adstrito às observações, sem fazer uma crítica do que elas representam, chegará a conclusões errôneas. Isto é muito comum no caso de investigação de fatos sociais baseada nas verbalizações dos sujeitos a respeito do assunto investigado. Se, numa pesquisa, perguntamos às pessoas algo, pode acontecer várias coisas em termos da resposta dada: 1) elas dizem o que é de seu interesse dizer, se têm alguma coisa a ver com o resultado alcançado (é o caso de se perguntar ao acusado sua versão dos fatos); 2) dizem o que supõem que o entrevistador vai querer ouvir: 3) dizem o que fazem, pensam e sentem. Mesmo neste último caso, o que temos é uma descrição do que as pessoas julgam que fazem, sentem e pensam, mas não o que de fato acontece na realidade. Para dar um exemplo: o mais da vezes as pessoas manifestam em suas verbalizações os valores positivos existentes na sociedade em que vivem. Assim, se perguntarmos a elas, em nossa sociedade, se acreditam em Deus, se rezam e se vão à igreja, tenderão a dar respostas positivas por serem estes valores correntes entre nós. Só que, se formos aos templos verificar diretamente o número de fiéis presentes, encontraremos outro resultado. José Carlos de Medeiros Pereira 101 Se o cientificismo apresenta estes e outros variados defeitos, não é menos verdade que o “ideologicismo” apresenta outros tantos, só que numa direção oposta. É que, de tanto submeter os dados a uma interpretação ideológica, acaba, por vezes, encontrando neles significados diferentes daqueles que de fato possuem. Por vezes, o viés “ideologicista” vai mais longe, confundindo, pura simplesmente, ideologia com ciência. Neste caso, as formulações falsamente teóricas predominam, no sentido de se partir de pressupostos mais ou menos falsos, construir um edifício logicamente correto e, no momento de fazer o confronto do modelo abstrato com a realidade, se esta não se adequar a ele, entender que está havendo um erro de observação. O viés “ideologicista” tende a não se preocupar muito com os dados em si e sim com sua interpretação. Frequentemente, constrói-se um modelo e procuram-se os exemplos empíricos que contribuam para validá-lo, sem consideração pelos fatos que não confirmam a hipótese. Não é preciso, para exemplificar o que estou dizendo, recorrer às falsidades perpetradas em várias áreas das ciências humanas tanto por fascistas como por comunistas sobretudo de linha stalinista. Podemos nos restringir à própria medicina. Não desenvolveu Paracelso a teoria da signatura plantarum segundo a qual havia uma analogia entre a forma dos vegetais e os órgãos humanos, indicando aquela a possibilidade de cura de enfermidades que afetassem estes? Não foi tal teoria aceita durante séculos por pelo menos uma parte dos médicos? Esteve igualmente em voga, também por séculos, a teoria miasmática. Por outro lado, a prática do banho era vista como malsã, sobretudo na França dos séculos XVII e XVIII. Nesse tempo um sujeito odorífero era tido como cheio de vigor. Muitos médicos achavam que especialmente o banho quente abria os poros expondo o corpo aos perigos do mundo exterior. Exageros no sangrar, aplicar enemas, fazer vomitar e suar foram tratamentos padrões tidos como científicos até meados do século passado. Também aceita em muitos círculos científicos durante décadas foram as teorias de Lombroso. Do que não se dão conta muitos dos que se apegam a um 102 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE exagerado “ideologicismo” é que a subjetivação da objetividade na mente do investigador pode alterar esta última a tal ponto que a transforma simplesmente em outra coisa. O fato de se admitir que os objetos não são tão uniformes e simples, como supõem os positivistas ingênuos, não autoriza o cientista a transformálos em algo mais ou menos estranho à sua natureza. Esses “ideólogos” às vezes também não percebem que as idéias de quem quer que seja, e não só as dos outros, tendem a expressar, ainda que de um modo incompleto, as relações sociais nas quais está inserido aquele que as têm. O viés a que estou fazendo referência ainda ocorre, muitas vezes, também quando da interpretação de acontecimentos históricos. Estes, fundamentalmente, são balizados pelo tipo sócio-econômico dominante. Assim sendo, a ação dos agentes do processo histórico, ou sua vontade de alterar os rumos deste, dificilmente se traduzirão num desvio de rota suficientemente significativo, ainda que influam sobre o acontecer histórico. Em outras palavras, os homens fazem a história no sentido de que seu querer influi, ainda que esse querer seja, o mais das vezes, condicionado e mesmo determinado pela estrutura social na qual vivem. O viés a que estamos fazendo referência, ocorre, por vezes, no sentido de se partir de um resultado histórico e se supor que os homens que atuaram no processo o fizeram de modo a obter exatamente aquele resultado. Da maneira como as coisas são colocadas, concluiríamos que os grupos e camadas sociais dominantes, individual e coletivamente, teriam uma racionalidade excepcional, pois seriam capazes de planejar desdobramentos e desenvolvimentos da economia, da política, da ciência, etc. a fim de alcançar, precisamente, aquele resultado. Ora, a história é um constante devenir, um constante vir-a-ser, em que as transformações operadas nem sempre (melhor, dificilmente) foram pensadas antecipadamente desse modo pelos agentes sociais envolvidos. O que acontece é que esses agentes têm projetos que podem ser errôneos ou incompletos quanto à compreensão do real, mas, na tentativa de pô-los em prática, eles alteram a realidade. Essa José Carlos de Medeiros Pereira 103 alteração acaba modificando o projeto, o qual, outra vez, quando da tentativa de sua consecução, altera a realidade, e assim sucessivamente. Como as várias classes sociais, e suas frações, têm propósitos vários, complexos e mesmo contraditórios, o resultado final dificilmente pode ser tido como obra pensada de um conjunto de atores. Isto não significa que o investigador não possa atribuir, “a posteriori”, funções a determinados atos e processos que não tinham esse significado inicialmente e que passaram a ter no decorrer do processo, ainda que os participantes não tivessem tido consciência clara disso. Terminando, é preciso advertir que, de modo algum, é meu propósito negar os extraordinários avanços ocorridos no conhecimento com o advento da ciência moderna. Apenas chamo a atenção para algumas questões freqüentemente negligenciadas pelos cientistas. Talvez a ciência, ainda que socialmente determinada, seja a única criação humana capaz de levar à apreensão de fatos objetivos e ao estabelecimento de relações reais entre eles. No entanto, fazer ciência, como dizia Simiand, sociólogo francês do início do século, implica em não colecionar fatos sem teoria, nem em construir teorias sem estarem alicerçadas em fatos. O difícil, freqüentemente, é conseguir a justa medida, sem os excessos tanto do “cientificismo” como do “ideologicismo”. 104 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 4.2. O ESPECÍFICO E O GERAL NA CIÊNCIA * Os cientistas de uma área, com bastante freqüência, desconhecem as características distintas que a ciência assume em outras. Essas diferenças são marcantes sobretudo quando se comparam as ciências físicas e naturais, de um lado, e as sociais, de outro. Não só os universos que investigam diferem muito: também são distintas as relações entre sujeito e objeto numas e noutras, assim como o tipo de explicação. Isto leva a críticas mútuas relativamente sem sentido. Por exemplo: é comum os cientistas sociais acusarem os que atuam no âmbito das ciências físicas e naturais de realizarem um trabalho alienado, que seria o resultado da introjeção da dependência pelos mesmos. Eles se preocupariam com temas e técnicas que só teriam sentido para os países capitalistas desenvolvidos. Desse modo, transformar-se-iam em ponta-de-lança do colonialismo cultural, introduzindo, entre nós, técnicas e métodos de trabalho em desacordo com os interesses nacionais. Seu trabalho, nesse caso, constituiria uma outra forma de drenagem de recursos dos países periféricos para os centrais do sistema capitalista. Entende-se, de fato, em largos setores intelectuais, que o desenvolvimento de uns países só foi possível, e ainda é, em decorrência, em grande parte, da espoliação de recursos materiais e humanos de que foram (e são) vítimas os países atualmente subdesenvolvidos. Por outro lado, são também freqüentes as críticas por parte dos que militam nas ciências físicas e naturais aos cientistas sociais. Muitas vezes eles os censuram porque, em sua opinião, estes * Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(9): 1569-1570, setembro de 1984. José Carlos de Medeiros Pereira 105 tenderiam à realização de uma ciência nacional. Isto se lhes afiguraria pouco defensável, dada sua visão internacionalista de ciência. Pareceria a eles que a ciência dos segundos, igualmente, estaria por demais eivada de influências ideológicas (supondo ou não a possibilidade de alguém ser inteiramente isento de influxos desse tipo, os quais, normalmente, não chegam ao nível da consciência, inclusive por serem parte, às vezes, das próprias normas da comunidade científica). Em ambos os casos, cremos que existe grande confusão quanto à compreensão do significado do trabalho científico levado a cabo pelo outro lado. Senão vejamos. Os cientistas da natureza geralmente não entendem que os fenômenos e processos estudados pelas ciências sociais são histórico-sociais. Ou seja, que o seu objeto não é o mesmo sempre, que não é natural, já que foi construído pelos próprios homens, ao estabelecerem entre si relações que dependem quase exclusivamente da correlação de forças sociais, políticas e econômicas, especialmente a partir do momento em que a humanidade saiu da homogeneidade primitiva e começaram a existir divisões de algum tipo entre eles. De seu lado, os cientistas sociais não entendem, muitas vezes, como os interessados nas ciências da natureza podem tratar seus objetos como se fossem destituídos de historicidade, fazendo generalizações sem referência a condições concretas bem determinadas. Isto é, eles às vezes atribuem especificades históricas a objetos que, por serem físico-naturais, nenhuma influência sofreram ou sofrem da atividade humana. O que está em jogo aqui é que uns se voltam para o que é específico e outros para o que é geral. Para uns a explicação só pode ser obtida a partir do estabelecimento de diferenças, enquanto que, para os outros, o fundamental está na busca de uma lei geral que esteja além de uma diversidade que seria apenas aparente. Estas diferenças decorrem das próprias características distintivas dos sistemas (ou universos) para os quais se voltam os dois tipos de ciência. No caso das ciências naturais, supõem-se que os fenômenos e processos que estudam ocorrem em sistemas (naturais 106 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE ou físicos) homogêneos, contínuos, estáveis, a-históricos, variando segundo forças intrínsecas que obedecem a leis gerais que existiriam para todo o sempre (embora possam ainda não estar descobertas). Sendo homogêneos (sobretudo no sentido de suas partes serem não conflitivas), permitiriam, inclusive, seu estudo através da redução dos problemas a varíaveis mais simples, a fim de serem submetidas a uma análise das relações quantitativas entre elas. Já os sistemas sociais são bastante diferentes por serem as sociedades humanas históricas, instáveis, abertas ao exterior (uma sociedade recebe influências e se modifica sobretudo através de fatores externos), conflituosas e mesmo antagônicas nas relações internas que são estabelecidas entre os grupos que as compõem (classes sociais, por exemplo), com unidades participantes (o ser humano) dotadas de volição (o que não é o caso dos átomos ou células) e que realizam ações com significado tanto para si como para os outros. Além do mais essas sociedades são descontínuas no espaço (embora cultura e normas sociais possam ser transpostas de um lugar para outro muito distante) e no tempo (no mesmo lugar geográfico, por sua vez, podem ter existido culturas bastante distintas). Um universo (o físico e o natural) independe da existência e das ações dos homens, enquanto o outro só existe porque foi criado por eles através das reações mútuas que estabeleceram. Conseqüentemente, as relações entre sujeito e objeto são muito diversas num tipo e outro de ciência. Nas histórico-sociais eles são os mesmos (o sujeito está contido no objeto), enquanto nas da natureza eles são estranhos um ao outro. As ciências sociais procuram mais do que conhecer, compreender os fenômenos que estudam, situandoos em suas caracterísitcas específicas. As segundas (físico-naturais) voltam-se para o estabelecimento de relações causais gerais, não havendo necessidade de compreendê-las (busca de sentido) como quando se trata de ações e relações sociais. Daí resulta a tendência dos formados cientificamente no âmbito das ciências físicas e naturais de buscarem o que é geral, enquanto os cientistas sociais tendem à determinação das diferenças, que, para eles, são as realmente José Carlos de Medeiros Pereira 107 explicativas, já que o universo com que lidam tem aquelas características citadas de descontinuidade, ocorrendo os fenômentos e processos estudados em realidades históricas, tornando a referência ao lugar e tempo específicos indispensáveis na explicação. Outra diferença que decorre disso é quanto ao modo de encarar a própria realidade. Os cientistas físico-naturais tendem a crer que os atributos que examinam são inerentes à realidade mesma; eles se imporiam ao sujeito que investiga, ao qual caberia simplesmente reproduzi-los o mais fielmente possível para fazer boa ciência. No caso dos cientistas sociais (embora não seja o caso de todos), se entende, por vezes, que a realidade, na verdade, é ordenada segundo os interesses do investigador. Haveria distintas perspectivas, a visão do problema se alterando radicalmente se se adota uma ou outra. Esta segunda maneira de encarar as relações entre o sujeito e o objeto leva à convicção de que a ciência só é possível porque os investigadores têm um determinado ponto de vista, a partir do qual ordenam a realidade e a tornam inteligível. Já os cientistas físico-naturais tendem geralmente a crer que o objeto é que se impõe ao sujeito, sendo, portanto, limitadas as possibilidades (ou se reduzindo, no limite, a apenas uma) de explicações. Devemos dizer, no entanto, que discordando da visão estritamente positivista ou subjetivista, há a dialética, segundo a qual há uma ação recíproca entre sujeito e objeto, ambos se construindo mutuamente. Tais diferenças poderiam ser explicadas pelo fato de que as ciências físicas e naturais, normalmente, têm um único paradigma, concordando com eles os cientistas que nelas trabalham (são raros os deslocamentos de um por outro, como foi o caso em que a física de Einstein substituiu em grande parte a de Newton). Em se tratando das ciências sociais não há esse consenso porque ele implicaria em que todos os que nelas trabalham teriam a mesma concepção geral do mundo e da sociedade. Isto nos parece impossível em razão mesmo dos conflitos e antagonismos existentes na sociedade. Traçamos um painel limitado das diferenças existentes entre os dois tipos de ciência. Além do mais, ele foi feito por alguém que milita na área das ciências sociais, o que pode introduzir algum viés 108 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE quanto à interpretação das caracteríticas das ciências físico-naturais. No entanto, cremos que ele é suficiente para chamar a atenção para a necessidade de realizarmos uma certa rotação de perspectivas para entender os problemas dos campos de estudos alheios. Ao criticar a postura dos “outros” seria conveniente que nos colocássemos primeiro a questão de saber até que ponto podemos generalizar nossos próprios pontos de vista sobre a ciência (por exemplo, a respeito da publicação nacional ou internacional dos resultados). Se a área alheia possuir especificidades, só conhecendo-as compreenderemos o porquê de certas posturas “científicas” daqueles que a cultivam. José Carlos de Medeiros Pereira 5. SAÚDE E POLÍTICA CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E EDUCACIONAL 109 110 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 111 5.1. SOCIEDADE E EDUCAÇÃO MÉDICA* Em termos mais gerais, a educação contribui para o processo socializador. As instituições educacionais procuram inculcar nos educandos aqueles valores, normas, atitudes, comportamentos etc. que são comuns à cultura da sociedade em questão. A educação tem, assim, um papel homogeneizador. Devemos considerar, no entanto, que as sociedades complexas são sempre segmentadas de vários e diferentes modos, apresentando diversas subculturas, de modo que existem também diversos sistemas educacionais, de acordo com esses meios sociais variados. Sob essa ótica, o papel social que a sociedade atribui à educação é conservador. Ela funciona como um dos principais processos de controle social. Entendendo-se educação como produto da vida social, é difícil pensar-se em moldar a sociedade a partir dos sistemas educacionais, o que não impede que se possa pensar a educação como um agente de mudança social. De qualquer forma, o sistema educacional tende antes a sofrer o impacto das transformações sociais do que a ser esse agente. Há uma espécie de demora cultural no caso das instituições educacionais em relação ao que se passa no sistema social global. Mais ainda, os sistemas educacionais da maioria dos países tem uma história pregressa, de modo que eles próprios dificilmente também podem passar por modificações drásticas. Sua história, suas tradições, constituem uma realidade viva, de modo que qualquer mudança que se imagine no aparelho formador de profissionais, por exemplo, não pode supor que se possa partir da estaca zero, ainda que existam * Palestra proferida no “Seminário sobre o Ensino Médico na FMRP-USP”, realizado de 26 a 30 de maio de 1980 . Publicada originalmente em Medicina, 12 (3 e 4): 17-19, 1980. 112 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE modelos muito melhores. Os mortos, de certo modo, sempre guiam os vivos, o que não significa que não nos possamos subtrair a essa direção. Também o futuro pode ter grande influência na orientação do presente. De fato, mais e mais a idéia que se faz do futuro, os planos existentes em relação ao mesmo, contribuem para que o presente seja moldado de acordo com essa idéia, com esses planos. Encarando as relações entre sociedade e educação sob os aspectos abordados até aqui, fica claro que, com referência à formação de profissionais, em nosso caso o médico, o que os grupos sociais, econômica e politicamente dominantes esperam é que eles sejam formados de acordo, sobretudo, com as necessidades do sistema econômico. Em termos realmente societários, a idéia norteadora é de que sejam formados de acordo com a realidade nacional na qual esses profissionais vão agir. É uma idéia inegavelmente correta, mas, infelizmente, incompleta, porque não é fácil definir-se a realidade nacional na qual tais profissionais vão atuar e, principalmente, a que interesses estarão atrelados, mesmo contra sua vontade, uma vez formados. Qual é, de fato, a realidade dos paises subdesenvolvidos? A realidade é que são países economicamente dependentes, às vezes também politicamente, mas o que, talvez, seja o mais grave, culturalmente dependentes. Ora, uma das manifestações da dependência cultural é o desenvolvimento de mentalidades igualmente dependentes (PARDO, s/d.) no sentido de boa parte das pessoas desses países tenderem a considerar sua própria sociedade como possuindo uma cultura inferior comparativamente ao paradigma que porventura elas tenham. Em consequência, sua criatividade, frequentemente, visa ajustar o sistema de formação profissional de seus países aos padrões tecnológicos vigentes na sociedade tomada como modelo. É evidente que seria um contra-senso rechaçar a tecnologia dos países desenvolvidos pelo simples fato de que seja estrangeira. O que se repele é a escolha da mesma em desacordo com as necessidades societárias reais do país dependente. Não tendo em conta, também, a realidade própria do país o José Carlos de Medeiros Pereira 113 sistema educacional corre o risco de formar profissionais de nível superior com habilidades, conhecimentos e valores ajustados a uma realidade alheia. A evasão de cérebros é uma das consequências bem conhecidas dessa política educacional. Quanto ao modo de a sociedade influir na educação profissional, um estudo levado a cabo na Universidade Autônoma Metropolitana-Xochimilco, do México, intitulado El Diseño Curricular (1976), mostrou que a relação não é direta, havendo uma mediação representada pela prática social da profissão. Transformações radicais na prática médica, por exemplo, repercutiriam “sobre o currículo tradicional, modificando-o parcialmente ou gerando novas oportunidades profissionais”. Esta conclusão é importante, pois demonstra que não é a produção do conhecimento a variável principal responsável pela mudança na educação profissional mas sim a aplicação desse conhecimento. Há, contudo, um fator de complicação. É que há várias práticas sociais da profissão, até mesmo antagônicas, embora uma possa ser dominante num momento. Certamente, na profissão médica, essas várias modalidades de prática existem. A dominante projetará sua influência sobre a educação profissional, embora tanto as práticas decadentes como as emergentes influam. A maneira como essas práticas acabam repercutindo sobre o currículo vai depender de intermediações políticas propriamente ditas e da Universidade, que é onde se decide se uma prática vai se integrar ou não ao currículo. (Cf. pp. 25 a 27 principalmente). Tendo em conta as relações mais específicas entre educação e economia (também parte de nosso tema), ficou claro, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, que a educação, especialmente a profissionalizante, constitui um dos grandes investimentos que a sociedade pode realizar, por ser altamente produtivo e, consequentemente, um fator significativo para levar a cabo os processos de crescimento econômico e de desenvolvimento social. No caso da educação médica, ela tem particular importância não só social como também econômica, desde que contribua efetivamente para elevar o nível de saúde da população, uma vez que a sanidade 114 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE desta é um dos fatores relevantes de promoção de ambos os processos. Merece ainda referência, na discussão das relações entre sociedade e educação, o modo como a maioria da população, brasileira no caso, vê a educação sistemática, especialmente a que conduz a uma profissão. Predomina aqui uma visão utópica e insatisfatória: a do mito de que a obtenção de um diploma de nível superior constitui o canal de ascensão social e econômica por excelência. Há um divórcio entre crença e realidade. Uma das conseqüências desse modo de encarar a educação superior, é de que a população acaba dando excessiva importância à educação formal em seus aspectos exteriores, tomando o acessório pela essência. Ou seja, não percebe que as portas do sucesso sempre se abriram mais facilmente para aquele que dispunha de um diploma, mas desde que este constituísse o coroamento de uma situação sócio-econômica anterior elevada. Especialmente as camadas médias tomaram a nuvem por Juno, vendo a posse do diploma como causa da posição privilegiada de alguns e não o inverso, isto é, o diploma de curso superior como manifestação daquela posição superior. Finalmente, quanto ao papel criador da educação, normalmente é exercido em grau mais elevado pela Universidade. A ela, principalmente, cabe ser a mediadora entre os objetivos da sociedade inclusiva e a educação formal, como também a tarefa de contribuir para que a própria sociedade se altere. Já dissemos que ainda que, de modo geral, a educação seja um produto social, isso não obsta a que a Universidade possa cumprir esse papel inovador. Para cumprí-lo é preciso, porém que ela não exagere seu papel de instituição transmissora passiva de conhecimentos. A Universidade autêntica não se limita tão-somente a formar profissionais, mas desempenha uma missão maior que é a de duvidar e negar, ou seja realizar a crítica, o que implica na apreciação do valor do pensamento, dos conhecimentos produzidos e da ação deles derivada. Isso significa reagir sobre o meio, tentanto alterar os aspectos da realidade que o conjunto dos membros da instituição considere como indesejáveis. Ao realizar tal tarefa nós estaremos fazendo história e não somente José Carlos de Medeiros Pereira 115 sofrendo-a. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1 - Heilbroner, R. L. –O Futuro como História, Zahar, Rio, 1963. 2 - Marx, K. – El Capital, “Prólogo”, Fondo de Cultura Econômica, 2ª. ed., México, 1959. 3 - Pardo, P. H., - “El médico y la realidad nacional”, Departamento de Medicina Preventiva y Social, U. N. A. H., Honduras, mim., s/d. 4 - Pereira, J. C. – a) “Sobre os rumos do sistema educacional”, Forum Educacional, FGV, Rio, ano 1, nº 4, 1977; b) “Sobre a tendência à especialização na Medicina”, Forum Educacional, FGV, Rio, ano 3, nº 3, 1979. 5 - Schultz, T. W. – O Valor Econômico da Educação, Zahar Editores, Rio, 1967. 6 -UAM – Xochimilco, División de Ciencias Biológicas y de la Salud, El Diseño Curricular, México, 1976. 7 - Vaizey, J. – Economia da Educação, IBRASA, São Paulo, 1968. 116 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 5.2. SAÚDE E POLÍTICA NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA* 1. INTRODUÇÃO É uma das “modas” atuais considerar-se o desenvolvimento da ciência e da tecnologia como um dos principais fatores propulsionadores do processo de desenvolvimento sócio-econômico. Independentemente do exame das relações entre o sistema científicotecnológico e a estrutura e o funcionamento do sistema social global, aquela consideração corre o risco de se preocupar excessivamente com os aspectos administrativos e quantitativos da ciência e da tecnologia, tornando-se simplista. Ciência e tecnologia não podem ser examinadas como variáveis independentes. Seus efeitos propulsores são limitados ou ampliados pelo contexto político principalmente. (1) Deve-se, pois, ter plena consciência de que os fins de uma política científico-tecnológica serão determinados, em grande parte, fora de área. Muitos estudiosos têm evitado o debate da questão supondo, implícita ou explicitamente, que o Estado representa os interesses mais gerais de toda a sociedade, economia e cultura ou está acima dos interesses classistas. Isto significa encará-lo como um absoluto, como um demiurgo, como se as várias camadas sociais fossem passivas diante do conjunto de órgãos políticos, jurídicos e * Trabalho apresentado em Sessão de Temas Livres no I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, realizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, em Brasília, de 9 a 11 de outubro de 1979. Publicado originalmente em Educação & Sociedade, Cortez Editora/Autores Associados/CEDES, ano II, nº 6, junho de 1980, pp. 19-32. José Carlos de Medeiros Pereira 117 administrativos que o constituem, existindo ele além e acima da sociedade. Obviamente, tal formalismo é inaceitável. Sem dúvida as autoridades que detêm o poder, constituindo o Governo do Estado, não se dissociam da nação, mas podem ou não representá-la como um todo. O mais das vezes representam tão-somente uma parte dela, a mais influente politicamente. Se o Estado pode constituir um fator limitante, dependendo do ponto de vista do observador interessado, é inegável que seus dirigentes mantêm conexões objetivas com a realidade social. Donde, quando se pensa na ação do Governo, há de se ter em conta os porquês, como e para quês da mesma, a razão dos quais pode e deve ser procurada nas condições sociais concretas. Desse ponto de vista, o Estado moderno reflete o dinamismo de um processo em que a sociedade e a economia se diversificaram e se tornaram mais complexas. Impulsionados por tais transformações, os órgãos dirigentes do Estado tiveram que pôr em prática políticas no campo científico-tecnológico, condicionadas pelas contingências históricas, representadas principalmente pela internacionalização da economia e da ciência e tecnologia. Por vezes tentaram se opor à tendência desnacionalizadora, ora a ela se atrelaram de um ou outro modo. Em outras palavras, a ciência e a tecnologia não são campos neutros, e sim submetidos, como os demais, ao ritmo de transformações e conseqüentes tensões da sociedade e economia, as quais alteram inevitavelmente a visão que as elites dirigentes têm dos interesses mais amplos do conjunto da população do país. Se aceitas essas considerações, a discussão sobre a política científico-tecnológica tem de partir de uma definição de alvos na qual intervenha a comunidade científica e tecnológica como representante não só de interesses seus definidos, como de grupos fora do poder que por ela possam ser representados, desde que, evidentemente, ela consiga conquistar tal representação. Essa comunidade, da qual se espera tenha uma percepção mais clara de questões que digam respeito, pelo menos, à ciência e à tecnologia e ao adequado 118 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE aproveitamento destas para o aceleramento do processo de desenvolvimento social, e cuja posição, concretamente, é superior à de muitos outros grupos sociais, como grupo profissional responsável e consciente, tem até mesmo o dever de tentar pressionar o Estado para que se engaje numa política que considere construtiva para os destinos do país. Isto significa tomar uma posição política frente ao problema, não se omitindo, através de uma pseudo neutralidade científica, que não pode existir em relação a fins. Estes não são passíveis de discussão científica, uma vez que a um fim se pode contrapor, validamente, outro. Mas, também, validamente se pode discutir as conseqüências de se optar por um conjunto de fins e não por outro. 2. CIÊNCIA E TECNOLOGIA COMO FATORES DE DESENVOLVIMENTO A questão que se coloca é: como o desenvolvimento científicotecnológico pode contribuir para o desenvolvimento (sem adjetivações) do país? Isto significa discutir o próprio conceito de desenvolvimento. Mesmo que suponhamos que o fundamental deste processo está no crescimento econômico (com maior ou menor dependência dos centros econômica e políticamente hegemônicos, etc.), há de se procurar estabelecer, inicialmente, a relação existente entre o avanço científico e tecnológico autônomo, crescimento e desenvolvimento. A história dos atuais países desenvolvidos demonstra essa relação, mas ela varia de país para país, sendo, em razão das condições históricas vinculadas às relações de dominaçãosubordinação ao nível internacional, muito mais frouxa nos atuais subdesenvolvidos. Alguns motivos podem ser alinhados para explicar o fato: a) o processo substitutivo de importações, característico do processo de industrialização por que passaram ou passam esses países, foi, em grande parte, baseado na utilização tanto de tecnologia como de capitais estrangeiros; b) não há pressões societárias suficientemente José Carlos de Medeiros Pereira 119 fortes para o aproveitamento do “know-how” produzido no país. Em decorrência, os pesquisadores nacionais tendem a se concentrar na pesquisa “pura”, imitando as comunidades científico-tecnológicas dos países mais altamente desenvolvidos ou em pesquisas irrelevantes em termos de contribuição para o processo; por outro lado, dado o não aproveitamento de suas possíveis contribuições, os pesquisadores nacionais se concentram, freqüentemente, na carreira pessoal (produzindo teses para concursos) e em trabalhos individuais. (2) Ainda que frouxa, em nosso caso, a relação entre crescimento econômico e desenvolvimento científico-tecnológico, a política referente à segunda variável tem de partir de uma definição clara e viável de seus objetivos. Esta definição, contudo, será condicionada pela política econômica global. Questões do tipo: como serão aproveitadas as contribuições geradas pela comunidade científicotecnológica, como será planejada a pós-graduação, a carreira universitária e, principalmente, que opções tecnológicas fará o país, são fundamentais para lastrear uma política científico-tecnológica. Só depois de definidos os alvos é que se poderão determinar, agora com base objetiva (geralmente confundida como a única científica), os meios de que se lançarão mão para melhor atingir tais fins. A esse nível, a racionalidade dos meios usados será mensurada tendo em conta sua adequação àqueles fins com o mínimo de esforços, o domínio das reações negativas da ação que possam ser previsíveis, a alteração da situação, as correções que se farão necessárias quando da avaliação dos resultados alcançados, a criação de uma situação favorável à consecução dos objetivos programados, etc. Esta tarefa deveria caber, em grande parte, às universidades, onde, no Brasil, é produzido quase todo o conhecimento original no país, aos Institutos de pesquisa, órgãos governamentais responsáveis pela distribuição de recursos para a pesquisa e políticos voltados para as áreas sociais (como a saúde), econômicas e outras que serão beneficiadas, direta ou indiretamente, pela política científico-tecnológica pela qual se optou. 120 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 3. O DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO Na discussão sobre uma política científico-tecnológica devemos, necessariamente, partir de um diagnóstico da situação existente, especialmente dos problemas que, definidamente, constituam um obstáculo à consecução dos alvos tidos como desejáveis pela parcela lúcida da comunidade científico-tecnológica, no sentido de se preocupar com as conseqüências sociais de sua atividade específica e com os entraves que dificultam o aproveitamento socialmente construtivo de seus esforços. Ao apontá-los ou deles tomar consciência, damos um primeiro passo para sua superação. Talvez uma das questões fundamentais diga respeito à dependência, que tende a se ampliar, quando um país em desenvolvimento propende à imitação dos padrões vigentes nos desenvolvidos quanto à orientação dada ao seu sistema científicotecnológico. O exemplo concreto dos países subdesenvolvidos mostra que essa dependência constitui como que um pecado original: estabelecida no passado a desigualdade entre as nações nesse campo, ela tende a se ampliar por fatores econômicos e políticos. Particularmente ilustrativo é o exemplo brasileiro no que se refere a pesquisas na área médica e farmacêutica. Dada a necessidade de combate às doenças tropicais, foram criados Institutos como o Butantã, Oswaldo Cruz, Manguinhos, etc. que se voltaram para a solução de problemas brasileiros sem perder sua qualidade e seus padrões universais. Estas experiências, porém tenderam a se conflitar com poderosos interesses estabelecidos. Além do mais, a crescente influência de capitais estrangeiros acabou impedindo maiores esforços na direção inicial. O mesmo se pode dizer da dominação da indústria famacêutica e de instrumentos médicos por esses capitais. Evidentemente, a política científica e tecnológica é inevitavelmente afetada, uma vez que, geralmente, não é do interesse desses capitais o desenvolvimento de uma ciência e tecnologia próprias aos países em desenvolvimento. Agravando-se a carência de recursos, em virtude, inclusive, do desinteresse, por José Carlos de Medeiros Pereira 121 omissão ou não, das camadas dirigentes, a ciência e tecnologia desenvolvida nesses países torna-se mais dependente e alienada dos problemas do próprio país. Os laboratórios dos países de origem fornecem às filiais as últimas invenções e novos produtos, pouco se preocupando em estimular os laboratórios e universidades locais autônomas a elaborar pesquisas visando os interesses da população nativa. Os centros de pesquisa mencionados podem interessar a esses capitais, normalmente, apenas na medida em que, financiados do exterior, passam a realizar pesquisas encomendadas ou estimuladas de fora. (3) A situação a que se referiu acima prejudica, igualmente, a utilização de cientistas e técnicos formados no país por indústrias nele instaladas. Tornando-se as oportunidades de emprego muito limitadas, muitos dos mais bem dotados dirigem-se para os países desenvolvidos, uma vez que só nestes encontram emprego produtivo para seus conhecimentos e habilidades. Esta “evasão de cérebros”, por sua vez, constitui mais outra contribuição, no caso relativamente sutil, dos subdesenvolvidos para a manutenção e ampliação da desigualdade científica e cultural entre os países, concentrando-se a ciência, ou assim parecendo, naquele reduzido universo de nações ditas desenvolvidas. Em tais condições precárias, pesquisadores de valor vêem-se desestimulados de se dedicar à ciência aplicada por não ter ela utilização no país de origem. Por outro lado, vêem-se também frustados no terreno da ciência “pura”, dada a quase impossibilidade de competir com os laboratórios e universidades dos países avançados, com sua vastidão de recursos materiais e humanos. Entendido isso percebe-se o quanto é frequëntemente errôneo criticar toda a comunidade científica e tecnológica, ou conjuntos de pesquisadores de um país subdesenvolvido, pelo que podemos considerar descaminhos de seu sistema científico-tecnológico. As exigências culturais, sociais e econômicas do meio ambiente condicionam amplamente o desenvolvimento desse sistema, só em parte podendo-se dizer que as condições são estabelecidas pelos modelos científicos e por seus cultores. É a sociedade, as 122 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE exigências culturais do meio ambiente, que compelem os cientistas a desenvolver seus projetos de investigação e de aplicação.(4) Se estes projetos estão disssociados das necessidades práticas de alcance social, é porque a ideologia dominante condicionadora da interpretação dessas necessidades e do modo de aproveitamento das contribuições da produção científica e tecnológica está operando em sentido inadequado. No caso brasileiro, especificamente naquela produção voltada para a melhoria ou manutenção das condições de saúde da população, as limitações referidas e ainda outras, como escassez de recursos, falta de autonomia dos centros de pesquisa etc., existem em alto grau. 4. A TAREFA DOS CIENTISTAS E TÉCNICOS Estas condições desfavoráveis não eximem, contudo, o cientista e o técnico (voltados ou não para o campo da saúde), de suas responsabilidades sociais. E o primeiro passo para que alguma coisa se faça é, como foi dito atrás, a tomada de consciência dessa responsabilidade. De fato, não se pode conceber que o rumo das pesquisas, os problemas abordados, a utilização dos conhecimentos acumulados e descobertas feitas não dependam, em boa parte, das atitudes e comportamentos dos agentes sociais citados. Alhear-se sob a justificativa de que uma tomada de posição representa uma manifestação “extra-científica” é um preconceito “científico” e como tal pode e deve ser combatido. Os obstáculos existentes deveriam, antes, servir de estímulo a cientistas e tecnólogos para se voltarem à tarefa de, manejando os valores mais altos da ciência e da tecnologia, transformarem o Brasil num país mais saudável, mais desenvovildo, cultural, social e economicamente. De fato, a obrigação mais alta do verdadeiro cientista é a atividade criadora em todos os níveis e a integridade intelectual. Ambas representam um papel de primeira plana numa luta (que não precisa ser necessariamente partidária, ainda que política) para a definição dos alvos da política científico-tecnológica adequada para a área da saúde e para conseguir os meios para alcançá-los. José Carlos de Medeiros Pereira 123 Essa luta é travada em vários terrenos. E, talvez, a principal barreira a ser vencida, encontrada pelos trabalhadores intelectuais, seja a própria sociedade global, muitas vezes acanhada para fazer valer suas reivindicações em determinadas áreas, de que é exemplo a de melhor saúde. Em face disso, a motivação indispensável à realização das tarefas necessárias pode esmorecer. Esta é, pois, a primeira tarefa: vencer a insuficiente plasticidade da sociedade brasileira para aproveitar eficientemente o resultado de um labor intelectual realmente profícuo em termos desse alvo. Não sentindo exploradas construtivamente suas contribuições, muitos cientistas e técnicos desanimam. Cria-se um círculo vicioso na relação entre esses trabalhadores e a sociedade: não produzindo conhecimentos tidos como úteis pela sociedade inclusiva (ou por suas camadas mais influentes), ela nega prioridade ao saber científico e tecnológico, inclusive ao saber médico. Não conseguindo obter satisfações morais (como o reconhecimento do próprio valor, por exemplo) e materiais, as pessoas voltadas para as várias áreas do saber deixam de dedicar a elas o máximo de seus esforços porque lhes falta estímulo. Uma possível saída para o impasse seria tentar produzir uma ciência e tecnologia claramente relevantes para o desenvolvimento nacional e, em nosso caso específico, para a melhoria da saúde coletiva, e tentar mostrar, através dos meios disponíveis de comunicação, essa relevância, a fim de que grupos e camadas sociais com influência sobre a política científico-tecnológica se disponham a apoiar aquela preconizada pela comunidade científica. 5. O PAPEL DA UNIVERSIDADE Devemos reconhecer, no entanto, que muito do descrédito de que goza a ciência e a tecnologia nacionais tem sua razão de ser nas características passadas e presentes do ensino superior brasileiro. No passado se atribuía pouca importância à pesquisa (“pura” ou “aplicada”) nas universidades, havendo uma nítida negligência em desenvolver no corpo quer docente quer discente 124 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE “hábitos de pensamento produtivos”. Atualmente, a pletora de cursos de pós-graduação acabou tendo o mesmo efeito, embora tenha havido um extraordinário aumento quantitativo de pesquisas. É que se substituiu o desinteresse anterior por um afã ardoroso de pesquisar, mas de pesquisar qualquer coisa “não importa com que fito ou com que proveito”.(5) Ou melhor, produzem-se pesquisas em série visando, tão-somente, alcançar títulos acadêmicos, hoje uma espécie de “doença infantil” que avassala a instituição universitária. Em decorrência, há um desperdício de recursos materiais e humanos incompatível com uma política científico-tecnológica socialmente produtiva e também incompatível com a integridade intelectual de uma comunidade científica atenta às suas responsabilidades sociais e empenhada, de fato, na solução dos problemas nacionais e no desenvolvimento do corpo teórico da ciência e em seus desdobramentos práticos. Ao se produzir uma pseudociência, estribada numa rede invisível de interesses extracientíficos, dificulta-se o avanço da verdadeira ciência, detendo-se suas tendências frutíferas. (6) A grave sintomatologia descrita é causada, por sua vez, em larga medida, como já nos referimos, pelos vários tipos de obstáculos ao aproveitamento construtivo das contribuições científicas e tecnológicas de valor. Basicamente eles decorrem do fato de sermos econômica e culturalmente dependentes, mas também de fatores institucionais (por exemplo, a estrutura e funcionamento do sistema educacional brasileiro), políticos, sociais, culturais, etc. Quanto aos obstáculos institucionais, dois são patentes: a falta de entrosamento entre os vários núcleos universitários e congêneres onde se faz pesquisa científica; donde o desconhecimento mútuo do que cada grupo está realizando. Um segundo obstáculo bastante importante é quanto à inexistência, neste momento, de pressões societárias organizadas, que estimulem o financiamento da pesquisa científica visando clara e objetivamente a promoção do desenvolvimento sócio-econômico e cultural em geral e especificamente, no campo da saúde. Tudo isso compromete a formulação de uma política científico-tecnológica como se pretende: ou seja, “racional”, socialmente satisfatória e, o que é José Carlos de Medeiros Pereira 125 muitíssimo importante, viável dentro das condições existentes ou que possam vir a ser criadas. Creio que, pelo menos em parte, essas dificuldades poderiam ser sanadas por um interesse mais ativo da comunidade científica por estas questões de suma valia. À falta de estímulos como os mencionados, principalmente os provenientes do sistema econômico, correr-se-á o risco de os pesquisadores continuarem desenvolvendo “suas atividades muito mais com vistas à sua carreira pessoal (teses, concursos) do que em função dos problemas relevantes da comunidade nacional”. (7) 6. A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS A ruptura do círculo vicioso poderia ocorrer tanto pelo lado da sociedade global, na qual podemos incluir a “classe” política, como pelo lado da comunidade científica, estabelecendo uma compreensão mútua melhor de seus interesses e capacidades. À medida que camadas sociais mais amplas possam fazer ouvir suas reivindicações e pressionar os órgãos governamentais responsáveis, essa ruptura tenderá a ocorrer, potenciando os esforços dos dois grupos estrategicamente situados acima assinalados (políticos e cientistas). A “classe” política, por exemplo, pressionada, poria sua grande capacidade de “vocalização” a serviço do objetivo apregoado. Quanto aos cientistas e tecnólogos, como grupo profissional consciente da importância de suas contribuições para o desenvolvimento do país, receberiam os estímulos que lhes estão faltando atrás mencionados. A ação decisiva de grupos estratégicos dentro da sociedade global poderia levar à formulação conjunta, por parte de políticos e cientistas, pelo menos, de uma política científico-tecnológica definida, encorajando pesquisas socialmente orientadas. Essa definição é fundamental pois, como já se afirmou, as descobertas, tanto no campo da ciência pura como no da aplicada, inexistindo essa política, acabam sendo sobretudo ocasionais. Conseqüentemente, a assistematização no relacionamento entre os que trabalham nas mesmas áreas ou afins torna-se a regra: dificulta-se a percepção das conseqüências produtivas do labor 126 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE intelectual para a sociedade e a economia. Sem essa política definida, podemos esperar a manutenção da descontinuidade de esforços, do subaproveitamento de recursos materiais e humanos, da falta de rumos, igualmente definidos, na orientação da pesquisa científica, da carência crônica de recursos, etc. Resultado: os problemas de saúde do país tenderão a continuar sendo enfrentados não pela remoção de suas causas fundamentais, mas através do combate aos efeitos e causas aparentes. Há, contudo, uma outra possibilidade de interpretação do quadro negativo e pessimista que traçamos. Segundo uma perspectiva otimista poderia tratar-se, simplesmente, de uma situação passageira, consubstanciando uma crise de crescimento da ciência e da tecnologia no Brasil. Mas, então, a crise poderia ser mais rapidamente superada se os problemas fossem enfrentados com maior vigor, discutindo-se os alvos da política científico-tecnológica (em nosso caso voltada para o campo da saúde) a partir de questões cruciais como a dependência nessa área. Ela constitui uma simples imitação ou representa algo mais sério, como a manifestação, no âmbito científico, da subordinação, que cremos real, dos sistemas sócio-econômicos “periféricos” aos centrais? Se a ciência e a tecnologia que estamos produzindo e ensinando não são adequadas à sociedade e economia como um todo, a quem ou a que elas aproveitam? A comunidade científico-tecnológica nacional está atrelada aos interesses, manifestos ou disfarçados, de alguns grupos? De quais? Por quê? Deve-se dar mais ênfase, ou não, à produção de conhecimentos científicos originais, competindo no nível internacional, ou dar prioridade à adaptação dos existentes à realidade brasileira? E assim por diante. A comunidade científica e tecnológica tem responsabilidades especiais, às quais, como já insistimos, ela não pode fugir através de uma pseudo neutralidade. Contribuindo para definir uma política, ela poderá encontrar soluções para o problema, por exemplo, da existência de canais, institucionais ou não, para o aproveitamento produtivo, da ciência médica por exemplo, que está sendo ou vier a ser produzida. Se os recursos são escassos, eles também podem estar sendo mal José Carlos de Medeiros Pereira 127 utilizados naqueles projetos de pesquisa improdutivos a que nos referimos. Há, pois, de sensibilizar os que podem fornecer esses recursos, desenvolvendo uma produção científica e tecnológica organizada, visando campos em que temos amadurecimento e capacidade para realizar contribuições profícuas. Neste ponto, os cientistas e tecnólogos têm de atentar para duas ordens de fatores: viabilidade dos projetos e significação dos resultados alcançados. O engajamento da comunidade científica nesse processo de mudança, enfrentando responsabilidades e desprendendo-se de um intelectualismo estéril, é fundamental, ainda, porque essa comunidade tem, pelo menos virtualmente, as maiores condições de tentar frear as tendências negativas assinaladas. Para isso, os cientistas têm de abandonar a neutralidade cômoda e a restrição à sua especialidade, preocupar-se com o essencial (que está nas contribuições societárias e propriamente científicas) e não com o acessório, abandonar a competição improfícua entre grupos e pessoas, fonte lamentável de individualismos e facciosismos, e, ao contrário, formar grupos coesos, lutando por interesses comuns. A responsabilidade social dos cientistas e tecnólogos da área da saúde é muito grande quando se analisam as conseqüências negativas para a sociedade brasileira da ruinosa prioridade que tem sido dada, em muitos casos, à tecnologia em si mesma ou à utilização, também excessiva, de técnicas importadas, quando nossos problemas sociais e econômicos exigiriam um maior desenvolvimento do pensamento inventivo em todos os campos, criando ou adaptando tecnologias. Inclusive porque, muitas vezes, ao se insistir na imitação canhestra do uso de produtos e técnicas de uso comum nos países economicamente desenvolvidos, estaremos mostrando uma incapacidade injustificável, sob qualquer ângulo que se a examina, de levar a cabo um desenvolvimento autônomo da sociedade brasileira. 128 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 7. O ESTABELECIMENTO DE PRIORIDADES E SUA IMPLEMENTAÇÃO O estabelecimento das prioridades envolvidas dependerá, em larga medida, como se deixou claro, dos comportamentos e atitudes da comunidade científico-tecnológica brasileira. É evidente que a discussão permanecerá em aberto quanto aos reais interesses coletivos, tarefa que não é apenas dos cientistas e técnicos, mas, numa sociedade pluralista e aberta, de todas as camadas sociais. Na determinação desses interesses e prioridades, entretanto, é inquestionável que esta comunidade muito poderá contribuir, tanto para estabelecê-los, como para, uma vez realizada essa tarefa fundamental, coordenar os meios materiais e humanos necessários. Por exemplo, poderia contribuir especialmente no tocante à racionalização desses meios, já que, sabidamente, a produção científica e tecnológica de alto nível é um empreendimento caro, não se podendo barateá-lo além de certos limites. Esta colocação nos leva a uma outra questão, que é a de expandir organizadamente a Universidade brasileira e outros centros de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos originais. Urge, numa política científico-tecnológica nacional, global, da qual a Saúde é um componente de raro significado sócio-econômico, rediscutir as possibilidades criadoras da instituição universitária, hoje sofrendo uma crise de crescimento desordenado, com os resultados negativos assinalados em outra parte deste trabalho. Isso porque, sendo na Universidade onde se produz o “grosso” dos conhecimentos mencionados, o sistema universitário, no que diz respeito ao recrutamento, seleção, formação e aperfeiçoamento de pessoal, precisa ser reestudado, verificando-se sua adequação quanto aos objetivos da política que se proporá. Como são inegáveis as relações entre o ensino universitário e o mercado de trabalho na formação do pessoal técnico-científico, será necessário procederse a um diagnóstico dos recursos de que o sistema de atenção médica carece, isto se permanecer o modelo em voga. Há também que se proceder a um prognóstico quanto às possibilidades de sua alteração José Carlos de Medeiros Pereira 129 e conseqüentes futuras necessidades de recursos humanos. É ponto relativamente pacífico de que quando é grande a incerteza quanto a tal evolução, é preferível formar pessoal treinável, com boa formação geral, do que pessoas treinadas em determinadas especialidades, que poderão se tornar ociosas ou supérfluas, não se ajustando ou se ajustando com dificuldade a novas situações. Infelizmente, creio que o sistema de formação de pessoal médico atual está cometendo este último erro. A universidade, igualmente, deveria ser reestruturada no que diz respeito à criação de condições institucionais para o desenvolvimento da pesquisa, como já foi mencionado. De fato, a rigidez vigente na maioria das universidades brasileiras faz com que os investigadores precisem, freqüentemente, dedicar ingentes esforços não à própria pesquisa mas à criação de condições adequadas à sua realização. Da rigidez mencionada decorrem dificuldades relativas à obtenção de verbas, à contratação de pessoal auxiliar, ao conseguimento de meios técnicos, como aparelhamento, livros e outros itens necessários, ao atendimento a exigências burocráticas freqüentemente descabidas ou exageradas, etc. Obviamente estas condições deveriam estar institucionalizadas. É evidente a esterilidade da repetição de tais esforços por parte dos pesquisadores. (8) Acreditamos, também, que uma das principais missões da Universidade, depois de formulada e posta em prática a política científico-tecnológica preconizada, é realizar a avaliação continuada da eficácia dos esforços que estejam sendo feitos. Diga-se, a propósito, que, ao contrário das empresas privadas, quase todos os serviços, ligados direta ou indiretamente ao Estado brasileiro, têm uma visível aversão a se auto-avaliarem. O próprio modelo de universidade brasileira e a importância que, normalmente, confere à pesquisa científica original também se coloca em questão, no caso. A Universidade, para realizar sua parte nessa política científico-tecnológica para a área de saúde, não poderia, simplesmente, limitar-se a uma passiva transmissão de conhecimentos e habilidades prontos e acabados. “A ciência, 130 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE como sistema institucionalizado de conhecimento, reconstrói-se e aperfeiçoa-se de modo incessante, em função do progresso do homem no domínio e na utilização de suas formas de conhecimento. Para poder transmitir essas formas de conhecimento, a universidade tem de absorver o ensino das técnicas de pesquisa científica; para poder acompanhar os progressos incessantes dos diversos ramos do conhecimento científico, a universidade precisa produzir, por meios próprios, pelo menos algumas parcelas daqueles progressos...”.(9) 8. CONCLUSÕES Em face do exposto entendemos que a Política Nacional de Saúde se interliga, em boa parte, à política de ciência e tecnologia, e que uma e outra, se integram, por sua vez, na política social e econômica global. Ou seja, os objetivos específicos de grandes campos de atuação como a educação e a saúde serão, sobretudo, decorrência daquilo que tenha sido definido em nível societário. Só depois dessa definição pode-se propor para esses campos uma estratégia específica. Por outro lado, para que os grupos encarregados de executar os objetivos propostos se empenhem decisivamente em sua tarefa é necessário que participem de sua formulação. Só assim eles os assumirão como seus. Igualmente, como nenhum grupo social pode se arrogar o monopólio da verdade, a definição desses amplos objetivos a nível político deveria se realizar de um modo democrático. A participação de cientistas e técnicos nessa formulalção, como grupo social com interesses definidos, com respostas próprias às questões que se colocam é de suma importância, como já se afirmou. Mas a eles também cabe, freqüentemente e sobretudo, traçar meios alternativos. Ainda que a decisão quanto ao uso destes meios seja igualmente política, ela poderá se lastrear, em maior grau, em argumentos menos emotivos, ocorrendo a participação mencionada. Outro aspecto a assinalar é que a opção por uns e não por outros meios gera subprodutos os quais são capazes, inclusive, de produzir conseqüências não desejadas da ação José Carlos de Medeiros Pereira 131 planificada, contrariando os objetivos propostos. Talvez os mais sensíveis a estas conseqüências, quando imediatas, sejam os políticos e não os cientistas e técnicos. Contudo, estes, muitas vezes, são mais aptos a antecipar tais conseqüências quando mediatas e, ainda, a avaliar com certa isenção a consecução dos ditos objetivos. Talvez seja preciso uma auditoria externa para acompanhar o uso de meios e a consecução dos fins propostos pela política escolhida. Isto remediaria o costumeiro defeito (não só nosso, diga-se de passagem) de deixar que os próprios executantes se auto-avaliem. É claro que esta é, no momento, uma proposta inexeqüível. Mas a utopia, mudando as circunstâncias, pode vir a se tornar realidade no futuro. Para finalizar, queremos destacar, sobretudo com base nos trabalhos citados de Florestan Fernandes, o que consideramos principal na discussão até aqui estabelecida para a formulação de uma política de ciência e tecnologia, nela incluída a área da saúde, definida e válida para o Brasil. À guisa de conclusão, mencionaríamos os seguintes pontos: 1) a redução ou mesmo eliminação da pesquisa inútil, que não contribui para o avanço do corpo teórico da ciência, para o conhecimento mais aprofundado ou específico de determinadas questões, nem visa a aplicação, nisso não se incluindo as pesquisas de treinamento; 2) a diminuição do desperdício de recusos materiais e humanos; 3) o enfrentamento da dependência científica e tecnológica; 4) a atenuação do domínio da economia nacional por empresas multinacionais que dificultem, ou mesmo impeçam o aproveitamento construtivo da produção científica e tecnológica nacional original e dos recursos humanos formados; 5) a superação dos obstáculos sócio-político-culturais a esse aproveitamento; 6) maior resistência à tendência à importação de soluções tecnológicas inadequadas às condições brasileiras ou que levam a uma maior subordinação do país às economias centrais do sistema capitalista; 7) a luta contra o vício arraigado, em boa parte dos membros do sistema universitário, de maior preocupação com interesses individuais e grupais do que com os objetivos mais altos da ciência; 8) o encontro de soluções, ainda que parciais, 132 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE para vencer a tendência, também comum, de os grupos se degladiarem numa competição estéril, isolando-se e conflitando-se, em vez de se associarem para um trabalho profícuo; 9) a conscientização, dos grupos e pessoas mencionados atrás, de que a integridade intelectual é matéria a ser vivenciada, repelindo-se o dogmatismo existente em certas áres com relação não só quanto aos alvos e métodos da ciência, como quanto aos problemas sociais, políticos e econômicos envolvidos na solução dos problemas da saúde, dogmatismo esse que se traduz numa limitação da liberdade de pesquisa de temas e uso de métodos; 10) o estímulo à responsabilidade social dos cientistas e técnicos no tocante ao aproveitamento dos resultados dos avanços da ciência e da técnica ocorridos na área; 11) o abandono, pelos mesmos, da carapaça de uma neutralidade inexistente, como justificativa “racionalizadora” de seu próprio comodismo em face dos problemas cruciais de saúde no Brasil; 12) a falta de entrosamento entre instituições, grupos e pessoas para debaterem problemas que dizem respeito à comunidade científico-tecnológica, ao sistema de atenção médica e ao sistema social inclusivo, procurando soluções concretas para os mesmos; 13) o debate a respeito do tipo de conhecimentos a serem produzidos; 14) a criação de canais institucionais através dos quais esses conhecimentos possam ser aproveitados construtivamente pelo sistemas de atenção médica existentes ou a serem criados; 15) a coordenação nacional do sistema científico-tecnológico, a fim de evitar descontinuidade de esforços e subaproveitamento dos resultados produzidos; 16) a apresentação de projetos viáveis e significativos, não só do ponto de vista científico e técnico, como do ângulo societário; 17) a criação de condições para que os cientistas e técnicos formados no país, na área e em outros, encontrem nele emprego produtivo, evitando a “evasão de cérebros”; 18) o exercício de pressões coletivas sobre empregadores (estatais e privados) para que os elementos humanos que constituem (e vierem a constituir) quadros com propostas alternativas, recebam estímulos adequados, sobretudo econômicos (devendo-se deixar claro que o fazer ciência não pode ser concebido como sacerdócio); 19) a reavaliação dos objetivos e funções da José Carlos de Medeiros Pereira 133 universidade, pois sendo o principal centro de pesquisas do país, necessita, para cumprir adequadamente sua missão, não só reformar velhas-estruturas, como impedir que quaisquer alterações nas mesmas, através da manutenção e mesmo expansão de interesses extracientíficos venham impedir (ou dificultar) o alcançar aquela missão; 20) a avaliação contínua dos resultados da política posta em prática, cotejando-os com os objetivos propostos e realizando, conforme o caso, alteração destes ou dos meios que estejam sendo utilizados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1 - Rattner, H. “Considerações sobre ‘Política Científica-Tecnológica’”, Revista de Administração de Empresas, F.G.V., vol. 17, nº4, julh/ agosto de 1977, p.45; 2 – Idem, pp. 45-46; 3 - Lopes, J. L., “Ciência e Universidade no Terceiro Mundo: a experiência no Brasil”. In Furtado, Celso, Brasil: Tempos Modernos, Editora Paz e Terra, 1968, Rio de Janeiro, principalmente pp. 140-1, 145, 149-150; 4 – Fernandes, F., A Sociologia numa Era de Revolução Social, Cia Editora Nacional, S. Paulo, 1963, cap. 1, “O cientista brasileiro e o desenvolvimento da ciência”, p.11; 5 – Idem, Educação e Sociedade no Brasil, Dominus Editora/Editora da USP, S. Paulo, 1966, parte 2, cap. 2, “Pesquisa e ensino superior”, pp. 209-210; 6 – Idem, A Sociologia numa Era de Revolução Social, op. cit., 22; 7 – Rattner, H., op. cit., p.46; 8 – Fernandes, F. Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução?, Editora Alfa-Ômega, S. Paulo, 1975, cap. 9, “ A universidade e a pesquisa científica”, pp. 248-9; 9 – Idem, ibidem, nota 32 à p. 246. 134 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 6. ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA 135 136 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 137 6.1. SOBRE A TENDÊNCIA À ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA* INTRODUÇÃO A tendência à especialização na medicina é presentemente universal nos países ocidentais. A profissão, que há duas décadas mais ou menos tinha por protótipo o clínico geral, hoje, praticamente, tem por protótipo o especialista. Isso dá a entender que aquilo que era uma tendência, na verdade já se transformou em norma. Nossa intenção aqui será discutir certo número de condições e fatores geralmente considerados como responsáveis por essa mudança e, em seguida, dar um enfoque diferente a essas interpretações. EXPLICAÇÕES CORRENTES Há uma série de explicações correntes do processo. Talvez a mais mencionada seja a que se refere à evolução da medicina como ciência aplicada. Entende-se que tal evolução implicou numa crescente complexidade técnico-científica que, do ponto de vista prático, veio tornar muito difícil para a mesma pessoa dominar todo o campo de conhecimentos abrangido pela medicina. Em outras palavras, o próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologia relacionadas com a prática médica teria forçado os médicos a, por assim dizer, restringirem seu campo de atuação, especializando-se no * Publicado originalmente em Educación Médica y Salud, vol. 14, nº 3 (1980): 252261. 138 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE campo restrito que pudessem dominar e, inclusive, aprofundar. Freqüentemente, a sofisticação tecnológica no campo médico, no caso brasileiro e outros assemelhados, está vinculada a nossa dependência cultural (no amplo sentido), principalmente dos Estados Unidos. Ao tomar como paradigma a medicina praticada neste último país (efeito de demonstração), as instituições formadoras de médicos e as classes de renda mais alta tenderam a valorizar positivamente o profissional especialista. Em conseqüência, este se tornou o modelo para os futuros médicos e alterou os conceitos sobre atendimento médico “ideal” do restante da população. O exemplo do professor-especialista, por sua vez, teria influenciado os alunos no sentido de optar precocemente por uma especialização ainda no próprio curso de graduação. A própria precocidade da opção produziria neles certa insegurança quanto aos seus conhecimentos globais, o que poderia inclinar os recém-formados às especializações gerais num primeiro estágio e às microespecializações num segundo. Além do mais, ao receberem seu ensino em hospitais universitários, onde a sofisticação do aparelhamento é a regra, vão se tornando mais e mais dependentes de um complexo instrumental que só pode ser utilizado por quem tenha conhecimento especializado de seu uso, o que dificultaria posteriormente o abandono do setor restrito em que se especializaram. Esse tipo de ensino de graduação também faria com que os alunos se familiarizassem sobretudo com doenças raras, crônicas e degenerativas, características de um nível terciário de atendimento, que necessitam de cuidados médicos especializados em maior grau. Em suma, a especialização seria estimulada já durante o período de formação do futuro médico, a qual tenderia para dois aspectos principais: a citada imitação do modelo de assistência médica vigente num país desenvolvido e o aprendizado voltado para um padrão de saúde e doença típico de países em estágio de desenvolvimento mais avançado e não do Brasil, fazendo com que grande número de médicos tenha uma formação relativamente inadequada para enfrentar a realidade concreta de nosso país. José Carlos de Medeiros Pereira 139 Outra explicação habitual refere-se à expansão da procura de serviços médicos especializados, induzida, entre outros fatores, pelo aceleramento dos processos de urbanização e industrialização e pela conseqüente enorme ampliação do número de pessoas vinculadas à Previdência Social. Quando esta passou a prestar assistência médica aos seus associados, não só veio ao encontro de suas necessidades sentidas, como estava interessada em prestá-la a baixo custo e a um grande número de pacientes, diminuindo seus dispêndios com afastamentos do trabalho, por exemplo. Nesse ponto, teriam entrado em cena os interesses da “classe” médica e dos órgãos governamentais. Assim, o credenciamento em massa de especialistas por parte do INPS poderia indicar, de um lado, que o órgão previdenciário considerou o atendimento médico por este grupo mais satisfatório quanto à rapidez de recuperação do paciente; e de outro lado, que esse credenciamento de especialistas procurou atender a uma preocupação da “classe” médica, no sentido de diminuir suas tensões internas, decorrentes da competição no mercado de trabalho. Isto significaria que a política de saúde do Ministério da Previdência Social (pois este é mais importante nessa matéria que o Ministério da Saúde) respondeu a considerações não apenas ou sobretudo médicas (desde que quantidade de pacientes atendidos a baixo custo e a ampliação do mercado de trabalho para médicos não podem ser tidas como considerações de cunho médico) mas também de política econômica e social. Ademais, o processo de especialização na medicina teria sido acelerado pela entrada dos órgãos previdenciários no campo da assistência médica, por se haverem eles rendido às pressões de interesses particularistas quanto à assistência hospitalar, financiando, a juros baixos e a longo prazo, a construção e o aparelhamento de hospitais. Essa política teria sido, ao mesmo tempo, causa e efeito do grande destaque ganho pela assistência médica hospitalar, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país, com a utilização de equipamentos sofisticados e custosos. Poder-se-ia dizer que tal tipo de assistência levou à ampliação do número de especialistas, já que requer mais os serviços destes. Assim, tanto direta como 140 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE indiretamente, o INPS, com sua política de saúde, teria reforçado a tendência à especialização. Concomitantemente, ao nível de atendimento particular, ocorreu uma promoção também acentuada de necessidades artificialmente criadas (levando ao que Ivan Illich chamou de “medicalização” da vida), cujo efeito real foi o aumento de assistência médica especializada. Essa assistência, embora vindo atender à procura de camadas que podem pagar, que dão preferência ao uso, por parte do médico, de equipamento sofisticado e à confirmação de diagnósticos através de exames laboratoriais e outros, repercutiu, em virtude do citado efeito de demonstração, sobre as demais camadas sociais, incentivando a especialização, inicialmente nas grandes cidades e, posteriormente, em todo o país. Quanto à oferta de serviços médicos, o aspecto mais relevante que se tem buscado é o crescimento do número de profissionais, em termos tanto absolutos como relativos. Não nos interessa aqui discutir a razão da grande procura das escolas médicas por parte dos estudantes em vias de entrar para um curso superior. Objetivamente, o resultado do grande número de candidatos a futuros médicos foi pressionar o Estado e estimular entidades privadas a instalar maior quantidade de escolas de medicina. Se os novos médicos, em sua grande maioria, se dedicassem à clínica geral, a competição entre profissionais se tornaria por demais acirrada. Outro fator freqüentemente citado entre os que teriam contribuído para que a especialização se tornasse a regra é o de que porção ponderável dos antigos clínicos gerais não se mantivera atualizada sobre os avanços da medicina, prestando (com numerosas exceções) serviços deficientes. Assim, teria sido natural que os jovens médicos desejassem ostentar o título mais prestigioso de especialistas, desvinculando-se de uma imagem que se estava tornando negativa. Finalmente, mas sem exaurir o assunto, outro tipo de explicação usa as tradicionais colocações a respeito do surgimento e evolução do processo de divisão social do trabalho, cuja amplitude é uma das caracteríticas centrais das sociedades econômica e socialmente José Carlos de Medeiros Pereira 141 complexas. Em sua obra De la Division du Travail Social, Durkheim considera tal divisão como conseqüência do aumento do volume e da densidade da população. O processo teria levado a um tipo especial de solidariedade entre os homens, a solidariedade orgânica, que teria por fundamento suas diferenças, em contraposição à solidariedade mecânica, em que tal fundamento seria suas similitudes. A função social da divisão do trabalho, para Durkheim, seria a evitação do conflito. Durkheim enfatiza pouco o aspecto econômico da divisão do trabalho, ao contrário de Adam Smith (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nation), que está interessado na divisão técnica do trabalho como um dos principais meios de elevar sua produtividade, fator primacial para se atingir o que, em linguagem atual, seria o desenvolvimento econômico. No contexto destas observações, dir-se-ia que a divisão social do trabalho levou ao surgimento dos ofícios e profissões (como a de médico) e que o avanço do processo produziu a divisão técnica dos próprios ofícios e profissões (o especialista, em nosso caso), nitidamente voltada para o objetivo consciente de produzir economicamente mais. A fragmentação da profissão médica, como a das demais profissões liberais, ainda que ocorrendo muitas décadas após o mesmo processo ter atingido os antigos ofícios, teria causa semelhante: as exigências do sistema de produção. UMA CONCLUSÃO PARCIAL Ainda que não exaustivo, este conjunto de condições e fatores teria militado em favor da especialização. Ainda que sua utilidade, quando excessiva, seja quase sempre questionável em termos do que se poderia entender por uma assistência médica “ideal” num país como o Brasil, seria ela a expressão de um processo que atenderia, de um lado, aos anseios dos próprios médicos, que poderiam manter relativamente intacta sua coesão grupal, e viria, de outro, ao encontro de ponderável parte daqueles que procuram assistência médica, que se julgaria melhor quando prestada dentro do esquema da especialização. Sob outro prisma, a tendência à especialização 142 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE permitiria aos médicos uma assimilação mais rápida dos avanços técnicos e científicos ocorridos em sua área de atuação, melhorando a qualidade dos serviços prestados. A possível elevação de seus custos seria compensada pela rapidez e eficiência que se supõe estarem associadas à especialização. ALTERANDO O ENFOQUE: O OUTRO LADO DA QUESTÃO Sugerem as colocações anteriores que a intensificação da especialização na profissão médica respondeu a um processo social que beneficiou seus dois principais protagonistas: o médico e seu paciente. No entanto, isso só ocorreu na aparência: se aprofundarmos a interpretação, ela nos mostrará a outra face da moeda. De fato, o movimento subjacente ao processo escapou ao controle dos participantes, e principalmente aos próprios médicos. A especialização na medicina, vista por um prisma diferente, se apresenta como um produto de mudanças sócio-econômicas. Sendo produto, não foi uma criação conscientemente planejada por médicos e enfermos. Não há dúvida que uma das facetas mais características dessas mudanças é a divisão técnica do trabalho. A realização de tarefas cada vez mais específicas é uma constante na evolução da sociedade humana, já que incrementa a eficácia e o aumento da produtividade. A essa tendência, que se intensificou enormemente nos dois últimos séculos, não escapou a medicina. Resta, contudo, perguntar a quem de fato mais tem aproveitado a fragmentação do trabalho. É sintomático que o processo se acelerou à medida que o regime capitalista de produção sobrepujava regimes em que predominava a reprodução simples do capital. A atividade artesanal, responsável pela produção direta de bens, foi a primeira a desaparecer, porque não atendia às necessidades do processo de reprodução ampliada. Ao parcelamento dos ofícios, seguiu-se o das profissões. Se é certo que o homem que realiza um trabalho parcial torna-se capaz de efetuá-lo com maior perfeição, José Carlos de Medeiros Pereira 143 rapidez e eficiência, por ficar restrito a uma porção do todo (como mostrou Adam Smith no caso da fabricação de alfinetes), o mesmo não ocorre, necessariamente, em profissões como a de médico, em que o agente tem que ter a noção clara desse todo. Isto para não nos referirmos ao que possa ocorrer com o trabalhador parcial, cujo grau de alienação aumenta, como mostra Erich Fromm, entre outros. A mesma atividade de coordenação que a especialização em tarefas específicas impôs ao empresário, no caso do trabalho industrial pulverizado, passou a ser necessária no caso dos médicos que, em virtude de sua especialização excessiva, se tornaram incapacitados de encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social e cultural. Disso resultou uma forma de atendimento que é produto comum de profissionais parciais, assim produzindo uma faca de dois gumes: desde que se trate de encarar o homem enfermo como um somatório de partes, cada qual suscetível de tratamento isolado, o especialista pode proporcionar mais serviços médicos em quantidade e qualidade; e tanto médicos quanto pacientes podem passar a depender de uma instituição mais ampla, representada pelos serviços estatais de assistência médica, empresas proprietárias de aparelhos sofisticados, hospitais, laboratórios, etc. Do ponto de vista do prestador de serviços médicos, o problema se desloca para o domínio daquele instrumental; e do ponto de vista daquele que os recebe, para o de seu atendimento como um homem integral e não fragmentado. A eficácia do profissional em aspectos restritos não garante tal atendimento. Voltado para sua atividade parcial, a questão raramente preocupa o especialista e, muito menos, o proprietário de “indústrias” que pretendem, direta ou indiretamente, proporcionar saúde e/ou combater a enfermidade. O primeiro tende a se aprofundar apenas em seu campo limitado, desinteressando-se de outros, igualmente importantes da perspectiva tanto individual como social, e perdendo mesmo, quando transformado em ultra-especialista, a liberdade de atuação dentro da própria profissão. Para ele, é mais difícil mudar de especialidade ou de lugar de trabalho, ou mesmo desvincular-se de empregadores, que podem 144 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE existir em número limitado (algumas vezes representados tão-só pelo Estado). A atomização do trabalho médico pode levar também à atomização de responsabilidades, em parte porque a excessiva divisão técnica da profissão acentua a necessidade de serviços administrativos de apoio, com o conseqüente realce da burocratização e possível impessoalização das relações. Max Weber (Economía e Sociedad, na tradução em língua espanhola) enfatiza a superioridade técnica da organização burocrática, em decorrência exatamente de sua imparcialidade, mas burocratização nem sempre significa racionalização das atividades às quais se aplica. Independentemente do significado dúbio do termo “racional”, é patente a freqüência com que a instituição encarregada da organização dos meios tende a se tornar um poder à parte e superior, subvertendo a hierarquia entre meios e fins e perdendo de vista o objetivo central. Mesmo que isso não ocorra, uma das conseqüências da intensificação do processo de burocratização é tornar mais difícil e complicada a vida das pessoas envolvidas. Como membro de uma organização burocrática, é difícil ao médico não absorver um pouco de uma de suas mais marcantes características, qual seja, a impessoalidade, que muitas vezes leva à citada atomização de responsabilidades. De qualquer modo, e isto é o fundamental, não procede atribuir aos médicos, seja em nível individual ou grupal, a tomada de decisões quanto ao avanço do processo de especialização na medicina. O médico, o mais das vezes, torna-se especialista para se integrar ao mercado de trabalho existente e não porque assim o tenha decidido de moto próprio. Como especialista, poderá ter melhores oportunidades de obter maiores salários ou honorários, porque o sistema de atenção médica desenvolvido no Brasil privilegia o emprego de especialistas. Nessa qualidade, mesmo nos raros casos em que possa ser o dono de seus intrumentos de trabalho (porque a regra é o assalariamento, pelo menos nos grandes centros urbanos), a vinculação a instituições tornase para ele quase obrigatória, desde que dificilmente estará em condições de proporcionar atendimento aos pacientes encarados como José Carlos de Medeiros Pereira 145 uma totalidade. Entendemos, pois, que é de todo procedente fazer-se uma distinção entre o processo inicial de divisão social do trabalho e seu desdobramento, a divisão técnica e profissional: o significado social do primeiro processo é bastante nítido, enquanto, no segundo caso, é maior a motivação econômica, não dos que sofreram o processo, mas dos detentores dos meios de produção. Na divisão social, os beneficiários são o conjunto da coletividade; na divisão técnica e profissional, os prejudicados é que são muitos, e poucos os beneficiários. Em tal situação, o especialista passa a ser vítima, porque não encontra condições de exercer a clínica geral nem de proporcionar assistência médica integral. CONCLUSÕES Através da inversão na análise e interpretação, verificamos que o principal beneficiário da especialização provavelmente não é o médico nem o paciente, mas a “indústria” de assistência médica. Não se esgota nela, contudo, o número dos favorecidos pelo processo. Também os setores industriais dedicados à produção de aparelhos e instrumentos indispensáveis à medicina sofisticada, confundida, nem, sempre com razão, com a de alto padrão. Uma colocação desse tipo é necessária para evitar a tendência de encarar apenas o médico levado à especialização como o agente mais importante através do qual se pode e deve interpretar o problema. As pressões, condições e fatores que desencadeiam e reforçam a tendência à especialização são mais significativos: o mercado de trabalho médico, a intervenção do Estado, as diversas esferas da produção voltadas para o setor médico, os processos econômicos que condicionam e mesmo determinam a divisão técnica e profissional do trabalho. Os pacientes, por sua vez, são induzidos a valorizar o especialista com argumentos nem sempre racionais. Quanto aos governos, incentivam a especialização pressionados por todos os atores envolvidos e também para diminuir tensões numa área sensível como o é a da saúde. E as industrias farmacêuticas e de material utilizado na prática médica de 146 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE todo o tipo, seguindo a dinâmica do sistema capitalista, dependem da criação de uma demanda (real ou artificial) cada vez maior de medicamentos, aparelhos, instrumentos, etc. Por outro lado, o conjunto do empresariado interessa-se em aumentar a produtividade da força de trabalho mediante a melhoria ou recuperação, a baixo custo, das condições de saúde desta. A utilização de serviços médicos prestados por empresas e pela Previdência Social, empregando especialistas que fragmentam o atendimento, pretende fazer com que, mais rapidamente e a esse custo mais baixo, a mão-de-obra, sobretudo a mais qualificada, seja recuperada para a atividade produtiva. Contudo, neste ponto, podem (ou poderão) surgir conflitos de interesse dentro do próprio empresariado, quando parte dele, dedicada à “indústria” da saúde, eleva os gastos com a assistência médica, e o restante, empenhado em expandir seus ganhos, visa o aumento da produtividade e, mais ainda, o da rentabilidade, o que implica na diminuição dos custos dos serviços médicos, de tensões dentro e fora das empresas, ou seja, no sistema social global. Ora, o aumento da rentabilidade exige a ampliação da demanda, o que pode ser prejudicado se os gastos com a atenção médica se elevam em demasia, diminuindo a proporção das rendas destinadas à aquisição de bens e serviços não médicos. Neste sentido, cremos poder concluir que, para os participantes diretos da relação, as conseqüências da especialização não foram realmente benéficas, ou o foram em proporção bem menor do que se costuma referir. Sendo acertadas estas conclusões, não pode ficar sem reparo o papel discreto e conservador que tem exercido a universidade brasileira nesse particular, e especialmente suas faculdades de medicina. A função criadora, que deveria ter como princípio diretor e orientador um ponto de vista crítico, foi muito obscurecida. Uma e outras exageraram seu papel de instituições transmissoras passivas de conhecimentos, não agindo sobre o meio no qual estão inseridas, mas tão-somente, de modo geral, recebendo seus influxos. Autênticas José Carlos de Medeiros Pereira 147 instituições universitárias não se podem transformar em simples agências formadoras de profissionais de nível superior, desvinculandose da missão maior que as define: o pensamento reflexivo e organizado que não só afirma, mas, principalmente, duvida e nega, ou seja, crítico, o que implica na apreciação do valor desse pensamento (sob todos os aspectos) e da ação dele derivada. Para exercer esse papel, a universidade precisaria agir sobre o meio. Para isso, os professores universitários, que são sem dúvida o que de mais importante existe na instituição, têm que atentar para os problemas de sua realidade social, percebendo-os com maior clareza. Feito o diagnóstico da situação, tão preciso quanto seja possível, o passo seguinte é atuar no sentido de alterar seus aspectos que possam ser considerados como indesejáveis. Ainda que a universidade seja também, em grande parte, um produto de processos sociais mais gerais, sobre os quais nem sempre pode atuar com vigor, nada obsta que aja dentro dos limites que lhe são outorgados e que, diga-se de passagem, podem ser alargados. Afinal, são os homens que fazem a história. A maioria deles, é certo, tem condições excessivamente limitadas para fazê-la. Não, porém, em nosso entender, os membros da comunidade universitária. Se eles, de quem se espera tenham uma consciência mais aprofundada dos problemas, e cuja posição é superior à da maior parte de outros grupos sociais, não tiverem um mínimo de condições para alterar os rumos de um processo social parcial, teríamos que reconhecer que somos meros autômatos. RESUMO Da evolução da medicina como ciência aplicada à expansão da procura de serviços médicos especializados, passando pela influência do professor-especialista sobre a decisão precoce do aluno de optar por um ramo especializado, o autor faz um apanhado de explicações do processo de especialização, para concluir que um de seus principais fatores é, no caso do Brasil, a política do sistema de previdência social que favorece o especialista. 148 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE São também citados: 1) a preferência (nem sempre justificada) do paciente — pelo menos o que pode pagar — pelo médico que trabalha com equipamento sofisticado; 2) o interesse econômico da indústria que produz ou possui esse equipamento; 3) o desejo do médico novo de escapar à acirrada competição que o esperaria na prática geral; 4) o interesse de muitos médicos, novos ou não, de se descartarem da imagem um tanto negativa de parte de antigos clínicos gerais que não se mantiveram a par dos avanços da medicina. Examinando a questão no contexto de teorias sociológicas da divisão social e técnica do trabalho, assinala o autor que o processo conduziu à atomização de responsabilidades entre médicos, que a especialização excessiva tornou incapacitados de encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social e cultural. José Carlos de Medeiros Pereira 7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antônio Ruffino Netto) 149 150 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 151 7.1. MORTALIDADE POR TUBERCULOSE E CONDIÇÕES DE VIDA: O CASO RIO DE JANEIRO* I – INTRODUÇÃO: O PROBLEMA Voltou-se hoje, como num passado não muito remoto da história da Medicina, a enfatizar a importância de fatores não-biológicos determinantes da morbidade e da mortalidade. Em algumas enfermidades a influência de tais fatores é mais nítida. Entre elas a tuberculose. Nesta, já ficou patente que sua causa necessária é menos significativa do que as condições suficientes. A simples presença do bacilo de Koch não basta para causá-la. Freqüentemente, os fatores de ordem social, econômica e cultural têm que estar presentes para que a moléstia se desenvolva. Assim sendo, muitas vezes, alterações nas condições de vida das pessoas são fundamentais para explicar modificações em sua incidência e prevalência. Entendemos que os dados de mortalidade por tuberculose (coeficiente/100.000 habitantes), no antigo Distrito Federal (hoje, município do Rio de Janeiro), no período de 1860 a 1977, apresentados na figura 1 (8, 12, 13)1 poderiam exemplificar o que estamos afirmando. A impressão geral é de que se trata de uma doença cuja mortalidade está declinando progressivamente, com velocidades aparentemente diferentes de acordo com períodos *Artigo redigido em colaboração com Antônio Ruffino Netto. Publicado originalmente em Saúde em Debate, Nº 12, 1981, pp. 27-34. 1 Deve-se assinalar que os dados referentes ao período de 1860 a 1940 foram recuperados a partir da referência 12, pág. 48. 152 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE históricos. Uma vez que estes dados estão apresentados em escala aritmética, qualquer conclusão seria um tanto precipitada podendo levar a inferências descabidas. Projetando-se, contudo, estas informações numa escala semi-logarítmica (apresentada na figura 2) é possível perceber que a “curva total” é composta por 3 retas, que traduzem a tendência de mortalidade por tuberculose a declinar com velocidades desiguais, de acordo com diferentes períodos. Assim é que para o período que antecede 1885, encontrou-se: log y = 24,7611 – 0,0117X; para o período que medeia entre 1885 e 1945, encontrouse: log y = 11,4965 – 0,0046X; após 1945 encontrou-se: log y = 75,9634 – 0,0378X onde: y = coeficiente de mortalidade/100.000 x = ano calendário. José Carlos de Medeiros Pereira 153 Apesar de se tratar de dados de qualidade discutível, sendo em parte, inclusive, recuperados a partir de um gráfico, é inegável que houve decréscimo nos coeficientes de mortalidade por tuberculose em períodos em que, praticamente, não havia ocorrido nenhum avanço significativo no tratamento da enfermidade por tuberculostáticos. Dado que a tendência do fenômeno (mortalidade) se apresenta sob forma de 3 retas 2 , sendo 2 “relativamente” paralelas, imediatamente nos perguntamos: “que fatores teriam condicionado 2 Se se tentasse ajustar uma única regressão para o período de 1860 a 1945, a reta seria dada por : log=15,7622 - 0,0069X, onde se observa um coeficiente de declínio (0,0069) que é cerca de 1,7 vezes menor do que o observado no período 1860-1885 (0,0117), ou seja 0,0117/0,0069=1,7; por outro lado, seria 1,5 vezes maior do que o observado no período 1885-1945 (0,0046), ou seja, 0,0069/0,0046=1,5. Estas considerações reafirmam a conveniência de se tratar o problema da tendência como constituído por 3 retas separadamente. 154 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE tal comportamento?”. Formulamos um conjunto de hipóteses tentando explicar as diferentes velocidades de declínio expressas pelas 3 retas. Uma primeira hipótese poderia ser a busca de uma interpretação que analisasse o fenômeno de um ponto de vista estritamente biológico. Assim é que, quando se pensa nas relações hospedeiro-parasita alguns epidemiologistas(1) assinalam que haveria diferentes períodos: numa primeira etapa das relações entre hospedeiros e parasita resultariam a doença e a morte. Existiria, contudo, um imperativo biológico que levaria ambas as espécies a sobreviverem e alcançarem uma condição de equilíbrio depois de muitas ondas epidêmicas que, gradualmente, iriam se amortecendo, passando-se assim de uma situação epidêmica para uma endêmica. Haveria, desta forma, uma modificação marcante (quantitativa e qualitativa), na relação hospedeiro-parasita, passando por períodos de flutuações epidêmicas, períodos de flutuações decrescentes (ondas amortecidas) e período de endemia. Para comprovar tais colocações, ARMIJO (1, pp. 6-9) lança mão de 3 tipos de argumentos: a) história da medicina (mostrando estatísticas de mortalidade por escarlatina em Liverpool no período de 1849 a 1925, bem como as variações ocorridas na mortalidade por sarampo e difteria); b) epidemiologia experimental; c) epidemias geradas teoricamente. Assim, para a tuberculose (biologicamente falando), seria de se esperar que após sua introdução no Brasil3 , estivéssemos, desde muito antes de 1860, numa etapa de ondas epidêmicas decrescentes. Milita contra a aceitação desta teoria o fato de que ela poderia ser válida para uma população relativamente fechada, com movimentos migratórios desprezíveis, especialmente externos, o que, absolutamente, não se aplica ao caso em tela. De fato, nele, as relações hospedeiro-parasita não ocorreram dentro da situação teórica, hipotética, descrita, e sim no interior de uma sociedade cuja estrutura populacional (qualitativa e quantitativamente) estava apresentando mudanças tão rápidas que poderiam alterar completamente o 3 Atribui-se ao Pe. Manuel da Nóbrega, chegado em 1549, o ter sido a primeira fonte conhecida de infecção neste país (12, p. 17). José Carlos de Medeiros Pereira 155 comportamento da tendência da doença. Em face disso é que entendemos que as variações assinaladas devem ser atribuídas, fundamentalmente, a modificações nas condições de existência da população carioca, sobretudo das classes sociais desafortunadas. Esta constatação nos encaminha ao exame de possíveis transformações ocorridas na formação econômico-social, representada pela região do Rio de Janeiro, ou mesmo pelo Brasil, no período em discussão. Serão algumas destas modificações, que reputamos terem sido expressivas, que apontaremos e discutiremos a seguir. II – PRIMEIRO PERÍODO: 1860-1885 Em relação ao primeiro período e parte do segundo, cremos que as modificações observadas na curva de mortalidade, possivelmente, estão bastante vinculadas com alterações ocorridas na economia cafeeira. Esta se desenvolveu inicialmente, como se sabe, no Vale do Paraíba, tanto em terras da província do Rio de Janeiro, como em regiões de Minas Gerais e São Paulo ligadas à capital do Império. O período de fastígio do café, no Vale do Paraíba, segundo STEIN (17), ocorreu entre 1850 e 1864, sendo o período de decadência o representado pelo último quartel do século passado. Isto está de acordo com as indicações de CELSO FURTADO (6, pp. 137-138), que mostra como os anos 30 e 40 do século XIX foram de preços declinantes para o café, ao passo que a partir de 1850 as cotações passaram a apresentar-se em alta. Disso se poderia concluir que a maior parte do terceiro quartel do século passado se constituiu num período de prosperidade para toda a região cafeeira do Vale do Paraíba voltada para o Rio de Janeiro. Quanto à própria cidade, é de supor-se que as modificações das condições de vida nela imperantes se tenham processado no sentido de favorecer uma existência mais saudável. Presumimos, igualmente, que a prosperidade proporcionada pelo café repercutiu na composição demográfica da cidade. Em primeiro 156 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE lugar, essa prosperidade teria atraído imigrantes europeus desejosos de se aproveitarem do crescimento econômico gerado pela cultura do café, seja como prestadores de serviços, seja como elementos vinculados ao seu comércio. É preciso que se diga que a expansão econômica do Vale do Paraíba foi possível, em grande parte, graças a capitais e créditos fornecidos pelo capital financeiro internacional da época. No Rio de Janeiro estabeleceram-se casas exportadoras (e importadoras) e outros intermediários. Não seria descabido conjecturar que os estrangeiros atraídos pelas possibilidades econômicas abertas por essa expansão fossem mais saudáveis do que os habitantes nativos. Em segundo lugar, a criação de empregos em maior número e mais rendosos, aliada ao fato de que a cidade era o centro do Império, proporcionando aos seus moradores, com condições de se acercarem do poder, possibilidades de maior ascensão social e política, exerceria atração sobre pessoas de condição sócio-econômica elevada residentes em outras partes do Brasil. Esse movimento migratório, por ter atraído pessoas com menores possibilidades de serem portadoras de tuberculose ou de a contraírem, repercutiria no decréscimo do coeficiente de mortalidade por essa enfermidade. Esse processo de europeização e de embranquecimento da cidade, indicado acima, vinha já desde a vinda da família real para o Brasil. No entanto, um outro fenômeno migratório que teria contribuído para isso, a diminuição do número relativo de negros e mulatos escravos poderia ter sido determinado por uma utilização crescente, pela lavoura cafeeira, de seres humanos vivendo em condição servil antes utilizados em serviços domésticos e outros afazeres urbanos. Julgamos que se teria passado algo semelhante ao que ocorreria posteriormente na cidade de São Paulo: quando o chamado “oeste paulista” ultrapassou o Vale do Paraíba como principal região produtora de café do Brasil, houve deslocamento da mão-de-obra escrava da capital para o interior, afluxo de libertos para a capital e acréscimo da população branca graças à fixação de imigrantes (4, pp. 9/10). Dado que a condição de vida do escravo sujeitava-o a um muito maior risco de se infectar pelo bacilo de Kock, qualquer redução relativa de seu José Carlos de Medeiros Pereira 157 número contribuiria para o decréscimo dos coeficientes de mortalidade por tuberculose. A intensificação das influências sócio-culturais européias, que se estava operando desde há muito, como se disse atrás, manifestouse numa série de alterações na forma de viver do povo brasileiro. Elas abrangeram o tipo de habitação, hábitos alimentares, vestimentas, vida familiar etc. Gilberto Freire entende ter havido uma “reeuropeização” da sociedade brasileira, com importantes mudanças nos hábitos coloniais. A progressiva ocidentalização teria restringido as velhas influências orientais (2,5). Vale a pena destacar alguns dos aspectos anteriores que passaram a ser criticados. No caso da habitação, a alcova, local do sono, na casa colonial estava situada no centro da residência. Ela “não dispunha de aeração, iluminação ou qualquer outra comunicação com o exterior” (2:100; 5:419). Calcado em Freire e F. P. Candido, afirma J. F. Costa que, “do ponto de vista da higiene, a habitação antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada, impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos ‘maus ares’, ventos e miasmas foi cruamente atacada pelos médicos como insalubre e doentia”. Em seus “Relatórios sobre as medidas de salubridade reclamados pela cidade do Rio de Janeiro”, Francisco de Paula Candido afirmaria: “As casas do Rio de Janeiro parecem destinadas antes a Lapônia ou à Groelândia do que à latitude tropical... uma fatal alcova, dormitório predileto, escura e modesta sala com um corredor escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto de saúde, pouco mais escura do que a sala da frente, mas munida de infalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea” (2, p. 110: 5, pp. 433-4). Com a “reeuropeização” da cidade, estimulada pela imigração de maior número de europeus, facilitada pela melhoria das condições econômicas e ativada pela ação dos médicos, a casa vai se tornando mais higiênica. Já durante a estada da família real, haviam sido abolidas as rótulas ou gelosias. Paulatinamente, as casas, até então escuras e úmidas, passam a apresentar outras características, com janelas e 158 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE portas mais amplas. Ganhavam outra aparência, com modificações no seu interior. Concomitantemente, há mudanças nas roupas e nos hábitos higiênicos; desenvolvem-se novos gestos, rituais e atitudes (2, pp. 123-150). De qualquer forma, as alterações na arquitetura levaram à construção de casas com melhores condições de aeração e de insolação. As casas do período anterior, bastante fechadas e escuras, visando proteger seus moradores dos “miasmas”, provavelmente seriam, ao mesmo tempo, excelentes ambientes à manutenção do bacilo de Kock e sua transmissão. Trabalhos bem recentes no campo da Tisiologia têm mostrado a preocupação e o interesse dos pesquisadores em relação a essas condições de manutenção e transmissão do bacilo de Kock (14, 18), assinalando o quanto a ventilação e insolação são elementos importantes no controle da tuberculose. Tal ocorrência, por si só, possivelmente, teve grande efeito nas condições de transmissão da doença e, portanto, na epidemiologia da enfermidade no período assinalado. Importantes para a compreensão do fenômeno que estamos discutindo serão também as mudanças operadas nos costumes, hábitos familiares e valores. As mulheres, por exemplo, são incitadas a sair mais de dentro de suas casas. O mais significativo, talvez, tenha sido, contudo, a transformação ocorrida no papel representado pelo escravo doméstico. Ele passou a significar uma ameaça à saúde, principalmente para as crianças, tendo sido “alinhado junto com os miasmas, insetos e maus ares” (2, p. 122). Entendemos que o fator fundamental nessa exclusão dos escravos do serviço doméstico esteja relacionada com sua crescente utilização na lavoura cafeeira, onde o capital por ele representado seria muito mais rentável. Não se deve ignorar, entretanto, o efeito de demonstração constituído por aristocratas portugueses e burgueses estrangeiros que acorriam ao Rio de Janeiro, que raramente admitiam negros ao seu serviço. De qualquer forma, também os brasileiros começaram a dispensá-los. Outro estímulo nesse sentido foi dado pelos médicos, que passaram a responsabilizar os negros pela perpetuação de hábitos José Carlos de Medeiros Pereira 159 incultos, de maneiras grosseiras e rudes e de serem fonte de variados males, constituindo uma ameaça para a saúde (2, pp. 125-6). Uma das conseqüências da exclusão dos escravos do ambiente familiar, em termos de processo de transmissão do bacilo de Kock, foi de que, com ela, diminuiu bastante a excessiva aglomeração de pessoas sob o mesmo teto, existente no começo do século XIX. Luccock, por exemplo, “calculava que o número de pessoas numa casa do Rio, em 1808, era de 15”, enquanto Gendrin estimava que “numa família comum havia 7 ou 8 negros” (2, p.84). A par disso, os médicos da época passaram a apontar, cada vez mais, a inconveniência de muitas pessoas dormirem no mesmo quarto. Mais ainda fizeram os médicos. O Dr. Paula Candido, presidindo a Junta Central de Higiene da capital do Império, conseguiu, junto ao Parlamento, que fossem adotadas novas medidas sanitárias para início de controle da tuberculose. “Assim é que, pelo Decreto nº 6.387, de 15 de novembro de 1876, os serviços sanitários, em diversas cidades do Império, foram reorganizados” (12, pp. 43-44). Muitas das leis baixadas a partir de 1870 estavam relacionadas com as condições de habitação. Tanto assim que, “de 1876 a 1886 foram baixados cinco decretos e um aviso ministerial, além de várias instruções, relativamente à polícia sanitária domiciliar. Preocupava-lhes muito o problema das condições higiênicas das habitações coletivas, chamadas ‘cortiços’ e as epidemias de varíola, febre amarela, disenterias, visitantes habituais da cidade” (12, p.45). Em suma, percebe-se que uma série de fatores interatuantes poderia estar, no período em causa, interferindo na epidemiologia da tuberculose e, conseqüentemente, na mortalidade pela mesma. III – SEGUNDO PERÍODO: 1885-1945 No segundo período continuou a decrescer a taxa de mortalidade por tuberculose, ainda que o ritmo da queda tenha declinado, passando 0,0117 para 0,0046 (ou seja 2,5 vezes menor). Este declínio não significou uma piora das condições de vida. Teria sido como se, nesse intervalo de tempo, os fatores positivos e negativos 160 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE tendessem a um certo equilíbrio, ainda que com predomínio dos primeiros. Muitos daqueles a que nos referiremos a seguir propiciaram antes melhores condições de vida do que piores, ainda que, às vezes, possam ter atuado, durante algum tempo na segunda direção. Isto explicaria a queda do ritmo. Lancemos mão de um exemplo: a expansão do processo de industrialização no antigo Município Neutro. Geralmente este processo, em seus primórdios, é visto como tendo contribuído para a piora daquelas condições, sobretudo porque tendemos a compará-lo com o acontecido na Inglaterra. Nesta, no entanto, o avanço do capitalismo industrial significou a transformação do artesão e do camponês em assalariados. Isto implicou seu despojamento da propriedade dos meios de produção de que gozavam. No Brasil as coisas não se passaram do mesmo modo. As condições de trabalho na indústria eram igualmente péssimas. Ocorre que as condições de vida anteriores eram também desumanas. O trabalhador industrial brasileiro, no início do processo, geralmente, ou tinha sido escravo ou um homem livre que não encontrava lugar num sistema econômico-social em que se era escravo ou senhor. Disso decorreu a existência de uma população marginal nas cidades (11) inclusive, e talvez principalmente, no Rio de Janeiro. Do mesmo modo que usamos a industrialização para exemplificar nosso raciocínio, poderíamos ter usado outros processos, como os de migração e de urbanização. Enfim, cremos que, no conjunto, a partir da década de 1880, os fatores e condições intervenientes melhoraram menos significativamente as condições de existência, quando as comparamos com tempos anteriores. Julgamos que, também neste período, as variações observadas na taxa de mortalidade por tuberculose estão grandemente relacionadas, pelo menos nas primeiras décadas do mesmo, com a economia cafeeira. Ao contrário do que ocorrera nas décadas anteriores, o último quartel do século passado foi de decadência dessa economia no Vale do Paraíba. Uma das repercussões graves dessa situação teria sido a queda do poder aquisitivo dos grupos ligados à economia cafeeira, com José Carlos de Medeiros Pereira 161 conseqüências negativas sobre a atividade comercial e de serviços em geral, agravada pela tendência desses grupos de minimizarem suas perdas através do conhecido processo de socialização dos prejuízos, mediante a depreciação externa da moeda. Tal processo acabava encarecendo excessivamente o preço dos produtos importados, os quais constituíam parcela importante dos bens consumidos por uma população como a do Rio de Janeiro. Isto teria produzido uma piora do padrão de vida da população da cidade. A queda de produção e de preços do café, aliada ao definitivo solapamento do regime escravocrata em 1888, determinou um movimento migratório de ex-escravos para o Rio Janeiro. Se permanecessem nas zonas cafeeiras decadentes do Vale do Paraíba, teriam que se submeter a condições de trabalho “substancialmente análogas às anteriores” ou teriam de se integrar na economia de subsistência (4,p.5). Entre estas duas opções teriam optado, em grande parte, pela migração para o Rio de Janeiro. Nesta cidade, possivelmente, viveram em condições precárias de vida. De um lado, por não estarem preparados para competir por posições estratégicas no sistema econômico, coube-lhes os setores residuais da economia (4, pp.5-6). De outro, porque teriam resistência a venderem sua força de trabalho, tendendo a identificar liberdade com o não-trabalho, “com o direito de não fazer nada” (4,p. 56; 3). Ora, para que alguém venda sua força de trabalho é preciso não somente que seja despossuído de meios de produção, mas também que esteja ideologicamente disposto a vendê-la, não preferindo “à condição de assalariado, a miséria e mendicidade” (15, p.45). Em vista disso, possivelmente, suas condições de vida, mormente em termos de alimentação e de moradia, deviam ser precárias. Conseqüentemente, é de se supor que sua saúde também o fosse, tornando-se pessoas mais predispostas a desenvolverem a tuberculose doença. Se os antigos escravos resistiam à sua transformação em trabalhadores assalariados, submetendo-se com dificuldade “à disciplina própria à produção capitalista”, também uma parcela de 162 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE brasileiros brancos despossuídos tendiam à mesma resistência. Isto porque, no Brasil, era máximo o preconceito contra o trabalho braçal por estar identificado com uma atividade exercida por escravos. Em conseqüência, qualquer depressão dos setores de serviço poderia fazer com que piorassem as condições de vida, inclusive sob este aspecto. A decadência da economia cafeeira do Vale do Paraíba teria ainda contribuído para o grande crescimento demográfico da cidade. Tinha ela, conforme os dados dos Censos gerais, 274.972 habitantes em 1872, 522.651 em 1890, 811.443 em 1900, 1.157.873 em 1920 e 1.764.141 em 1940, do que se depreende que o grande salto, em termos demográficos, ocorreu no último quartel do século passado. É que, sabidamente, com a crise do café, há um refluxo dos colonos para as cidades (7, pp.45), em busca de empregos na burocracia, nos serviços e mesmo na indústria em expansão. A cidade “incha” em termos populacionais e, dadas suas condições geográficas, que dificultam a ocupação do espaço, as habitações “sobem” os morros. Cortiços e favelas tornam-se locais de moradia. Estamos diante de uma urbanização sociopática que facilita a disseminação da enfermidade. Inversamente, a crise cafeeira no Vale do Paraíba induz a um abandono do mesmo por parte de grandes plantadores, que são atraídos pelo oeste paulista. Da mesma forma, ela leva a um déficit imigratório, com muitos dos melhores elementos estrangeiros buscando outros países, como a Argentina e os Estados Unidos. De fato, em 1900, pela primeira vez, o número de emigrados do país superou o de imigrados para ele, sendo que em 1903 o excesso de saídas sobre o de entradas superou 18.000 pessoas (11, p. 219). De modo geral, as pessoas que migram são as mais competentes, ativas e esforçadas. É claro que se poderia dizer o mesmo dos migrantes internos que procuraram o Rio de Janeiro. No entanto, é de se presumir que os que saíam eram mais saudáveis do que os que chegavam. Além do mais, estes vão enfrentar condições de vida mais precárias pelo próprio excesso de pessoas vivendo na cidade. A migração é facilitada pelas estradas de ferro. A que se dirigia José Carlos de Medeiros Pereira 163 a São Paulo, a D. Pedro II, alcançou seu ponto terminal em Cachoeira, em 1874 (9, p.74), quando a lavoura cafeeira entrava em decadência. Destacaremos aqui não tanto o fator de prosperidade por ela representado, e sim o fato de que sua existência não só facilitou a procura do Rio de Janeiro pelos migrantes, como a expulsão de seus problemas sociais pelas cidades menores do Vale do Paraíba. Realmente, muitas vezes, as pequenas cidades se deparam com um menor número desses problemas, em relação às metropóles, em decorrência de tenderem a repeli-los para estas últimas. Entre tais problemas, poderíamos incluir todos os socialmente indesejáveis, que são pressionados a abandoná-las, inclusive os tuberculosos, vítimas, especialmente no século passado, de sério estigma social. Dentro dessa mesma linha de raciocínio é possível levantar outra hipótese. A de que a diminuição do ritmo de queda dos coeficientes de mortalidade por tuberculose decorreria, parcialmente, do fato de que essa facilidade de comunicação permitiria às pessoas doentes demandarem em maior número o centro de assistência médica que era o Rio de Janeiro. Entre os fatores negativos que poderiam contribuir para essa diminuição poderíamos, talvez, incluir também a migração estimulada pela grande seca de 1877-80 que despovoou o interior nordestino. Ainda que a maior parte dos migrantes se tenha dirigido para o vale amazônico, uma parcela dos mesmos, habitantes dos Estados mais ao sul da região, se dirigiram tanto para São Paulo como para o Rio de Janeiro. Tratando-se de pessoas geralmente subnutridas, com resistências orgânicas reduzidas, pode-se conjecturar que se tenham constituído presa mais fácil para a moléstia. Acrescentaríamos igualmente a esse conjunto de fatores negativos a expansão da burocracia com a instauração da República. A incorporação aos quadros da organização burocrática, pressupomos, freqüentemente significou vida sedentária, trabalho em ambientes fechados, pouco ensolarados e arejados, com roupas inadequadas ao clima da cidade. Julgamos, contudo, que o processo social mais importante ocorrido no período e ao qual se poderia atribuir boa parte da explicação 164 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE pelo acontecido com a curva de mortalidade por tuberculose, teria sido, ao lado do de urbanização, o de industrialização. A indústria em expansão no Brasil, desde o final do Império e nas primeiras décadas do período republicano, concentrou-se no Distrito Federal. Evidentemente, as condições de trabalho vigentes nos primeiros estabelecimentos industriais deviam ser bastante insalubres, especialmente se considerarmos que mais da metade dessa atividade ocorria no setor têxtil. Assim é que, em 1889, 60% do total do capital industrial estava aplicado nesse setor, (16, p.16), no qual, reconhecidamente, as condições de trabalho são geralmente piores. Em relação à primazia do Distrito Federal no parque industrial brasileiro, isso fica claro, quando nos utilizamos dos dados do Censo Industrial de 1907. Nessa data, nos 3.250 estabelecimentos industriais brasileiros trabalhavam 150.841 operários, sendo que, à capital de República, cabiam 30% da produção total, 24% do operariado e 20% dos estabelecimentos (16, p.17), ou, mais precisamente, 670 empresas e 35.243 operários (15, p.84). Nessa época, São Paulo contribuía com 16% da produção total. Já pelo Censo de 1920 existiam no Distrito Federal 1.541 estabelecimentos industriais, nos quais trabalhavam 56.229 operários. Nas primeiras décadas, esse desenvolvimento industrial usou mão-de-obra que não encontrava lugar na economia cafeeira e que se fora concentrando no Rio de Janeiro. É claro que a remuneração era baixa, tendo sido este, inclusive, um dos principais fatores da prosperidade dessa indústria. De fato, essa “população marginal, sem ocupação fixa e meio regular de vida, era numerosa”, encontrando dificuldade em se “entrosar normalmente no organismo econômico e social do país. Isto (...) resultava em contingentes relativamente grandes de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória e que davam, nos casos extremos, nestes estados patológicos da vida social, a vadiagem criminosa e a prostituição (...). A indústria nascente (...) encontrará naqueles setores da população um largo, fácil e barato suprimento de mão-de-obra” (11, p.203). José Carlos de Medeiros Pereira 165 As novas condições de vida proporcionadas pelo trabalho industrial, mal remunerado e ao mesmo tempo insalubre, poderiam ter contribuído para manter relativamente elevada a incidência da tuberculose entre os trabalhadores industriais. É de se supor, contudo, que o grosso das vítimas da enfermidade estivesse concentrada nessa população marginal, sem ocupação fixa, a que se refere Caio Prado Jr., pois o desenvolvimento industrial carioca não é de molde a ocupar toda ela. Além do mais, estava essa população em constante crescimento, devido à atração exercida pela cidade grande, capital do Império e da República, sobre pessoas de todo o Brasil mas, principalmente, sobre as que antes habitavam o Vale do Paraíba e que não encontravam, nas pequenas “cidades mortas” da região, possibilidades de subsistência. Vários acontecimentos, como a Primeira Guerra Mundial, as constantes crises do café, o “crack” do capitalismo mundial de 1929-30, a Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial, não foram de molde a alterar significativamente para melhor a situação que expusemos. IV – TERCEIRO PERÍODO: APÓS 1945 Num período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial, aumenta a velocidade de declínio da curva por tuberculose. Ela passa agora a 0,0378. Entendemos que esse aumento de velocidade foi devido ao fato de que convergiram condições e fatores de natureza sócio-econômica, que melhoraram o padrão de vida de grande parte da população vivendo exclusivamente no Rio de Janeiro, e fatores de ordem estritamente médica, como a utilização extensiva e intensiva de tuberculostáticos. A industrialização se intensificou no período subseqüente ao final da guerra, mercê de um processo de substituição de importações grandemente estimulado pela deterioração das relações de troca. De fato, com a queda acentuada dos preços dos produtos primários no mercado internacional, tivemos cada vez 166 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE menos capacidade de continuar importando produtos industrializados e, portanto, fomos obrigados a produzi-los internamente. Com isso, houve possibilidade de absorver uma porção razoável de mão-deobra pelo setor industrial e por setores comerciais e de serviços altamente beneficiados pela expansão da indústria. Os salários reais até mesmo subiram, principalmente a partir da segunda presidência de Vargas e até 1958 pelo menos. Mesmo quando estes começaram a cair, com a política salarial posta em prática a partir da segunda metade da década de 60, o fato de as indústrias continuarem a se concentrar no município, mas não grandes parcelas da população trabalhadora, poderia explicar aquela continuada curva de mortalidade. De fato, é possível que a população moradora das cidades-dormitórios não contribua para a mortalidade geral e específica da cidade do Rio de Janeiro. Assim, assumimos a hipótese de que grande parte da população moradora nesta é beneficiária do processo de industrialização, da expansão do turismo, do desenvolvimento dos serviços públicos etc. e que, ao mesmo tempo, parte ponderável da população trabalhadora, que poderia ser a mais prejudicada, em vista de morar na Baixada Fluminense, não contribui para a elevação de suas taxas de morbidade e mortalidade. Da mesma forma que a descentralização de atendimento dos tuberculosos (como se verá adiante) retirou grande número deles da cidade, a impossibilidade de muitos trabalhadores viverem na mesma, diminuiria a mortalidade por tuberculose. É possível também que o Rio de Janeiro se tenha beneficiado com a transferência da capital para Brasília. Tornando-se menos atrativa, em termos de migração interna, diminuiu seu ritmo de crescimento demográfico, com repercussões positivas naquelas taxas. Talvez até mesmo atraia, em proporção igual ou até maior do que no passado, pessoas de elevada posição sócio-econômica, que nela passam a residir. Sendo, além do mais, uma cidade que concentra parte razoável das classes possuidoras e dominantes, a prosperidade geral do país repercute sobre ela. Mais ainda. É sabido que há José Carlos de Medeiros Pereira 167 uma tendência de os governos aplicarem mais recursos materiais nas regiões próximas ao poder. Especialmente depois da redemocratização do país em 1945, quando os chefes do poder executivo dependiam do voto das grandes cidades, o Rio de Janeiro pode ter atraído benefícios para si, com a elevação da arrecadação de impostos e taxas federais, por ser, ao mesmo tempo, grande cidade e capital do país. Quanto a medidas de caráter médico-preventivo desenvolvidas no período, é preciso que consideremos que muitas delas só alcançam certa repercussão depois de alguns anos, de modo que incluímos aqui algumas tomadas durante a Segunda Grande Guerra. É de 1940, por exemplo, o Plano Federal de Construção de Instalação de Sanatórios que previu o término do Sanatório do Distrito Federal que fora iniciado em 1937 (12, pp. 127-138). Em 1941 foi criado pelo Departamento Nacional de Saúde o Serviço Nacional de Tuberculose (SNT), ao qual caberia dedicar-se, especificamente, ao estudo dos problemas relativos à tuberculose e ao desenvolvimento de meios de ação profilática e assistencial (12, pp. 144-152). No ano seguinte criaramse, naquele Departamento, cursos de aperfeiçoamento e especialização em Tisiologia (12, pp 141-2). De 1942 a 1945 o SNT instalou e inaugurou vários sanatórios por todo o Brasil, estendendo a assistência aos tuberculosos do interior do país, procurando evitar seu afluxo para as capitais. Outras atividades desenvolvidas pelo SNT, a partir de 1942, poderiam modificar a epidemiologia da doença, entre as quais um censo torácico-tuberculínico em todo o país (tentando vacinar os analérgicos, orientar os já infectados e isolar os bacilíferos). Tal censo foi efetuado através de núcleos fixos e móveis. Núcleos fixos foram instalados no próprio Distrito Federal e, no Estado do Rio de Janeiro, em Volta Redonda e Petrópolis, enquanto um móvel, fazendo pião em Campos, foi instalado num vagão da Estrada de Ferro Leopoldina, servindo a zona norte fluminense. Em 1946 foi criada a Campanha Nacional Contra a Tuberculose (CNCT) (12, pp. 169-192), que passou a coordenar todas as atividades de controle da doença, dando-lhes uniformidade de orientação e de comando, ainda que sugerindo a descentralização dos serviços. As 168 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE atividades da CNCT aumentaram, sem dúvida, a eficiência do programa de controle da enfermidade, alterando,dessa forma, seu quadro de mortalidade, não só no Rio de Janeiro como em todo o país. Por fim, devemos ressaltar a grande contribuição para o declínio das taxas de mortalidade determinada pela utilização dos tuberculostáticos: estreptomicina a partir de 1948; ácido para-aminosalicílico (PAS) a partir de 1949; hidrazida a partir de 1952 (12, p. 48). V – COMENTÁRIOS FINAIS E CONCLUSÕES Ainda que a qualidade dos dados trabalhados seja discutível, como já foi assinalado na “Introdução”, parece-nos ser inquestionável uma alteração significativa na tendência secular de mortalidade por tuberculose no Rio de Janeiro. Ressalte-se, além do mais, a adequação do uso de dados de mortalidade para se estudar a epidemiologia dessa enfermidade. Afirma A. Pio a respeito: “a mortalidade é o indicador mais apropriado para a descrição epidemiológica do problema e a objetivação do propósito de mudança. Sua escolha se justifica porque a mortalidade, além de ser o indicador de que se dispõe de melhor informação, é ainda de alta magnitude na maior parte da população” da América Latina (20). O conjunto de hipóteses levantadas neste trabalho procurou destacar a importância dos fatores inespecíficos para explicar a alteração da tendência. De fato, os métodos de controle da tuberculose (entendidos como ações de saúde que interferem no ciclo natural de transmissão da doença) podem ser classificados em específicos e inespecíficos. Entre estes, tem-se enfatizado a relevância do desenvolvimento sócio-econômico que “determina, entre outras coisas, uma melhoria nas condições de alimentação, aumentando as defesas naturais inespecíficas e, portanto, diminuindo o risco de morbidade dos infectados; de habitação, diminuindo o grau de contato entre o caso bacilífero e o grupo José Carlos de Medeiros Pereira 169 humano que o rodeia; e de atenção médica, diminuindo o tempo entre a aparição da doença e o tratamento”. Quanto aos métodos específicos (vacina, quimioprofilaxia, diagnóstico e tratamento), têm eles “um efeito direto sobre a transmissão da infecção, o risco de ficar doente, e morrer por tuberculose” (10). Mesmo sem ter esgotado todas as possíveis hipóteses explicativas das tendências periódicas observadas, julgamos poder concluir que, apesar de ser marcante o impacto determinado pelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos inespecíficos. Acrescente-se que a repercussão destes é muito mais abrangente, em termos de saúde, dado que a melhoria das condições de vida reduz a morbi-mortalidade de grande número de doenças e não apenas da tuberculose. RESUMO Os autores analisam os dados de mortalidade por tuberculose na cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977. Através de uma metodologia específica evidenciam que a curva de velocidade de declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressões distintas, equivalentes aos períodos 1860-1885; 1885-1945 e após 1945. Efetuando um estudo da formação econômico-social da cidade, região (e mesmo do Brasil) destacam alguns fatores (econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) que apresentam como hipóteses explicativas para as diferentes velocidades de declínio. Concluem que apesar de ser marcante o impacto determinado pelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle (melhoria de condições de vida). 170 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - Armijo Rojas, R. – Epidemiologia, tomo I, Editorial Inter-Médica, Buenos Aires, 1974. 2. Costa, J. F., Ordem Médica e Norma Familiar, Edições Graal Ltda., Rio de Janeiro, 1979. 3. Couty, L., L’Esclavage au Brésil, Librairie de Guillamin & Cie., Paris, 1881, apud Fernandes, Florestan, A Integração do Negro á Sociedade de Classes, São Paulo, 1964. 4. Fernandes, F., A Integração do Negro à Sociedade de Classes, Fac. de Filosofia, Ciências e Letras da USP, São Paulo, 1964. 5. Freire, G., Sobrados e Mocambos, 2ª ed., Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1951, apud Costa, Jurandir Freire, op. cit. 6. Furtado, C., Formação Econômica do Brasil, 2ª ed., Editora Fundo de Cultura S. A., Rio de Janeiro, 1959. 7. Lima, H. F., Mauá e Roberto Simonsen, Editora Edaglit, São Paulo, 1963. 8. Lima, R. de L., “A mortalidade por tuberculose no Rio de Janeiro (19401977)”, Comunicação pessoal, 1980. 9. Motta SOB°, A., A Civilização do Café (1820-1920), Editora Brasiliense, São Paulo, s/d. 10. Organización Panamericana de la Salud, Control de Tuberculosis en América Latina – Manual de normas y procedimientos para programas integrados, Publicación Científica nº 376, 1979. 11. Prado JR., Caio, História Econômica do Brasil, 4ª edição, Editora Brasiliense, São Paulo, 1956. 12. Ribeiro, L., A Luta Contra a Tuberculose no Brasil, Editorial Sul Americana S/A, Rio de Janeiro, 1956. 13. Rocha, E. P. da, “A mortalidade por Tuberculose no Estado da Guanabara”, Rev. do Serv. Nac. de Tuberc., 12 (45): 26-40, 1968. 14. Rouillon, A.; Perdizes, S. & Parrot, R., “La transmissión del bacilo tuberculoso: el efecto de la quimioterapia”, OPAS, Pubicación Científica nº 346, pp.1-30, 1977. 15. Silva, S., Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil, Editora Alfa Ômega, São Paulo, 1976. 16. Simonsen, R., Evolução Industrial do Brasil e Outros Estudos,Cia. Editora Nacional/EDUSP, Brasiliana, vol. 349, 1973. 17. Stein, S. J., Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba, Editora Brasiliense, São Paulo, 1961. José Carlos de Medeiros Pereira 171 18. Styblo, K.; — The transmission of Tubercle Bacilli, Selected Papers, vol. 13, The Royal Netherlands Tuberculosis Association, The Haye, 1971. 19. Taunay, A. d’E., História do Café no Brasil, D.N.C., Rio de Janeiro, 19391943, apud Silva, Sérgio, op .cit.20. Pio, A., “Normas técnicas y administrativas para elaborar e implementar programas de tuberculosis”, OPAS, Referência CD/TB/5, 1975. 172 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 7.2 - SAÚDE-DOENÇA E SOCIEDADE A TUBERCULOSE – O TUBERCULOSO* 1 – INTRODUÇÃO De um modo geral, na visão da doença pelos técnicos da área de saúde, busca-se um relacionamento entre fatores (guardando uma “racionalidade interna”) tentando descrever o que se chama história natural da enfermidade. Assim é que encontramos uma série bem grande de “ciclos biológicos” de bactérias, parasitas, fungos, etc. já muito bem descritos e elaborados sem margem para maiores contestações. Uma vez descritos estes ciclos, tem sido preocupação daqueles que militam na área da Saúde Pública descobrir elos da referida cadeia que sejam mais frágeis e/ou vulneráveis para aí atuarem na tentativa de reduzir o problema focalizado. É certo que a história tem mostrado que alguns destes elos foram profundamente estudados, trabalhados e, quando manuseados, capazes de causar um impacto marcante na redução do problema. Exemplo deste fato é a vacinação antivariólica. Nosso propósito porém, dado que discorreremos sobre problemas de saúde humana, é, ao voltar nossa atenção para os ciclos biológicos das doenças, focalizá-la num determinado ponto do ciclo (independentemente do seu tamanho) no qual surge o homem (esquema 1). Na quase totalidade dos casos, a busca da “racionalidade interna” da cadeia epidemiológica procura ver o círculo descrito como *Artigo escrito em colaboração com Antônio Ruffino Netto e publicado originalmente em Medicina, 15 (1 e 2): 5-11, 1982. José Carlos de Medeiros Pereira 173 se fosse uma letra O ou um zero. Contrariamente a este modo de ver, no presente trabalho enfatizaremos o fato de que esse ciclo único (um zero), pode ser transformado em pelo menos 2 ciclos (isto é, num oito) que tem um ponto em comum, qual seja um homem, histórico, concreto, que preenche um lugar no tempo e no espaço (esquema 2). O questionamento da razão daquele homem ocupar aquele lugar e naquele tempo, poderá mais facilmente explicar porque ele fatalmente será engajado num ciclo biológico de uma doença qualquer. (ESQUEMA 1) (ESQUEMA 2) A reflexão sobre esta maneira de encarar o problema mostranos que impactos seguramente serão causados, na redução da doença, 174 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE atuando-se tanto no ciclo I como no II. A eficácia e eficiência da atuação num ou noutro ou em ambos deveria ser devidamente analisada pelos militantes da Saúde Pública ainda que varie sua visão do problema. A título de ilustração, tomaremos a tuberculose. No ciclo I, mostraremos como o problema biológico é visto e o que tem sido obtido; quanto ao ciclo II, não cabe mostrar “cadeia de fatores”, mas tão somente que as relações sociais globais é que levam aquele determinado indivíduo a ocupar aquele determinado ponto do ciclo biológico num instante dado, no qual, freqüentemente, se tornará um tuberculoso. Vê-se, de imediato, que a solução do problema do tuberculoso está muito restrita ao ciclo I, enquanto o entendimento do processo gerador da tuberculose tem o seu componente explicativo no ciclo II. 2 - TUBERCULOSE COMO EXEMPLO DO PRESENTE OBJETO DE REFLEXÃO 2.1 – Ciclo I – Ciclo biológico (“O Tuberculoso”) Uma das formas mais claras e objetivas de visualizar o encadeamento entre os diversos estados da doença capaz de proporcionar um modelo de interferência, levando a ações de controle da tuberculose no ciclo natural da transmissão da infecção, é apresentado no esquema 3 (OPS, 1979): Na referida publicação são analisadas detalhadamente cada uma das setas do esquema 3, isto é: A – risco de infecção; B – risco de adoecer; C – cura espontânea ou com tratamento específico; D – letalidade; E – transmissão da infecção; bem como qual seria o impacto esperado através de cada um dos meios (chamados “específicos”) de controle da doença: vacinação BCG, quimioprofilaxia, localização e tratamento dos casos. José Carlos de Medeiros Pereira 175 (ESQUEMA 3) Assim, vacinação com BCG em recém-nascidos e dos tuberculino-negativos diminuiria em 80% o risco de adoecer (B); a quimioprofilaxia com hidrazida, nos tuberculino-positivos, diminuiria em 90% o risco de adoecer durante o período de medicação e em 70% nos 5 anos seguintes. Segundo PIO (1975), como resultado esperado de um programa adequado de controle da tuberculose, “vai-se produzir uma aceleração na diminuição dos atuais indicadores da tuberculose. Pode-se prognosticar uma mudança brusca na mortalidade, especialmente em menores de 15 anos. Com um programa eficaz de vacinação BCG, em poucos anos, deveriam desaparecer as mortes por tuberculose nas crianças. Por outro lado um programa eficaz de diagnóstico e tratamento deverá influir rapidamente na mortalidade dos adultos”. ...”Em caso de contar com a informação sobre o risco de infecção, deve-se considerar que, se o programa é eficaz, a incidência de infecção irá diminuindo a uma velocidade não menor que 10% ao ano.” ...”Se a diminuição é menor que 10%, pode-se duvidar da 176 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE eficácia do programa”. 2.2 – Ciclo II – Ciclo social (“A Tuberculose”) Em publicação recente, RUFFINO NETTO & PEREIRA (1981) analisaram os dados de mortalidade por tuberculose (todas as formas) na cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977 (esquema 4) (ESQUEMA 4) Através de uma metodologia específica, evidenciaram que a curva de velocidade de declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressões distintas (esquema 5), equivalendo aos períodos: 1860 a 1885; 1885 a 1945 e após 1945. Chamando-se y = coeficiente de mortalidade (por 100.000) por tuberculose e x = ano calendário, encontraram: - para o período 1860-1885: log y = 24,7611 – 0,0117x; - para o período 1885-1945: log y = 11,4965 – 0,0046x; José Carlos de Medeiros Pereira 177 - para o período 1945-1977 log y = 75,9634 – 0,0378x. Efetuando os autores um estudo da formação econômica social da cidade, região (e mesmo do Brasil) destacaram alguns fatores (econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) que apresentam como hipóteses explicativas para as diferentes velocidades de declínio da mortalidade. Concluem que apesar de ser marcante o impacto determinado pelos “métodos específicos” de controle da tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle (melhoria de condições de vida). (ESQUEMA 5) 2.3 – Impactos sobre o problema da tuberculose Apesar da qualidade discutível dos dados de mortalidade utilizados no trabalho referido (fato esse que foi amplamente discutido 178 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE no próprio artigo) é possível evidenciar que nas 3 velocidades de declínio (-0,0117; -0,0046 e –0,0378), no caso dos dois primeiros períodos assinalados, o declínio foi decorrente sobretudo de influências de ações praticadas ao nível do ciclo II, enquanto só no terceiro período ter-se-ia destacado a influência de ações ao nível do ciclo I. Em outras palavras, houve grande declínio da mortalidade por tuberculose, inclusive numa época em que era praticamente desconhecido o ciclo biológico (ciclo I) da doença. 3 – DISCUSSÃO Queremos salientar que a referência à tuberculose foi feita em termos de exemplo. De fato, a preocupação que nos norteou na redação do presente trabalho foi mostrar como, na explicação cabal da produção tanto da saúde como da doença entre os homens, na quase totalidade dos casos, é preciso ter em conta as relações sociais globais (ou seja, econômicas, políticas, culturais, etc.) ao nível da realidade social concreta. A Medicina alopática que, no presente século, se tornou a oficial, dado seu positivismo cientificista, tende a fragmentar excessivamente os fenômenos e processos que estuda, além de tecnificar problemas que, freqüentemente, são antes sociais do que própriamente médicos. Neste sentido é que ousaríamos afirmar que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e melhores condições higiênicas de vida, a incidência e a prevalência da doença de Chagas, possivelmente, diminuiriam em proporção maior do que quando se tentam aquelas soluções técnicas. Estas, ao não se voltarem para as condições sociais de existência da população afetada, mantêm intocada a estrutura social determinante da doença. Da mesma forma, poderíamos nos referir ao combate à esquistossomose. Neste caso, há uma extensa discussão a respeito de quais os melhores moluscocidas; de qual o elo mais fraco: o caramujo ou o parasito na fase de miracídio ou de cercária. Semelhantemente, diríamos que se as pessoas vivessem em condições de não precisar entrar em contacto José Carlos de Medeiros Pereira 179 com águas infestadas a doença diminuiria de muito, independentemente de quaisquer outras medidas. Em todos estes exemplos, a discussão epidemiológica, freqüentemente, parte de um pressuposto que nos parece errôneo, ou seja, o da inevitabilidade da presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica, que chamamos de ciclo biológico tipo zero. Em nosso entender, o homem não necessariamente participaria da cadeia se as relações que estabelece com os outros homens e com a natureza fossem diferentes da que está ocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico. Por isso insistimos em que a explicação e a solução globais do fenômeno doença e da razão da manutanção da saúde, devem alicerçar-se na constatação de uma cadeia epidemiológica tipo oito, em que se englobam as relações sociais que determinam ou condicionam a participação do homem num determinado ciclo biológico. Sem que tais relações sociais sejam levadas em consideração, há uma inevitável tecnificação das questões, o que, convenhamos, constitui um modo pouco científico de explicação e de solução de problemas. É que, neste caso, nos limitamos a enfrentar a doença já produzida, voltando-nos para a série de causas necessárias que a provocaram, deixando de lado aquelas condições suficientes, sem a presença das quais a moléstia não se instalaria naquele terminado organismo biológico. Evidentemente, este modo de proceder constitui uma solução correta em face do problema individual existente, mas não como explicação e solução, ao nível coletivo, do fenômeno doença, que está inserido em processos ao mesmo tempo biológicos e sociais. A resistência ou dificuldade da visão positivista de ciência de realizar uma rotação de perspectivas e encarar uma questão qualquer sob óticas diferentes das usuais, radica não apenas na já mencionada excessiva fragmentação do objeto de estudo, em que se procura analisá-lo não em sua totalidade mas em termos de relações limitadas entre um número de variáveis também limitado. Ela se enraiza, igualmente, na tendência de se voltar para as características universais 180 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE da produção do fenômeno, a exemplo das ciências físicas sobretudo; estas, realmente, tratam com universos contínuos, em que as diferenças podem ser, geralmente, impunemente desprezadas. Não é o caso de qualquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termos societários, a desconsideração da descontinuidade do universo com que estamos tratando inevitavelmente nos conduzirá a uma visão limitada, por ignorar as especificidades e diferenças características do universo social. Assim, voltando-nos novamente para os exemplos fornecidos pelo estudo da tuberculose, diz-se que numa determinada população há uma incidência x e uma prevalência y da doença; que um doente infecta um certo número de pessoas com as quais manteve contacto; que, dos infectados, uma determinada porcentagem se torna bacilífera e outra não; que a letalidade da doença é z. O raciocínio está formalmente correto. Contudo, se não nos voltarmos para as diferenças sociais de incidência da doença na população, nossas constatações serão, concretamente falando, incorretas. Isto porque serão principalmente alguns segmentos da população, ou seja, determinados grupos ocupacionais e classes sociais, que serão afetados, enquanto outros o serão pouco ou nada. Ao nos preocuparmos com as diferenças, imediatamente descobriremos que, tendo em conta a divisão da população em classes, grupos e segmentos sociais, aqueles índices ou coeficientes referentes à população global constituem mera abstração. Realmente, se o fenômeno se comporta diferentemente por razões sociais e não em decorrência de causas biológicas, incidimos em erro quando estudamos esse mesmo fenômeno utilizando apenas variáveis biológicas. Como as pessoas não enfermam e morrem segundo tão-somente estas variáveis, a desconsideração do ciclo II, o mais importante na explicação da variabilidade da produção da doença, faz-nos obter resultados falsos, já que a população é uma abstração, se deixarmos de lado suas divisões. É em decorrência do fato de as relações sociais variarem historicamente que existe também uma historicidade das doenças. Ao desconsiderar de que modo de produção se trata, as especificidades José Carlos de Medeiros Pereira 181 da formação social concreta com sua peculiar estratificação social, a estrutura social na qual o fenômeno se manifesta, estrutura esta em que seus membros têm direitos e deveres diferentemente distribuídos, acabamos construindo um modelo ideal que diverge flagrantemente da realidade social concreta à qual queremos aplicá-lo. Conseqüentemente, nossa explicação e atuação serão parciais. Tal parcialidade não é percebida porque a atuação decorrente, técnica, aparentemente neutra, socialmente asséptica, ao produzir resultados (no caso do combate à tuberculose, embora não no caso de outras moléstias), vem ao encontro de necessidades percebidas sem, ao mesmo tempo, em nada afetar a estrutura social. 4 – CONCLUSÕES A explicação e a solução do fenômeno representado pelo binômio saúde-doença, para atingirem a máxima plenitude, devem considerar toda a riqueza de determinações da totalidade na qual o fenômeno se manifesta. Assim sendo, já que não é absolutamente inevitável que os homens participem de uma determinada cadeia epidemiológica, haveria que estudar as razões vinculadas à estrutura social que os fazem dela participar. Por outro lado, uma vez que o fenômeno varia por razões sociais, tal variabilidade teria que ser estudada sob esse prisma principalmente e não apenas por uma ótica que privilegia as variáveis biológicas. Sendo o universo social descontínuo, com especificidades e diferenças marcantes, constitue mera abstração considerar a população como um todo, desconsiderando suas divisões em classes sociais, grupos ocupacionais etc. e a historicidade da estrutura social na qual o fenômeno se produz. Em termos de solução pois de problemas de Saúde Pública, se nos voltarmos exclusivamente para os “ciclos biológicos” das doenças, chegaremos a soluções muito parciais, com eficácia freqüentemente discutível e com eficiência que pode ser muito baixa. 182 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE RESUMO Os autores, tomando como exemplo a tuberculose, propõem um esquema diverso do usual para representar o ciclo biológico de certas doenças, nas quais os fatores sociais são essenciais. Comumente, o ciclo é representado sob a forma de uma letra O. Entendem que se poderia pensar em pelo menos dois ciclos, tendo como ponto comum o homem, ficando o esquema transformado num 8. Neste segundo ciclo o fundamental seriam as relações sociais globais, que levam o homem a entrar no ciclo biológico de uma doença qualquer. Desta forma, ficaria claro que nem sempre é inevitável que os homens participem de determinada cadeia epidemiológica. Isso levaria mais facilmente o investigador e o técnico, em suas interpretações e nas soluções propostas, a considerar a estrutura social e suas características especifícas, que fazem com que a doença se individualize em uns homens e não em outros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. OPS – (Organización Panamericana de la Salud) – Control de tuberculosis in Americana Latina. Publicación Cientifica nº 376, OPS, 1979. 2. Pio, A. – “Normas técnicas y administrativas para elaborar e implementar programas de tuberculosis”. OPS – Referência: CD/TB/5, 1975. 3. Ruffino Netto, A. & Pereira, J. C. – “Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso do Rio de Janeiro”. Revista Saúde em Debate 12: 27-34, 1981. José Carlos de Medeiros Pereira 8. DOENÇA DE CHAGAS RESENHA DE TESE 183 184 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 185 8.1. A EVOLUÇÃO DA DOENÇA DE CHAGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO* A tese de doutoramento do médico Luiz Jacintho da Silva, sob o título acima, foi apresentada ao Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP e defendida em 12 de fevereiro de 1981, tendo recebido o louvor da banca examinadora. O autor é professor de Medicina Preventiva da Universidade de Campinas. Trata-se de um trabalho de excelente nível e bastante original em seu modo de procurar compreender a evolução da endemia chagásica em nosso Estado. Esta evolução foi vista em termos das transformações por que passou a totalidade representada pelo espaço social e geográfico correspondente à região. Mostrou como nesse espaço, construído pelos homens nas relações que estabelecem entre si e com a natureza, a partir de certo momento criaram-se condições mais favoráveis à disseminação da mais importante espécie de barbeiro responsável pela veiculação da doença, o Triatoma infestans, por ser a mais domiciliar de todas. O processo responsável pela alteração do espaço, que facilitou essa disseminação, teria sido a cafeicultura estritamente capitalista, ou seja, a baseada na utilização da mão-de-obra livre, em contraposição à cafeicultura escravocrata. A região onde se desenvolveu esta última, o Vale do Paraíba, sempre foi indene, enquanto que nas demais, à medida que avançava a frente pioneira, estimulada pelo café, ampliavam-se os limites da zona endêmica da doença de Chagas. O autor defendeu a hipótese de que a doença deve sua existência “a um conjunto de relações determinadas pelas * Publicado originalmente, como resumo de tese, em Medicina, 14 (3 e 4): 51-53, 1981. 186 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE características do espaço”. Como a organização deste é um produto histórico, dependente das relações sociais e econômicas que nele se estabelecem, a própria doença é também um evento a ser analisado sob uma perspectiva histórica. No caso da doença de Chagas, a estrutura e organização sociais associadas à cafeicultura eram de tal molde que facilitaram a disseminação do T. infestans. É que essa organização do espaço social e geográfico se caracterizava, ao contrário do período escravocrata, por uma cada vez mais intensa mobilidade social, por interações sociais freqüentes e pelo aumento da densidade demográfica. O barbeiro é, desse modo, transportado mais facilmente de um local para outro, além de o número maior de pessoas chagásicas, vivendo juntas, proporcionar melhores condições para a infecção dos próprios insetos. De fato, sabendo-se que o barbeiro com características mais domiciliares (a espécie infestans), introduz-se numa dada região “através do transporte passivo, geralmente entre os pertences de migrantes”, o autor da tese adota a hipótese de se poder aceitar a existência de um “limiar de contato humano entre os domicílios, acima do qual seu transporte seja eficiente, e que este contato deve estar na dependência direta da distribuição espacial destes mesmos domicílios e do grau de interação social dos seus ocupantes”. O T. infestans se tornaria mais facilmente endêmico onde a distribuição dos domicílios fosse mais densa e maior a interação social entre os habitantes. Por isso é que a região de cafeicultura escravocrata do Vale do Paraíba teria permanecido indene. As fazendas eram compactas do ponto de vista da habitação, estando todas as casas situadas muito próximas dentro da fazenda, mas a grandes distâncias das demais fazendas. Os contatos sociais eram quase inexistentes entre escravos de diferentes fazendas e a mobilidade social espacial quase nula, pois, freqüentemente, um escravo nascia e morria dentro da mesma fazenda. Com a desarticulação do espaço social e geográfico onde a endemia estava presente no Estado de São Paulo, ela foi desaparecendo, a ponto de hoje, em nosso Estado, praticamente José Carlos de Medeiros Pereira 187 inexistir a transmissão natural da doença. Esta desarticulação do sistema de relações sociais e econômicas se deveu à menor importância da cafeicultura na economia do Estado; ao fato de que a frente prioneira, tendo atingido as fronteiras do Estado, essa lavoura foi cada vez mais desenvolvida em outras regiões; à intensificação da industrialização paulista e ao avanço do processo de urbanização. É claro que a tudo isso se devem somar as campanhas de Saúde Pública visando o controle da doença de Chagas. A preocupação com a doença, no entanto, teria sido estimulada, no começo da década de 50, pela preocupação com a recuperação das terras rurais do Estado e, junto com isso, a recuperação do homem rural paulista. O fundamental, contudo, foi a modernização da agricultura, que levou a uma diminuição da mão-de-obra ocupada no setor primário. Intensificou-se o esvaziamento do meio rural paulista; a população diminuiu não só em termos relativos como absolutos. Assim, é que enquanto em 1950 a população rural era de 4.330.212, ela passou, em 1970, para 3.460.019 com uma variação para menos de 870.193 habitantes. Com isso diminuiu de muito o número de domicílios. Entre 1960 e 1970, desapareceram 270.388 moradias na zona rural paulista. Certamente as que foram destruidas eram as que estavam em piores condições, justamente aquelas favoráveis ao barbeiro. Em suma, com a diminuição da população rural, diminui o número de indivíduos infectados que possam ser picados pelos barbeiros, ficando prejudicada a circulação do Trypanosoma cruzi, de uma pessoa a outra, através daquele vetor. Um dos pontos altos do trabalho realizado diz respeito ao fato de o autor ter abordado a doença de Chagas não só num contexto histórico, mas procurando entender esse contexto como uma totalidade. Além disso, ao contrário do que ocorre freqüentemente nos trabalhos epidemiológicos que procuram incorporar o social como se este fosse constituído principalmente por características de pessoas (como, por exemplo, nível de renda, escolaridade, ocupação etc.), o prof. Luiz Jacintho da Silva percebeu, nitidamente, que tais características, o mais das vezes, são apenas um produto de forças 188 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE sociais mais profundas que só podem ser adequadamente compreendidas quando se presta atenção ao bosque e não às arvores que o compôem. Esse bosque, essa totalidade, foi captado através da noção de espaço geográfico, mas um espaço construído pelo homem. Ainda que a totalidade realmente utilizada, possivelmente, ultrapasse o nível de espaço geográfico, para apanhar também o da formação econômico-social correspondente, o fato digno de nota é que o trabalho encampa uma visão geral do mundo, especialmente das razões que levaram à mudança social e econômica e a alterações da saúde e da doença na região estudada. Uma das contribuições mais significativas do trabalho está em que ele, praticamente, construiu um modelo de estudo da evolução da endemia chagásica. Creio que o modelo se construiu quando o autor mostrou tanto o conjunto de eventos que levou à disseminação da doença, como aquelas situações que, ao se desviarem daquele padrão, levam à diminuição ou mesmo ao desaparecimento da endemia. Construído o modelo, ele poderá ser aplicado a outros contextos geográficos e históricos, proporcionando uma possibilidade de comparações e, conseqüentemente, de pôr à prova as hipóteses defendidas pelo autor. Esta possibilidade tem uma enorme significação no estudo da determinação social da saúde e da doença. 9. VÁRIOS 190 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE José Carlos de Medeiros Pereira 191 9.1. A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL* Os problemas de saúde, vistos do ângulo da Medicina Social (o que significa dizer do ângulo sócio-econômico), implicam num estudo das enfermidades tendo em conta a população, os grupos que a compõem, o sistema econômico e social. Não se trata de estudar apenas a história natural da enfermidade num indivíduo, como faz o clínico, mas ter em conta os diferentes riscos a que estão expostos os vários grupos constitutivos da sociedade e por quê. A interpretação desses porquês exige que nos voltemos para as relações entre o meio ambiente e o homem, o meio e o agente e, sobretudo, para as relações entre os homens (o ambiente sócio-econômico-político-cultural). Um dos principais aspectos desse último ambiente decorre da diferente distribuição da riqueza entre os vários grupos, diferenças estas que estão ligadas à propriedade e não-propriedade, ao assalariamento, ocupação, possibilidade maior ou menor de conquistar prestígio e poder. Outros aspectos derivados seriam hábitos, costumes, situação de moradia, tipo de trabalho, lugar de residência, tipo e qualidade de alimentação etc. Quando verificamos alguma relação significativa entre aspectos sócio-econômicos e a incidência-prevalência de uma enfermidade ou mortalidade por ela, temos que alterar os aspectos desse meio que estão contribuindo para o aumento dessas taxas. A dificuldade está em que, para alterar as influências sócio-culturais, econômicas etc. vamos nos deparar com fortes resistências, sobretudo de natureza política e econômica, além de barreiras propriamente sociais e culturais. Aos médicos, individualmente e mesmo como classe, não * Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e na Tribuna de Batatais de 24 de junho de 1981. 192 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE cabe a tarefa de realizar mudanças societárias. Mas como grupo cônscio de fatores extramédicos que estão afetando a saúde da população, ou parte dela, pode caber, pelo menos, a responsabilidade científica e social de chamar a atenção para tais fatores. Sem nos preocuparmos excessivamente com a estrutura e funcionamento de um sistema econômico e social em particular, poderemos, usando uma classificação do Prof. Hernán SAN MARTÍN (Salud y Enfermidad, Ecología Humana. Medicina Preventiva y Social), indicar alguns fatores sociais que podem freqüentemente relacionar-se com a enfermidade. Alguns deles dizem respeito a características culturais de grupos raciais, nacionais, religiosos e outros, como hábitos alimentares, educação, condição social dos sexos e dos diferentes grupos etários etc. É preciso dizer, porém, que muitos fatores que parecem estar relacionados a certos aspectos sócio-biológicos, podem derivar do fato de que o grupo é discriminado social, econômica, política e culturalmente pela sociedade inclusiva, como ocorre freqüentemente com os negros em quase todos os países onde originalmente foram escravos, com certas nacionalidades e povos em países para onde migraram e exercem ocupações de baixo prestígio. Nestes casos, a característica que poderia ser tomada como causa é, na verdade, um efeito, como é o caso do baixo nível educacional e ocupacional encontradiço entre muitos grupos discriminados. Outros fatores sociais freqüentemente relacionados ao fenômeno saúde-doença são ocupação, renda, escolaridade, hábitos de lazer etc., os quais, como os anteriores, dependem de como está estruturada a sociedade e a economia. Os mais significativos no entanto são os relacionados à distribuição da renda, dos meios de produção e trabalho existentes, da correlação de forças sóciopolíticas, da política econômica posta em prática, das relações (sobretudo econômicas) com o exterior, de processos sócioeconômicos relevantes como industrialização, urbanização, migração rural-urbana, inflação com elevação do custo de vida para camadas assalariadas etc. José Carlos de Medeiros Pereira 193 O estabelecimento dessas relações entre características sociais, econômicas, culturais, etc. e saúde e enfermidade, nos levam ao conceito de enfermidade social. Pode-se dizer que “toda enfermidade é um fenômeno social porque tem componentes sociais que a originam e conseqüênciais para a sociedade. Porém, ainda quando todas as enfermidades estejam condicionadas por fatores sociais e produzam alguma repercussão sobre a sociedade, certas enfermidades têm maior significação para a comunidade do que outras, devido às suas características epidemiológicas ...” (p. 25). As enfermidades que têm tendência a reduzir a capacidade produtiva e, portanto, com maior repercussão sobre o sistema econômico, normalmente adquirem maior significado social. Diz SAN MARTÍN: “Um problema médico deixa de ser individual e passa a ser de incumbência coletiva cada vez que em sua solução dominam fatores sociais, requerendo ação social organizada” (p. 25). Segundo ele, a maior ou menor importância social da enfermidade depende, em primeiro lugar, de sua freqüência na população; em segundo, da forma como se distribui essa freqüência: grupos de idade afetados; sexo; repercussões sobre a produção econômica; gravidade do curso da moléstia (exigindo somas elevadas em seu tratamento); letalidade (se a porcentagem dos que morrem é alta, as repercussões evidentemente serão maiores); cronicidade (tempo e dinheiro requerido para tratamento e reabilitação); tipo e grau da incapacidade (por exemplo enfermidades que afetam órgãos do sentido e locomotores); finalmente, um fator que pesa na determinação da importância social da enfermidade é a possibilidade de que se estenda por parte ponderável da população (Cf. pp. 25-26). Em síntese, as enfermidades que têm maior importância social são as que produzem mudanças na composição da população, na expectativa de vida, na porcentagem da população economicamente ativa, nos índices de produção (como ausência do trabalho), as que exigem consideráveis gastos médicos com tratamento e reabilitação etc. É claro que o tratamento da enfermidade chamada social consiste na eliminação dos fatores predisponentes, produtores ou mantenedores 194 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE da enfermidade que têm sua origem na estrutura sócio-econômica e não na utilização, tão-somente, de recursos estritamente médicos. Quaisquer melhorias nas condições gerais de vida fazem com que caiam os índices de morbidade e mortalidade, sobretudo entre as crianças, mais suscetíveis do que os adultos jovens à desnutrição e subnutrição. Alguns trabalhos mostraram, por exemplo, como a queda dos níveis de salário mínimo é acompanhada por um avanço da mortalidade infantil. A desnutrição, decorrente fundamentalmente de como se estruturou o sistema sócio-político-econômico entre nós, tornou-se fenômeno tão comum, em certas camadas da população brasileira, que é anormal encontrar-se nelas crianças sem nenhum grau de desnutrição. Assim é que um levantamento feito pela Fundação SESP (Serviços Especiais de Saúde Pública) e CEME (Central de Medicamentos), em 1972, estimou que, no Brasil, as crianças de 6 meses a 5 anos, em estado normal de nutrição, representavam 29,8% do total, enquanto as desnutridas de 1º grau constituiam 37,7%, as de 2º grau perfaziam 21,8% e as com desnutrição de 3º grau atingiam 10,7% (Cf. Anais da V Conferência Nacional de Saúde, 1975, p. 228). Agrava o quadro da relação entre doença e miséria, o fato de que, nos lugares onde moram pessoas pobres, normalmente não são encontrados serviços razoáveis de saneamento nem de assistência médica. As casas são pequenas e insalubres. O trabalho a que as pessoas se dedicam aumenta o risco que correm de se adoentarem. Isto faz com que se ampliem as diferenças no potencial das enfermidades. É maior a incidência e prevalência de doenças infecciosas agudas nesses meios. É evidente que a contínua exposição a condições de vida insalubres, sob quaisquer pontos de vista que examinemos a questão, mina a resistência das pessoas. A debilidade decorrente pode torná-las suscetíveis a outras enfermidades além daquela que as acometeu, abrindo também caminho para variadas complicações. Enfim, os pobres além de estarem muito mais expostos à doença, têm muito menos acesso aos benefícios da Medicina (Cf. COE, Rodney M., Sociología de la Medicina, p. 77). José Carlos de Medeiros Pereira 195 Outro fator limitante, em termos de saúde, para as camadas de baixa renda é representado pela impossibilidade de adquirir medicamentos caros ou simplesmente adquiri-los. Também o conhecimento dessas pessoas sobre o processo saúde-doença costuma ser precário. Ora, sabidamente, alguém que tenha melhor conhecimento das enfermidades, tem maiores possibilidades, em igualdade de condições sócio-econômicas, de procurar assistência médica no estágio inicial da doença. Em termos de população, esse conhecimento é de primordial importância. De fato, o desconhecimento do modo de atuar da enfermidade e dos efeitos que causa torna mais difícil a essa população, inclusive, melhor utilizar os serviços médicos disponíveis. É bem verdade que os mais ricos podem se deparar com um problema inverso, que é o de se exporem a um excesso de atos médicos. Realmente, é conhecida a concentração de médicos e de assistência médica nos lugares onde as possibilidades de consumir atos médicos é maior, ou seja, nos centros urbanos grandes e prósperos. Disso pode até mesmo criar-se, como afirma Ivan ILLICH (Cf. A Expropriação da Saúde, Nêmesis da Medicina), “uma perigosa correlação natural entre a intensidade do ato médico e a freqüência de curas”. O que certamente ocorre é que os médicos, como quaisquer outros profissionais, é claro, tendem a se instalar onde haja mercado para consumir seus serviços, ou seja, sobretudo onde as pessoas podem pagar (pp. 25-26). Como, normalmente, essas pessoas são mais saudáveis, a correlação estabelecida pode ser, parcialmente ao menos, enganosa. Enfim, quando analisamos fenômenos de morbidade e de mortalidade em termos societários, precisamos ter em mente que as causas necessárias das doenças podem não ser suficientes. Em outras palavras, e usando um exemplo, freqüentemente os micro-organismos patógenos não são suficientes, por si sós, para causar doenças infecciosas, sendo necessária a presença de fatores coadjuvantes, de natureza social, econômica, cultural e política para que a moléstia se instale. 196 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9.2. SOBRE A ETIOLOGIA SOCIAL DA SAÚDE E DA DOENÇA* Até o começo do século XX, a Medicina dava grande atenção ao meio social como fator etiológico da enfermidade e se preocupava bastante com a relação médico-paciente como meio terapêutico, como já ensinava Hipócrates. Nos escritos clássicos gregos e freqüentemente na Idade Média e no Renascimento ainda se retinham conhecimentos de etiologia social (de que são exemplos as quarentenas). A história da Medicina mostra que “os grandes médicos e cirurgiões do Renascimento, como Paré ou Paracelso, mostravam, com freqüência, maior percepção da situação psicológica do enfermo que de seus processos fisiológicos. No século XVII, homens como Sydenham preconizaram a observação da história da enfermidade em indivíduos e grupos como um requisito prévio para o conhecimento médico” (Cf. Rodney M. COE, Sociologia de la Medicina, Madrid, 1973, p. 20). Uma preocupação maior com as condições e fatores sócioeconômicos das enfermidades significa, pois, uma volta a uma certa tradição original da Medicina (ainda que não predominante), que via o homem como uma totalidade em que não se dissociava o biológico do social. Esta visão se foi esmaecendo sobretudo com a crescente especialização, tornando o médico um cientista e profissional com um conhecimento fragmentário do objeto que estuda e sobre o qual atua. Em outras palavras, à medida que aumentou enormemente o conhecimento científico sobre o ser biológico, a capacidade de * Artigo publicado originalmente com o título “Determinantes sociais da saúde e da doença” em Tribuna de Batatais de 8 de setembro e Diário de Notícias de 5 de outubro de 1980. José Carlos de Medeiros Pereira 197 compreender globalmente o homem se foi reduzindo, de modo que a preocupação fundamental restringiu-se a causas imediatas bem definidas e muito restritas. Enquanto se desenvolveram extraordinariamente os achados de medicamentos visando debelar cada enfermidade, atenuou-se “o ímpeto da Medicina por conhecer a causa das coisas precisamente quando tais causas, as causas das enfermidades, coincidiam cada vez mais (sem confundir-se) com as causas dos males da sociedade” (Cf. BERLINGUER, Giovanni, in Medicina y Sociedade, vários autores, Editorial Fontanella, S. A., Barcelona, 1972, pp. 10-11). As enfermidades não podem ser consideradas como um processo puramente biológico, tendo sua historicidade, alterando-se nos vários períodos históricos, segundo os locais, as sociedades, as classes sociais (idem, p. 8). Desde que a Medicina, até a algumas décadas atrás, pelo menos, sempre reconheceu a existência dos fatores sociais na enfermidade, a atual preocupação maior com eles significa o renascimento de uma preocupação antiga mais do que um início. A conexão íntima entre as enfermidades e o meio social se comprova pelo fato de que elas “não são nem uniformes nem casuais em sua incidência”. É notório, hoje, que o “o estudo destas distribuições diferenciais da enfermidade... proporciona, com freqüência, as chaves acerca da natureza e causas da enfermidade” (Cf. Rodney M. COE, op. cit., pp. 13-14). Com o advento da teoria bacteriológica e as contínuas descobertas nesse campo, a Medicina entrou na chamada “era bacteriana”. Isto fez com que ela se restringisse cada vez mais ao organismo biológico e com a resposta deste a estímulos também biológicos e físico-químicos. Com isso, a Medicina passou a valorizar fundamentalmente a Biologia como ciência básica para proporcionar conhecimentos sobre o processo saúde-doença, procurando um agente da enfermidade (microorganismos patogênicos) isolado do meio social. Por outro lado, com o desenvolvimento da tecnologia em geral e da Química e da Bioquímica em especial, ela passou a pôr quase todas suas esperanças no laboratório, na descoberta de medicamentos e aparelhos para diagnósticos e tratamento. Só mais 198 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE recentemente, a unicausalidade passou a ser questionada, verificandose que as causas das doenças são múltiplas, que o diagnóstico e tratamento de várias doenças não pode prescindir da análise do meio social, que a Medicina, freqüentemente, é utilizada para gerar lucros para certos grupos etc. Como se pode perceber, são relativamente claros os determinantes sociais do processo saúde-doença desde que não nos preocupemos apenas com as causas imediatas do fenômeno enfermidade. Se o nível de análise for recuado, procurando aquelas mais longínquas, em grande número de casos reconheceremos causas extra-individuais e extrabiológicas da doença. Ao nível populacional ficaria então evidente que as soluções dos problemas de saúde-doença estão além das possibilidades da Medicina e do profissional médico isoladamente, em que pese a dedicação denodada da maior parte dos membros desse grupo profissional. Freqüentemente, inclusive, os próprios médicos se tornam vítimas dessa falta de autonomia da Medicina (aliás, como de qualquer outra instituição) frente à sociedade. Ela é um produto social tanto como a doença e a assistência médica. A determinação social da Medicina é bem percebida quando se estuda sua história, não em termos de vida de médicos ilustres e de descobertas técnicas e científicas, mas procurando verificar a variabilidade na concepção da saúde e da doença e a evolução e diferenças de tratamento proporcionado aos vários grupos sociais. Este estudo ensina como a prática médica e seu instrumental conceptual variam historicamente. Na verdade, não é preciso ir longe. Uma observação objetiva mostra como é distinta a prioridade dada aos diferentes segmentos sociais quando se trata de atenção médica. Os serviços estão estruturados de tal modo que a proteção da saúde e da vida acabam dependendo de um cálculo econômico, a ponto de se combater menos a enfermidade em geral e mais aquela que acomete homens com capacidade de pagar. Como existe óbvia relação da doença com o meio social, com as relações sociais essenciais, especialmente as relações de produção, são exatamente José Carlos de Medeiros Pereira 199 aqueles grupos sociais e econômicos que correm maiores riscos de enfermarem que terminam recebendo menor proteção. Enfim, de um lado o que se pode notar é que a doença tem características universais quando se observam apenas indivíduos, enquanto que, se nos preocuparmos com o nível social, verificaremos que os homens adoecem e morrem desigualmente. De outro lado, houve grande desenvolvimento da tecnologia de curar o indivíduo em contraposição ao avanço do conhecimento para combater a enfermidade em seu conjunto. Talvez tenha sido dada pouca atenção ao combate às causas mais distantes da doença porque elas não poderiam ser eliminadas sem que a própria sociedade fosse modificada. 200 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9.3. AMPLIANDO O CONCEITO DE MEDICINA* Especialmente a partir de 1960, um número crescente de pessoas, preocupadas com o processo saúde-doença, com as condições e fatores não biológicos que levam à doença e com a superação total ou parcial das entidades mórbidas, perceberam que a Medicina, isoladamente, não poderia enfrentar a questão. Até mesmo porque uma tal visão equivaleria a conceber a Medicina como tendo quase completa autonomia frente à sociedade, quando a própria Medicina é, em grande parte, determinada e condicionada pela estrutura econômica e social. De fato, hoje o que se pergunta cada vez mais é que relações existem entre o processo saúde-doença, a assistência médica e a sociedade global. No caso da Medicina, considerada como aplicação de disciplinas científicas, a problemática vai até mais além, colocandose a questão das relações entre ciência e tecnologia com a sociedade. Uma das dificuldades desse tipo de análise está no fato de que apesar de, em sua definição mais geral, a Medicina ser entendida como práticas e saberes que têm como objetivo a prevenção e cura da enfermidade e a preservação da saúde, a maneira de pôr em prática esse objetivo varia segundo os períodos históricos e as diferentes sociedades. Em nossos dias, sobretudo, os aspectos econômicos, sociais e políticos da prática médica adquiriram enorme significado. Dois aspectos, principalmente, levaram à percepção maior de que o processo saúde-doença não é um fenômeno exclusivamente biológico. Em primeiro lugar, ficou claro que se a enfermidade fosse * Este artigo foi publicado originalmente com o título de “Medicina e Sociedade” em Tribuna de Batatais de 30-8-1980 e no Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, de 21-9-1980. José Carlos de Medeiros Pereira 201 apenas um fenômeno biológico, deveria afetar em igual proporção a todos os indivíduos enquanto seres biológicos. Ora, sabemos que há diferenças muito grandes quanto a isso, e que os indivíduos enfermam e morrem desigualmente, por distintos motivos e em diferentes momentos de sua vida. Independentemente de fatores biológicos ou físicos, como idade, clima e outros, a classe social a que pertencem e o lugar em que residem determinam importantes diferenças na saúde das pessoas. Para resumir, está suficientemente comprovado que a forma de viver determina a forma de morrer: de que, como e quando morrerá um indivíduo específico. Em segundo lugar, a atenção médica é, além dos conhecimentos próprios de diagnóstico e tratamento, certo tipo de prática que, como tal, é organizado e modelado dentro de cada sociedade. A atenção médica não é, assim, um conjunto de medidas e de normas abstratas e de validade universal, mas reconhece variações históricas. A sociedade, e sua particular estrutura sócio-econômica, fixa as condições em que essa atenção é dispensada: a quem, como, quando. Isto levou a uma ampliação do conceito de Medicina porque, encarada sob sua forma tradicional, que insiste em um enfoque essencialmente reparativo, somático e individual, ela é relativamente inoperante para alcançar seus grandes objetivos. Em outras palavras, tomou-se cada vez mais consciência de que a Medicina não pode avançar muito mais mantendo-se na situação de enfrentar a enfermidade já produzida. Daí a revisão e ampliação do conceito de Medicina, que consiste em considerar: a) que o objeto de ação dela não é só a enfermidade e que a conduta da população frente à doença e frente à atenção médica é tão importante quanto a própria atenção médica, o que significa que os fatores de ordem social, e não só biológicos, condicionam a etiologia, tratamento e evolução da enfermidade; b) que a ação médica não pode se limitar a enfrentar a enfermidade já produzida, mas deve atuar preventivamente, tanto em relação ao indivíduo são, à sua família e à comunidade em que vive. Estes aspectos conduzem a uma série de perguntas relativas à prática médica, tais como: quais são os fatores sociais, econômicos, 202 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE políticos, culturais, etc. que influem no aparecimento, tratamento e evolução de uma enfermidade? Quais são as transformações sociais que precisariam ocorrer para controlar ou prevenir as enfermidades? Como podem os médicos (e a Medicina como instituição) relacionaremse com indivíduos e grupos, entendendo os indivíduos como seres sociais e os grupos mais do que como um conjunto de indivíduos? Em face destas questões pelo menos três conjuntos de problemas levaram a uma concepção de Medicina como uma disciplina social. Os conjuntos citados foram: 1º) o exame da etiologia social das enfermidades mostrou as variações sociais na incidência e prevalência das enfermidades, conforme as pessoas estejam situadas diferencialmente na estrutura social; 2º) as condições sociais que condicionam a reação frente à enfermidade (a rede de relações sociais, o grupo, a cultura etc. nos quais está inserido o enfermo) vão condicionar e mesmo determinar o episódio como anormal ou não; estas condições contribuirão para determinar qual o curso da ação para recuperar a saúde e, portanto, facilitarão ou dificultarão a recuperação e a reabilitação; 3º) a organização das instituições sociais voltadas para a atenção médica depende da sociedade nas quais estão inseridas. Freqüentemente, a Medicina é encarada como um conjunto organizado de conhecimentos, destrezas e atitudes voltadas para a prevenção e cura das doenças, isto é, os serviços de saúde institucionalizados, como hospitais, empresas, Secretarias, Ministérios, outros órgãos públicos e privados que visam o processo saúde-doença. Sob este aspecto, uma das principais questões a estudar, dentro da visão aqui defendida, é como funcionam, estão modeladas e organizadas essas instituições de atenção médica à população. Dentro desse sistema de atenção podem ser assinalados alguns pontoschaves, como: 1) a determinação dos problemas que serão objeto de atenção médica e o estabelecimento de prioridades em relação aos mesmos; 2) o recrutamento e a formação do pessoal que enfrentará os problemas de saúde; 3) a organização do pessoal nessas instituições, tendo em vista a fragmentação da assistência médica. José Carlos de Medeiros Pereira 203 Em suma, esta concepção de Medicina, a qual, em parte pelo menos, constitui como que uma retomada da tradição anterior nesse campo, procura fugir àquela que a vê como um conjunto de práticas científicas e técnicas dissociadas do restante da sociedade. Ela também procura não reduzir a análise do fenômeno “enfermidade” ao nível biológico, individual e psicológico, procurando outras determinantes para ele que, em última análise, só podem ser encontradas no que poderíamos chamar de “totalidade” social. Este tipo de análise igualmente não procura ocultar os conflitos existentes na sociedade e a forma como a Medicina institucionalizada às vezes intervém para preservar interesses de grupos. _______________________ Observação: Na redação deste artigo vali-me de algumas considerações contidas num texto mimeografado de Juan César GARCIA intitulado “Medicina y sociedad”. 204 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9.4. MEDICINA ALÉM DO BIOLÓGICO* Atualmente são evidentes as várias relações mantidas entre a Medicina e a sociedade global e, mais ainda, as determinações sociais do processo saúde-doença e da atenção médica. Tais fatos levaram, paulatinamente, a uma convergência crescente, no campo da Medicina, entre o biológico e o social, possível de notar em vários pontos. 1. Verificaram os médicos que, apesar de seu arsenal de medicamentos capazes de vencer as enfermidades infecciosas, o problema destas está fundamentalmente em sua prevenção e não em sua cura. Entretanto, as medidas preventivas não são usadas por parcelas ponderáveis da população, especialmente de países em desenvolvimento como o Brasil, por encontrarem, aquelas medidas, barreiras enraizadas em razões sociais, econômicas, culturais e psicológicas. Passou a preocupá-los o fato de, freqüentemente, doenças evitáveis não poderem ser controladas através de esforços baseados apenas em conhecimentos médicos. 2. Um dos problemas enfrentados atualmente pela Medicina é que as enfermidades crônicas parecem não ter uma causa única definida, mas múltiplas. Entre essa multiplicidade de causas seria importante o modo de vida, entendendo-se por isso coisas como hábitos, tipo de trabalho, produtos consumidos na sociedade industrial, condições de habitação. Inclusive como fatores causais intenta-se mostrar a influência maléfica de alterações provocadas no ambiente pelo próprio desenvolvimento da sociedade industrial. Relacionado * Artigo publicado originalmente sob o título “O biológico e o social na Medicina” em Tribuna de Batatais de 13 de setembro de 1980 e Diário de Notícias de 22 de janeiro de 1981. José Carlos de Medeiros Pereira 205 igualmente com o problema está o custo elevado do tratamento dessas doenças, as conseqüências sociais para a família, a comunidade e o enfermo, o que significa pensar em termos sociais, econômicos, psicológicos e culturais 3. Ainda que a Medicina Preventiva e Sanitária sempre tenha tido grande importância na Europa (ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, em que se restringia até há pouco quase que somente ao controle de moléstias contagiosas), este ramo da Medicina foi ganhando terreno em toda a parte, inclusive no Brasil. Seu desenvolvimento teve como uma das conseqüências chamar a atenção para o fato de que o conhecimento da causa imediata da doença é menos importante, socialmente falando, do que o conhecimento das causas mediatas, as quais devem ser removidas. Tais causas só podem ser definidamente conhecidas estudando-se as condições de vida diferenciais de faixas distintas da população. 4. O avanço da Medicina Social (grande nos países da Europa Ocidental) repercutiu nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Dando grande importância à manutenção da sanidade das populações, ela tem mostrado que para essa manutenção e também para o restabelecimento da saúde da população globalmente considerada, a remoção e detecção das causas biológicas das moléstias são apenas uma parte. Ficou inclusive patente que mesmo as causas biológicas não podem ser inteiramente afastadas se a Medicina empregar tão-somente técnicas baseadas em teorias bacteriológicas para assegurar a higiene e o controle de vetores. Os estudos nesse campo têm mostrado que as condições sócio-econômicas satisfatórias possuem tanta importância, pelo menos, quanto o emprego dessas técnicas. A remoção de algumas causas não-biológicas das enfermidades pode estar além das possibilidades da Medicina (distribuição da renda, nutrição, condições de moradia etc.) mas algumas causas biológicas poderiam ser controladas estimulando-se as pessoas a viver (dentro de suas possibilidades) de modo a favorecer a saúde. Isto implica em estudar problemas de comunicação, nível educacional, atitudes, obtenção do 206 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE apoio da população para programas sanitários e assim por diante. 5. Verificou-se que a reabilitação de pacientes clinicamente curados era mais problema social do que propriamente médico, se a Medicina for encarada de modo restrito. Para enfrentar problemas como estereótipos e estigmas sociais ligados a certas enfermidades, por exemplo, os médicos têm procurado muitas vezes o auxílio das Ciências Sociais. 6. O estudo do desenvolvimento industrial mostrou, em toda à parte, que existem relações entre certas doenças e ocupações; os acidentes de trabalho também tendem a aumentar. Por isso, os médicos são, cada vez mais, solicitados a exercerem a Medicina do Trabalho, em que não basta a aplicação apenas de conhecimentos estritamente médicos. Exige-se, nesse campo, que eles possuam conhecimentos outros, afim de melhor atuarem no sentido de manter ou recuperar a saúde de operários industriais e de trabalhadores de serviços e rurais, que, por sua vez, igualmente, apresentam doenças específicas, relacionadas com seu tipo de trabalho (bancários, por exemplo). 7. Foi-se desenvolvendo, no decorrer do tempo, uma concepção positiva de saúde em vez de uma simplesmente negativa que a encarava como ausência de enfermidade, biologicamente considerada. Ainda que a definição de saúde dada pela Organização Mundial de Saúde – OMS (“estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de doença ou enfermidade”) seja pouco operacional e ambígua, não especificando o que seja este completo “bem-estar”, a definição enfatiza a convergência mencionada. De qualquer forma, a saúde passou a ser “considerada como o aspecto mais evidente da qualidade de dada população e assim sendo, é incluída entre os componentes que caracterizam o nível de vida das coletividades, definido como as condições de vida consideradas como recomendáveis”. A saúde passou a ser encarada como fim e meio do desenvolvimento econômico e social. É fim porque “o desenvolvimento, em última instância, tem por objetivo elevar o nível de vida das populações, no José Carlos de Medeiros Pereira 207 qual a saúde está incluída. É meio, na medida em que uma população sadia se configura como um dos maiores recursos para o próprio desenvolvimento” (Cf. Indicadores de Saúde, Cadernos da Secretaria de Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São Paulo, série Indicadores Sociais, nº 3, 1974). 8. As investigações têm demonstrado que, no “stress”, o mais significativo é o ambiente social do indivíduo. Esse ambiente pode ter relações não apenas com enfermidades mentais, como produzir em pessoas mais suscetíveis às pressões do meio, efeitos sobre os processos fisiológicos. Com isso, os médicos foram levados a dirigir sua atenção para o conhecimento das condições sociais de vida, redescobrindo a importância da relação médico-paciente, servindo tal relação e conhecimento, notavelmente, a propósitos terapêuticos (donde a necessidade urgente da volta do médico de família). 9. As modificações que se estão processando em todo o mundo no exercício da profissão de médico, estão levando-o, cada vez mais, a ser um assalariado, ao contrário do que ocorria no passado. Este processo está obrigando os médicos a se interrogarem sobre o futuro de sua profissão, ligando-o à discussão das tendências de transformações da sociedade com relação à Medicina. Problemas típicos enfrentados pelos membros das organizações burocráticas passaram também a ser uma preocupação dos médicos assalariados, impelindo-os a estudar o processo burocrático, geral em nossa sociedade, para melhor compreender sua situação em face dessas transformações. 10. A qualidade e os custos crescentes da assistência médica vêm sendo fortemente criticados. A Medicina foi estatizada em alguns países europeus. Em outros surgiram cooperativas médicas, funcionando ao lado das clínicas particulares e da Medicina estatizada. O problema começa a ser debatido, em vários níveis, no Brasil. Os médicos, individualmente e como grupo profissional, estão procurando propor soluções alternativas para a organização da assistência médica. Em grande parte tais questões, que visam, em última análise, racionalizar a assistência médica, são tanto médicas 208 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE (estritamente falando) como sociais. 11. Há um sentimento crescente entre os próprios médicos de que a excessiva especialização chegou a um ponto crítico. Os resultados parecem insatisfatórios quanto à assistência proporcionada à população. De um lado, há o fracionamento dessa assistência e sua impessoalização, levando ao desconhecimento do enfermo como ser humano. De outro, a especialização só pode ser exercida com sucesso (freqüentemente) em grandes centros urbanos. Aumenta a competição nesses centros, enquanto certas zonas ficam desassistidas. Não se questiona o avanço técnico proporcionado pela especialização, mas seus resultados práticos tanto para os enfermos como para os próprios médicos. Enfrentar este problema extrapola o campo médico, dadas suas repercussões sociais. 12. Começa também a ser questionada a assistência hospitalar. Verifica-se, atualmente, uma preocupação tanto com seus aspectos técnicos como humanos (adaptação do enfermo ao ambiente hospitalar, despersonalização do paciente, tensões entre o pessoal, escassez e qualidade dos serviços para-médicos, problemas administrativos etc.). Do ponto de vista econômico tem sido analisado o custo elevado da assistência hospitalar em relação aos resultados proporcionados quando comparados com a assistência ambulatorial e domiciliar. Os defeitos da instituição hospitalar, para serem sanados, exigem contribuições da Administração, Economia, Sociologia e ciências afins. 13. Há, hoje, a nítida percepção de que o exercício da atividade médica é mais proveitoso quando se compreende claramente o que o paciente costuma esperar do médico, as razões de suas reações e de seus familiares e os possíveis conflitos entre as expectativas destes e as do médico. Este precisa compreender melhor, de um lado, quanto a sua visão da enfermidade e do enfermo está determinada e condicionada pela introjeção, nele, de uma perspectiva específica do meio científico que freqüentou. De outro, como os sentimentos, expectativas, ansiedades, tensões etc. dos enfermos e suas famílias são condicionadas por uma visão diversa da prática médica. Em suma, José Carlos de Medeiros Pereira 209 o médico precisa ter uma compreensão melhor da origem dos conflitos, que por vezes surgem entre sua visão e a do paciente, por terem sido socializados e ressocializados em meios diferentes. Ainda que, evidentemente, não tenhamos esgotado os pontos de convergência, acreditamos ter ficado suficientemente clara a preocupação cada vez maior da Medicina pelos aspectos sociais e, vice-versa, dos cientistas sociais por problemas relacionados ao processo saúde-doença. 210 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9.5. RIQUEZA, PODER E DOENÇA* É de senso comum que riqueza, poder e prestígio estão estreitamente associados. Também é de senso comum que aqueles mais ricos, poderosos e de posição social elevada vivem mais e melhor. Qualquer consulta às estatísticas de mortalidade infantil nos mostra que os coeficientes variam segundo as condições sócioeconômicas dos pais. Ora, se a simples possibilidade de sobrevivência depende dessas condições, igualmente delas depende a esperança de vida ao nascer, a probabilidade de se manter ou não sadio, a de adquirir esta ou aquela enfermidade. Vemos, de fato, ao compulsar os dados relativos às causas dos óbitos, que moléstias evitáveis e passíveis de cura tais como as doenças transmissíveis, do aparelho respiratório, do aparelho digestivo e da primeira infância são causadoras de mortes entre os pobres, em proporção muito maior do que entre os ricos, de educação superior, detentores de autoridade e de posição social elevada. As pessoas, nessas condições, morrem, em proporção maior, de outras moléstias, como tumores e doenças cardio-circulatórias. As distinções existentes entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos evidenciam-se nos subdesenvolvidos entre ricos e pobres. Quer dizer, há um padrão de morbi-mortalidade para países com condições diferentes e igualmente um padrão diferente, dentro de cada país, para estratos sócioeconômico diferentes. Em que é que uma condição sócio-econômica representada por baixos rendimentos, escolaridade insuficiente em face das * Publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e na Tribuna de Batatais de 24 de junho de 1981. José Carlos de Medeiros Pereira 211 exigências do mercado de trabalho, poucos contatos sociais etc. vai interferir nas condições de vida que têm significado médico? Fundamentalmente porque, quem ganha pouco, tem de dedicar a maior porção desse ganho à alimentação e um pouco menos à moradia e vestuário. Artigos de residência, assistência à saúde e higiene, serviços pessoais, recreação, educação, leitura, viagens são deixados de lado. Estes itens só ganham maior proporção quando a renda familiar se eleva, o que está de acordo com a lei formulada por um estatístico alemão do século passado (lei de Engel), segundo a qual, à medida que aumenta a renda, aumentam em termos absolutos os gastos com alimentação, vestuário, habitação (despesas correntes) mas diminuem em termos relativos. As várias pesquisas realizadas no Brasil, por organismos oficiais ou não, confirmando a lei de Engel, mostram que as famílias que ganham até um salário mínimo dispendem, de modo geral, mais de 80% de seus ganhos com alimentação, enquanto aquelas que têm renda superior a 18 salários mínimos gastam apenas cerca de 15% dessa renda com essa finalidade. Em 1970, os 40% mais pobres da população brasileira auferiam apenas 10,01% da renda nacional, enquanto os 10% mais ricos se apropriavam de 47,79% da mesma (Cf. C. G. LANGONI, “Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil”). Esta desproporção se manteve nos últimos dez anos. Daí não causar nenhum espanto o fato de que a desnutrição e a subnutrição sejam endêmicas no Brasil. Não se deve inferir disso que as pessoas ganhem pouco porque trabalham pouco e, conseqüentemente, se tornem doentes. A conhecida colocação a respeito do círculo vicioso da pobreza e da doença (Cf. C. E. WINSLOW, The Coast of Sickness and the Price of Health), poderia levar a essa conclusão. Afirma WINSLOW: “Era claro... que a pobreza e a doença formavam um círculo vicioso. Homens e mulheres eram doentes porque eram pobres; tornavam-se mais pobres porque eram doentes e mais doentes porque eram mais pobres”. Se as mediações entre os dois fenômenos não forem devidamente esclarecidas, corre-se o risco de aceitar que, se 212 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE os homens forem mais saudáveis, tornar-se-ão mais ricos, o que não é correto. A relação não é direta. A distribuição da riqueza depende do poder que as várias camadas sociais detenham dentro de um determinado sistema sócio-econômico e não da sanidade ou enfermidade de seus membros. É extremamente importante ter-se isso em conta, sem o que podemos estabelecer uma falsa relação de causalidade. Uma ciência fragmentadora do real, além de ideologicamente conservadora, freqüentemente não permite entender, em se tratando da doença, que os problemas médicos decorrentes não se resolvem apenas através da aplicação de recursos médicos, ainda que sua solução dependa também dessa aplicação. Quando não se atenta para as relações mais amplas envolvidas no suposto círculo vicioso da pobreza e da doença fica-se num aparente bonito jogo de palavras (cientificamente incorreto e politicamente reacionário): alguém é doente porque é pobre ou, ainda, é pobre porque é doente. A solução do impasse implicaria sempre numa atividade missionária dos médicos, curando os pobres doentes ou, então, fazendo com que tais pobres trabalhassem mais. Essa proposição do círculo vicioso da pobreza e da doença (se não for devidamente esclarecida) reduz-se a uma mera tautologia. Se aplicada a um país, por exemplo, poder-se-ia expressar da seguinte forma: “Um país é pobre porque é pobre”, ou, ainda “uma população é doente porque é doente” (Cf. Gunnar MYRDAL, Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas, MEC-ISEB, 1960, p. 26). Descartemos, pois, o aspecto de responsabilidade individual existente, em larga proporção, em tais afirmações. Consideremos sempre os pontos essenciais da questão, que se vinculam à estrutura e funcionamento do sistema sócio-econômico global. Façamos sempre a pergunta pertinente ao caso, que é saber porque um conjunto de homens não tem, muitas vezes, o bastante para comer. Não apontemos como causa aquilo que, geralmente, é efeito: a doença, a subnutrição. Para corrigir esse efeito seria preciso uma razoável alteração estrutural de modo, por exemplo, que houvesse uma melhor distribuição da renda, que a política econômica posta em prática José Carlos de Medeiros Pereira 213 contemplasse uma maior criação de empregos, que fosse diminuída a dependência econômica, política, tecnológica etc. que vivemos do exterior e assim por diante. Em suma, as tautologias, por bem expressas que sejam costumam ser cientificamente pobres como explicação dos processos que pretendem esclarecer. 214 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE 9.6. URBANIZAÇÃO, INDUSTRIALIZAÇÃO E SAÚDE* Um fator reconhecidamente importante em relação à saúde é o tipo de atividade exercida pela população, bem como as condições ambientais sob as quais ela se realiza. Por isso, um estudo de como ocorreram os processos de industrialização e urbanização e que repercussões produziram sobre o modo de viver dessa população pode proporcionar um melhor entendimento da saúde gozada e da doença padecida por ela. Saúde e doença relacionam-se com aqueles processos em termos dos requisitos físicos, psicológicos, sociais e culturais exigidos pelas ocupações urbanas, por exemplo. Mas há outras repercussões significativas. O viver num ambiente industrial e urbano geralmente proporciona maior acesso à educação formal e informal, isto é, tanto através da escola como através de mais freqüentes e intensos contactos sociais. Tal educação, aliada às novas experiências, altera a visão tradicional da doença, seja quanto à interpretação da mesma, seja quanto ao tratamento. Esse ambiente também proporciona maior acesso à assistência médica, de modo geral. Isto para falar de alguns aspectos positivos. Mas há, evidentemente, o outro lado da moeda, que são os aspectos negativos e que dizem respeito às condições higiênicas, à desorganização social e pessoal etc. associadas a ambos os processos. De fato, deixamos de ser uma população concentrada na zona rural sem que isto tenha significado o deslocamento dessa população para a indústria de transformação. O setor terciário da atividade econômica (serviços, comércio, transporte, governo etc.) passou a empregar cada * Publicado originalmente no Diário de Notícias de 19 de abril e em A Tribuna de Batatais 14 de julho de 1981. José Carlos de Medeiros Pereira 215 vez mais pessoas. Mas esse emprego, muitas vezes, é subemprego e mesmo desemprego disfarçado. Conseqüentemente as cidades brasileiras “incharam” e não cresceram propriamente dito. Larga porção da população se manteve à margem do processo de industrialização, ainda que recebendo seus influxos indiretos. Esse “inchamento” das cidades constitui um fenômeno que se poderia chamar de urbanização sociopática. Isto porque grande parte do contingente humano que as procura não encontra nelas condições de moradia decentes; o favelamento e o “cortiçamento” intensos têm efeitos desagregadores sobre a família; surgem problemas de higiene, já que os municípios encontram dificuldade em estender a rede de água e esgotos à periferia; rompem-se muitos laços de parentesco não só por causa da mudança de valores, mas em parte porque muitas das pessoas que procuram as cidades não vêm com suas respectivas famílias e sim isoladamente (mesmo quando são famílias que emigram, a família conjugal passa a predominar sobre a família extensa). Como muitas dessas pessoas não encontram emprego, aumenta a mendicância, a prostituição, a insegurança pessoal, o consumo de álcool, o “stress” (principalmente nas cidades maiores). Além do mais, a desorganização social que freqüentemente ocorre pela rápida transposição de um meio rural para o urbano, pode levar à desorganização pessoal e, conseqüentemente, ao aumento da freqüência de distúrbios mentais. Os processos de industrialização e urbanização têm muitas outras repercussões sobre a saúde e a assistência médica. Há, por exemplo, um aumento da população atendida pela Previdência Social com o aumento do número absoluto e relativo das pessoas que passam a trabalhar na indústria e no setor de serviços. Ainda que precariamente, elas acabam tendo acesso a serviços médicos. Por outro lado, cresce a freqüência de acidentes do trabalho, já que se trata de um operariado que, em grande parte, não tinha experiência prévia do trabalho industrial, nem um estilo de vida mais adequado a ele. É claro que, a par disso, essa incidência de acidentes demandando assistência médica tende a aumentar porque, em geral, nossas indústrias pouco se 216 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE preocupam em instalar aparelhamento que os minimize e em adestrar seu pessoal de modo que faça sua prevenção. Possivelmente o estilo de vida urbano-industrial, produzindo maior “stress”, tenda a fazer aumentar a incidência e a prevalência de doenças do aparelho cardiovascular (hipertensão, infarto do miocárdio etc.) e digestivo (úlcera, colite ulcerativa etc.) ainda que se possa atribuir o aumento da freqüência de tais doenças não tanto àqueles processos e mais à competitividade inerente à estrutura social de países que tenham como paradigma os Estados Unidos. Como se disse acima, o aumento da freqüência e intensificação dos contatos sociais ocorrido com a urbanização produz, geralmente, uma modificação da percepção da doença. É que os valores tradicionais a respeito tendem a se alterar com isso. Ainda que por simples imitação (sem essa alteração de valores), o fato é que parte da população urbana emigrada da zona rural tende a exigir, sempre que possível, um tipo de serviço médico semelhante ao dispensado às classes de renda mais alta. Ocorre com os serviços médicos fenômeno parecido com o sucedido com outras necessidades e que os economistas chamam de “efeito de demonstração”: as classes de renda mais baixa desejam, naturalmente, usufruir dos mesmos padrões de consumo (em termos relativos, é claro) gozados pelas classes de renda mais alta. No campo da assistência médica, os governos, pressionados, tentam diminuir as tensões que vão surgindo. Assim sendo, bem ou mal, eles tomam algumas providências para atender a esses desejos. Por outro lado, com a expansão da assistência médica, o uso de antibióticos etc. aumenta a proporção de pessoas de 60 anos e mais no conjunto da população. Como essa faixa etária necessita de maiores cuidados médicos, essa maior demanda repercute no aumento do número de médicos especialistas em doenças crônicas e degenerativas, características da população mais velha. Quanto às possíveis diferenças de problemas médicos entre as zonas rurais e urbanas, elas decorrem, entre outros, dos seguintes fatores: 1) o nível de vida na zona rural, de modo geral, é inferior; 2) a natalidade é maior na zona rural; como o atendimento médico é José Carlos de Medeiros Pereira 217 relativamente precário, a mortalidade infantil também é maior; 3) como a densidade da população na zona rural é menor, a possibilidade de epidemias é menor, uma vez que os contatos são menos freqüentes, embora as condições de saneamento possam ser precárias; 4) como os jovens adultos emigram para as cidades, a população rural conta, proporcionalmente, com maior número de menores de 15 anos, o que, por si só, torna seus problemas médicos algo diferentes dos que surgem entre a população urbana; 5) os extremos sociais são maiores na zona rural, pois, praticamente, ou se é proprietário ou se é assalariado e mal pago. Sendo assim, e se associarmos esse fato a outros fatores coadjuvantes (como a própria escassez de assistência médica), essa população tem menores possibilidades de contar com essa assistência; 6) por causa do tipo predominante de moradias, hábitos de higiene, alimentos muitas vezes contaminados, contato mais freqüentes com animais, a população rural tende a apresentar maior freqüência de doenças parasitárias, zoonoses, alguns tipos de micoses, infecções intestinais, acidentes com animais peçonhentos, doença de Chagas, malária (em algumas regiões) e assim por diante. Apesar da listagem de diferenças apresentadas, devemos esclarecer que é difícil fazer-se uma generalização a respeito da sanidade da vida rural em relação à urbana porque as condições variam, não só de país para país, como segundo regiões e microregiões do mesmo país. Talvez a única que se possa fazer é que, como a densidade populacional no campo é muito menor do que nas cidades, as possibilidades de qualquer contágio são igualmente menores no campo e que as enfermidades infecciosas, transmitidas pelas vias aéreas superiores, são mais freqüentes nas cidades. É claro que acidentes de trânsito ocorrem mais nas cidades, mas a população rural também está exposta a riscos específicos. Parece, por outro lado, que há uma associação entre urbanismo e enfermidades como câncer do pulmão, pneumonia, bronquite, arteriosclerose, coronariopatias, hipertensão, não tanto em razão do local, mas em virtude de condições de vida diferentes. A industrialização propriamente dita, independentemente do 218 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE processo de urbanização, além dos acidentes de trabalho referidos, afeta também a saúde, em alguns casos, porque a poluição é grande em certas cidades industriais; por isso acaba afetando toda a população e não apenas o trabalhador industrial. Por outro lado, algumas atividades industriais propiciam condições favoráveis ao surgimento de enfermidades ocupacionais. Realmente, os riscos, em algumas indústrias, são maiores por causa do pó, de agentes químicos (solventes por exemplo) e físicos (calor, umidade e ruídos excessivos). Diretamente, estas seriam as principais relações que poderíamos mencionar entre a saúde e industrialização (Cf. Hernán SAN MARTÍN, Salud y Enfermedad). Contudo, as repercussões indiretas, como foi visto, podem ser de maior gravidade, representadas por certos desenvolvimentos tecnológicos que depredam a natureza, alterando o ambiente de modo a torná-lo menos salubre. Não se pode esquecer que a industrialização apesar de, geralmente, ter constituído um fator de melhoria das condições de vida, também causou muitas contaminações dos alimentos humanos, os quais podem acabar se tornando prejudiciais ao metabolismo. A propósito, um relatório de 1978, da Organização Mundial da Saúde, revela a existência de mais ou menos 5.000 compostos usados como aditivos na indústria de alimentos. Apesar disso, não devemos ser como aqueles críticos conservadores do mundo, que tendem sempre a considerar o passado melhor do que o presente e este melhor do que o futuro. José Carlos de Medeiros Pereira 219 9.7. FOME E SUPRIMENTO DE ALIMENTOS* A fome, em suas várias gradações, é muitas vezes relacionada à incapacidade maior ou menor de produção de alimentos. É evidente que, em determinadas sociedades e períodos históricos, isto de fato aconteceu. A própria Bíblia se refere ao episódio de José, que foi capaz de interpretar os sonhos do faraó e profetizar 7 anos de fartura, seguidos de 7 anos de fome. Tais eventos, no entanto, ocorrem com maior freqüência em sociedades pré-capitalistas, nas quais, realmente, fatores climáticos e desorganização da produção, em consequência de guerras por exemplo, podem produzir graves períodos de fome. Nelas, além do mais, o desenvolvimento técnico é menos intenso, os transportes são precários, pode não haver um governo com autoridade suficiente sobre uma razoável extensão de território e capaz de fazer com que más colheitas em uma região sejam compensadas pela sua abundância em outras sob sua autoridade. E assim por diante. Com o desenvolvimento técnico e dos meios de comunicação, com a centralização do poder e a formação de estados nacionais, com melhorias organizacionais na esfera tanto da produção como da distribuição de bens, com o surgimento de sociedades amplas e complexas cobrindo um território mais ou menos vasto, com o avanço das trocas internacionais e, fundamentalmente, com o avanço do modo de produção capitalista, a relação apontada não é mais tão evidente. Mesmo em regiões superpovoadas (pelos padrões brasileiros), a fome pode ser um fenômeno praticamente desconhecido, pelo menos em suas formas mais graves. Em outras, pelo contrário, mesmo subpovoadas, existindo terras férteis mais do que suficientes para * Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 34(7), julho de 1982, pp. 904-5. 220 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE sustentar uma população muito maior, pode ser que a população seja bastante desnutrida. Uma ponderável parcela de países do Terceiro Mundo encontra-se nessas condições. É que o problema, na verdade, não é apenas técnico, mas sobretudo político. Soluções técnicas para produzir maior quantidade de alimentos existem em número mais do que suficiente. Nem todas, é certo, economicamente viáveis. O que há é uma tendência notável, em nosso tipo de sociedade, de tecnificar problemas políticos, fazendo com que se desloque o fórum normal do debate. Da mesma forma, problemas coletivos são transformados em questões individuais, como se sua resolução coubesse às pessoas que estão sofrendo conseqüências de políticas, sobre as quais, isoladamente, não têm condições de intervir. Assim, seguindo tal tendência, são inúmeráveis as discussões sobre a má nutrição do brasileiro e da população pobre mundial, em que a fome de que padecem é vista como decorrendo, em grande parte, simplesmente, da melhoria da técnica da produção, ou mesmo, de ensinar a população carente a comer mais racionalmente. Por mais bem intencionadas que sejam, tais soluções são apenas paliativos. Essas colocações técnicas desconsideram o fato inquestionável de que mudanças de política econômica podem fazer com que os produtores rurais usem suas terras tanto para produzir cana-de-açúcar ou mais feijão e arroz. Tudo depende do lucro que obterão. Seria um contra-senso, num regime capitalista de produção, pedir a um empresário que deixasse de obter lucros e se descapitalizasse. Isto não o beneficiaria, nem à população mais carente. Apenas aos que comprariam seus produtos agora, e suas terras depois, a preços aviltados. Ninguém pode ser impunemente Papai Noel no capitalismo. Ou todos são ou aquele que se transformar em Quixote será punido, até mesmo pela falência. Em todas as épocas históricas, os que tiveram condições de pagar nunca passaram fome, a não ser em situações extremas. Nesta questão, sempre encontramos duas posições polares: de um lado, os que sofrem por desnutrição; de outro, os que estão doentes por comer demais. Se os crânios de todos os mortos se José Carlos de Medeiros Pereira 221 parecem quando reduzidos seus corpos a esqueletos, alguns conservam durante mais tempo cabelos sobre eles ou matéria cerebral dentro deles, como diz Giovanni Berlinguer em Medicina e Política. Conseqüentemente, se pretendemos que os cabelos de todos permaneçam mais tempo sobre seus respectivos crânios, sem distinções de natureza sócio-econômica, então teremos que ir ao cerne das questões. Aqui, ela reside no fato de que as pessoas não se alimentam de forma conveniente principalmente por causa da miséria em que vivem, o que implica em o setor produtor de alimentos não receber os estímulos econômicos necessários. No capitalismo, existindo quem pague, a produção tenderá a ser sufiente, quaisquer que sejam os critérios usados para medir essa suficiência. Para entender as leis que regulam o mercado, inclusive de produtos alimentícios, não é preciso recorrer a nenhum economista moderno ou heterodoxo. Basta-nos o pai da economia política mesmo, Adam Smith, que publicou sua Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações em 1776, há mais de dois séculos pois. Distinguia ele um preço primário das mercadorias, que seria aquilo que custariam àquele que as coloca no mercado, e um preço natural, que seria o acrescentamento, a esse preço, do lucro normal do capital na região, no país, no setor econômico em causa. O preço de mercado flutuaria em torno do preço natural, dependendo da oferta e da procura, sendo esta proporcional à quantidade daqueles compradores efetivos dispostos a pagar o preço natural. Quando a oferta é menor do que a procura efetiva, ocorre uma competição entre os compradores e o preço se eleva. Quando a quantidade produzida excede à procura efetiva, para que as mercadorias se escoem, será necessário vendê-las ao preço pretendido por aqueles que desejam pagar menos. Adam Smith acreditava que existiria como que uma mão invísivel que regularia a oferta e procura de bens e serviços postos no mercado. Pois bem, se os compradores potencialmente efetivos ganham pouco, a procura é menor do que poderia ser. Então alguma coisa seria preciso fazer para estimular a produção. Ainda que a tal mão 222 MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE invisível só exista, provavelmente, num mercado constituído por uma multidão de pequenos compradores e vendedores, o que não é o caso da economia moderna, o Estado poderia intervir para desequilibrar a balança existente. De fato, numa economia como a brasileira, em que a intervenção do Estado é a regra e não a exceção, uma possível solução político-econômica seria lutar para que esse Estado redistribuísse renda de um ou de outro modo. Há décadas, vários países europeus, com governos social-democratas, praticam tais políticas redistributivas. É claro que uma política voltada para a coibição da maternidade e paternidade irresponsáveis constituiria outra grande contribuição. Os recursos, evidentemente, só poderiam vir de impostos e taxas; por exemplo, sobre bens supérfluos e de alto valor unitário, consumidos pelos estratos sociais de alta renda. Implementadas tais políticas, uma parcela bem maior da população teria condições de comprar não só produtos alimentícios como outros de primeira necessidade. A produção destes cresceria, sem dúvida. Espero que a relação de forças políticas e econômicas evolua de tal forma que, um dia, a subnutrição entre nós seja apenas uma lembrança. Para isso, na verdade, ao contrário do que dizem muitos, o modelo econômico em voga, ainda que fosse algo modificado, não o seria no fundamental. Em suma, é principalmente através da ação política e não técnica, que haveria maior possibilidade de melhorar o nível de vida da população. E não só em termos de alimentação, como se discutiu aqui.