JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA
MEDICINA,
SAÚDE
E SOCIEDADE
Direitos autorais de José Carlos de Medeiros Pereira (e de
Antônio Ruffino Netto em relação à seção 7, “Sobre tuberculose”).
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - Campus
da USP - Ribeirão Preto, SP
364.444 Pereira, José Carlos de Medeiros
P436m
Medicina, saúde e sociedade / José
Carlos de Medeiros Pereira. - Ribeirão
Preto: Complexo Gráfico Villimpress,
2003.
1. 364.444 - Medicina Social. 2.
Sociologia - Metodologia. I. Título.
ÍNDICE
PREFÁCIO .......................................................................... 5
1. SOBRE MEDICINA SOCIAL ........................................ 15
1.1. Medicina, saúde e sociedade ................................. 17
2. MEDICINA PREVENTIVA, SAÚDE PÚBLICA
E PROBLEMAS SOCIAIS ............................................. 33
2.1. O projeto preventivista e a noção de
subdesenvolvimento .................................................... 35
2.2. Problema social e problema de saúde pública ... 41
3. SOBRE CONTRACEPÇÃO ............................................ 67
3.1. O direito de não ter filhos .................................. 69
3.2. Aspectos sociais da contracepção .................... 73
4. SOBRE METODOLOGIA .............................................. 97
4.1. Cientificismo “versus” ideologicismo .................... 99
4.2. O específico e o geral na ciência ........................ 104
5. SAÚDE E POLÍTICA CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA
E EDUCACIONAL ......................................................... 109
5.1.Sociedade e educação médica .............................. 111
5.2. Saúde e política nacional de ciência e tecnologia ........... 116
6. ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA ......................... 135
6.1. Sobre a tendência à especialização na Medicina ...... .137
7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antônio Ruffino Netto) .... 149
7.1. Mortalidade por tuberculose e condições
de vida: o caso Rio de Janeiro .................................... 151
7.2. Saúde – doença e sociedade;
a tuberculose – o tuberculoso ..................................... 172
8. DOENÇA DE CHAGAS — RESENHA DE TESE ..... 183
8.1. A evolução da Doença de Chagas no Estado
de São Paulo ................................................................ 185
9. VÁRIOS ......................................................................... 189
9.1. A enfermidade como fenômeno social ................ 191
9.2. Sobre a etiologia social da saúde e da doença ........... 196
9.3. Ampliando o conceito de Medicina ..................... 200
9.4. Medicina além do biológico ................................. 204
9.5. Riqueza, poder e doença ..................................... 210
9.6. Urbanização, industrialização e saúde ................. 214
9.7. Fome e suprimento de alimentos ......................... 219
José Carlos de Medeiros Pereira
5
PREFÁCIO
Durante o ano de 2001 resolvi rever o conjunto de artigos de
vária espécie que havia produzido durante o período em que fui
professor de Departamento de Medicina Social da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Lendo-os e organizando-os,
dei-me conta de que aqueles relacionados, de modo direto ou indireto
à disciplina, ainda poderiam ser úteis. Talvez haja um pouco de vaidade
intelectual em tal constatação, admito. Mas entendo que, apesar de
escritos há muitos anos, alguns deles pelo menos, suscitam questões,
propõem interpretações e indicam formas de abordagem que
poderiam ser retomadas, corrigidas e enriquecidas por outros.
Pensei em reescrever algumas partes. Mas lembrei-me de um
conselho que meu falecido catedrático, o Professor Florestan
Fernandes, dava aos seus auxiliares: uma vez pronto um trabalho
intelectual, revisto e achado conforme no momento em que foi escrito,
ele não deve ser retomado. No entender dele, a obra já teria cumprido
sua função para o autor. Poderia, agora, auxiliar a outros que a lessem.
Se o sujeito quisesse retormar o tema, que escrevesse outro trabalho,
com base na literatura subseqüente e no entendimento que passara a
ter do mesmo. Ora, aposentado, minhas leituras foram dirigidas a
outros caminhos. Conseqüentemente, os acrescentamentos que fizesse
resultariam apenas de um maior amadurecimento dado pelo tempo e
por leituras não correlatas.
Fiz, no entanto, pequenos ajustes. Não compartilho mais,
inteiramente, de um ou outro ponto de vista exarado na época. Por
isso, tomei a decisão de alterá-los, nesse caso. Em outros, minha
visão se alterou, mas não a ponto de rejeitar integralmente o que foi
6
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
escrito. Peço aos leitores que, algumas vezes, levem em consideração
o momento histórico, político e intelectual em que o artigo foi dado a
lume.
Os leitores devem ter em conta que o período que vai da
renúncia de Jânio Quadros à eleição de Fernando Henrique Cardoso
foi, em geral, desfavorável ao avanço das Ciências Sociais.
Pessoalmente, no entanto, sempre considerei que a ciência deve fazer
as menores concessões possíveis à ideologia. Em razão, porém, da
enorme tensão mundial, esta última tornou-se por demais
preponderante na produção científica na área. É óbvio que as
posições ideológicas influenciam o trabalho intelectual no sentido
de condicionar e mesmo determinar a escolha dos temas a serem
pesquisados, as técnicas de investigação e, sobretudo, as
interpretações. Se em condições normais, esses excessos tendem a
ser circunscritos, em tempos de enorme politização da vida social,
eles tendem, pelo contrário, a avultarem.
Um dos aspectos que mais me chamou a atenção, como
profissional da área, foi a tendência generalizada, nessa época, à
popularização, na academia, mas também em outros círculos, de
um marxismo vulgar, mecanicista, sem mediações. Essa corrente
de pensamento foi degradada à situação de um sistema ultrasimplificador da complexidade do mundo social, especialmente por
pessoas sem nenhuma formação histórica e sociológica. A
sofisticação do pensamento foi varrida muitas vezes. O princípio do
sim/não, preto/branco, reacionário/progressista etc. etc.
freqüentemente tomou o lugar de formas mais complexas de
raciocínio. Entendo que não colaborei para que tal degradação
ocorresse. Os leitores aquilatarão se mantive o nível de que estou
acusando outros de terem rebaixado. De qualquer modo, noto, com
satisfação, que esses tempos estão ficando para trás.
Sem dúvida, o modo simplista de fazer ciência também
permaneceu, é preciso que se diga. Muitas vezes, contra ele, é que
se apelou, canhestramente, para o marxismo. Ou seja, buscam-se
dados, nem sempre bem coletados, e procura-se, sem praticamente
José Carlos de Medeiros Pereira
7
nenhum marco teórico, estabelecer alguma correlação entre eles.
Como afirmo no artigo “Cientificismo ‘versus’ ideologicismo”, sem
esse marco, que daria sentido às relações buscadas, o investigador
pode ficar ao nível do observado, da aparência, não entendendo,
na verdade, aquelas relações. Com freqüência, pressupõe uma
causalidade inexistente na correlação observada, chegando a
conclusões errôneas. Na Medicina Social notei muitas vezes esse
erro. Para dar um exemplo banal e tosco: verifica-se a existência de
uma correlação positiva entre número de médicos por habitantes e
boas condições de saúde. Daí não se pode inferir, sem mais aquela,
que médicos estão associados, causalmente, com boa saúde. Na
maior parte dos casos a boa saúde também está associada,
estatisticamente, à existência de maior número de automóveis, de
telefones, de aparelhos de ar condicionado e assim por diante. Ou
seja, de modo geral, o que ocorre, é que os médicos, como quaisquer
outros profissionais, tendem, simplesmente, a se estabelecer naqueles
lugares onde poderão ser melhor remunerados.
Os leitores irão verificar que naqueles trabalhos que tratam
mais especificamente da Medicina Social, procurei entender a saúde
e a doença, assim como a assistência médica, como fenômeno social.
Ou seja, buscando as determinações, sócio-econômicas
principalmente, responsáveis pela manifestação da enfermidade e
pelo modo como ela é enfrentada pela assistência médica. É que
nessa disciplina não se trata de estudar a história natural da doença
num indivíduo mas numa população, examinando-se os diferentes
riscos a que estão expostos os vários grupos constituintes da
sociedade e porquê. Importam mais as relações entre os homens
do que entre eles e o meio natural. A Medicina não é vista como
tendo completa autonomia frente à sociedade, mas encarada, ela
própria, como sendo determinada e condicionada, em grande parte,
pela estrutura econômica e social. Vai-se até mais além, em alguns
artigos, examinando-se as relações da ciência, e sobretudo da
tecnologia, com o poder. Como não podia deixar de acontecer,
numa disciplina social, a historicidade das práticas e saberes que têm
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MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
como objetivo a prevenção e a cura da enfermidade também é discutida
em alguns pontos. Recomendo àqueles que desejarem situar-se
rapidamente frente às questões expostas, irem ao final do volume.
Em três pequenos artigos jornalísticos (“A enfermidade como
fenômeno social”, “Sobre a etiologia social da saúde e da doença” e
“Ampliando o conceito de Medicina”), abordo-as de modo mais ou
menos sumário.
Os que queiram informar-se mais a respeito do assunto podem
ler o primeiro dos artigos reunidos neste volume: “Medicina, saúde e
sociedade”. Nele, aproveito contribuições tanto da Epidemiologia
Social como da Sociologia da Saúde para expor como a Medicina
Social explica os dois processos a que me referi acima (saúde-doença
e assistência médica). Esclarece-se que a disciplina concebe a
Medicina como uma ciência histórico-social, encarando os homens,
sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos, mas,
sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,
membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes
de relações sociais específicas. Insisto que se trata de realizar uma
rotação de perspectivas, vendo e examinando o mesmo objeto de
investigação de um ponto de vista substancialmente diferente. Ou
seja, vê-se a enfermidade não só como fenômeno natural e portanto,
técnico, mas também como fenômeno social e, conseqüentemente,
como problema social, político e cultural. De fato, todos os homens
participam de sociedades históricas, divididas, conflituosas,
competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual
poder, riqueza e prestígio. Por isso é que a Medicina Social não
toma a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica
como inevitável. É essencial, para a disciplina, discutirem-se os
determinantes extramédicos da assistência médica, que é o outro
conjunto de fenômenos pelos quais ela se interessa. Vista como
uma instituição social, as práticas sociais da Medicina claramente
guiam-se, o mais das vezes, por outros critérios que não somente
médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas
têm sempre mais valor do que outras.
José Carlos de Medeiros Pereira
9
Nos dois artigos seguintes discuto certos aspectos de disciplinas
correlatas à Medicina Social: a Medicina Preventiva e a Saúde Pública.
Em “O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento”, trato
de uma vinculação, que cria existir, entre mudanças no entendimento
das causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quais
tinha ou estava passando o projeto orientador da Medicina Preventiva.
Explico-me: a interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma
visão culturalista (teoria da modernização) para uma visão sobretudo
de natureza política e econômica (teoria da dependência). No caso
da Medicina Preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão de
que a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturais
principalmente, para a da Medicina Social, em que a doença é
relacionada à estrutura social global.
O segundo artigo (“Problema social e problema de Saúde
Pública”) procura mostrar relações de vária ordem entre os dois tipos
de problemas. Nele discuto algumas questões comuns a ambos, como
as dificuldades na definição do que seja problema. A quem compete a
definição? Quais os vieses, sobretudo de natureza ideológica, que
interferem nessa definição e, conseqüentemente, na proposta de
soluções? Insisto em que o planejamento destas depende muito do
modo como se encare o sistema social, político e econômico. Depois,
da capacidade de profissionais da área em interessar um grupo social
suficientemente poderoso para que encampe tais soluções ou até as
integre em seu projeto de transformação social. Enfatizo o fato de
que é praticamente impossível um consenso a respeito do assunto, já
que os vários grupos sociais têm objetivos e valores não só diversos
como contraditórios. Uma certa possibilidade de superação dessas
dissensões político-ideológicas estaria, em meu entender, na
necessidade de os diagnósticos e soluções se alicerçarem em modelos
interpretativos teoricamente mais sofisticados. Insisto em que sem
que isso se dê, as intervenções planejadas para corrigir o problema
podem conduzir, elas próprias, a conseqüências negativas não
previstas.
10
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
O tema da contracepção sempre me atraiu porque está
intimamente relacionado ao de desenvolvimento ecônomico e social.
Creio que praticamente todos os que se debruçaram sem vieses
ideológicos (e principalmente religiosos) sobre ele, concordam que
uma das principais causas da miséria do que era chamado Terceiro
Mundo estava na procriação exagerada. Paternidade e maternidade
irresponsáveis, infelizmente, eram (e ainda são) estimuladas, em
muitos países subdesenvolvidos, por líderes políticos, religiosos e
militares. Na verdade, estão eles entre os grandes culpados pelo
seu atraso em vários e importantes níveis. Nenhum país pode crescer
economicamente e se desenvolver social e culturalmente quando suas
taxas de natalidade são demasiado altas. Os investimentos para se
manter saudável, educar e profissionalizar uma pessoa de modo a
torná-la capaz de viver produtiva e responsavelmente na sociedade
moderna são muito elevados. Tais líderes parecem imaginar que se
Deus não prouver, o Estado proverá. De onde tirará os recursos é
coisa de somenos importância. É claro que só o controle da
natalidade não basta. Tanto assim que em todos os países em que o
socialismo do tipo soviético ou assemelhado conquistou o poder,
uma rígida política de restrição de nascimentos foi posta em prática.
Nem sempre daí resultou maior riqueza.
O primeiro dos artigos sobre o tema (“O direito de não ter
filhos”) é restrito e mais vinculado à discussão que então se tinha
estabelecido na imprensa sobre o planejamento familiar. Já o segundo
(“Aspectos sociais da contracepção”) é mais amplo. Nele discuto
criticamente, com certa profundidade, os argumentos de natureza
econômica, social e política favoráveis e contrários à política de
regulação da fertilidade. O governo de então (presidido pelo Gal.
Ernesto Geisel), mudara muitas das posições assumidas pelas
administrações anteriores a respeito do problema populacional.
Mostro que os debates tinham, compreensivelmente, caráter
profundamente ideológico. Relativizo, no entanto, o exagero das
posições defendidas, já que, historicamente, as relações entre
população e processos sociais complexos variaram muito no decorrer
José Carlos de Medeiros Pereira
11
do tempo e de um país para o outro. Concluo, porém, que pôr à
disposição da população, sobretudo das mulheres, conhecimentos e
meios para que pratiquem a contracepção constitui um dos deveres
do Estado moderno e um direito básico delas.
A educação é uma daquelas áreas na qual quase todos se julgam
com competência para meter o bedelho. Esta é uma tendência
aparentemente incoercível. Os profissionais que nela militam queixamse, com razão, dessa intromissão, freqüentemente não só abusiva
como inepta. Confesso que eu também, muitas vezes, nela me
intrometi. Aqui, porém, trata-se de uma incursão mais restrita. Num
seminário sobre educação médica fui solicitado a proferir uma palestra
(“Sociedade e educação médica”). Divergi dos organizadores do
evento. Em geral, entendiam, que o ensino médico poderia ter grande
influência no modo como a profissão estava ou viria a ser exercida.
Segui o ponto de vista normalmente defendido pelos sociólogos,
destacando o papel conservador da educação. Assim sendo, é difícil
transformá-la num agente de mudança social. No caso específico da
educação médica, apontei o fato de que a formação do médico é
determinada fundamentalmente pela prática profissional e não o
inverso.
Nesse sentido, o artigo “Sobre a tendência à especialização
na Medicina” constitui, de certa forma, uma demonstração do que
afirmei naquele seminário. Nesse trabalho, faço um apanhado das
explicações do processo de especialização. No caso da expansão
extraordinária da especialização na Medicina (em geral tida como
excessiva, no Brasil, pelos que estudam a organização dos serviços
médicos), aponto, exatamente, a política de atenção médica do
sistema oficial de Previdência Social como o grande favorecedor
da tendência. É claro que havia e há outros fatores: a preferência
dos próprios pacientes, sobretudo dos que podem pagar; as
vantagens para os próprios médicos, que, especializando-se,
procuram fugir da acirrada competição profissional; o interesse da
indústria produtora de equipamento médico sofisticado etc.
Obviamente, essa tendência tornou os médicos menos capacitados a
12
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
encarar seus pacientes como um todo não só biológico, mas, sobretudo,
psico-social e cultural.
As colocações acima, no entanto, não significam que a política
educacional e, sobretudo, a voltada para a ciência e a tecnologia,
não possa ter enorme importância no desenvolvimento sócioeconômico de um país. As várias áreas do social se interinfluenciam.
O sistema educacional, desde que devidamente gerido por uma política
conveniente, pode reagir sobre o meio social global, alterando-o
significantemente. Os objetivos da educação e da saúde são definidos
em nível societário. Mas, dependendo da estratégia específica, as
reações corporativas podem ou não trazer benefícios para aquele
desenvolvimento. No artigo “Saúde e política nacional de ciência e
tecnologia” indico vários pontos que, em meu entender, estavam
dificultando a realização desse papel positivo. No caso da
Universidade, apoiando-me em texto de Florestan Fernandes, faço
referências à pesquisa inútil, ao desperdício de recursos materiais e
humanos, à predominância de interesses individuais e grupais em
detrimento dos objetivos mais altos da ciência, à dependência cultural
prevalecente em muitos nichos acadêmicos, ao dogmatismo existente
em outros etc. O arrolamento de tais pontos talvez possa contribuir
para o debate a respeito do tipo de conhecimentos a serem
produzidos no ambiente universitário; conseqüentemente, para que
eles sejam aproveitados construtivamente pela sociedade.
Em 1981 e 1982, escrevi alguns trabalhos em parceria com
meu amigo e colega de Departamento, o Prof. Antônio Ruffino Netto.
A tuberculose, na qual ele era (e é) interessado, é uma doença que
exemplifica bem um dos pontos ressaltados nos estudos de Medicina
Social. Ou seja, o de que a causa necessária de uma doença nem
sempre é suficiente para desencadeá-la. Ruffino havia levantado
dados sobre a mortalidade pela moléstia no Rio de Janeiro. Intrigado
com as variações de velocidade de declínio apresentadas pela curva,
procurou-me para que o auxiliasse a analisá-los. Da colaboração
resultou o artigo “Mortalidade por tuberculose e condições de vida:
o caso Rio de Janeiro”. Verificamos a existência de 3 regressões
José Carlos de Medeiros Pereira
13
distintas. Creio que conseguimos, alicerçados no exame de fatores
de ordem social, econômica e cultural, esclarecer as razões das
variações. De fato, no caso dessa doença, alterações nas condições
de vida das pessoas são fundamentais para explicar sua incidência,
prevalência e letalidade. Concluímos que, “apesar de ser marcante
o impacto determinado pelos métodos específicos de controle da
tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos
inespecíficos de controle (melhoria das condições de vida)”.
Posteriormente, resolvemos produzir um trabalho mais geral.
Nele, tentamos mostrar que os ciclos biológicos, descritos no que
se chama a “história natural da enfermidade”, não esgotam o seu
entendimento. Esses ciclos foram exaustivamente estudados pela
Epidemiologia e Saúde Pública. Mas, em nosso entender, para que o
estudo ficasse completo, seria preciso atentar para o ciclo social.
Neste, o homem histórico, concreto, entra em relações com os outros
homens. Tais relações, por sua vez, são condicionadas e mesmo
determinadas pela estrutura sócio-econômica inclusiva. Daí porque
termos sugerido um modelo mais holístico de interpretação, tanto
da doença individual como coletiva, em que o aspecto societário
fosse considerado. Indicamos que, em seu estudo, os investigadores
pensassem não apenas num ciclo, representado pela letra O, mas
em dois. O esquema se transformaria num 8, tendo o homem como
ponto comum. “Desta forma, ficaria claro que nem sempre é
inevitável que os homens participem de determinada cadeia
epidemiológica. Isso levaria mais facilmente o investigador e o
técnico, em suas interpretações e nas soluções propostas, a
considerar a estrutura social e suas características específicas, que
fazem com que a doença se individualize em uns homens e não em
outros”.
A tese de doutoramento do Prof. Luiz Jacintho da Silva,
intitulada A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São
Paulo, defendida em 1981, trata de outra doença, a de Chagas,
com importante determinação social. Por isso incluí a resenha que
dela fiz no livro que organizei. Como muitos diziam, a doença de
14
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
Chagas propagava-se, em grande parte, porque os homens viviam
em habitações mais apropriadas a barbeiros do que a eles. O autor,
em seu trabalho, mostra como a alteração do espaço geográfico e
sócio-econômico, pela cafeicultura, facilitou a disseminação do
Triatoma infestans. Com a desarticulação desse espaço (onde a
endemia estava presente) e o surgimento, nele, de outra organização
social, praticamente desapareceu, no Estado de São Paulo, a
transmissão natural da doença. Luiz Jacintho não só estudou o contexto
histórico da doença, mas procurou inseri-lo numa totalidade. Além do
mais, trata o social não só como características dos sujeitos, mas as
vê como produto de forças sócio-econômicas mais profundas.
Reiterando o que disse no início deste prefácio, espero que os
artigos aqui reunidos tenham utlidade para muitos dos que os lerem.
Entendo que, pelo menos, desempenharão funções didáticas. Um
pouco mais pretenciosamente, talvez venham a ter também implicações
teóricas. Dou-me por satisfeito se contribuírem para uma melhor
compreensão dos determinantes sociais da saúde e da doença e da
assistência médica.
José Carlos de Medeiros Pereira
Ribeirão Preto, setembro de 2002
1. SOBRE MEDICINA
SOCIAL
José Carlos de Medeiros Pereira
17
1.1. MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE*
I – INTRODUÇÃO
Nosso propósito é apresentar uma certa rotação de perspectivas
quanto ao modo de analisar tanto o processo saúde-doença como a
assistência médica. O primeiro é freqüentemente pensado como sendo
quase exclusivamente biológico. Em relação à segunda ela é vista,
demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por considerações
de ordem médica. Ora, saúde e doença são objetos ao mesmo tempo
sociais e biológicos. Os homens são sadios, enfermam e morrem não
segundo apenas variáveis biológicas, mas por razões, o mais das vezes,
sociais. Quanto à assistência médica, mais facilmente se percebe
que ela é constituída por um conjunto de práticas sociais que obedecem
a poderosos determinantes econômicos, políticos e de outras ordens
também não-médicas.
A assistência médica é, inquestionavelmente, objeto de estudo
das Ciências Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo,
de uma instituição social, com a especificidade de se constituir de um
complexo de ações e relações sociais referidas à área médica. Mas
pode ser objeto também de uma disciplina de fronteira à qual nos
referiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, voltase, igualmente, para o estudo das determinações extrabiológicas da
saúde e da doença, principalmente desta, quando encarada não em
termos de indivíduos isolados, mas de uma população que apresenta
segmentos sociais vivendo em condições diferenciadas. Assim, quando
se analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na população
* Publicado originalmente em Estudos de Saúde Coletiva, nº 4, pp. 29-37, Rio de
Janeiro, novembro de 1986.
18
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinados
organismos biológicos é, em grande parte, uma conseqüência de serem
esses organismos membros participantes de determinadas relações
sociais.
II – A MEDICINA SOCIAL
Sem dúvida, as várias ciências sociais poderiam dar conta da
investigação dos determinantes da assistência médica, como já
dissemos. Por outro lado, elas poderiam também estudar: a) os
determinantes sociais que fazem com que um dado fenômeno na
área da Saúde Coletiva seja considerado normal ou patológico; b)
ou, ainda, os fatores e condições igualmente sociais que levariam tal
fenômeno a se manifestar diversamente nos vários segmentos sociais
(classes, frações de classe, grupos ocupacionais, de renda etc). No
entanto, especialmente de duas décadas para cá, foi se
desenvolvendo uma novel disciplina, a Medicina Social, que se voltou
especificamente para o estudo dessas duas ordens de questões(15).
A par de outras razões, talvez se possa dizer que, para o surgimento
desta, militaram desdobramentos havidos nas investigações
realizadas em dois campos de estudo aparentemente distintos. Num
caso, a Epidemiologia, disciplina médica, passou a se interessar, cada
vez mais, pela convergência do social e do “natural” na explicação da
manifestação do fenômeno doença. Verificou que este depende,
freqüentemente, de condições suficientes, de natureza social, tanto
ou mais até que de causas necessárias, de natureza biológica. De seu
lado, trabalhadores intelectuais na área da Sociologia e, mais
recentemente, na da Economia, estabeleceram claramente que o
funcionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pela
assistência médica obedecem a razões extramédicas. Nada mais
natural que sendo ambas as questões vinculadas, de um modo ou
doutro, à Medicina, fosse adquirindo contornos a disciplina a que nos
estamos referindo.
Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da própria
José Carlos de Medeiros Pereira
19
Medicina, gozando de maior ou menor prestígio conforme o momento
histórico e os paradigmas científicos pelos quais ela se norteou,
freqüentemente consideraram o fato de os homens doentes serem
também participantes de determinadas relações sociais, as quais é
preciso levar em conta. Especialmente nos últimos anos, por influência
de tais correntes, a Medicina vai deixando de ser quase que apenas o
conhecimento (biológico principalmente) da doença e dos meios de
curá-la e/ou a ciência do corpo humano, normal e patológico. Um
número significativo de trabalhadores na área vai percebendo, cada
vez com maior clareza, que a explicação das doenças e sua cura é
facilitada pelo conhecimento do contexto social em que vivem as
pessoas. Bem ou mal, eles têm buscado explicá-las através da
referência a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse social
seja encarado como constituído por características de pessoas, na já
tradicional concepção multicausal da doença. Apesar disso, na
atualidade, muitos dos cultores da disciplina médica procuram ampliar
o objeto da mesma, a maneira de representá-lo cientificamente e o
modo de apreendê-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que a
Medicina tenderá a ser concebida também como uma ciência históricosocial, percebendo que as características dos seres humanos (doentes
ou não) são sobretudo um produto de forças sociais mais profundas,
ligadas a uma totalidade econômico-social que é preciso conhecer e
compreender para explicarem-se adequadamente os fenômenos de
saúde e de doença com os quais ela se defronta.
Passando a Medicina a ser encarada como atrás, suas práticas
sociais puderam vir a ser, também, objeto de investigação médica e
não apenas de alguma ciência social. De qualquer forma, essas novas
concepções facilitaram a constituição da Medicina Social, voltada
para o estudo tanto dos processos que mantêm a saúde ou provocam
a doença como das práticas sociais que procuram recuperar ou
manter aquela. Trata-se de uma mudança qualitativa, porque o objeto
de tal disciplina não é representado por corpos biológicos, mas por
corpos sociais. Não se trata, tão-somente, de indivíduos, mas de
sujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relações sociais
20
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
referidas ao processo saúde-doença. Realizada tal mudança, as
práticas sociais da medicina e a doença seriam objeto de investigação,
especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular à
Medicina desde que ela fosse concebida como uma ciência que
tivesse um objeto social e natural ao mesmo tempo.
A rotação de perspectivas quanto ao modo de encarar e
interpretar esses objetos de estudo representa uma ruptura em
relação à corrente positivista predominante. Tal rotação faz avançar
a interpretação, introduzindo tipos diversos de explicação, sobretudo
sociológica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserção
dos fatos observados e das relações descobertas em teorias mais
abrangentes; permite ver coisas novas, como se elas estivessem
sendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos conhecidos
são olhados a partir de outros pontos de vista, embora também
conhecidos(16: 101). É certo que os paradigmas da Biologia, de modo
geral usados na Medicina, são menos controvertidos. Eles permitem,
inclusive, que quase todos os investigadores utilizem o mesmo modelo
de análise, ao qual se conformam, Mas tal procedimento gera
menores oportunidades de questionamento e, conseqüentemente,
de reflexões sobre as questões estudadas(7). Ora, nas Ciências
Sociais inexiste um paradigma único sobre o qual se assente um
crescimento científico cumulativo. Sua existência implicaria num
acordo entre seus grandes cientistas quanto à concepção da sociedade,
o que seria praticamente impossível pois esta, ao contrário dos objetos
naturais com os quais lida a Biologia e outras ciências naturais, é
plena de divisões e conflitos dos quais o próprio investigador é parte.
Mas, com isso, o avanço proporcionado pode ser significativo: uma
criatividade mais expressiva, mais profícua, cientificamente falando,
que acaba produzindo resultados também significativos.
III – A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL
Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar a
enfermidade como um fenômeno social também. Tomá-la como um
José Carlos de Medeiros Pereira
21
fenômeno natural, como habitualmente se faz, tem implicações políticas
inegáveis: permite transformar problemas sociais em problemas
técnicos, com soluções dependentes da adoção de procedimentos
igualmente técnicos e não políticos. Diga-se que o primeiro tipo de
solução é o geralmente disponível pelos serviços médicos. Tal fato
contribui, certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipo
de explicação e não outro. Não nos esqueçamos que ela é, em grande
parte, uma técnica de intervenção. Esta característica, e a formação,
da mesma forma, muito técnica dos médicos, favorecem a adoção de
uma concepção fragmentada do homem e da doença. Tal
fragmentação, feita com o objetivo de melhor analisar, para conhecer,
o objeto de estudo, impede que este seja inserido num todo social
coerente. Tratando-se, porém, de objeto e de problemas sociais,
idealmente se exigiria, de quem explica e propõe soluções, a percepção
de como se estrutura e funciona o sistema social no qual um se insere
e os outros ocorrem. A proposta da Medicina Social pretende
preencher essa lacuna, procurando ultrapassar o nível de
concreticidade dos fenômenos médico-sociais, não os tomando como
se eles fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendo
uma visão mais abrangente da doença e dos homens doentes, essa
disciplina pretende chegar a uma interpretação sociologicamente mais
rigorosa dos fenômenos e a uma proposição de soluções socialmente
mais relevantes. Ou seja, ela se propõe ultrapassar a mera aparência
dos mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essência.
Para a Medicina Social boa parte das doenças constitui uma
manifestação muito concreta das relações sociais (sobretudo de
produção) de que os homens participam. Por isso é que elas se
apresentam tão diversamente, se consideramos os diferentes
segmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem,
trabalham, se divertem, se relacionam enfim, a prevenção da
enfermidade, mantendo-se a saúde, tem muito a ver com quaisquer
melhorias nas condições de vida proporcionadas, entre outras coisas,
pela diminuição da desnutrição, pelo acesso a moradias mais
adequadas, pelo exercício de um trabalho física e mentalmente menos
22
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
desgastante etc. Em outras palavras, os homens enfermam e morrem
desigualmente por pertencerem a uma e não a outra classe social,
por exercerem diferentes ocupações, por se vincularem a este ou
aquele setor econômico (rural ou urbano-industrial por exemplo),
por compartilharem culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto é que
os faz correr riscos desiguais de contraírem moléstias e de morrerem.
Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais riscos do que
os burocratas do serviço público por estarem muito mais expostos
ao binômio excesso de trabalho-consumo deficiente(8).
Ainda que como fenômeno biológico a doença possa ter
características universais, podendo o homem ser encarado como
um ser isolado, da perspectiva da Medicina Social, fora de seu
contexto social esse homem é uma abstração, algo que não existe.
Ele participa de uma sociedade histórica, dividida, conflituosa,
competitiva, em que os diferentes segmentos sociais têm desigual
poder, riqueza e prestígio. Por isso, uma visão reducionista do
problema de saúde e doença, perdendo de vista essa totalidade
social, acaba não proporcionando o entendimento procurado do
problema. A divisão deste em partes, para se proceder à análise,
pode ser conveniente apenas quando, em seguida, faz-se a síntese,
chegando a uma concepção enriquecida do conjunto do qual se partiu.
Só quando se tem um mínimo de percepção dos fatores sociais
produtores da enfermidade é que se pode compreender porque a
presença da causa necessária de uma doença não necessariamente
a desencadeia se não estiverem presentes as condições suficientes
para que ela exista. É nesse sentido que se pode dizer que a verdadeira
causa da tuberculose são as precárias condições de vida e não o
bacilo de Koch.
Na explicação cabal da produção tanto da saúde como da
doença entre os homens, na quase totalidade dos casos, é preciso,
pois, ter em conta as relações sociais de que eles participam numa
realidade social concreta. Nesse sentido é que podemos ousar afirmar
que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é
incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e
José Carlos de Medeiros Pereira
23
melhores condições de vida, a incidência e a prevalência de uma
doença como a de Chagas possivelmente diminuiriam em proporção
maior do que quando se tentam soluções baseadas na noção de que
sua causa fundamental é a presença de triatomíneos infectados. Da
mesma forma poderíamos nos referir à esquistossomose.
Freqüentemente se pensa em combatê-la procurando melhores
moluscocidas e não em fazer com que as pessoas vivam em condições
de não precisar entrar em contacto com águas infestadas. Num e
outro caso,quando a explicação da doença não contempla o social, as
soluções aventadas deixam intocada a estrutura social determinante
da doença
É o caso de muitas proposições epidemiológicas que partem
do pressuposto da inevitabilidade da presença do homem numa
determinada cadeia epidemiológica. Ora, se suas relações com os
outros homens e com a natureza fossem diferentes da que está
ocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico ele não
participaria de tal cadeia. Sem que essas relações sejam levadas em
consideração, a Medicina, o mais das vezes, vai se limitar a enfrentar
a doença já produzida. Evidentemente, este modo de proceder
constitui uma solução correta em face do problema individual
existente, mas não como explicação e solução, ao nível coletivo, do
fenômeno doença. O pressuposto da inevitabilidade desta se suas
causas necessárias não forem afastadas assenta-se na tendência das
ciências naturais de se voltarem para as características universais da
produção dos fenômenos. Esta tendência se vincula, por sua vez, à
suposição de que se está diante de um universo contínuo, em que as
diferenças pouco explicam. Ora, não é este o caso de qualquer
fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termos
societários, é cientificamente incorreto desconsiderar-se as
diferenças sociais. Se não nos voltarmos para elas, nossas
constatações a respeito, por exemplo, da incidência e prevalência de
quaisquer doenças serão meras abstrações. Não nos dirão que grupos
ocupacionais ou frações de classes sociais são afetados. De fato,
como já nos dizia Marx, a população é uma abstração se deixarmos
24
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
de lado suas divisões.
É em decorrência do fato de as relações sociais variarem
historicamente que existe, também, uma historicidade das doenças.
Dependendo da evolução das condições específicas existentes numa
dada formação social concreta, umas doenças surgirão e outras
desaparecerão. A tuberculose, por exemplo, foi uma doença
largamente disseminada enquanto perduraram as condições de
existência precárias determinadas, entre outras razões, pela
Revolução Industrial. Neste século, entretanto, diminuiu de muito
sua morbi-mortalidade sempre que essas condições melhoraram,
antes mesmo de terem sido descobertos tuberculostáticos eficazes.
Da mesma forma, à medida que uma sociedade passa de
predominantemente rural a urbano-industrial serão diferentes as
enfermidades que afetarão seus membros. Poderão diminuir as
zoonoses e verminoses mas aumentar os acidentes (de trabalho, de
trânsito), as violências ou as doenças cardio-vasculares. Em termos
mais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido: a
doença sobe dos intestinos para os pulmões. O que é poluído agora
é o ar e não o chão(1).
IV – DETERMINANTES EXTRAMÉDICOS DA
ASSISTÊNCIA MÉDICA
Tradicionalmente concebe-se a assistência médica como o
conjunto de práticas sociais da Medicina visando, especificamente, a
promoção da saúde e a prevenção e cura da doença ao nível individual.
Não entrariam na definição aquelas atividades promotoras de saúde
não exercidas por profissionais da saúde, como também as medidas
coletivas. Há um certo consenso, por exemplo, de que o saneamento
é antes engenharia sanitária do que medicina. Nem mesmo as medidas
levadas a cabo pela medicina preventiva são sempre encaradas como
assistência médica. Estão também excluídas a indústria farmacêutica,
de aparelhos hospitalares etc. Cecília Donnangelo resume o que foi
dito afirmando que a assistência médica seria o “conjunto de ações
José Carlos de Medeiros Pereira
25
de diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual”(3).
Há outras concepções de assistência médica mas, para nossos
propósitos vamos nos cingir a esta para distingui-la de Saúde Pública,
no sentido de medidas orientadas coletivamente visando o atingimento
dos fins mencionados acima.
Ainda que a assistência médica diga respeito exclusivamente à
atividade exercida por médicos, de modo algum, como já foi dito, ela
se faz tendo em conta apenas critérios médicos. É que as práticas
sociais referidas constituem uma instituição social cujo funcionamento
e dinâmica obedecem a determinações extramédicas. Dificilmente
serão os médicos que, nas condições concretas de sua atuação,
decidirão quem e como alguém será atendido e considerando
critérios tão-somente médicos. O mais das vezes, como umas vidas
têm mais valor do que outras em termos societários, políticos e
econômicos, serão nesses termos que as decisões serão tomadas.
Ou seja, os pacientes serão assistidos em razão de sua capacidade
de pagamento, ou porque podem exigir a assistência médica dado
o poder de que dispõem ou, ainda, porque são considerados
economicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nas
sociedades capitalistas, em que há um quase completo domínio dos
interesses econômicos, os valores alheios à medicina tenderão, em
muito, a orientar as decisões.
Sendo assim, há necessidade de analisar mais profundamente
os aspectos sociais, políticos e econômicos responsáveis pelo
desvirtuamento dessa assistência (em relação ao ideal expresso) de
modo a não produzir os resultados que, medicamente, dela seriam
esperáveis na redução, por exemplo, da morbi-mortalidade do
conjunto da população. Nessa análise, uma das primeiras questões
que chamam a atenção é a tendência de considerar a saúde e a
doença como sendo de responsabilidade individual. Esta é, em grande
parte, uma conseqüência de modo predominante de pensar nas
sociedades capitalistas. Contudo, ela já era também a visão dominante
na medicina. Mesmo antes do capitalismo a atenção médica era
considerada uma questão individual(5). Além do mais, agravando o
26
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
problema, ao não se voltar para a determinação social da saúde e da
doença, a assistência médica acaba atuando, muito freqüentemente,
mais sobre os efeitos do que sobre as causas.
A determinação social da assistência médica é claramente
percebida inclusive quando se estuda sua história. Como nunca
existiram sociedades históricas sem imensas desigualdades sociais,
o que se vai observar é que o tratamento e prevenção da doença
sempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo,
especificamente, pode-se mesmo dizer que a proteção da vida e da
saúde depende de um cálculo econômico. Isto é visível, por exemplo,
na própria distribuição geográfica dos médicos. Eles, como diz Illich,
têm tendência compreensível de se instalarem “onde o clima é sadio,
a água pura e as pessoas podem pagar seus serviços”(6). Mas não é
só por regiões, evidentemente, que a distribuição é desigual. O
mesmo se pode dizer em relação às várias classes sociais. À
distribuição desigual dos médicos pode-se acrescentar uma série de
outros serviços de saúde, como hospitais, centros de saúde,
laboratórios, pessoal para-médico etc. Há uma hierarquia de tratamento
porque os corpos são vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizam
de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido (por
exemplo, num médico investiu-se mais do que num professor primário),
com seu status, com seu poder. Muitas vezes, mesmo quando o Estado
se volta (em termos de assistência médica) para a população marginal
e o sub-proletariado é porque está preocupado em diminuir as tensões
sociais, por exemplo.
Evidentemente, numa sociedade capitalista, é inevitável que
se façam tais cálculos econômicos e políticos e se considere a
capacidade de pagamento dos que se encontram enfermos. Afinal
os recursos são sempre escassos (em face do modo como são
estruturados os serviços). Daí ser necessário que se tenha uma base
“racional” para decidir. Ao estabelecê-la considerando coisas como
a produtividade ou a capacidade (expressa na possibilidade de pagar),
o sistema social vigente pode tornar a diferenciação da assistência
médica relativamente aceitável para o conjunto da população, porque
José Carlos de Medeiros Pereira
27
se funda em distinções tidas como socialmente normais em nossa
sociedade. É claro que seria incorrer num mecanicismo pouco
defensável explicar toda e qualquer transformação no âmbito da
assistência médica como estando inteiramente vinculada aos interesses
do capital. Em qualquer sistema sócio-econômico global as instituições
sociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo.
Assim sendo, a medicina, enquanto prática social, acaba tendo esse
papel no capitalismo como teria em outro modo de produção.
Na verdade, é muito interessante observar que a orientação
coletiva da medicina, enquanto assistência médica, é muito mais
expressiva com o avanço do capitalismo do que em modos de
produção anteriores. Os serviços de assistência crescem
quantitativamente e segmentos sociais, até então desassistidos, são
incorporados ao cuidado médico. Uma outra explicação para essa
incorporação, além das já mencionadas (preocupação com a
produtividade e controle das tensões sociais) estaria no fato de que
tanto a indústria farmacêutica como a de equipamentos cresceu
enormemente nestas últimas décadas. Como o lucro dessas
atividades só se efetiva através dos atos médicos, que levam ao
consumo das mercadorias produzidas por essa indústria, ela
pressiona sempre no sentido de que os cuidados médicos se
estendam a uma porção maior da população. É evidente que a própria
população, por sua vez, luta para que o Estado proporcione sempre
assistência médica mais adequada, o que leva à expansão da mesma,
ainda que com diferenciação muito grande de qualidade, conforme se
assinalou.
A discussão sobre relações da assistência com a estrutura
social pode ser encarada ainda sob outros aspectos, mas vamos
nos limitar a estes. Poderíamos, por exemplo, discutir o enorme
desenvolvimento do aparato técnico dessa assistência; a crescente
politização do ato médico; os movimentos de contestação a esse
gigantismo tecnológico; a contradição gerada pelos custos crescentes
dessa assistência, o que inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite;
as tentativas de racionalização dos serviços médicos; o surgimento
28
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
de medicinas alternativas etc. Os limites de espaço nos obrigam,
entretanto, a restringirmos nossa exposição aos pontos abordados.
V – CONCLUSÕES
O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Social
contribuiu, ao lado de outras causas evidentemente, para esclarecer
a dupla natureza (biológica e social) do objeto da Medicina. O
processo saúde-doença tendeu, cada vez mais, a ser percebido
como sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelo
funcionamento e dinâmica do sistema social inclusivo onde ele
ocorre. Passaram a ser devidamente consideradas as diferenças
sociais na produção dos ditos fenômenos. Percebeu-se que saúde
e doença só são explicáveis quando a sociedade deixa de ser vista
como um todo homogêneo, estável e ahistórico e passa a ser, ao
contrário, visualizada como dividida em classes, estratos e grupos
sociais, freqüentemente opostos e mesmo antagônicos. Sob esse
prisma, foram inovadas as concepções metodológicas que
norteavam o entendimento da enfermidade. Ultrapassando relações
causais imediatas, geralmente vinculadas apenas às características
do organismo biologicamente considerado, a rotação de
perspectivas proporcionada permitiu chegar à noção de totalidade
social. Ou seja, entender que nem mesmo são as características sociais
das pessoas que explicam boa parte das doenças, mas o conjunto de
forças sociais mais profundas, as quais só podem ser adequadamente
compreendidas quando nos voltamos para o bosque, deixando de nos
cingir tanto às árvores que o compõem. Em termos de explicação e
solução do problema doença, a novel disciplina tem mostrado que
encarar o homem isoladamente, ou a população indistintamente,
implica, sem dúvida, em construir uma abstração inadmissível.
A explicação sociológica dos fenômenos médico-sociais,
contudo, refere-se, principalmente, aos processos sociais vinculados
às práticas sociais da medicina (especialmente assistência médica).
É que, nesse caso, os fenômenos são inequivocamente sociais, com
José Carlos de Medeiros Pereira
29
a especificidade de estarem vinculados à área médica. A visão mais
abrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e se
transforma o sistema social, permite à Medicina Social determinar
com mais precisão os aspectos extramédicos presentes na assistência
médica. Tratando-se de uma sociedade dividida em segmentos sociais
que mantêm entre si relações de dominação-subordinação ao nível
sócio-econômico e político, entende-se que, nela, a proteção da vida
e da saúde dependa de um cálculo econômico. É que, na verdade, tal
assistência não é prestada, exatamente, a corpos biológicos mas a
corpos sociais. O que está em jogo é a produtividade dos mesmos,
seu poder, sua riqueza, seu prestígio. Quem os possui recebe tratamento
(ou melhor tratamento). Não se pode, evidentemente, desconsiderar
a capacidade política das classes dominadas de lutar por uma melhor
atenção médica, mas a expansão da mesma, ocorrida no capitalismo,
vincula-se, em grande parte, ao processo de reprodução ampliada do
capital. Ou seja, valores alheios à ordem médica, em geral, orientam
as decisões nesse campo.
Enfim, uma diferente concepção geral do mundo e o domínio de
outro instrumental metodológico, permitiram desenvolver um marco
teórico de mais longo alcance seja no tocante à explicação do
processo saúde-doença, seja na compreensão dos determinantes das
práticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso, era
necessário considerar a sociedade específica em que esses fenômenos
ocorrem, com seu sistema de estratificação social, de produção
econômica e de distribuição de bens e serviços. Sobretudo no caso da
assistência médica, a perspectiva aberta pela Medicina Social apontou
o fato de as soluções aventadas, ao nível individual e coletivo, basearamse, freqüentemente, numa percepção incorreta das relações sócioculturais e dos interesses político-econômicos envolvidos. Se a visão
predominante contribui, muitas vezes, para tecnificar variados problemas
que são principalmente sociais, transformando-os em problemas
médicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a colocá-los no campo
específico de sua resolução: o político.
30
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
RESUMO
O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quanto
ao estudo tanto do processo saúde-doença como da assistência médica.
Nele, de início, se aponta o fato de essa disciplina ter-se aproveitado,
recentemente das contribuições feitas pela Epidemiologia Social (no
tocante à interpretação social do processo saúde-doença) e pela
Sociologia da Saúde (quanto à determinação extramédica da
assistência médica). É exposto, em linhas gerais, o modo como essa
disciplina explica os dois processos. Esclarece-se como ela concebe
a Medicina como uma ciência histórico-social também, encarando os
homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos mas,
sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,
membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes de
relações sociais específicas. Indica-se como a rotação de perspectiva
decorrente, ao alterar o paradigma do investigador, permite a este ver
coisas novas em relação aos mesmos fatos.
Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade como
fenômeno social. Mostra-se como vê-la apenas como fenômeno
natural tem enorme signficado político, pois transforma os problemas
sociais envolvidos na produção da doença em problemas técnicos e
não políticos. A Medicina Social, ao não fragmentar seu objeto, insere
o fenômeno num todo social coerente, ao contrário da Medicina
tradicional. Sua proposta de investigação ultrapassa o exagerado nível
de concreticidade com que esta vê o processo saúde-doença,
permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo. É
que a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente,
isolado de seu contexto social, constitui mera abstração, já que ele
participa de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas,
em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e
prestígio. Conseqüentemente, não se pode tomar a presença do homem
numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. Ou seja, a
Medicina Social volta-se para as diferenças sociais, considerando-as
fundamentais.
José Carlos de Medeiros Pereira
31
Na parte final discutem-se os determinantes extramédicos da
assistência médica. Este seria o outro conjunto de fenômenos pela
qual se interessaria a disciplina examinada. Depois de se definir o
que se entende por assistência médica, mostra-se como as práticas
sociais da mesma configuram uma instituição social. Tomando-a
como tal, verifica-se que a assistência médica raramente guia-se
por critérios tão-somente médicos: em termos societários, políticos
e econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. As
mesmas diferenças de tratamento são também claramente
percebidas quando se estuda a história da assistência médica. É
que como os corpos são principalmente sociais, eles se hierarquizam
de acordo com sua produtividade, com o capital neles investido,
segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistência médica
se volta para as populações marginais, o mais das vezes o que se
pretende com ela é diminuir as tensões sociais.
O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquer
transformação no âmbito da assistência médica como se vinculando
inteiramente aos interesses do capital seria incorrer num mecanismo
inadmissível. Crê que para explicar cabalmente o processo em
discussão seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidade
social, na qual os aspectos políticos e sociais, por exemplo,
desempenham também um importante papel. Ainda que sendo as
determinações econômicas as mais evidentes, sem dúvida, haveria
ainda que discutir outros pontos, como a influência da ciência e da
técnica no aparato técnico dessa assistência, a crescente politização
do ato médico, os movimentos de contestação ao tipo de assistência
médica hoje em voga, as tentativas de racionalização dos serviços
médicos, o surgimento de medicinas alternativas etc.
32
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Ltda., São Paulo;
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8 - Laurell, A. C., 1981. “Processo de trabalho e saúde”, Saúde em Debate,
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cap. 4, Global Editora, São Paulo;
10 - Pereira, J. C., 1983. A Explicação Sociológica na Medicina Social, tese
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Ribeirão Preto, USP, mim., Ribeirão Preto;
11 - Pereira, J. C., 1984. “O específico e o geral nas ciências”, Ciência e
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12 - Pereira, J. C. e Ruffino Netto, A., 1982. “Saúde-doença e sociedade; a
tuberculose – o tuberculoso”, revista Medicina, 15 (1/2), Ribeirão
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13 - Ruffino Netto, A. e Pereira, J. C., 1982. “O processo saúde-doença e
suas interpretações”, revista Medicina, 15 (1/2), Ribeirão Preto;
14 - Singer, P. e outros, 1978. Prevenir e Curar – O Controle Social através
dos Serviços de Saúde, Forense-Universitária, Rio de Janeiro;
15 - Teixeira, S. M. F., 1984. “Investigações de Ciências Sociais em Saúde no
Brasil”, Cadernos EBAP, nº 29, Fundação Getúlio Vargas, Rio de
Janeiro;
16 - Weber, M., 1973. Ensayos sobre Metodologia Sociológica, Amorrurtu
Editores, Buenos Aires.
2. MEDICINA PREVENTIVA,
SAÚDE PÚBLICA E
PROBLEMAS SOCIAIS
José Carlos de Medeiros Pereira
35
2.1. O PROJETO PREVENTIVISTA E A NOÇÃO DE SUBDESENVOLVIMENTO*
Quando, logo após a Segunda Guerra Mundial
principalmente, começou-se a discutir mais intensamente as razões
do subdesenvolvimento, surgiu uma extensa e variada literatura a
respeito, produzida sobretudo nos Estados Unidos, que relacionava
o subdesenvolvimento à inexistência, nos países do Terceiro Mundo,
de uma mentalidade e um conjunto de valores que propiciassem o
crescimento econômico. Esta literatura se referia, entre outras coisas,
à falta de mentalidade empresarial, à inexistência de valores positivos
ligados ao trabalho duro e continuado (considerando-se os povos
africanos, asiáticos e, de certa forma, também latinos, como
demasiadamente adeptos do ócio), à ausência de preocupação com
o amanhã, o que faria com que a poupança e o investimento fossem
relativamente baixos e assim por diante. Conseqüentemente, a
superação da situação de subdesenvolvimento foi vista como
dependendo, em grande parte, de um intenso esforço de
modernização cultural. Ou seja, ela se faria através de um processo
de mudança cultural ao cabo do qual os povos desses países passassem
a ter mentalidade, valores, instituições etc. mais próximos aos
imperantes na Europa Ocidental (não latina especialmente), Japão e
Estados Unidos.
Em face dessa interpretação do processo de
desenvolvimento/subdesenvolvimento, caberia aos países tidos como
desenvolvidos o papel de mentores da transformação apregoada.
* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 35(8) agosto de 1983, pp. 1075-7.
Um trecho foi alterado porque divergia acentuadamente do modo de pensar atual do
autor.
36
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
Contribuiriam para a modernização proposta oferecendo cursos de
formação e treinamento de modo a formar quadros superiores para
os países mais ou menos à margem da civilização ocidental (entendase, ainda não suficientemente vinculados ao modo de produção
capitalista); fornecendo assessores às instituições governamentais
desses países; produzindo programas radiofônicos, televisivos e
cinematográficos em que o estilo de vida mais adequado à situação
de desenvolvimento e crescimento econômico fosse propagado;
enviando missionários que convertessem esses povos a um catolicismo
menos tradicionalista ou, o que seria melhor, à forma de cristianismo
considerada como mais burguesa (as várias seitas protestantes);
exportando capitais e managers que difundissem as modernas técnicas
de organização empresarial etc. Enfim, seria “dever” dos países
desenvolvidos compartilhar sua civilização com os subdesenvolvidos.
Paulatinamente, contudo, especialmente depois dos anos 60,
foi ficando claro para os estudiosos do problema do
subdesenvolvimento menos comprometidos com o status quo, que
a condição de subdesenvolvimento tem raízes que vão além de um
suposto atraso cultural. É preciso sempre se perguntar: atraso em
relação a que? De fato, cada cultura tem valores próprios, de modo
geral adequados à consecução dos fins maiores a que se propõe.
Sem dúvida, há excessiva justificação ideológica nas teorias que
consideram o subdesenvolvimento como decorrente,
fundamentalmente, da espoliação sofrida pelos atuais
subdesenvolvidos em face dos desenvolvidos. Mas há que se tomar
tal possibilidade em consideração, sobretudo no caso de alguns
desenvolvidos, como a Grã-Bretanha em face da Índia por exemplo.
Ou seja, se os fatores culturais não podem ser desprezados,
igualmente não podem ser os econômicos, especialmente no caso
de algumas relações históricas que se estabeleceram entre alguns
países no decorrer do processo de desenvolvimento capitalista
mundial. Vai uma distância muito grande entre considerar um fator
como sendo causal a considerá-lo como determinante. Os processos
sociais, na quase totalidade, possuem fatores multicausais.
José Carlos de Medeiros Pereira
37
Na verdade, tanto a chamada “teoria da modernização” como
a do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista, a par de
serem ideologicamente viesadas, possuem seus méritos específicos,
sobretudo se, no caso da segunda, pensarmos mais em termos de
dependência do que propriamente em termos de espoliação. Ambas,
possivelmente, exageram na tendência de tomar a aparência das coisas
pela sua essência. Em suma, o aprofundamento da discussão a respeito
das razões do subdesenvolvimento mostrou que a referência ao “atraso
cultural” é uma explicação muito parcial da questão. Concluiu-se que
enquanto não fosse suplantada a dependência econômica, dificilmente
o seria a cultural, inclusive científica e tecnológica. O enfrentamento
daquela (a econômica) torna-se difícil, por sua vez, pelo fato de que a
dependência representada pelo subdesenvolvimento cria também
mentalidades dependentes, internalizando-se a dominação.
De modo assemelhado as coisas se passaram ao nível da
medicina preventiva. O projeto preventivista proposto para o
desenvolvimento na América Latina (a partir dos Estados Unidos)
foi um projeto em grande parte colonizador, como os demais projetos
sociais elaborados segundo a visão que se tinha do subdesenvolvimento
atrás exposta (a do atraso cultural) Segundo ela entendia-se que os
povos subdesenvolvidos eram doentios porque, sobretudo,muitos
aspectos de sua cultura eram inadequados em termos de produção
da saúde: hábitos de higiene e alimentares, noções a respeito da saúde,
métodos de prevenção e cura, habitações; enfim, um modo de vida
errôneo, incorreto, que acabava facilitando a disseminação da doença
e abreviando a morte. Os países desenvolvidos tinham, nesse campo,
outra tarefa de cunho missionário, colonizadora e civilizadora, que
era a de levar a esses povos atrasados os benefícios da ciência e da
técnica, da educação e da medicina modernas, ensinando-os a ter
uma vida mais sadia.
Influenciando as escolas médicas, esta visão do problema
levou ao desenvolvimento de uma medicina preventiva bastante
normativa, ainda que não necessariamente sob esta denominação.
Assim é que praticamente até o início da década de 60 não havia
38
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
departamentos que ensinassem aquela disciplina, mas sim higiene e
saúde pública. Sem dúvida, para estas, de modo geral, sempre foram
atraídos muitos médicos com uma preocupação mais social do que
individual dos problemas da saúde, interessados antes em conservála do que em tratar da doença. Contudo, dada aquela interpretação
das razões da doença, a higiene e saúde pública tornaram-se
freqüentemente policialescas. Não é à-toa, por exemplo, que os
serviços de saúde pública passaram a fazer inúmeras recomendações
ou mesmo determinações quanto ao uso de alimentos, ao modo
como as casas deveriam ser construídas (em termos, por exemplo,
de metragem dos cômodos, instalações sanitárias, etc) e assim por
diante. Um entendimento do problema de saúde a esse nível levou,
conseqüentemente, a uma continuada tentativa de normatizar a vida
da população à semelhança dos demais órgãos governamentais.
Os preventivistas viram-se a si mesmos como donos do saber e aos
outros como ignorantes a serem ensinados, sua atuação pouco
diferindo, quanto a este aspecto, da maneira de agir dos demais
médicos. Conseqüentemente, tenderam, freqüentemente, a afastar
a população do processo de tomada de decisões no tocante a uma
esfera fundamental da existência, qual seja a relativa à saúde e à
doença.
Posteriormente, houve uma evolução da compreensão do
problema, no sentido de se perceber que muitas daquelas
recomendações, que entram em choque com o modo de ver das
populações, são inaplicáveis, na prática. Mais ainda, concluiu-se
que nem tudo aquilo que o povo crê e pratica é necessariamente
maléfico à saúde e que, além do mais, dada a responsabilidade
governamental em prover a população de bens e serviços
considerados como geradores de saúde, seria conveniente educar
a população para pleitear tais bens e serviços (por exemplo,
saneamento básico). Esta foi uma característica do período da
medicina comunitária.
Só muito mais recentemente, quando se reinterpretou o
subdesenvolvimento sócio-econômico é que houve, entretanto, uma
José Carlos de Medeiros Pereira
39
radical alteração no modo de se entender a doença a nível coletivo.
Em razão dela, o projeto preventivista chegou, finalmente, a encampar
a proposta da medicina social, que interpreta o processo de saúde/
doença nos países do Terceiro Mundo, como sendo, fundamentalmente,
conseqüência do subdesenvolvimento, nos termos em que se discutiu
no final da primeira parte deste artigo. Isto é, enquanto não houver
uma alteração significativa das estruturas sociais, políticas e
econômicas responsáveis pela situação de miséria material e nãomaterial em que vivem os povos subdesenvolvidos, muito pouco se
poderá fazer para melhorar sua condição de saúde.
Modificado assim o projeto preventivista, em razão da
alteração da compreensão do processo de subdesenvolvimento,
aqueles profissionais agora voltados para a medicina preventiva e
social tendem a alterar sua postura no trato com a população. Na
prática concreta se dirigirão a ela, cada vez menos, supomos, como
se fossem donos de um saber e de uma cultura superior que se
atribuíram a missão de ensinar e orientar os ignorantes. Isto porque
terão em conta que os homens doentios e sem educação formal
elevada são, eles próprios, vítimas de uma situação pela qual não são
nem individual nem coletivamente responsáveis.
Desta forma, ainda que compreendam a necessidade de
enfrentar, com os recursos normais e próprios da medicina, a doença
que as relações sócio-econômicas vigentes tendem a produzir em
determinados conjuntos de indivíduos, considerarão outros aspectos
da relação entre estrutura social e processo saúde-doença. Também,
tampouco, dentro da nova visão, se negará a possibilidade de se
levar a população a sentir, pensar e agir de modo diferente frente a
esse processo (embora respeitando mais sua própria visão sobre o
assunto), como queria a medicina comunitária. O que vai distinguir
tais profissionais será sua visão mais politizada da questão. Isto
significa que pensarão o problema e atuarão não só como técnicos
da área, mas perceberão que, sem um projeto político que seja
encampado por segmentos sociais significativos, não ocorrerão
aquelas mudanças sócio-econômicos capazes de aliviar a situação
40
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
de pobreza material e não-material responsável pela doença coletiva
evitável. Em nada altera o entendimento de que a solução do problema
desta é político o fato de que variará o projeto ao qual cada pessoa,
individualmente, se ligará.
RESUMO
É discutida uma possível vinculação entre a mudança no
entendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformações
pelas quais tem passado o projeto que orienta a medicina preventiva.
A interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visão
culturalista (teoria da modernização) para uma visão econômica
(teoria da dependência). No caso da medicina preventiva, a
interpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devida
a fatores ligados a hábitos culturais, para a medicina social, em que a
doença coletiva é relacionada à estrutura social e global.
José Carlos de Medeiros Pereira
41
2.2 PROBLEMA SOCIAL E PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA*
1. INTRODUÇÃO
Há grandes semelhanças na discussão do que seja problema
social e problema de saúde pública. Em primeiro lugar, elas surgem
já na dificuldade de definição de ambos; depois, no estabelecimento
do que seja normal e patológico e nas interferências de natureza
ideológica tanto na definição como nas soluções. O planejamento
destas, em ambos os casos, vai depender, por sua vez, do modo
como se encare o sistema social, político e econômico e,
freqüentemente, da capacidade dos profissionais do setor de
interessar um grupo social suficientemente poderoso para que se
empenhe nelas, incluindo-as no seu projeto de transformação social.
Não menos importantes são as semelhanças decorrentes do fato de
muitos problemas de saúde pública serem, ao mesmo tempo,
problemas sociais, e vice-versa, embora haja uma tendência indevida,
na medicina, de incluir como problemas médicos questões que, na
verdade, são fundamentalmente sociais. Essas similitudes é que
pretendemos abordar no presente artigo.
2. QUEM DEFINE? O NORMAL E O PATOLÓGICO
DO TÉCNICO E O DA POPULAÇÃO.
Temos verificado que médicos, em geral, e sanitaristas e
preventivistas, em particular, praticamente não se preocupam com a
* Artigo publicado originalmente em Temas IMESC 4(1): 5-20, 1987.
42
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
questão de a quem cabe a definição do problema de saúde pública, ao
contrário do que ocorre, pelo menos com alguns sociólogos, em relação
aos problemas sociais. Nisto, certamente, interferem os vieses
profissionais de ambos. Os médicos, por exemplo, tendem a considerar
que questões de saúde e doença são de sua inteira responsabilidade,
enquanto os sociólogos são menos exclusivistas no que tange à
discussão de temas sociais. De qualquer modo, as dificuldades são
assemelhadas. Na discussão dos sociológos há, de princípio, uma
divergência significativa: quem é que vai considerar como socialmente
indesejáveis atitudes, comportamentos, processos, relações,
instituições sociais? Indesejável para quem? Para toda a sociedade
ou para um seu segmento? Por trás da definição dificilmente vamos
deixar de encontrar atitudes valorativas quanto ao que seja normal,
sabidamente uma noção muito relativa. Dado que em toda sociedade
complexa encontram-se grupos sociais heterogêneos, classes com
interesses divergentes, contraditórios e mesmo antagônicos, o que
um grupo pode perceber como patológico, outro pode ver como
perfeitamente normal. O mesmo, pelos menos em parte, aplica-se à
definição de problema de saúde pública.
Esta é uma das dificuldades quando se reserva a definição de
problema social à população. Não sendo homogênea e predominando
nela os interesses e a ideologia dos grupos dominantes, aquilo
percebido como socialmente indesejável pode ser uma inovação capaz
de contribuir para a melhoria das condições de vida da maioria da
coletividade. A visão conseqüentemente, é, em geral, conservadora,
havendo a tendência de conceber o status quo como normal. De
qualquer modo, quando se percebe algo como gravemente indesejável
do ponto de vista social, lança-se mão dos conhecimentos técnicos e
científicos para corrigir as assim tidas como disfunções do sistema
vigente. É verdade que essa mesma ordem pode ser considerada, ela
própria, como indesejável por grupos minoritários. Esta, no entanto, é
uma dificuldade insanável. O que é concebido como problema social
varia de uma classe ou fração de classe para outra, ou conforme a
religião, a subcultura do grupo, etc. Por exemplo, um grupo de
José Carlos de Medeiros Pereira
43
criminosos pode ter valores discrepantes em relação ao restante da
sociedade, mas perfeitamente aceitos no interior do grupo e, portanto,
sociologicamente normais se esse grupo restrito for tomado como
paradigma. Tomar o geral, o comportamento médio ou mediano como
normal não oferece, na verdade, maiores problemas cientifícos quando
se trata de um sistema social relativamente estável. A dificuldade
surge nos momentos de transição, quando comportamentos comuns
não respondem às exigências do sistema social emergente. Neste
momento é possível ao sociólogo, como veremos, considerar como
patológico aquilo que ainda tem a aparência de normal.
Outra possibilidade de definição de problema social é atribuí-la
ao discernimento do cientista social, principalmente do sociólogo.
Também, neste caso, é difícil não haver interferências ideológicas.
Por exemplo, o sociólogo, segundo sua concepção, pode entender
como inexorável a tendência de transformação de um dado sistema
social, que se encontra em transição, no sentido de ele se constituir
em plenamente capitalista. Então, muito daquilo que estivesse
obstaculizando a emergência do novo tipo social poderia ser tido
como problema social. Suponhamos, para continuar o exemplo,
uma população vivendo em economia de subsistência. Ainda que
ela não estivesse sentindo sua situação como socialmente indesejável,
esse tipo de economia pode representar um problema em termos do
modelo representado pelo sistema capitalista de produção. Pode-se
estabelecer um conflito entre a noção de normal do cientista social e
a da população envolvida. Mais grave ainda é quando se realiza uma
intervenção planejada para alterar uma situação social vista pelo grupo
técnico-científico como problemática e que tem, como conseqüência
não planejada, a criação de outra, esta sim considerada pela população
como socialmente indesejável. Continuando ainda o exemplo,
suponhamos que a população vivendo em economia de subsistência
tivesse sido inserida na economia de mercado e que, não tendo sido
devidamente preparada para isso, passasse a sentir dificuldades de
integração à nova situação. Nesse caso teríamos alterado uma
condição existencial vista como problemática pelo sociólogo e criado
44
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
um problema social inexistente antes, do ponto de vista da população.
É claro que, em qualquer intervenção planejada nos processos sociais,
há de se ter em conta as possíveis conseqüências negativas da mesma
para a população alvo.
É certo que os sanitaristas dificilmente concedem à população
a responsabilidade pela definição do problema de saúde pública,
mas dificuldades assemelhadas, decorrentes de conflitos com a
população, criam-se também para eles. Como alguns sociológos,
eles podem achar a definição de problema pela população como
científicamente inaceitável, dada a quantidade de preconcceitos sobre
a saúde e a doença existentes no seu meio. Mas ao reservarem a si a
incumbência, podem entrar em conflito com ela, ou, mais precisamente,
com certas parcelas da mesma interessadas na manutenção de um
dado estado de coisas. Teremos oportunidade de discutir adiante a
própria definição de problema de saúde pública, mas suponhamos
que certos hábitos e comportamentos sejam considerados, pelos
sanitaristas, como tendo conseqüências negativas para a saúde da
população que os pratica. Ora, dificilmente se consegue fazer a
correção planejada de condições sócio-culturais e econômicas sem
maiores resistências, mesmo quando a alteração pretendida for no
nível individual (a referida mudança de hábitos); mais ainda quando o
nível no qual se pretende interferir é o institucional ou o estrutural
(modificação da arquitetura ou da distribuição de renda). Seja, para
exemplificar, uma intervenção numa área relativamente simples como
a da moradia. Imaginemos que se tenha chegado à conclusão de que
a melhor forma de combater a doença de Chagas, numa dada região,
seja a construção de casas de alvenaria de certo padrão. A resistência
à alteração poderá ser grande por parte dos proprietários rurais que
estejam destinando aos seus trabalhadores habitações sanitariamente
impróprias.
3. OS CONFLITOS DE OBJETIVOS
Poderia parecer que os conflitos entre o pessoal técnico-
José Carlos de Medeiros Pereira
45
científico e a população, ou certas parcelas dela, no caso do problema
de saúde pública, seriam menores porque o ideal de saúde é muito
mais facilmente aceito por todos os segmentos sociais do que objetivos
de natureza social. Isto só em parte é correto. É verdade que há
padrões quantitativos e qualitativos mais precisos em se tratando do
que seja saúde e doença, sobretudo em termos individuais, do que os
que indicam o normal e o patológico sociais, ainda que a definição de
saúde comumente usada, difundida pela Organização Mundial da
Saúde, deixe muito a desejar (“estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não, apenas, ausência de enfermidade”). Aqui nos
deparamos com duas dificuldades principais: 1) a de que o problema
de saúde pública pode, ao mesmo tempo, ser um problema social e,
mais do que isso, fundamentalmente, um problema social; 2) a
decorrente do fato de não haver coerência entre os objetivos de
pessoas, grupos ou coletividades. Eles podem, inclusive, ser
contraditórios. Discutiremos aqui esta segunda questão, deixando a
primeira para mais adiante.
Médicos e sanitaristas, quando se trata de problemas de saúde
individual ou coletiva, geralmente raciocinam como se pessoas e
grupos sociais tivessem como principal motivação, em suas vidas, a
conquista ou manutenção da saúde. Isto só é verdadeiro em alguns
momentos de sua existência. A razão é simples: os homens, seja
individual, seja coletivamente, comportam-se socialmente tendo em
conta objetivos diversos, contraditórios ou até mesmo antagônicos,
situados em diferentes esferas do social, como já dissemos. A
intervenção planejada de cientistas, técnicos sociais, médicos ou
sanitaristas, numa determinada realidade médico-social, vai portanto,
encontrar, sob esse ponto de vista, escolhos outra vez assemelhados.
Por exemplo, um objetivo econômico, como o de ganhar mais, pode
conflitar com o de gozar mais saúde, porque o atingimento do primeiro
pode implicar um modo de vida estressante, fatigante, depauperante
etc. O sentir-se bem física, mental e socialmente pode exigir, por
exemplo, em certos casos, até que se beba e que se fume. A variedade
e diversidade de objetivos perseguidos na vida em sociedade por
46
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
indivíduos, grupos e classes torna inimaginável um homem tendo como
único objetivo na vida (seja o de ter saúde, seja o de apenas ganhar
dinheiro). Imaginá-lo assim seria concebê-lo como um ser alienado e,
portanto, sem saúde. Estaríamos diante de uma contradição.
Os vários fins que os homens perseguem estão ligados, por sua
vez, a valores socialmente aceitos, pelo menos num determinado
ambiente social, já que o que um grupo social pode ter como valor
positivo, outro pode ter como valor negativo. Repetindo o exemplo,
num grupo heterodoxo os valores aceitos como desejáveis serão,
com grande probabilidade, contestados pelos grupos majoritários
da sociedade na qual todos se incluem. Mas, dentro de um mesmo
grupo social, os valores socialmente aceitos como meritórios são
freqüentemente contraditórios. Valoriza-se, por exemplo, o homem
economicamente bem-sucedido e o homem honesto, mas as duas
coisas nem sempre andam juntas. Em nosso tipo de sociedade,
aceitar o primeiro valor pode implicar desobedecer ao segundo.
Por isso é que, em grande parte, as pessoas se neurotizam. Elas
introjetaram, em seu processo de socialização, valores discreprantes.
Para se conseguir atingir um fim socialmente valorizado numa esfera,
podemos ser obrigados a deixar de lado outro fim, igualmente valorizado
em outra esfera. Em alguns ambientes sociais pode ser de bom tom
fumar e tomar bebidas alcoólicas. Isto daria prestígio, que é um objetivo
importante na vida das pessoas, ainda que pudesse prejudicar a saúde
(ou talvez por isso mesmo), violando o valor de se ter boa saúde.
Os fins fundamentais, que normalmente guiam os homens de
nossa sociedade, são obter riqueza, prestígio e poder. Eles são
prioritários, superando de muito, no dia-a-dia, o objetivo de manter
a saúde, ainda que a despreocupação com ela vá prejudicar a
consecução daqueles outros objetivos, em deteminadas situações e
momentos. Como estamos vendo, os fins e os valores a eles ligados
não são necessariamente racionais quando os vemos por um único
prisma. Na verdade, o termo racional só se aplica aos meios, nunca
aos fins. Fixados estes, são racionais os meios que, dentro das
condições dadas, levem á sua realização. Não há discussão quanto à
José Carlos de Medeiros Pereira
47
racionalidade de fins, porque a esfera dos valores vincula-se aos
aspectos emocionais da vida humana. Nesta área, um valor é igual a
outro. Não se pode nunca imaginar, portanto, que um comportamento,
por produzir enfermidade num prazo mais ou menos longo, seja sempre
abandonado quando se mostra sua relação com aquela. Os homens,
de modo geral, vivem o aqui e o agora, raramente o amanhã, sobretudo
o amanhã distante. Dificilmente sacrificam o presente para obter uma
possível satisfação no futuro. Assim sendo, não será pelo fato de que
a saúde e a doença, orgânicas ou psíquicas, são mais facilmente
discerníveis do que o normal e o patológico sociais que os sanitaristas
e epidemiologistas não se conflitarão, freqüentemente, com os grupos
de risco cujos comportamentos queiram alterar.
4. O PROBLEMA DA SAÚDE PÚBLICA
Fizemos até aqui referências a algumas semelhanças entre o
problema social e o de saúde pública quanto a dificuldades de várias
ordens no relacionamento entre o cientista ou o técnico, de um lado, e
a população, ou parte dela, de outro. Não tivemos ainda, no entanto,
oportunidade de definir o que seja problema de saúde pública. Digase de passagem que, freqüentemente, mesmo em manuais de Saúde
Pública, a questão é deixada de lado, como se fosse assunto mais ou
menos óbvio. Como não é, surgem mal-entendidos. Tabagismo,
cardiopatias congênitas, hipertensão arterial, doença de Chagas,
acidentes de trânsito etc. são ou não problemas de saúde pública?
Por quê? Os autores, comumente, não nos dizem. Ficamos, às vezes,
com a impressão de que considerar um problema de saúde que esteja
afetando um segmento da população como problema de saúde pública
depende tão-somente da decisão do trabalhador qualificado do setor
saúde que lida com ele. Ou seja, sanitaristas, epidemiólogos, médicos
voltados para o social estão tão acostumados a se atribuir a tarefa (e
os outros a aceitar que assim seja), que acabam não se colocando,
nem para si mesmos, a questão de quais critérios estão utilizando.
Na verdade, hoje, em alguns meios, dependendo da formação
48
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
científica e da postura ideológica do grupo de profissionais do setor,
antes de se voltarem para critérios, seus membros estão discutindo
se o problema é técnico ou é político-social. De fato, dado o crescente
processo de medicalização vigente na sociedade ocidental, muitos
problemas sociais acabaram transvestidos em problemas de saúde,
pública ou não. Seria o caso, por exemplo, da desnutrição ou
subnutrição em certos grupos sociais de países subdesenvolvidos. A
não discussão do que seja o problema em exame leva, como não
poderia deixar de ser, à supressão do debate a respeito de causas e
soluções. Diminui o número de contribuições para o entendimento do
problema, ainda que, por vezes, para alguns dos engajados
ideologicamente de modo consciente no assunto, este seja um dos
objetivos secundários (ou mesmo primários) pretendidos. O não
esclarecimento dos critérios utilizados permite mais facilmente a
desqualificação de quaisquer opositores que não vejam o problema
tecnicamente e critiquem as posturas adotadas pelo pessoal técnicocientífico da área da saúde frente a um pseudo ou verdadeiro
problema de saúde pública. Por vezes, os sanitaristas, ou pelo menos
parte deles, assemelham-se aos tecnocratas da economia que
conduziram nossa política econômica nas duas últimas décadas. Só
que, no caso, trata-se de tecnocratas da saúde, donos da verdade
no que diz respeito a esse setor da realidade.
As dissensões quanto ao que seja problema de saúde pública,
de um certo ponto de vista, entretanto, são bem menos graves do
que aquelas que se travam em torno do que seja problema social. É
que os vários grupos sociais divergem, e sempre divergiram, em
relação ao seu modelo de sociedade ou, simplesmente, ao que seja
normal e patológico. Aqui, o desacordo constante é a regra. No que
toca à saúde, há um certo consenso quanto ao que ela seja ou, pelo
menos, ao que seja doença. Todos, na pior das hipóteses, concordam
que a saúde é sempre melhor do que a doença. É claro que, quando
se trata de discutir o normal e o patológico médicos, em termos
societários, a coisa muda, ou pode mudar. Assim, considera-se anormal
que o indivíduo A, especificamente, sofra de doença de Chagas, mas
José Carlos de Medeiros Pereira
49
a mesma opinião pode não prevalecer quando se trata de discutir se é
normal ou não um determinado grupo social dela padecer. Sob esse
prisma social, alguns sanitaristas e outros profissionais que se voltam
para a Saúde Pública parecem se aproximar um pouco de certos
sociólogos vinculados ao funcionalismo, que tendem a considerar
normal aquilo que é comum numa dada sociedade e patológico o que
se apresenta como desvio (por exemplo, um comportamento). Cremos,
no entanto, que, em sua maioria, sanitaristas e médicos voltados para
o social estão suficientemente atentos para o erro, cientificamente
falando, de se tornar o geral como paradigma de normal, no que se
refere à saúde coletiva. Se bem que, em alguns manuais de
Epidemiologia, de Saúde Pública ou de Administração Sanitária, surja
uma pergunta inquietante: a de se as ações de saúde pública não
interfeririam negativamente na seleção natural. Obviamente, se tal
pergunta é feita, é porque se está supondo que pobres e doentes
estão nessa situação não em virtude de como se estrutura e organiza
o sistema social no qual se inserem, mas em razão de seus genes.
Quando o desvio, pelo menos em relação a um modelo ideal de
normalidade admitido pela população, pelos técnicos, ou por ambos,
assume a dimensão de um problema social ou de saúde pública? É
aquele desvio estatisticamente relevante? Talvez dependa do tipo de
desvio, pois uns se referem a coisas socialmente relevantes e outros
não. Assim, certos desvios em relação aos costumes sexuais
socialmente aceitos podem ser freqüentes e nem por isso tidos como
problemas sociais. Já o homicídio, por exemplo, é estatisticamente
pouco freqüente na quase totalidade das sociedades. Mas o
descumprimento da norma de não matar é sempre tido como grave,
como um crime. Assim, se sua freqüência aumentar em determinada
época, comparada a outras, em uma mesma sociedade, ou quando
se a compara com outras, o fenômeno passa a ser considerado como
sério sintoma de desorganização social. O mesmo raciocínio se aplica
ao problema de saúde pública. Não se convertem em tal todos os
problemas de saúde sofridos por uma população ou um seu segmento.
Nisso, como já dissemos, os manuais são muito imprecisos. A
50
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
dificuldade já começa pelas próprias definições de saúde pública. Em
geral, elas são por demais abrangentes. Em vez de se aterem à
determinação, a mais precisa possível, da extensão e dos limites do
conceito, enumerando-lhe, inclusive, os atributos essenciais e
específicos, de modo que a coisa definida não se confunda com outras,
parece que os estudiosos da Saúde Pública entendem que dar excessiva
extensão ao que ela seja constitui a melhor maneira de lhe dar
importância. Por exemplo, quase todos se referem à definição de
Winslow, de 1920, ou nela se apóiam. Segundo esse autor, a Saúde
Pública é “a arte e a ciência de prevenir a doença, prolongar a vida e
fomentar a saúde e a eficiência, mediante o esforço organizado da
comunidade”. Esse objetivo seria alcançado através “do saneamento
do meio, do controle das infecções transmissíveis, da educação dos
indivíduos em higiene pessoal, da organização dos serviços médicos e
de enfermagem para o diagnóstico precoce e o tratamento preventivo,
do desenvolvimento de um mecanismo social que assegure a cada
pessoa um nível de vida adequado para a conservação da saúde”. Ou
seja, o objetivo da Saúde Pública seria “proporcionar a cada cidadão
condições de gozar de seu direito natural à saúde e à longevidade”.
Convenhamos que a amplitude da definição é tal que uma enormidade
de ações ao nível social, econômico ou político poderiam ser
consideradas de saúde pública. E, com base nela, praticamente todos
os problemas de saúde podem ser facilmente convertidos em
problemas de saúde pública. Se os autores obedecessem à regra de
que a definição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido,
tais dificuldades inexistiriam ou seriam menores.
Em nossa busca de definições de problema de saúde pública
encontramos uma, cientificamente aceitavel, em Forattini (1). Referese ele a uma definição de Nathan Sinai, citada por Mário M. Chaves,
na qual o autor estabeleceria três critérios para que um problema de
saúde se transformasse em problema de saúde pública: 1) “representar
causa freqüente de morbidade e de mortalidade”; 2) “existirem métodos
eficientes para sua prevenção e controle”; 3) não estarem eles “sendo
adequadamente empregados pela sociedade”. Forattini acrescenta
José Carlos de Medeiros Pereira
51
um quarto critério: “ao ser objeto de campanha destinada a erradicálo ocorrer sua persistência além do prazo previsto”. Poderíamos
também nos valer dos critérios estabelecidos por Nelson Moraes (2)
para avaliar a importância de uma doença transmissível e aplicá-los a
qualquer problema de saúde, a fim de verificar se ele adquiriria o
status de um problema de saúde pública. Os critérios seriam os
seguintes: distribuição geográfica, população em risco,
potencialidade endemo-epidêmica, morbidade, mortalidade,
letalidade, conseqüências econômico-sociais, disponibilidade de
recursos profiláticos e terapêuticos eficazes, viabilidade
econômica-financeira do programa de controle e implicações
internacionais.
O mais grave defeito nessas definições, principalmente na
referida por Forattini, é que elas visualizam a sociedade como se ela
fosse um todo homogêneo. Não consideram a diversidade de
situações existenciais gozadas pelos vários grupos sociais,
fundamentalmente pelas várias classes sociais e frações. Quando
essas divisões não são consideradas, os índices e coeficientes relativos
à saúde tornam-se, em grande parte, abstrações. Especificamente no
caso de enfermidades sociais vinculadas a precárias condições de
vida, sua prevalência pode ser alta no grupo que vive aquelas condições
e praticamente inexistente em grupos sócio-econômicos privilegiados;
isto num caso extremo. Mas como quase todas as doenças são
determinadas socialmente, em maior ou menor grau, atingindo grupos
de risco definidos, o critério de freqüência da morbi-mortalidade fica,
muitas vezes, adstrito aos grupos que sejam, de alguma forma,
poderosos, com maior capacidade de vocalização e de pressão sobre
os serviços de saúde estatais. Assim sendo, a malária, por exemplo,
por afetar, geralmente, segmentos populacionais despossuídos de
riqueza, poder e prestígio e, conseqüentemente, de condições de
reivindicar e de se fazer ouvir pelos meios de comunicação de massa,
pode se transformar num problema de saúde pública de menor
expressão do que a poliomielite, simplesmente por esta afetar, com
maior freqüência do que a malária, pessoas pertencentes às classes
52
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
dominantes. Conseqüentemente, o critério de “freqüente morbimortalidade” deveria ser qualificado, indicando-se o número de casos
ou de óbitos provocados pela doença não na população como um
todo, mas em segmentos específicos da mesma. A dificuldade talvez
esteja no fato de que, quando se consideram as divisões da sociedade
na qual o problema esteja ocorrendo, ele pode adquirir outras
conotações que não apenas a técnica.
5. O ASPECTO IDEOLÓGICO
Referimo-nos já a alguns aspectos ideológicos no que diz
respeito tanto à definição de normal e patológico médico-sociais,
como de problema social e de saúde pública. A postura ideológica,
geralmente, não chega ao nível de consciência dos sujeitos envolvidos
na questão. Inclusive, diz-se que uma ideologia eficiente é a que
apresenta tais características. No caso do problema social, quando
se entende que uma dada situação é socialmente indesejável, o que
se está afirmando, muitas vezes, é que ela prejudica a eficiência e a
funcionalidade do sistema social, vistas ambas sob a ótica dos grupos
dominantes, especialmente. Até mesmo pode ocorrer que esta
também seja a ótica dos dominados, por eles terem adotado a ideologia
dos dominadores. No caso de problema de saúde pública, a questão
pode adquirir contornos assemelhados. Por exemplo, ele pode ser
considerado como importante ou não, simplesmente em função da
região onde ocorra, independentemente do segmento populacional que
esteja atingindo. Suponhamos que, num caso, afete larga porção de
grupos sociais que constituem a mão-de-obra de setores econômicos
relevantes, em termos do sistema capitalista de produção existente, e
que, em outro, atinja populações que vivem em regiões em que
predomina a economia de subsistência. A esquistossomose, por
exemplo, será um problema de saúde pública muito mais relevante
quando atingir bóias-frias envolvidos no corte da cana e na colheita
do café em São Paulo do que quando afetar populações nordestinas
vivendo, no Sertão ou no Agreste, em economia de subsistência. Em
José Carlos de Medeiros Pereira
53
outras palavras, as conseqüências sócio-econômicas do problema são
vistas, quase sempre, do ponto de vista das classes possuidoras, situadas
em regiões econômica, social e politicamente dominantes. A eficiência
e a funcionalidade prejudicadas não são as de qualquer subsistema
social, mas as de um determinado.
É claro que há também o reverso da medalha. Dado que a
definição de problema de saúde pública é, freqüentemente, tarefa
que os sanitaristas e os outros profissionais da área atribuem a si
próprios; dado também que muito deles, em determinados lugares e
momentos, estão situados mais ou menos à esquerda do espectro
político-ideológico, há a possibilidade de problemas de saúde que
possam render maiores dividendos políticos ao grupo serem
transformados em problemas de saúde pública importantes. É
interessante destacar aqui como a ideologia serve a diferentes
propósitos, até mesmo contraditórios. Vejamos o caso do marxismo
mecanicista, que tende a enfatizar exageradamente a determinação
econômica de qualquer fenômeno e processo social. Por essa via, as
ações na área da saúde são vistas como sempre determinadas por
forças econômicas incontrastáveis e a serviço de interesses
subalternos dos capitalistas. Os homens, nesta perspectiva, são
transformados em autômatos destituídos de vontade. Ora, como o
político-ideológico é outro nível de análise significativo do marxismo
dialético, os mecanicistas acabam deixando de considerar sua própria
e relevante influência sobre os acontecimentos.
De qualquer forma, vista a questão sob o prisma ideológico,
o problema de saúde pública pode ganhar contornos interessantes,
seja quando se procura sua gênese, seja quando nos voltamos para as
soluções. A discussão destas se fará mais adiante, mas aqui
gostaríamos de acentuar o fato de que uma visão romântica e
voluntarista é, às vezes, apanágio dos dois grupos de técnicos
ideológicamente em oposição. Uns, os que encaram os problemas
como sendo apenas técnicos, vêem sua solução como dependendo
tão-somente de ações racionais, cientificamente conduzidas,
desconsiderando os aspectos políticos, econômicos e outros envolvidos.
54
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
Outros, se formos para o extremo oposto, praticamente só vêem o
aspecto político. Desses, uns há que entendem que só após a
“revolução” algo se fará; há outros que supõem que ela é iminente,
sendo possível apressar sua irrupção desde que assumam uma posição
mais decisiva em seu desencadeamento e condução.
6. O PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA COMO
PROBLEMA SOCIAL
As relações entre problema de saúde pública e problema social
podem ser ainda mais estreitas. É que muitos problemas de saúde
pública são também problemas sociais e outros, ainda, supostamente
de saúde pública, são, na verdade, problemas sociais transvestidos de
problemas de saúde pública, como já tivemos oportunidade de assinalar.
Ambos os tipos de problemas, às vezes, relacionam-se por estarem
vinculados ou ao modo de funcionamento “normal” (no sentido de
dentro do esperado, de comum) do sistema sócio-econômico, ou
porque têm sua origem na desorganização desse mesmo sistema. No
caso do modo de produção capitalista ou de qualquer outro précapitalista, as divisões sociais, às vezes com extremas desigualdades
na distribuição de bens e serviços, de status e papéis, de obrigações
e direitos, provocam problemas de saúde pública, segundo as definições
atrás, e também problemas sociais, no sentido de situações sociais
consideradas por todos como indesejáveis. Ou seja, sendo estas
sociedades socialmente muito heterogêneas, com diversas classes
sociais e frações, com grupos de risco específicos, tais problemas
surgirão inevitavelmente, mantendo-se as características próprias
daquela formação social concreta. De outro lado, nas sociedades
relativamente complexas (seja do ponto de vista social,
econômico, político ou cultural), a desorganização social pode
facilmente se instalar, sobretudo nos momentos de transição, de
mudança para os tipos sociais emergentes. O solapamento de situações
tradicionais pode, de um lado, transformar-se em foco de tensões
sociais e, de outro, não só estas tensões isoladamente, mas as próprias
José Carlos de Medeiros Pereira
55
transformações, sobretudo econômicas, podem provocar problemas
de saúde pública. Suponhamos a concentração da propriedade rural,
em virtude de as atividades agrícolas na região (por exemplo,
monocultura da cana ou mesmo da soja) não mais comportarem a
pequena propriedade. A mecanização se instaura, o trabalho rural
pode não ser mais contínuo, ocorrem fases de desemprego ou
subemprego para os trabalhadores rurais (ainda que vivendo na zona
urbana, por causa da intensa migração rural-urbana), as cidades
incham em suas periferias. É inevitável, nesses casos, que assistamos
a processos de desorganização social, de um lado, e ao surgimento de
problemas de saúde pública, de outro.
É claro que há problemas de saúde pública que não são
problemas sociais. Suponhamos que, num determinado momento,
concluam os sanitaristas que o tabagismo é um problema de saúde
pública. Pelo menos em nossa sociedade não há indicações de que o
vício de fumar seja considerado pela população, ou pelos sociólogos,
como tão socialmente indesejável que se tenha transformado em
problema social. Pode ser que, da mesma forma, uma dada
enfermidade cardiovascular, com tênues relações com a estrutura
social, venha a ser considerada problema de saúde pública sem ser,
ao mesmo tempo, um problema social. Há, por outro lado, problemas
sociais que pouco ou nada têm a ver com a saúde. Os preconceitos
em geral, pelo menos para os sociólogos (não necessariamente para
a população), são tidos como problemas sociais. Ora, nem sempre
eles gerarão problemas de saúde. Outro exemplo: pensemos em
movimentos políticos radicais, tanto de direita como de esquerda. Não
há indicações de que sejam ou se transformem facilmente em
problemas de saúde pública.
Não cremos que o fato de um problema de saúde pública
ser, ao mesmo tempo, um problema social, facilite sua solução.
Não se pode generalizar, é bem verdade, mas, se houver relação,
vai ser no sentido de a solução ser apressada, ou encontrar menores
resistências, quando o problema de saúde pública gerar um problema
sócio-econômico, afetando os interesses de um ou mais grupos
56
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
dominantes. A relação inversa, em que um problema sócio-econômico
gera um problema de saúde pública, possívelmente não merecerá
uma atenção maior se a solução do segundo implicar que, para que o
primeiro seja sanado, se atinjam aqueles interesses. Um exemplo, no
primeiro caso, seria o da ancilostomíase. Como, do ponto de vista
econômico, é uma doença que diminui, em maior ou menor grau, a
capacidade de trabalho e, portanto, a produtividade dos trabalhadores
rurais em geral, há maior preocupação estatal, e das classes
proprietárias, em que o problema seja solucionado. Um exemplo oposto
seria o da desnutrição e da subnutrição. Comumente, elas são
causadas por uma desigual distribuição de renda, da propriedade, de
bens e serviços etc. Fundamentalmente, pois constituem um problema
social. Como sua solução vai depender de mudanças mais profundas
na estrutura sócio-econômica, um enfrentamento decisivo do problema
dificilmente ocorrerá. É claro que se os problemas de saúde pública
estiverem vinculados a problemas sociais cuja gênese se situar no
nível institucional ou pessoal, tais resistências tenderão a ser menores,
ou mesmo inexistirão, no caso do nível pessoal.
Em geral, todos os problemas de saúde pública que afetam
definidamente interesses econômicos e sociais de grupos poderosos
encontrarão maior receptividade em sua solução. Por outro lado,
aqueles problemas dessa ordem vinculados, em sua gênese, a esses
mesmos interesses, possivelmente não serão enfrentados com vigor,
a não ser, talvez, quando os procedimentos utilizados forem só técnicos.
Por exemplo, a doença de Chagas poderá ser combatida sem maiores
resistências desde que se esteja utilizando o expurgo de barbeiros
através do uso de inseticidas. Mas se a solução aventada implicar em
melhoria das condições habitacionais da população em risco,
possivelmente aquelas resistências crescerão. Os interesses afetados
dos grupos dominantes, e que dificultam soluções, não são apenas de
ordem econômica; podem ser sócio-políticos também. Assim,
suponhamos que o combate a um problema de saúde pública dependa
da racionalização dos órgãos públicos voltados para a questão, por
estarem excessivamente burocratizados, porque o empreguismo é
José Carlos de Medeiros Pereira
57
demasiado, e também a incompetência. Se essa racionalização afetar
interesses clientelísticos de pessoas e grupos políticos ligados ao poder,
porque implicaria, por exemplo, na demissão de funcionários ociosos
ou incompetentes e na contratação de outros em função do mérito, é
possível encontrar-se igualmente resistência daqueles, que se sentirão
prejudicados pela adoção das medidas organizativas. Evidentemente,
se um problema é, simultaneamente, de saúde pública e social, e se
assim for considerado por todos, pela população e pelos profissionais
da área, se houver resistências, elas não serão manifestadas
claramente. Nas atuais condições de esclarecimento da população,
dificilmente haveria algo semelhante à revolta contra a vacina
obrigatória e contra os mata-mosquitos que Oswaldo Cruz e o governo
Rodrigues Alves foram obrigados a enfrentar no começo deste século.
7. PRIORIDADES E MUDANÇA DE OPINIÃO
Ainda no tocante às soluções, em ambos os tipos de problema
não há critérios bem definidos quanto ao estabelecimmento de
prioridades, o que não é de se espantar, dada a vinculação freqüente
deles, já assinalada, com interesses político-econômicos e sociais
de grupos dominantes. Por vezes, enfatiza-se até mesmo um
problema menos relevante, do ponto de vista social e sanitário
(por exemplo, com o uso dos meios de comunicação de massa) , para
que outros, mais importantes daquele ponto de vista, sejam
obscurecidos. Foi o caso, talvez, de se exagerar a questão da
violência urbana, no começo da década de 80, como problema
social, em face do desemprego e subemprego explosivos da época.
Pode-se também dar grande destaque à AIDS como problema de
saúde pública, toldando outros, como o da malária ou o da febre
amarela. Essas coisas ocorrem não só porque as propostas de solução
de problemas relevantes, sociais e de saúde pública, podem afetar o
funcionamento e a dinâmica “saudáveis” do sistema sócio-econômico
vigente (da ótica de alguns); elas se dão também pelo excessivo
tecnicismo dos profissionais da área e por influência dos meios de
58
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
comunicação. No caso destes, é evidente que a AIDS constitui muito
mais notícia jornalística do que a prosaica malária, por exemplo.
Assemelham-se os problemas sociais e os de saúde pública,
igualmente, nas tentativas de seu enfrentamento mediante legislação
repressiva. Esta é uma característica bem latina, sobretudo latinoamericana, indicando nossa herança cultural ibérica comum. Homens
de governo, políticos em geral, mas também sanitaristas,
freqüentemente entendem que um dos bons caminhos para fazer
face a determinados problemas é legislando a respeito. Isto, às vezes,
é realmente correto. Ocorre que, comumente, há pouca preocupação
com o fato de essa legislação ser ou não socialmente aceitável, anódina,
ou ainda com a existência ou não de condições concretas para fazêla cumprir. Os exemplos a respeito são abundantes.
Quando se trata de problemas relacionados a grupos ou pessoas
cujos comportamentos geram doença (hábitos alimentares, modos de
trabalhar, vícios etc.) ou são eles próprios tidos como problemas sociais
(discriminação racial, por exemplo), muitas vezes se tenta alterá-los
através de influências educacionais formais ou, o que é mais comum,
informais, usando os meios de comunicação de massa e outros
recursos. A mudança de opinião pressuposta, para que hábitos e
comportamentos se alterem, não é fácil de ser conseguida. Em áreas
em que predominam as emoções, argumentos racionais evidentemente
têm pouca efetividade. Os exemplos de pessoas e grupos admirados
é que costumam exercer influência positiva. Ocorre que pessoas e
grupos formadores de opinião variam amplamente, conforme a
subcultura, a classe social, o grupo etário etc. No passado, as classes
ditas altas, os sacerdotes, a aristocracia e outros grupos situados
no topo da hierarquia social exerciam bastante bem essa função.
Hoje, no entanto, os padrões reconhecidos de estratificação
social são muito fluidos para que isso se dê com a intensidade
anterior. Há líderes de opinião para cada momento e para cada meio
sócio-cultural. Os meios de comunicação atuais, especialmente a
televisão, criam ídolos e os consomem com grande rapidez. Crianças
e adolescentes, sobretudo, pelas próprias condições de sua situação
José Carlos de Medeiros Pereira
59
de transição, mudam muito de ídolos. De qualquer forma, professores,
médicos, sacerdotes e outros profissionais de igual categoria não são
necessariamente os melhores formadores de opinião em relação a
variados problemas, inclusive em relação àqueles que lhes dizem
respeito. Pelé, realmente, pode ser mais ouvido no tocante a consumo
de medicamentos (pelo menos em certos grupos sócio-culturais) do
que um médico.
Aqueles que pretendem conseguir mudanças de opinião da
população para conseguir solucionar problemas sociais ou de saúde
pública poderiam muito bem se alicerçar em C. Wright Mills(3).
Verificou ele que livros, revistas, artigos, conferências etc. antes
reforçam nossa opinião do que mudam, porque tendemos a ler e a
ouvir apenas aquilo que vem ao encontro dos nossos pontos de vista.
Geralmente lemos e escutamos o que é de nosso agrado. Mudanças
de opinião vinculam-se muito mais a contatos face a face com pessoas
que admiramos, gostamos e respeitamos. Será difícil, por exemplo,
que numa conferência na qual se esgrimam argumentos contra o
tabagismo, dada por pessoas desconhecidas, encontrem-se muitos
fumantes inveterados. Se queremos atingir um dado grupo (o dos
adolescentes, por exemplo) , precisamos saber quais são seus grupos
de referência positiva, quais seus ídolos, e transformá-los, se possível,
em formadores de opinião contra o hábito ou comportamento que
queremos modificar.
8. CONSEQÜÊNCIAS NEGATIVAS DA INTERVENÇÃO E AMPLITUDE DOS MODELOS EXPLICATIVOS
Apesar de tudo, os problemas que se apresentam ao
administrador de saúde, ao técnico em planejamento e a outros
profissionais dos setores que estamos tratando, em muitos casos,
podem ser de fato solucionados na esfera puramente técnica. Isto
ocorre, sobretudo, em se tratando de problemas de saúde pública. Se
todos o reconhecem como tal e o querem ver solucionado, se há
condições técnicas para isso, e a correção não se faz a contento, há
60
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
uma grande possibilidade de que a falha seja do órgão técnico
encarregado. Já nos referimos à freqüente incompetência burocrática.
O mais das vezes, porém, problemas que não são apenas técnicos
são enfrentados como se o fossem, e não por desejo e imposição de
grupos dominantes. Em um e outro caso, por vezes, os encarregados
de amainar, controlar ou mesmo solucionar inteiramente tais problemas,
baseando-se em diagnósticos imperfeitos, que demonstram
incompreensão de aspectos cruciais da economia e sociedade
modernas, tomam decisões que levam a soluções com conseqüências
negativas não previstas. Em outras palavras, quando não se considera
o comportamento dos agentes sociais envolvidos, sua volição, as muitas
combinações de fatores e condições de várias ordens (não só
econômicas), a intervenção deliberada, planejada, nos processos sóciosanitários deixa a desejar. Na verdade, o alcance da intervenção na
solução dos problemas depende muito de se operar com paradigmas
teóricos suficientemente relevantes na explicação dos mesmos.
Há, nesse ponto, uma certa dessemelhança ente sanitaristas e
sociológos e outros cientistas sociais. Os primeiros tendem mais
(embora haja exceções notáveis) ao exagero nas colocações ditas
práticas, ficando na periferia das questões ao só considerarem as
causas mais imediatas e visíveis. Disso podem resultar equívocos
graves. É como se um psicológo só tivese em conta, como causa
da neurose, a incapacidade do paciente em se ajustar ao seu meio
social, sem se perguntar se esse meio é, em si mesmo, patológico,
caso em que o não-ajustamento poderia ser mais saudável. As boas
soluções dos problemas sociais e dos de saúde pública vinculados a
eles vão depender, pois, do desenvolvimento de construções
teóricas, no campo sócio-econômico, principalmente, que dêem
conta dos fatores e condições que levam à sua produção e
impedem os grupos e agentes sociais envolvidos de resolvê-los. É
que, conseguida a explicação do fato, já se terá dado um grande passo
em direção à solução. Infelizmente, são freqüentes as situações em
que os responsáveis por ela têm uma visão limitada da questão causal
e dos interesses conexos, demonstrando um conhecimento leigo da
José Carlos de Medeiros Pereira
61
vida em sociedade e do funcionamento e dinâmica do sistema
econômico. Há, evidentemente, como assinalamos, o outro lado da
moeda. Sociólogos, principalmente, voltados ao estudo de problemas
sociais, freqüentemente se preocupam em demasia com os aspectos
teóricos das questões, negligenciando a prática concreta, a efetiva
solução dos mesmos. De qualquer forma, o exagero nas colocações
ditas práticas, inevitavelmente limitadas, tem uma explicação simples.
Sabidamente, qualquer intervenção planejada na realidade social
encontra sempre menos resistência quando se trata de interferir no
nível individual. Como já foi dito, realizar mudanças controladas no
plano institucional ou estrutural é bastante difícil.
Quaisquer que sejam as alternativas que se colocam para o
planejador, contudo, a solução de um problema que envolva o
comportamento de pessoas e grupos sociais só pode ser conseguida,
em grande parte, através da elevação do nível de consciência social
das questões. Para isso, por vezes, realmente será preciso lançar
mão de legislação restritiva para os recalcitrantes, mas sempre como
solução parcial, auxiliar. Inclusive porque seria de todo
inconveniente, depois de tantos anos de regime relativamente
totalitário, contribuir para aumentar o autoritarismo que, de modo
geral, sempre vigiu entre nós. As tentativas de tentar normatizar a
vida de membros de certos grupos e o funcionamento de algumas
instituições só se impõem, no caso de problemas de saúde pública,
quando muitos estão sendo prejudicados pelas ações egoístas de
uns poucos. Seja como for, a correção espontânea de hábitos e
comportamentos prejudiciais à saúde não é fácil porque, como já
foi dito, ela geralmente só é importante para as pessoas quando
é perdida. Repetindo, em condições normais, mesmo vícios nocivos
à saúde, a longo e médio prazo, podem até ser considerados, a
curto prazo, em determinadas circunstâncias, como contribuindo para
a saúde, nos termos da definição da OMS. Em suma, os planejadores
não podem ter uma visão simplista das motivações humanas, porque,
nesse caso, as tentativas de solução serão quase sempre condenadas
ao fracasso, ou serão simplesmente inócuas.
62
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
9. CONCLUSÕES
Neste artigo, tivemos o intuito de mostrar algumas semelhanças
no modo de definir, dignosticar e solucionar problemas sociais e de
saúde pública. Uma das primeiras semelhanças surgiria já na própria
definição: a que segmento social caberia considerar alguma coisa, no
plano social ou sanitário, como constituindo um problema? Entre
sociólogos, há divergências a respeito: uns crêem que a incumbência
cabe à população; outros, a algum de seus segmentos; outros, ainda,
somente aos técnicos e cientistas sociais; outros, por fim, à população
e aos técnicos simultâneamente Entre os sanitaristas, epidemiólogos
e outros profissionais da área da saúde, parece-nos que há uma crença
definida de que a incumbência lhes deve caber. De qualquer forma, a
definição está intimamente ligada ao entendimento do que seja normal
e patológico; em termos sociais e sanitários, este entendimento varia
amplamente, sobretudo quando se trata de ações, relações, processos
sociais etc. O consenso é maior no caso da saúde, se bem que, mesmo
aí, há diferenças, especialmente quando os supostos ou reais problemas
de saúde pública relacionam-se a problemas sociais.
Em grande parte, a dificuldade de se chegar a uma noção mais
ou menos aceita por todos quando ao que seja normal e patológico
liga-se ao fato de os vários grupos sócio-culturais terem objetivos
diversos e até mesmo contraditórios, não só em relação aos outros
grupos, como em relação aos seus próprios objetivos. Os homens
visam alcançar vários fins ao mesmo tempo, não necessariamente
articulados entre si. Conseqüentemente, atingir um muitas vezes
prejudica a consecução de outros. Além do mais, os valores pelos
quais se guiam podem ser igualmente contraditórios. Em se tratando
de saúde, por exemplo, nem sempre ela se coloca como prioritária;
no aqui e agora, outros objetivos que com ela conflitam podem ser
vistos como mais relevantes. Isto tudo é perfeitamente explicável.
Afinal, os valores que lhes dão origem e significado vinculam-se
bastante ao nível irracional da existência, ao emocional, principalmente,
daí os fins não serem escolhidos racionalmente. Desse modo, nem
José Carlos de Medeiros Pereira
63
sempre se conseguem mudanças tão-somente pela racionalidade dos
argumentos apresentados.
Na verdade, o caráter ideológico das questões avulta aqui,
quer se trate de problemas sociais, quer de saúde pública. No caso
destes, vários agravantes ainda chamam a atenção. Um deles é o
não estabelecimento de critérios claros e objetivos do que seja a
própria saúde pública. As definições não delimitam bem a extensão
do conceito, ou seja, não seguem, em geral, a regra de que uma
definição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido; são por
demais amplas. De outro lado, também não são estabelecidos critérios
relativamente precisos para considerar um problema de saúde como
sendo de saúde pública. Mais ainda, a indefinição a respeito e os
interesses em jogo (é claro) fazem com que muitos problemas sociais
sejam transformados em problemas de saúde, pública ou não.
Resultado: problemas que demandam soluções, sobretudo políticas,
são enfrentados apenas tecnicamente. Em parte, parcela ponderável
de sanitaristas e epidemiologistas não se dá conta disso, em virtude
de sua visão limitada da sociedade e da economia. Muitas vezes vêemnas como um todo homogêneo, não distinguindo claramente suas várias
divisões, pincipalmente aquelas que opõem as classes sociais umas
às outras. A despolitização dos problemas, freqüentemente, faz com
que alguns, mais ou menos irrelevantes, sejam vistos como prioritários,
em detrimento daqueles realmente importantes, pelo menos em termos
do conjunto da população.
Se os problemas de saúde pública, e mais ainda aqueles
estritamente sociais, ligam-se a condições e fatores sócioeconômicos e políticos, é evidente que se coloca a necessidade
de intervenção deliberada na realidade social. Espera-se, nesse
caso, que alguns segmentos sociais (inclusive os constituídos por
planejadores sociais e da saúde) realizem uma mudança controlada,
isto é, planejada. De fato, seria mais ou menos utópico esperar que a
correção desses problemas se desse espontaneamente. Aqui, nos dois
tipos de problemas, surgem novas dificuldades. Muitos desses
problemas, claramente, vinculam-se ao nível institucional ou mesmo
64
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
estrutural. Ocorre que a intervenção nesses planos, sobretudo no
segundo, é sempre muito controversa, provocando o máximo de
resistências. No plano individual já ocorre o contrário: freqüentemente
a interveção nele é vista positivamente. Mas, de modo geral, é inócua
quando os problemas são mais graves. Apesar disso, parte ponderável
dos planejadores em ambas as áreas, mas principalmente na sanitária,
tende a enfrentá-los mediante intervenção nesse plano pessoal (em
parte por formação precária, mas também por razões ideológicas, ou
simplesmente porque são funcionários, servindo a governos
marcadamente interessados em despolitizar os problemas). Ou seja,
agem como se não houvesse contradições maiores entre os vários
segmentos sociais, decorrentes inclusive de sérios conflitos de interesse.
É claro que, por vezes, técnicos e cientistas sociais e da área de
saúde têm uma relação de negatividade com a ordem social vigente.
Nesse caso, não se preocupam tanto com a funcionalidade sincrônica
do sistema; ideologicamente, visam antes sua superação. Contudo,
radicais e reformistas, por formação ou por condições objetivas,
costumam ficar ao nível do discurso. A revolução se torna uma
virtualidade, algo a ser examinado no âmbito da academia.
Seja como for, diagnósticos imprecisos ou mesmo errôneos,
pelo não entendimento dos fatores causais mediatos e mais
abrangentes, podem levar a intervenções infelizes. Por vezes, elas
provocam conseqüências negativas não previstas até mais graves
do que o problema que se pretendeu enfrentar. Isto mostra a
necessidade de os planejadores se guiarem por modelos
interpretativos mais sofisticados, teórica e politicamente corretos.
De fato, em qualquer sociedade mais complexa, muitos problemas
sociais ou de saúde pública só podem ser adequadamente solucionados
se a intervenção se faz nos níveis fundamentais, e não nos mais ou
menos marginais à questão. Para isso, contudo, um projeto de
transformação precisa ser incorporado por um grupo politicamente
capaz de implementá-lo.
José Carlos de Medeiros Pereira
65
RESUMO
Neste artigo são discutidas algumas questões mais ou menos
comuns a ambos os tipos de problemas e certas relações que entre
eles existem. Uma questão comum seria a da definição de problema;
a quem compete ela? Mostra-se como variam as noções de normal
e de patológico e como esta variação, em grande parte, está associada
às divisões, sobretudo em classes sociais, existentes nas sociedades
complexas. O autor enfatiza o fato de os vários grupos sociais terem
objetivos e valores não só diversos como contraditórios, o que dificulta
o estabelecimento do consenso, principalmente em relação às soluções.
Ele explica algumas influências ideológicas e insiste na necessidade
de os diagnósticos e soluções propostos se alicerçarem em modelos
interpretativos teoricamente mais sofisticados. Sem que isso se dê, é
possível que as intervenções planejadas para corrigir o problema
conduzam, elas próprias, a conseqüências negativas não previstas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1 - Forattini, O. P., 1976. Epidemiologia geral, Edgard Bluchher/EDUSP,
p. 60, São Paulo;
2 - Moraes, N., Oito doenças transmissíveis de importância no Brasil,
Diálogo Médico, 2(2) s. d.;
3 - Mills, C. W., 1965. Os meios de comunicação de massa e a opinião pública.
In Poder e Política. Zahar, Rio de Janeiro.
66
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
3. SOBRE CONTRACEPÇÃO
José Carlos de Medeiros Pereira
69
3.1. O DIREITO DE NÃO TER FILHOS*
O planejamento familiar está sendo discutido na imprensa por
autores das mais variadas tendências ideológicas e formações
intelectuais. O ponto de vista adotado varia amplamente. Ora se
procura mostrar o dedo alienígena, ora os interesses de pessoas,
grupos e instituições. O enfoque por vezes é econômico-social, mas
predomina, creio, o político-ideológico.
O que sempre me chama a atenção nesse debate é que,
raramente, nas colocações feitas por autores de diferentes correntes
ideológicas e científicas, transparece a preocupação com os possíveis
interesses e direitos das pessoas que mais sofrem o problema: as
mulheres em idade fértil, sobretudo as pertencentes aos grupos social,
econômica e culturalmente marginalizados. Nesse ponto se dão as
mãos alguns autores que se filiam ao pensamento de esquerda, os
conservadores bispos e papas da Igreja Católica (pelo menos no
tocante a este ponto) e os pensadores que poderiam ser considerados
como situados à direita do espectro político. Podem discordar se deve
ou não o Estado ou qualquer instituição social interferirem, no sentido
de pôr à disposição da população conhecimentos, instrumentos e
medicamentos que permitam a realização da anticoncepção. Mas, de
modo geral, estão aparentemente concordes em que a população não
precisa ser ouvida, certamente porque a encaram como composta de
pessoas destituídas de direitos específicos e de capacidade de decidir
por si mesmas.
O atual Papa (João Paulo II), por exemplo, parece ter uma
concepção de que aos homens não é permitido pensar com suas
* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(12), 1984, pp. 2171-2.
70
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
próprias cabeças. O sentir e agir dos mesmos, no que diz respeito a
um assunto tão íntimo, como o das relações sexuais, inclusive entre
marido e mulher, são invadidos com uma sem-cerimônia que, a mim
pelo menos, choca. Mas se trata de posição que não tem nenhuma
relação com o mundo moderno e que, de fato, não afeta senão a uma
minoria muito pequena de crentes que levam demasiado a sério
posições tão dogmáticas. Pelo que sei, as mulheres católicas
engravidam e abortam por razões que nada têm de religiosas e que
estão muito mais relacionadas à pobreza e à ignorância.
Quanto aos autores mais conservadores, sua concepção do
problema do planejamento familiar me desgosta pelo fato de
tenderem a estabelecer uma relação demasiado direta, mas
inversa,entre crescimento econômico e desenvolvimento social e
diminuição de taxa de natalidade. Lendo alguns de seus artigos temos
a impressão de que o determinante na promoção da riqueza social é
a diminuição do número de filhos. Ocorrendo isso, quase
automaticamente (assim parece em alguns textos) diminuiria a
população de marginais, de pobres, de deserdados pela estrutura sócioeconômica vigente. É claro que, no atual estágio de avanço do
capitalismo, com o uso de tecnologia poupadora de mão-de-obra, um
excesso de população adulta desqualificada e com restrito poder de
consumo, transformou-se em disfuncional para o sistema. Não lhe
interessa a existência da mesma porque ela pouco ou nada contribui
para o processo de valorização do capital, e também por exigir
freqüentes vezes, recursos materiais e humanos para ser controlada
socialmente (por ser foco de tensão social). A proposta desses autores,
ainda que outros sejam contra ela simplesmente por ser conservadora,
no fundo, por vias transversas, atende às solicitações das milhões de
mulheres que desejariam ter condições de fugir à maternidade
indesejada e que, em elevadíssima proporção, as leva ao aborto
provocado.
No caso dos que se manifestam sobre o planejamento familiar,
e que são, de um modo ou de outro, vinculados ao pensamento de
esquerda, o problema é mais bem percebido. Ou seja, entende-se
José Carlos de Medeiros Pereira
71
que, historicamente, a queda nas taxas de natalidade ocorre à medida
que se produz um processo de desenvolvimento econômico e social.
Eles têm claro que a variável determinante é o desenvolvimento, sendo
o crescimento demográfico antes efeito do que causa. No entanto,
padecem, freqüentes vezes, de uma visão mecanicista da questão,
pois não percebem que estamos diante de uma totalidade em que
crescimento demográfico e desenvolvimento sócio-econômico se
condicionam e estimulam reciprocamente. Certamente não é pelo
simples fato de se controlar o número de nascimentos que o país
aumentará sua riqueza social. Mas é também verdadeiro que, diante
de uma política econômica corretamente conduzida em direção àquele
objetivo, a restrição ao crescimento demográfico pode produzir efeitos
positivos. Sobretudo quando o tipo de tecnologia utilizado tende a
poupar mão-de-obra.
A concordância com as colocações normalmente feitas por
autores à esquerda, não significa, contudo, que devamos endossar
uma freqüente conseqüência por vezes tirada dessas teses por alguns
deles. No caso, a de que não se deve pôr à disposição dos segmentos
sociais inferiorizados de vários modos (sobretudo econômica e
culturalmente) conhecimentos e condições materiais para a prática
da anticoncepção. É como se puníssemos duplamente esses
segmentos: por não terem esses conhecimentos e condições,
negamos a eles o direito que reconhecemos às camadas sociais
privilegiadas. Pior ainda é quando a luta contra esse direito se
estriba numa equivocada teoria: a de que o aumento da
população lúmpen levaria a um grau tal de tensão social que
provocaria uma radical alteração da ordem social em direção
ao socialismo. Não vou discorrer a respeito do assunto, mas
apenas lembro que uma revolução social se faz através da ação
de classes e frações de classe com consciência de objetivos políticos
definidos. O lúmpen, via de regra, sempre serviu aos interesses das
classes conservadoras.
É notório que há grupos vinculados ao pensamento de esquerda
que têm uma posição mais consistente. Que defendem o direito da
72
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
mulher ao uso de seu corpo, inclusive sexualmente, sem a
conseqüência de uma maternidade indesejada. E que, ao mesmo tempo,
lutam para que a redução das taxas de natalidade se faça pelo caminho
seguido pelas nações hoje tidas como social, econômica e culturalmente
avançadas, isto é, pelo do desenvolvimento sócio-econômico. Qualquer,
porém, que seja a motivação ideológica, julgo que o direito de mulheres
de qualquer classe social a recusar uma maternidade indesejada deve
ser um ponto a ser aceito sem qualquer contestação.
José Carlos de Medeiros Pereira
73
3.2. ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO*
I .INTRODUÇÃO.
De vez em quando recrudescem entre nós os debates a
respeito da participação governamental no planejamento familiar. De
uns anos para cá, o Executivo federal, depois de décadas de resistência
a qualquer interferência nessa área da regulação da fertilidade, parece
ter aceito a necessidade de se fazer algo no sentido de favorecer a
redução das taxas de crescimento populacional. Até recentemente,
as medidas tomadas foram sempre no sentido inverso, ou seja, com o
fito de promover esse crescimento. Alguns poderiam dizer que tal
guinada decorre de pressões do FMI. Entretanto, já em 1974 o governo
brasileiro aceitara, numa reunião promovida pela ONU, em Bucareste,
que cabia ao Estado proporcionar informação e serviços que
permitissem aos casais o planejamento de sua prole. A política
natalista que até então vigorava, pelo menos ao nível do discurso,
vinha ao encontro das posições defendidas pela Igreja Católica
e por muitos dos altos membros das Forças Armadas, ainda que
por razões diferentes. Para os segundos, especificamente, os
grandes espaços geográficos vazios do País só poderiam ser ocupados
se a população crescesse em ritmo acelerado.
A presença do Gal. Geisel na Presidência da República,
luterano relativamente infenso às pressões da Igreja Católica, e a
crise econômica que acabou se abatendo sobre o Brasil, dando um
* Artigo Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vol 37, nº 11, novembro de
1985, pp. 1772-1782
74
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
fim à euforia dos tempos de “milagre”, fizeram com que as posições
governamentais fossem mudando. Até mesmo na cúpula da Forças
Aramadas elas tenderam a se alterar. Tanto assim que, mais
recentemente, o Brig. Waldir de Vasconcelos, chefe do Estado Maior
das mesmas, tem defendido, freqüentemente, a necessidade premente
de o Brasil passar a desenvolver uma política antinatalista. Mas já em
1977 o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social aprovara
o planejamento familiar como parte do Programa Nacional de Proteção
Materno-Infantil. Em 1981, por outro lado, surgiu o Grupo de
Parlamentares para Estudos de População e Desenvolvimento com o
objetivo de atuar no Congresso e pressionar o governo para adotar
uma política demográfica do tipo mencionado. Em 1983, no âmbito do
Ministério da Saúde, formula-se o Programa de Assistência Integral
à Saúde da Mulher, que, entre outros fins, propõe a implementação
de métodos e técnicas de anticoncepção.
Os debates travados a respeito do assunto, de modo geral, têm
caráter profundamente ideológico, como não poderia deixar de ser. É
que as conotações políticas da questão são inegáveis. Cremos que
estas são afirmações de senso comum, apesar de todos os esforços
das partes envolvidas de racionalizarem suas posições com argumentos
técnicos a propósito de virem ao encontro de valores sancionados
positivamente em nossa sociedade (proteção à saúde, promoção do
desenvolvimento econômico e social, melhoria de qualidade de vida
de crianças e mulheres etc.). Não há nada de extraordinário nisso, já
que decisões realmente significativas para vida social se vinculam
sempre a uma determinada maneira de encarar o mundo. Em face
disso o que pretendemos fazer será uma síntese crítica dos argumentos
que têm sido aduzidos pró e contra o planejamento familiar. Nessa
exposição não teremos, de modo algum, a pretensão de sermos
neutros. Inclusive porque somos daqueles que crêem, com Weber,
que não há qualquer parentesco interno entre objetividade e ausência
de tomada de posição.
José Carlos de Medeiros Pereira
75
II. ARGUMENTOS ANTINATALISTAS DE CARÁTER
ECONÔMICO.
Ainda que normalmente os contendores concordem, um pouco
hipocritamente, cremos, que no nível estritamente individual, a
contracepção seja um direito humano básico, a nível global a discussão
assume outras conotações. Assim, no primeiro nível, eles podem
entender que, de fato, a mulher tem todo o direito de decidir, sem
interferência de qualquer autoridade, seja religiosa, política, científica
ou de qualquer natureza, se deseja ou não conceber. Sob outra ótica,
entretanto, argumentos de índole social, econômica, política, militar,
sanitária etc. são esgrimidos pelos que são pró ou contra uma dada
política demográfica. Na verdade, a discussão a respeito da
contracepção (e sobre a maneira de ela ser realizada), apresenta
facetas múltiplas já que depende da ótica através da qual o problema
é encarado. Tal ótica é tão variada que enquanto uns consideram
elogiosa, aceitável e democrática uma dada medida, outros a ela se
oporão encarando-a negativamente. Comecemos por argumentos de
natureza econômica favoráveis a uma política antinatalista.
No Brasil, poderíamos tomar Mário Henrique Simonsen, exministro tanto da Fazenda como do Planejamento e reputado
professor de Economia, como apresentador de pontos de vista
típicos daqueles que apoiam tal política por razões de natureza
econômica. Diga-se de passagem que ele era ardoroso propugnador
do desenvolvimento de atividades de regulação da fertilidade mesmo
quando o governo brasileiro a elas se mostrava avesso. Num artigo
intitulado, significativamente, “Aritmética dos coelhos” 1 , ele
apresenta uma série de argumentos dessa ordem. Eles, geralmente,
assumem que os países mais ou menos subdesenvolvidos se
caracterizam por seu explosivo crescimento demográfico. Em face
disso, haveria uma excessiva pressão sobre o emprego, sobretudo
quando tais países, em seu esforço de industrialização, se utilizaram
de técnicas de capital intensivo, poupadoras de mão-de-obra. Não
1
Cf. Cap. IV de Brasil 2001, APEC, Rio, 1969.
76
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
teria sentido, a esta altura dos acontecimentos, discutir se o modelo
econômico-industrial adotado poderia ser outro; que não deveríamos
ter copiado técnicas de países industriais avançados com
características demográficas muito distintas. O que importaria é que,
hoje, teríamos um grave problema de ajustamento entre a estrutura
econômica e a demográfica. E enfrentá-lo dependerá da perspectiva
ideológica de cada um.
Autores como Simonsen supõem sempre, evidentemente, que
há uma inegável relação causal negativa entre crescimento econômico
e desenvolvimento social de um lado, e grande expansão da população
de outro. Tal expansão impediria ou, pelo menos, tornaria mais difícil
a realização daqueles outros processos. Deixando de lado a relação
positiva inversa, traduzida no fato de que, em contrapartida ao fato
apontado, teríamos a redução dos índices de natalidade à medida que
houvesse um processo de desenvolvimento econômico e social, nosso
autor arrola 4 principais argumentos para mostrar apenas o quanto é
contraproducente um elevado crescimento demográfico sobre o
processo mencionado atrás. O primeiro desses argumentos seria o
que ele chamou de “efeito aritmético”. Sustentando aqui, como
Malthus, de que PIB e população são variáveis independentes, conclui
que quanto maior é a população de um país, maior o divisor pelo qual
terá que ser dividido esse PIB. Não crescendo o dividendo (o PIB)
na mesma proporção do aumento da população, a renda “per capita”
(o quociente) poderia até retroceder. É claro que não se diz nada a
respeito da estrutura da distribuição de renda, a qual pode ser tão
desequilibrada que, mesmo quando há recessão econômica, uns
continuam se apropriando de parcelas crescentes da renda nacional.
Em outras palavras, a discussão é abstrata, puramente matemática,
contábil por assim dizer. Um segundo ponto discutido diz respeito ao
“efeito infra-estrutura social”. Por tal efeito ele se refere à
possibilidade de uma grande população fazer com que haja desvios
de muitos recursos para investimentos sociais, como habitação,
saúde, educação, infra-estrutura urbana etc. Desconsiderando o fato
de que são os homens que produzem e não os equipamentos, ele se
José Carlos de Medeiros Pereira
77
limita a estabelecer que como esses investimentos geram pouco
produto, piora a relação entre capital investido e produto obtido. Um
terceiro aspecto negativo de um grande crescimento demográfico
seria o “efeito pirâmide etária”, que se poderia expor assim: quando é
muito elevada à proporção de jovens e crianças, aumenta o número
de pessoas inativas que deverão ser sustentadas pela população
economicamente ativa. Em outras palavras, esses jovens e crianças
desviam uma quantidade muito grande de recursos que poderiam ser
aplicados na melhoria do nível de vida de uma população menor. Por
fim, teríamos o “efeito emprego”: havendo grande expansão
demográfica, precisa-se de maior número de empregos e, para gerálos, pode ser necessária a utilização de técnicas de baixa produtividade
“per capita”, o que impediria o país de sair do subdesenvolvimento.
Como sempre, não se diz que a decisão quanto a adotar esta ou aquela
tecnologia dificilmente é dos governos e sim dos empresários. Ora,
estes usam técnicas de capital intensivo inclusive quando há excesso
de mão-de-obra, por outras razões que nada tem a ver com emprego.
Como se vê, trata-se de um conjunto de argumentos bem típicos
do sr. Simonsen. Eles nos dizem, em síntese, que o fator mais
importante da produção é o equipamento e não os homens. Diminuindose a quantidade destes, sobretudo de pobres, teríamos um mundo
melhor porque sobraria mais ainda para os que possuem o fator de
produção escasso, ou seja, o capital. Seria graças a este,
fundamentalmente, que ocorreria o processo de crescimento
econômico. Segundo esta visão da questão, por outro lado, estão
inteiramente afastadas as possibilidades de se alterar o sistema sócioeconômico e político vigente. Tem-se a impressão de que as leis
que regeriam esse sistema seriam permanentes e não, como de fato
são, construções humanas, histórico-sociais e portanto passíveis de
modificação se surgirem outras relações de dominaçãosubordinação.
Mas Simonsen também produziu, em nosso entender,
argumentos de melhor quilate científico, técnico e político favoráveis
à sua posição. Por exemplo, ele descrê, com razão, dos efeitos
78
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
benéficos de uma grande população sobre a expansão do mercado.
Ainda que a posição de seus oponentes sobre o assunto possa ser
parcialmente correta em algumas situações, concordamos com ele
que uma grande população pobre não necessariamente leva o mercado
a expandir-se. A respeito disso, nosso autor chama a atenção para o
fato de que se a grandeza da população fosse o principal estímulo ao
crescimento econômico e à expansão do mercado, então China e
Índia e não Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão seriam os
principais países do mundo, economicamente falando. Ele, igualmente,
aponta para algumas conseqüências sociais deletérias quando há um
rápido crescimento da população, especialmente urbana. Nesse caso,
muito freqüentemente, as cidades tendem simplesmente a inchar, num
processo sociopático, em que surgem problemas sociais graves, como
analfabetismo, alcoolismo, prostituição, aumento de criminalidade,
subalimentação, más condições de moradia e de saneamento,
marginalidade cultural (dada a dificuldade de as levas de migrantes
rurais ajustarem-se com rapidez e adequadamente ao sistema urbano
e muitas vezes também industrial) etc. Um outro argumento de peso
levantado por Simonsen é que boa parte da população, especialmente
feminina, realmente não deseja ter mais filhos. Só os tem por não
dispor ou do conhecimento de medidas contraceptivas ou de condições
econômicas para delas fazer uso. O resultado pode ser um
extraordinário aumento do número de abortos provocados. Neste
último ponto somos levados a concordar com o ex-ministro uma vez
que, segundo alguns, está por centenas de milhares o número de
abortos provocados anualmente no Brasil.
III – ARGUMENTOS NATALISTAS TAMBÉM DE
NATUREZA ECONÔMICA.
Contra os argumentos, sobretudo de ordem econômica,
levantados por Simonsen e outros neomalthusianos, dos quais tomamos
o autor citado como modelo, outros se colocam seja contra o
planejamento familiar, seja contra o controle populacional, esgrimindo,
José Carlos de Medeiros Pereira
79
da mesma forma, considerações de ordem econômica. Esses autores
entendem que a visão do problema se altera radicalmente se levamos
em conta a possibilidade de alteração da estrutura sócio-econômica
existente. Assim, em relação aos efeitos do crescimento da população
sobre a renda “per capita”, afirmam que, dependendo das condições
existentes, uma população em rápido crescimento pode representar
um fator de primeira plana no crescimento econômico. Crêem, por
exemplo, que um país como o Brasil poderia usar com mais intensidade
o fator trabalho de que temos em abundância. É claro que eles estão
supondo que as instituições estatais têm razoáveis condições de
interferir no uso de uma tecnologia intermediária, que usasse mais
mão-de-obra. Argumentam que há uma indiscriminada e
desnecessária adoção de tecnologia poupadora de mão-de-obra não
só por empresas multinacionais mas também pelas nacionais e estatais,
inclusive estimuladas por empréstimos favorecidos obtidos junto ao
sistema financeiro estatal. A conseqüência, segundo a visão do
problema por parte desses autores, é a transformação de uma larga
faixa de nossa população em marginal (econômica, social e
culturalmente) sobretudo por não encontrar no sistema econômico
um lugar adequado. Transplantando modelos econômicos
inconvenientes às nossas necessidades e condições é que
transformamos homens em fator de produção relativamente supérfluo,
e o capital em fator básico. Exemplificam os que defendem essa
posição, com o caso dos próprios Estados Unidos, cujo crescimento
econômico e desenvolvimento social está bastante vinculado a um
grande crescimento populacional, graças, inclusive, ao recebimento
dos excedentes populacionais europeus. (E também, diga-se de
passagem, a uma política liberal de farta distribuição de terras, sem
entraves legais maiores, ao contrário do que ocorreu sempre no Brasil
em que elas sempre foram monopolizadas por uma pequena fração
da população bem situada política e economicamente. Tal política,
evidentemente, transformava rapidamente os agricultores em
consumidores de bens industrializados, estimulando a economia
industrial).
80
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
Aqui seria preciso fazer um pequeno reparo na argumentação.
É que o crescimento econômico dos Estados Unidos deveu-se, sem
dúvida, entre outros fatores, ao crescimento da população. Mas é
conveniente ressaltar que o ônus inicial da formação dessa mão-deobra, que, em parte, já chegava adulta, coube aos países de origem.
Seria o caso, no Brasil, do Estado de São Paulo, que foi a região que
mais recebeu imigrantes europeus e japoneses (e também mineiros e
nordestinos), já adultos, ou seja, em idade produtiva. Isto significa que
o custo de sua formação recaiu sobre outros países e regiões. De
qualquer modo, citam-se, como exemplos favoráveis ao argumento
de que a população, pelo menos numa fase inicial do processo de
crescimento econômico, é um fator estimulante deste, os casos do
Brasil e do México. Realmente, eles foram os países latino-americanos
que mais cresceram economicamente no período posterior à Segunda
Grande Guerra. Concomitantemente, foram os que mais cresceram
populacionalmente. É claro que este é um tipo de associação perigosa,
quando se transforma uma das variáveis em fator causal da outra.
Mas talvez seja possível dizer-se que, de fato, em certos momentos
históricos, a população em expansão representou um papel que se lhe
está atribuindo aqui. Trabalhando nessa direção, alguns julgam,
comparando França e Alemanha, que o crescimento econômico da
primeira, em relação à segunda, foi obstado por uma precoce e
exagerada política de planejamento familiar. O exemplo dos Estados
Unidos e de países da Europa Ocidental, entretanto, não é conclusivo
quanto à população crescente ser, sempre, independentemente das
condições históricas e sociais, um fator positivo conducente ao
crescimento econômico. Em determinados momentos de sua história,
reduziu-se o crescimento demográfico desses países quando sua
população mais urbanizada e mais culta, lançou mão do planejamento
familiar. Ao mesmo tempo havia a substituição de homens por
máquinas. Ou seja, a substituição de uma tecnologia por outra não foi
tão brusca, ainda que tenha produzido excedentes populacionais
freqüentemente absorvidos pelas Américas. No Brasil e em países
em condições semelhantes, a adoção de tecnologias de capital
José Carlos de Medeiros Pereira
81
intensivo ocorreu em grandes proporções antes que a taxa de
crescimento demográfico se reduzisse suficientemente para não haver
repercussões sociais negativas graves. Em outras palavras, a variável
população, se vista sob o ângulo puramente quantitativo, tem maior
ou menor significado na promoção do desenvolvimento econômico
na dependência de outras condições que interagem com ela. Seria
um erro analisá-la isoladamente.
Os que criticam as tentativas de promoção de medidas que
permitam algum tipo de planejamento familiar também afirmam que
os países superpopulosos não necessariamente são protótipo de
todos os subdesenvolvidos. De fato, os defensores de planejamento
ou controle familiar geralmente lançam mão de exemplos algo
extremos, com o que retrucam os natalistas afirmando que nem todos
estão no caso da Índia. Mesmo quando a terra é realmente escassa
e falta capital, se este vier de países economicamente avançados e
utilizando-se tecnologia capaz de proporcionar uma razoável taxa
de emprego, uma população em expansão, no entender desses críticos,
poder-se-ia constituir num fator potencialmente importante para a
realização do crescimento econômico.
Cremos nós que o argumento é de quilate discutível, pois a
situação de subdesenvolvimento, em grande parte, alicerça-se nesse
domínio do capital oriundo dos países centrais da economia
capitalista. Continuamente estamos assistindo à instalação, em larga
escala, de filiais de empresas desses países nos subdesenvolvidos
populosos sem que isto, nem sempre, produza os resultados positivos
esperados no tocante ao processo de crescimento econômico. No
mais das vezes o que se tem criado é uma relação de dependência
econômica e mesmo política dos subdesenvolvidos para com os
capitalizados. E como, normalmente, a longo prazo, há uma
transferência de renda do país que recebe o capital, para o de origem
do mesmo, essa aplicação de capital pode,às vezes, se constituir num
verdadeiro presente de grego. É bem verdade que, possivelmente,
quem pensa nesse tipo de solução, encara-a como provisória, supondo
que, aos poucos, diminua sensívelmente o crescimento populacional,
82
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
já que esta é uma tendência universal em todas as sociedades urbanoindustriais.
Os neomalthusianos, ainda, são criticados pelos natalistas pelo
fato de ficarem muito presos aos aspectos matemáticos do problema
descuidando exageradamente dos sociais e políticos. Afinal, a questão
não se resume a uma divisão do produto interno bruto pela população
para saber a quanto montaria a renda “per capita”. De fato,
freqüentemente, eles tomam os recursos como fixos, como o fez
Malthus. Ou seja, tendem a partir da suposição de que os recursos
naturais e, de certa forma, o capital, são relativamente fixos. Nestes
termos, é claro, a variação da população é que sobretudo fixaria as
condições para que um país fosse rico ou pobre. Conseqüentemente
aquela teria que ser manipulada. Isto, de certa forma, significa
desconsiderar o papel exponencial do trabalho na criação da riqueza
material. Não se deve exagerar no entanto, em tal tipo de crítica,
pois seríamos injustos para com os neomalthusianos se ignorássemos
que eles se preocupam com a relação entre a população
economicamente ativa e a inativa e com a qualidade dessa população
(em termos de qualificação, escolaridade, hábitos de poupança,
valorização do trabalho etc.).
IV – CRESCIMENTO POPULACIONAL, DESEMPREGO
E TECNOLOGIA.
Examinando-se com atenção os argumentos de ordem
econômica antinatalistas e considerando, por outro lado, a
especificidade do problema conforme o país e o momento histórico,
percebemos que as relações entre tamanho da população, emprego
e crescimento econômico não são invariáveis. Elas dependem da
existência de outras condições econômicas, sociais e políticas, como
existência ou não de terras pouco cultivadas, das possibilidades de
acesso a elas, de capital, do estado das relações entre as várias
classes sociais, da cultura, do grau de educação formal da população,
do regime político e assim por diante.
José Carlos de Medeiros Pereira
83
Em primeiro lugar, de uma perspectiva histórica, um economista
como Albert HIRSCHMANN, por exemplo, entende que “as pressões
demográficas têm sido parte integrante do processo de crescimento
de todos os países que hoje são considerados economicamente
avançados”. No entanto, para que esse processo ocorra, é preciso
que sejam também utilizadas as técnicas cada vez mais produtivas,
sem o que a renda e o produto nacionais teriam expansão apenas
vegetativa. A utilização dessa tecnologia exige, entretanto, um montante
de capital crescente por emprego criado. No caso dos países
subdesenvolvidos, como já se disse, o desenvolvimento tecnológico
não guardou uma estreita relação com a disponibilidade de mão-deobra, por razões que não nos cabe aqui analisar. Como resultado, em
muitos deles, apesar, às vezes, de uma enorme expansão da produção,
a absorção de mão-de-obra tem sido inferior ao ritmo de crescimento
da população em geral e da urbana em particular. Ainda que grande
número de autores e mesmo organismos internacionais profliguem a
adoção de tal tecnologia alegando que ela implica no uso
desproporcional de um fator de produção escasso nesses países (o
capital) em face da grande disponibilidade dos fatores trabalho e
recursos naturais, a solução tanto pelo lado da tecnologia como pelo
da população não é fácil. Pareceria, à primeira vista, que o dilema se
resolveria pelo lado da tecnologia, adotando-se, por exemplo, uma
tecnologia intermediária, já que a manutenção de uma atrasada
simplesmente condenaria o país à estagnação. É fato que em alguns
setores (pois não é possível generalizar), ela poderia ser adotada, de
modo que fosse mínima a redução de emprego e máximo o rendimento
do capital.
Freqüentemente, contudo, e repetindo o argumento, os que
defendem esse tipo de solução não consideram um aspecto básico:
que nos países que deveriam adotá-la predomina o sistema capitalista
de produção. Isto significa, entre outras coisas, que a escolha da
tecnologia não é exatamente um assunto de alçada do governo,
embora nele possa interferir. De fato, no geral, são os próprios
empresários que decidirão, e o farão tendo em conta condições muito
84
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
concretas. O economista Jan TINBERGEN, há muitos anos, notava
a respeito que, mesmo que um país em desenvolvimento possua
excesso de mão-de-obra, a tecnologia moderna pode vir a ser a
preferida por uma série de razões, inclusive coisa como a existência
ou não de mão-de-obra qualificada, sua rotatividade, o tipo de
legislação trabalhista existente, a freqüência de greves, o tamanho do
mercado, as previsões quanto a mudanças na demanda etc. Como a
opção por uma dada tecnologia, portanto, não se faz de uma forma
tão fácil como sugerem muitos autores, outros, colocando-se numa
perspectiva diferente, julgam que solução melhor seria interferir de
algum modo no ritmo de crescimento populacional. Entendem que se
conseguisse reduzi-lo mais rapidamente, antes que os processos de
urbanização, de secularização e de racionalização do comportamento
o fizessem, o problema sócio-econômico e político representado pela
dificuldade de conciliar a criação de empregos (por parte do sistema
econômico) com o número dos que os procuram seria, pelo menos
parcialmente, enfrentado.
A respeito do assunto focalizado, o que podemos dizer com
certeza é que não há soluções iguais para todos os países. O
problema varia de um para outro e mesmo de uma região para
outra dentro do mesmo país. Não podemos comparar a Índia com
o Brasil nem o Nordeste com São Paulo. Não se pode generalizar
indevidamente, desconsiderando-se as especificidades de cada
situação: a estrutura social, as condições políticas, o sistema
econômico, os recursos naturais etc. Exemplificando: os problemas
são diferentes, do ponto de vista de criação de empregos em face do
uso desta ou daquela tecnologia, até mesmo se se trata de população
concentrada na região urbana ou de população rural. É que, no caso
desta última, podem ser exigidos relativamente poucos investimentos
para que ela se torne mais produtiva, dependendo do sistema
econômico de que se trata. Na verdade, a preocupação maior com a
criação de empregos para a população citadina está relacionada,
em boa parte, segundo entendemos, com o fato de que os problemas
econômicos, sociais e políticos que surgem, quando aqueles faltam,
José Carlos de Medeiros Pereira
85
afetam mais diretamente os segmentos afluentes da sociedade os
quais, em toda parte, tendem a se concentrar nas zonas urbanas. No
entanto, a urbanização sociopática pode ser, simplesmente, uma
decorrência da não solução da mesma questão do emprego no meio
rural, em momentos anteriores. No mais das vezes, a migração ruralurbana acelerada vincula-se ao não encontro, pela população rural,
de condições de existência minimamente satisfatórias em seu meio.
Ou seja, ela é antes expulsa por esse meio do que propriamente atraída
pela cidade, ainda que tal atração seja, igualmente, uma motivação
poderosa para que ela se ponha em movimento. Sendo assim, não
resta dúvida, segundo julgamos, que, realmente, o uso de uma
tecnologia menos poupadora de mão-de-obra no setor primário da
economia poderia ser em muitos países, mesmo capitalistas, uma
solução viável para o problema de um temporário excesso de população
em face das possibilidades de absorção de mão-de-obra oferecidas
pelo sistema econômico. Não devemos, contudo, acreditar em soluções
fáceis. Se uma dada tecnologia é adotada, é porque ela se mostrou
mais conveniente para os proprietários dos meios de produção, gerando
mais lucros. Seria infantil querer que tais proprietários utilizassem
uma tecnologia de trabalho intensivo, na agropecuária, se as condições
de mercado indicam o contrário. Por exemplo, um trator, ainda que
caro, e de manutenção dispendiosa, pode substituir um tal número de
trabalhadores, que seu uso se impõe.
É preciso que se diga, porém, a respeito de muitas das
investigações e ensaios produzidos no tocante às questões
abordadas, que esses trabalhos, inúmeras vezes, padecem do defeito
de tentar reescrever a história e a política econômica do país. Nada
adianta, é evidente, mostrar como teria sido diferente o rumo dos
acontecimentos se outras medidas tivessem sido tomadas no
passado, se ficarmos apenas nesse nível de crítica. O que importa é
buscar as raízes históricas dos problemas atuais para delas tirar
algumas ilações válidas para o presente. Cremos, por exemplo, que
se pode mostrar quão negativa é para as próprias classes dominantes
a tomada de decisões, no âmbito da política econômica, visando quase
86
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
que exclusivamente o curto prazo; é que elas podem implicar na criação
de conseqüências futuras danosas para essas mesmas classes. Assim
seria o caso de uma política econômica que não tivesse atentado para
a geração do desemprego, ao estimular o uso de uma dada tecnologia.
É fato que os empresários se voltam fundamentalmente para
seus interesses imediatos, centrados na possibilidade de obtenção do
maior lucro possível no menor espaço de tempo. Como classe,
entretanto, seus objetivos são mais amplos. Ora, uma das funções da
tecnocracia estatal é exatamente fazer-se consciência crítica do
sistema, constituindo-se em guardiã desses objetivos, antecipando
suas conseqüências futuras das ações presentes e atuando de modo
a que os mesmos objetivos continuem a ser atingidos. Nesse sentido,
pode-se perfeitamente discutir uma reorientação da política
econômica de tal ordem que estimule a criação de empregos. Isso
de um lado; de outro se pode discutir, igualmente, as conseqüências
econômicas, sociais e políticas de se adotar uma política de
favorecimento da contracepção. Em certas circunstâncias, algo poderia
ser adotado de ambas soluções parciais (planejamento familiar e uso
de uma tecnologia intermediária). Só as condições concretas, em cada
momento histórico, dirão de sua oportunidade.
A reconstrução histórica nos mostra que tanto o capital nacional
como o multinacional viram na grande oferta de mão-de-obra uma
extraordinária vantagem relativa. O que deixaram de considerar é
que a adoção de uma tecnologia mais ou menos sofisticada teria
também conseqüências nos níveis social e político, além do econômico.
Nesta altura dos acontecimentos, as tensões sociais e políticas,
representadas pelo excesso de desemprego e subemprego, tornamse politicamente perigosas. Daí a reação de muitos desses interesses,
como se disse, no sentido de favorecer o planejamento familiar e
mesmo o controle de natalidade. Mas isto não significa que os próprios
segmentos sociais envolvidos negativamente na questão não possam
também ser, de uma forma ou de outra, beneficiados por uma política
de favorecimento da contracepção. Sobre a questão discorremos mais
adiante.
José Carlos de Medeiros Pereira
87
V – PLANEJAMENTO FAMILIAR E MUDANÇA SOCIAL.
É evidente, pelo que já expusemos, que tanto os favoráveis
como os contrários ao planejamento familiar estão se posicionando
frente a aspectos do processo de mudança social que lhes parecem
relevantes. Pode-se dizer que o debate se sofisticou. Recordemo-nos
de que, num passado recente, se defendia o crescimento demográfico
sob o argumento, por exemplo, de que havia grandes vazios
demográficos a serem ocupados ou porque Deus havia ordenado aos
homens que crescessem e se multiplicassem. De um lado, hoje ficou
claro que a ocupação de vastos territórios é muito mais uma questão
de capital e de técnica do que se supunha. É que a criação de uma
infraestrutura representada por estradas, pontes, armazéns, máquinas
etc. implica em tão vultosos investimentos que, às vezes, apenas o
Estado tem condições de realizá-los. De outro, a crescente
secularização do comportamento e da cultura fez com que o discurso
da Igreja Católica a respeito de relações sexuais e de uso de medidas
anti-concepcionais se tornasse algo ultrapassado, mesmo para seus
fiéis.
Aparentemente estaríamos em face de um embate entre
conservadores e “mudancistas”, embora, em outros níveis do social,
as posições possam ser exatamente inversas. Assim, os que são
contrários a qualquer tipo de alteração nos valores e nos
comportamentos tradicionais que dizem respeito à decisão de ter ou
não filhos, constituiriam, segundo parece, os conservadores. No
entanto, é óbvio que o aumento populacional indiscriminado tem efeitos
importantíssimos sobre o sistema social, incluindo as esferas
econômica e política. Conseqüentemente, entre os que adotam essa
posição, embora alguns possam de fato ter em mente a manutenção
de um dado estado de coisas, outros estão engajados
ideologicamente na mudança. Em termos concretos, ainda que
nem sempre conscientemente, todos os contrários à contracepção,
dadas as conseqüências sociais do comportamento que apregoam e
defendem nesse campo restrito da atividade humana, são
88
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
“mudancistas” (apesar de não necessariamente progressistas). Isto
apesar de estarem defendendo a tradição.
Por outro lado, os que são favoráveis ao planejamento familiar
e, mais ainda, a um controle mais rigoroso do crescimento populacional
(tal como se fez na Índia por exemplo), aparentemente se estão
colocando contra a tradição. Eles tentam alterar valores, normas,
atitudes e comportamentos no campo da reprodução humana. Muitos
também pretendem, através dessa possível diminuição do ritmo do
crescimento populacional, provocar um aumento da riqueza individual,
porque seria diminuído o desemprego e o subemprego e facilitada a
adoção de uma tecnologia mais produtiva. Eles parecem, pois, ser os
defensores do progresso. Contudo, e isso teremos oportunidade de
discutir mais demoradamente no prosseguimento deste trabalho, o
mais das vezes, sobretudo do ponto de vista político, eles são
conservadores. É que sua motivação, freqüentemente, é a de diminuir
as fontes de tensões sociais relevantes (desemprego, crescimento
sociopático das cidades, criminalidade, aumento da população
econômica, social e culturalmente marginal, e outros fenômenos tidos
como se situando na esfera da patologia social), tensões estas que
poderiam redundar em conseqüências políticas prejudiciais para seus
interesses. Temos aqui como que um paradoxo, já que enquanto o
sentido posto na ação pelos sujeitos situa-se ideologicamente num
lado do espectro político, esta ação social, vista em termos de suas
conseqüências, pode se situar no outro lado desse espectro.
Apesar de tudo, encarada a questão à luz da experiência
histórica de vários países, parece-nos que as tentativas de
planejamento familiar, como programa de governo visando reduzir
o ritmo do crescimento populacional, tiveram efeitos mínimos. Ou
seja, como ensaios de mudança social planejada, frustraram-se.
Dizemos isto porque as maiores modificações ocorridas nessa área
de comportamento constituem, sobretudo, um reflexo de outras
alterações mais significativas que já se produziram na concepção de
vida e na visão de mundo da população como um todo ou de segmentos
expressivos da mesma. Se tal visão não tiver sofrido uma alteração
José Carlos de Medeiros Pereira
89
prévia, pouco ou nada se consegue quando se tenta induzir as pessoas
a reduzir sua prole. E se a mudança na concepção geral do mundo e
da vida já se operou, de nada adiantarão recomendações, exortações
e ameaças (como as dos Papas, por exemplo) quanto ao que deveria
ser o comportamento “correto” nessa esfera específica do social.
A grande mudança no campo da reprodução humana é
espontânea. Independentemente de qualquer programa de
planejamento, tende a diminuir o número médio de filhos quando: a)
avança o processo de industrialização e de urbanização; b) se eleva
o nível educacional da população; c) a secularização da vida social
se torna a regra, dessacralizando-se as representações quanto à
posição dos homens nele; d) a racionalização do comportamento se
expande, tornando as pessoas mais propensas a agir tendo em conta
objetivos concretos a serem alcançados mediante ação planejada; e)
o processo de individualização avança, fazendo-as cada vez mais
infensas ao estabelecimento de normas de conduta determinadas
discricionariamente por autoridades de qualquer tipo; f) os meios de
comunicação de massa generalizam certos tipos de conhecimento; g)
o sistema econômico mais complexo e produtivo põe à disposição da
população produtos industriais de consumo e de massa a preços
reduzidos; h) a mulher participa mais decisivamente das atividades
econômicas e se depara com a possibilidade de realizar projetos de
vida fora dos limites estreitos do casamento e da maternidade. Em
outras palavras, vários processos convergem, produzindo o resultado
assinalado. A concepção de mundo se altera, aumenta o conhecimento
a respeito dos mecanismos de reprodução e de contracepção, outras
possibilidades são visualizadas pela mulher nessa sociedade em
mudança, aumenta o custo econômico de ter filhos nas condições
imperantes nas cidades etc. etc.
Talvez o crucial é que, participando mais intensamente da vida
social e econômica, a mulher pode optar agora por ter menos filhos,
inclusive porque estes, ao contrário do ocorria na sociedade tradicional,
especialmente rural, deixam de constituir uma espécie de seguro para
a velhice dos pais. Nesse processo de transformação social, os direitos
90
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
humanos básicos passam a constituir um ponto de referência para
todas as sociedades nas quais estão avançando as concepções de
justiça social e de liberdade de decisão. Entre certos segmentos sociais
foi, pois, se desenvolvendo a noção de que entre esses direitos estava
o de poderem as mulheres, legitimamente em termos morais, não
terem (através da contracepção) gestações indesejadas. Tal direito
básico da mulher acabou, inclusive, sendo reconhecido no âmbito das
Nações Unidas. Cada vez se lhe reconhece o direito de exercer
plenamente outras atividades que não apenas a de, fundamentalmente,
procriadora, e a prerrogativa de por ela não optar desde que tal função
tolha aquelas outras. Contra tal visão do problema colocam-se grupos
religiosos, especialmente a Igreja Católica. Em nosso entender, esses
grupos calcam-se em valores que poderiam até ser de adesão
obrigatória em outros tempos e situações. Por exemplo, dados os
elevadíssimos índices de mortalidade infantil e geral, produzindo como
resultado uma baixa esperança de vida nos séculos anteriores ao
Renascimento, é perfeitamente compreensível que se punisse e
rejeitasse a mulher que se recusasse a conceber. Ou seja, era uma
moral válida para outras condições históricas. Mas supor valores
eternos, válidos para todos os tempos e todas as classes sociais é,
sociologicamente falando, um contra-senso.
Em favor da atual posição de alguns setores da Igreja Católica,
pode-se dizer, entretanto, que deixaram, de lado uma ambigüidade
dificilmente sustentável no tocante ao assunto em causa. Referimonos ao fato de que essa Igreja, geralmente, repelia qualquer medida
que levasse à contracepção e ao mesmo tempo defendia o “status
quo” no terreno social, político e econômico. Ora, sem mudanças
sociais, principalmente no campo econômico, era previsível que,
dadas as condições em que se estão processando as
transformações econômicas no mundo subdesenvolvido, o grande
aumento populacional levasse antes à miséria crescente do que ao
crescimento econômico e ao desenvolvimento social. A posição
doutrinária em relação à contracepção permaneceu, mas houve
um avanço no referente ao social. Pelo menos um Papa anterior
José Carlos de Medeiros Pereira
91
ao atual, Paulo VI, teve oportunidade de criticar os neomalthusianos
afirmando que “o problema do mundo é o de aumentar a quantidade
de alimento à mesa e não o de reduzir o número de comensais”. Isto
implica, segundo entendemos, na possibilidade de aceitar reformas
sócio-econômicas e políticas de certa profundidade.
VI – OUTROS ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO
Em partes anteriores deste artigo cremos haver mostrado que
não há uma relação unívoca entre crescimento populacional (ou
falta dele) e crescimento econômico e desenvolvimento social. Os
exemplos históricos serviriam para confirmar qualquer hipótese, o
que significa que, isoladamente, a variável população não é
determinante, como nenhuma outra, diga-se de passagem, quando
se trata de explicar processos sociais complexos. É a totalidade
social, a interação do conjunto das variáveis, representadas por
condições sócio-políticas e econômicas, que transformará ou não o
crescimento populacional em alavanca do crescimento econômico.
Ou, inversamente, em obstáculo à consecução desse fim, ou ainda
de outros socialmente valorizados. A respeito dessas relações é
interessante a argumentação de Raymond ARON. Segundo ele, se a
adoção de medidas visando à contracepção levasse um país a avançar
economicamente, então a França constituiria, hoje, o primeiro sistema
econômico do mundo, já que essa prática, por parte de sua população,
é secular. No entanto, a França foi economicamente superada por
países menos desenvolvidos à época, sobretudo Alemanha. No caso
desta, as evidências parecem indicar que seu grande crescimento
populacional produziu efeitos positivos em sua expansão econômica
e no aumento de seu poderio militar.
Este último aspecto, o militar, é freqüentemente invocado como
razão para que a população de um país não pratique o planejamento
familiar. No passado recente, este era um argumento ponderável, já
que exércitos numerosos, compostos de homens jovens, constituiam
um indicador da potência de uma nação. Ainda hoje, apesar de todas
92
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
as transformações que se operaram na tecnologia guerreira, para
alguns países esta é uma variável que merece muita consideração.
Assim, muitos deles, com sérias preocupações militares, procuram
estimular os casais a terem filhos em maior número, sobretudo quando
se deparam com a quase estagnação da população. Foi o caso, entre
outros, da extinta União Soviética e de Israel. Esta, contudo,
evidentemente, é uma preocupação limitada a uns poucos países.
Talvez, mais do que todas, as questões de natureza política são
as mais importantes quando se trata de discutir as conseqüências
sociais (no mais amplo sentido), de estimular ou não uma política de
limitação de natalidade. Desde há muito, por exemplo, organizações
internacionais ligadas fortemente aos Estados Unidos parecem temer
as tensões sociais resultantes do aumento do desemprego quando a
população cresce em ritmo elevado, mas não a economia. Como não
poderia deixar de ser, isto não é afirmado claramente. Aparentemente,
a preocupação é sempre com a miséria das populações afetadas e
com aspectos ecológicos. Atente-se para esta afirmação de
MacNamara (que foi Secretário da Defesa, no governo Kennedy)
numa reunião do Banco Mundial, do qual era Presidente, em setembro
de 1969: “O maior obstáculo isolado ao processo econômico-social
da maioria dos povos do mundo subdesenvolvido é o selvagem
crescimento da população desses países. O objetivo final é a elevação
da dignidade do homem para habilitá-lo a viver uma vida plena e livre.
Para esse alvo final, o desenvolvimento é o meio adequado. Todavia,
taxa alguma de desenvolvimento pode sobrepor-se à proliferação
indiscriminada da população em um planeta limitado”.
Da mesma forma, muitos dos grupos políticos de esquerda são
contrários a qualquer restrição ao crescimento populacional. A
motivação subjacente é a de que as pressões populacionais constituem
um fator que poderia levar a transformações políticas de monta.
Cremos, pessoalmente, que esta constitui uma visão errônea do
problema de mudança social, embora um autor como Sartre, em sua
interpretação das causas da revolução cubana, tenha entendido que
uma das razões de seu sucesso radicou no fato de que a população
José Carlos de Medeiros Pereira
93
jovem do país não estava encontrando empregos sob o regime deposto.
É preciso porém que se diga também que esses grupos rebelam-se
contra o fato de se negar à população carente outros direitos básicos,
como, por exemplo, o direito ao trabalho e a uma vida decente,
considerando a excessiva atenção dada à questão do planejamento
familiar uma técnica política diversionista por parte das classes
dominantes. Crêem que a solução correta de qualquer crescimento
mais ou menos explosivo da população está na promoção do
desenvolvimento econômico e social, como historicamente se tem
verificado.
VII – CONCLUSÕES.
Parece-nos ter ficado evidente, depois da exposição anterior,
que dificilmente se consegue resolver problemas sociais, políticos e
econômicos de certo vulto através do planejamento familiar. Embora,
em interação com outras medidas, ele se possa constituir num
instrumento de combate à miséria em que vive a maior parte da
população mundial, isoladamente considerado representa uma medida
apenas paliativa. Não há dúvida que quando um país se desenvolve
social e economicamente, o planejamento familiar passa a ser posto
em prática por um número crescente de pessoas. Preocupar-se tãosomente em adotar uma política de limitação de nascimentos,
recusando-se a realizar mudanças político-econômicas substantivas,
é, conseqüentemente, uma política quase anódina das classes
dominantes tanto dos países desenvolvidos como dos em
desenvolvimento, se com isso pretenderem diminuir as tensões sociais
e mesmo promover o crescimento econômico. Desde que o problema
comporta variadas facetas, cremos que a maioria dos argumentos
apresentados por natalistas e antinatalistas são, sobretudo, tentativas
de “racionalização”.
Por outro lado, julgamos eticamente pouco defensável a
posição de negar à população carente, marginalizada social, econômica
e culturalmente, os conhecimentos e os meios para praticar a
94
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
contracepção, desde que as mulheres (e também os homens) desses
segmentos sociais assim o desejem. Em muitos casos, são as mulheres
desse meio social o sustentáculo econômico de suas famílias. São por
isso obrigadas, por vezes, a fazer um cálculo econômico entre ter ou
não filhos. Mas permanece correta a descoberta de KUBAT e
MOURÃO, num estudo levado a efeito em Osasco para determinar
o número ótimo de filhos desejados pela população, de que a
preocupação com o assunto está diretamente relacionada ao domínio,
por parte dos cônjuges, de outros componenetes do ambiente social.
Quem não sabe se vai ter trabalho e alimento amanhã, não planeja o
nascimento de filhos. Independentemente, porém, do estabelecimento
de relações entre crescimento demográfico e quaisquer outras
variáveis, entendemos que a decisão de engravidar ou não é uma
decisão que diz respeito primordialmente à mulher e ao seu parceiro,
cônjuge ou não. O interesse no assunto por parte de outros
personagens (sejam eles profissionais, padres ou políticos) deve ser
sobretudo acadêmico, ainda que possam, em suas respectivas esferas
de atividades, contribuir para que se efetive o direito da mulher de
conceber ou não segundo seu desejo.
RESUMO
O autor discute criticamente alguns argumentos de natureza
econômica, social e política favoráveis e contrários a uma política de
regulação da fertilidade de modo a reduzir as taxas de crescimento
populacional. Procura explicar mudanças nas posições do governo
brasileiro a respeito. Entende que os debates têm,
compreensivelmente, caráter profundamente ideológico. Discorre
mais amplamente sobre os argumentos de ordem econômica pró
e contra o planejamento familiar. Examina as possibilidades de
aumentar as taxas de emprego através do uso de tecnologia menos
poupadora de mão-de-obra como uma solução alternativa às tentativas
de redução do ritmo de crescimento populacional. Encara estas
tentativas de regular a fertilidade como uma experiência de mudança
José Carlos de Medeiros Pereira
95
social planejada e julga-as frustradas, tendo em conta os exemplos
históricos. Considera ainda alguns outros aspectos do problema, como
o político. Conclui que as relações entre população e processos sociais
complexos como o crescimento econômico e o desenvolvimento social
variam historicamente e de um país para outro. Julga o planejamento
familiar um instrumento pouco efetivo no combate à miséria. Contudo,
crê que pôr à disposição da população conhecimentos e meios para
praticar a contracepção constitui um dos deveres do Estado moderno.
Isto porque entende que é um direito básico da mulher decidir se
deseja ou não ter filhos.
4. SOBRE METODOLOGIA
José Carlos de Medeiros Pereira
99
4.1. CIENTIFICISMO “VERSUS” IDEOLOGICISMO*
Pelo cientificismo do título não quero me referir apenas à crença
exagerada nos resultados da ciência, definição à qual frequentemente
se referem os dicionários. Pela expressão quero me referir,
especialmente, a um certo dogmatismo no modo de entender o fazer
ciência. Esta visão enraiza-se na crença, em princípio correta, de que
não há (ou de que não deve haver) pré-juízos na ciência. Em face
disso, foram criados preceitos de como evitar os vieses a que o
investigador poderia ser levado, se não controlasse seus preconceitos
e prenoções. Isto pode significar, contudo, às vezes, realizar a
investigação sem praticamente ter um marco teórico. Assim, a decisão
de o investigador ater-se única e exclusivamente aos fatos implica
em certas consequências para as quais é preciso atentar.
Lembremo-nos de que o positivismo postula, depois de o
investigador ter obtido os fatos, que ele busque as possíveis
relações entre eles. Em seguida seria procurada uma explicação
para tais relações. Só em último lugar é que se poderia
generalizar o conhecimento adquirido, extrapolando-o para
outras situações que se apresentassem de modo igual ou
assemelhado. Notemos, porém, que ao estabelecer uma inteira
submissão aos fatos, o positivismo, frequentemente, apenas
transforma as normas dominantes na sociedade, em orientadoras
da maneira “científica” de ver o mundo. Isto porque é evidente
que só vemos aquilo para o qual fomos treinados (socializados)
para ver, deixando de lado, geralmente, tudo o que não esteja
dentro dos limites de nossos estreitos interesses. Assim, para dar um
* Publicado originalmente em Medicina, vol. 15, nº 4, outubro-dezembro de 1982.
100 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
exemplo primário, o homem rural e o citadino vêem diferentemente a
natureza. Da mesma forma o cientista. Ele seleciona o que pretende
ver em função de suas preocupações e, dependendo de sua maneira
de interpretar o mundo, verá uns fatos e não outros, buscará pesquisar
uns temas e não outros, e assim por diante, Em suma, ninguém parte
realmente das observações dos fatos para buscar relações entre eles,
e sim de hipóteses a respeito de relações. Ocorre que se o investigador
não tiver um marco teórico suficientemente abrangente para dar
sentido às relações que encontra, ficará quase sempre no nível
do observado, da aparência, sem chegar a entender o porquê
das relações encontradas. Por isso é frequente, na história da
ciência, um erro persistir porque a concordância nos resultados
obtidos pelos vários pesquisadores foi uma decorrência de seus
preconceitos comuns.
Não só ninguém, de fato, parte dos fatos, como preconiza o
positivismo, como, se ficar apenas adstrito às observações, sem
fazer uma crítica do que elas representam, chegará a conclusões
errôneas. Isto é muito comum no caso de investigação de fatos sociais
baseada nas verbalizações dos sujeitos a respeito do assunto
investigado. Se, numa pesquisa, perguntamos às pessoas algo, pode
acontecer várias coisas em termos da resposta dada: 1) elas dizem o
que é de seu interesse dizer, se têm alguma coisa a ver com o resultado
alcançado (é o caso de se perguntar ao acusado sua versão dos fatos);
2) dizem o que supõem que o entrevistador vai querer ouvir: 3) dizem
o que fazem, pensam e sentem. Mesmo neste último caso, o que
temos é uma descrição do que as pessoas julgam que fazem, sentem
e pensam, mas não o que de fato acontece na realidade. Para dar um
exemplo: o mais da vezes as pessoas manifestam em suas
verbalizações os valores positivos existentes na sociedade em que
vivem. Assim, se perguntarmos a elas, em nossa sociedade, se
acreditam em Deus, se rezam e se vão à igreja, tenderão a dar
respostas positivas por serem estes valores correntes entre nós. Só
que, se formos aos templos verificar diretamente o número de fiéis
presentes, encontraremos outro resultado.
José Carlos de Medeiros Pereira
101
Se o cientificismo apresenta estes e outros variados defeitos,
não é menos verdade que o “ideologicismo” apresenta outros tantos,
só que numa direção oposta. É que, de tanto submeter os dados a
uma interpretação ideológica, acaba, por vezes, encontrando neles
significados diferentes daqueles que de fato possuem. Por vezes, o
viés “ideologicista” vai mais longe, confundindo, pura simplesmente,
ideologia com ciência. Neste caso, as formulações falsamente teóricas
predominam, no sentido de se partir de pressupostos mais ou menos
falsos, construir um edifício logicamente correto e, no momento de
fazer o confronto do modelo abstrato com a realidade, se esta não se
adequar a ele, entender que está havendo um erro de observação. O
viés “ideologicista” tende a não se preocupar muito com os dados em
si e sim com sua interpretação. Frequentemente, constrói-se um
modelo e procuram-se os exemplos empíricos que contribuam para
validá-lo, sem consideração pelos fatos que não confirmam a hipótese.
Não é preciso, para exemplificar o que estou dizendo, recorrer
às falsidades perpetradas em várias áreas das ciências humanas
tanto por fascistas como por comunistas sobretudo de linha stalinista.
Podemos nos restringir à própria medicina. Não desenvolveu
Paracelso a teoria da signatura plantarum segundo a qual havia
uma analogia entre a forma dos vegetais e os órgãos humanos,
indicando aquela a possibilidade de cura de enfermidades que
afetassem estes? Não foi tal teoria aceita durante séculos por pelo
menos uma parte dos médicos? Esteve igualmente em voga, também
por séculos, a teoria miasmática. Por outro lado, a prática do banho
era vista como malsã, sobretudo na França dos séculos XVII e XVIII.
Nesse tempo um sujeito odorífero era tido como cheio de vigor. Muitos
médicos achavam que especialmente o banho quente abria os poros
expondo o corpo aos perigos do mundo exterior. Exageros no sangrar,
aplicar enemas, fazer vomitar e suar foram tratamentos padrões tidos
como científicos até meados do século passado. Também aceita em
muitos círculos científicos durante décadas foram as teorias de
Lombroso.
Do que não se dão conta muitos dos que se apegam a um
102 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
exagerado “ideologicismo” é que a subjetivação da objetividade na
mente do investigador pode alterar esta última a tal ponto que a
transforma simplesmente em outra coisa. O fato de se admitir
que os objetos não são tão uniformes e simples, como supõem
os positivistas ingênuos, não autoriza o cientista a transformálos em algo mais ou menos estranho à sua natureza. Esses
“ideólogos” às vezes também não percebem que as idéias de
quem quer que seja, e não só as dos outros, tendem a expressar,
ainda que de um modo incompleto, as relações sociais nas quais
está inserido aquele que as têm.
O viés a que estou fazendo referência ainda ocorre, muitas
vezes, também quando da interpretação de acontecimentos históricos.
Estes, fundamentalmente, são balizados pelo tipo sócio-econômico
dominante. Assim sendo, a ação dos agentes do processo histórico,
ou sua vontade de alterar os rumos deste, dificilmente se traduzirão
num desvio de rota suficientemente significativo, ainda que influam
sobre o acontecer histórico. Em outras palavras, os homens fazem a
história no sentido de que seu querer influi, ainda que esse querer
seja, o mais das vezes, condicionado e mesmo determinado pela
estrutura social na qual vivem. O viés a que estamos fazendo
referência, ocorre, por vezes, no sentido de se partir de um resultado
histórico e se supor que os homens que atuaram no processo o fizeram
de modo a obter exatamente aquele resultado.
Da maneira como as coisas são colocadas, concluiríamos que
os grupos e camadas sociais dominantes, individual e coletivamente,
teriam uma racionalidade excepcional, pois seriam capazes de planejar
desdobramentos e desenvolvimentos da economia, da política,
da ciência, etc. a fim de alcançar, precisamente, aquele resultado.
Ora, a história é um constante devenir, um constante vir-a-ser, em
que as transformações operadas nem sempre (melhor, dificilmente)
foram pensadas antecipadamente desse modo pelos agentes sociais
envolvidos. O que acontece é que esses agentes têm projetos que
podem ser errôneos ou incompletos quanto à compreensão do real,
mas, na tentativa de pô-los em prática, eles alteram a realidade. Essa
José Carlos de Medeiros Pereira
103
alteração acaba modificando o projeto, o qual, outra vez, quando da
tentativa de sua consecução, altera a realidade, e assim
sucessivamente. Como as várias classes sociais, e suas frações, têm
propósitos vários, complexos e mesmo contraditórios, o resultado final
dificilmente pode ser tido como obra pensada de um conjunto de
atores. Isto não significa que o investigador não possa atribuir, “a
posteriori”, funções a determinados atos e processos que não tinham
esse significado inicialmente e que passaram a ter no decorrer do
processo, ainda que os participantes não tivessem tido consciência
clara disso.
Terminando, é preciso advertir que, de modo algum, é meu
propósito negar os extraordinários avanços ocorridos no conhecimento
com o advento da ciência moderna. Apenas chamo a atenção para
algumas questões freqüentemente negligenciadas pelos cientistas.
Talvez a ciência, ainda que socialmente determinada, seja a única
criação humana capaz de levar à apreensão de fatos objetivos e ao
estabelecimento de relações reais entre eles. No entanto, fazer ciência,
como dizia Simiand, sociólogo francês do início do século, implica em
não colecionar fatos sem teoria, nem em construir teorias sem estarem
alicerçadas em fatos. O difícil, freqüentemente, é conseguir a justa
medida, sem os excessos tanto do “cientificismo” como do
“ideologicismo”.
104 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
4.2. O ESPECÍFICO E O GERAL NA CIÊNCIA *
Os cientistas de uma área, com bastante freqüência,
desconhecem as características distintas que a ciência assume em
outras. Essas diferenças são marcantes sobretudo quando se
comparam as ciências físicas e naturais, de um lado, e as sociais, de
outro. Não só os universos que investigam diferem muito: também
são distintas as relações entre sujeito e objeto numas e noutras, assim
como o tipo de explicação. Isto leva a críticas mútuas relativamente
sem sentido. Por exemplo: é comum os cientistas sociais acusarem
os que atuam no âmbito das ciências físicas e naturais de realizarem
um trabalho alienado, que seria o resultado da introjeção da
dependência pelos mesmos. Eles se preocupariam com temas e
técnicas que só teriam sentido para os países capitalistas desenvolvidos.
Desse modo, transformar-se-iam em ponta-de-lança do colonialismo
cultural, introduzindo, entre nós, técnicas e métodos de trabalho em
desacordo com os interesses nacionais. Seu trabalho, nesse caso,
constituiria uma outra forma de drenagem de recursos dos países
periféricos para os centrais do sistema capitalista. Entende-se, de
fato, em largos setores intelectuais, que o desenvolvimento de uns
países só foi possível, e ainda é, em decorrência, em grande parte, da
espoliação de recursos materiais e humanos de que foram (e são)
vítimas os países atualmente subdesenvolvidos.
Por outro lado, são também freqüentes as críticas por parte
dos que militam nas ciências físicas e naturais aos cientistas sociais.
Muitas vezes eles os censuram porque, em sua opinião, estes
* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(9): 1569-1570, setembro de
1984.
José Carlos de Medeiros Pereira
105
tenderiam à realização de uma ciência nacional. Isto se lhes afiguraria
pouco defensável, dada sua visão internacionalista de ciência.
Pareceria a eles que a ciência dos segundos, igualmente, estaria por
demais eivada de influências ideológicas (supondo ou não a
possibilidade de alguém ser inteiramente isento de influxos desse tipo,
os quais, normalmente, não chegam ao nível da consciência, inclusive
por serem parte, às vezes, das próprias normas da comunidade
científica). Em ambos os casos, cremos que existe grande confusão
quanto à compreensão do significado do trabalho científico levado a
cabo pelo outro lado. Senão vejamos.
Os cientistas da natureza geralmente não entendem que os
fenômenos e processos estudados pelas ciências sociais são
histórico-sociais. Ou seja, que o seu objeto não é o mesmo sempre,
que não é natural, já que foi construído pelos próprios homens, ao
estabelecerem entre si relações que dependem quase exclusivamente
da correlação de forças sociais, políticas e econômicas,
especialmente a partir do momento em que a humanidade saiu da
homogeneidade primitiva e começaram a existir divisões de algum
tipo entre eles. De seu lado, os cientistas sociais não entendem, muitas
vezes, como os interessados nas ciências da natureza podem tratar
seus objetos como se fossem destituídos de historicidade, fazendo
generalizações sem referência a condições concretas bem
determinadas. Isto é, eles às vezes atribuem especificades históricas
a objetos que, por serem físico-naturais, nenhuma influência sofreram
ou sofrem da atividade humana. O que está em jogo aqui é que uns
se voltam para o que é específico e outros para o que é geral. Para
uns a explicação só pode ser obtida a partir do estabelecimento de
diferenças, enquanto que, para os outros, o fundamental está na busca
de uma lei geral que esteja além de uma diversidade que seria apenas
aparente.
Estas diferenças decorrem das próprias características
distintivas dos sistemas (ou universos) para os quais se voltam os dois
tipos de ciência. No caso das ciências naturais, supõem-se que os
fenômenos e processos que estudam ocorrem em sistemas (naturais
106 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
ou físicos) homogêneos, contínuos, estáveis, a-históricos, variando
segundo forças intrínsecas que obedecem a leis gerais que existiriam
para todo o sempre (embora possam ainda não estar descobertas).
Sendo homogêneos (sobretudo no sentido de suas partes serem não
conflitivas), permitiriam, inclusive, seu estudo através da redução dos
problemas a varíaveis mais simples, a fim de serem submetidas a
uma análise das relações quantitativas entre elas. Já os sistemas sociais
são bastante diferentes por serem as sociedades humanas históricas,
instáveis, abertas ao exterior (uma sociedade recebe influências e se
modifica sobretudo através de fatores externos), conflituosas e mesmo
antagônicas nas relações internas que são estabelecidas entre os
grupos que as compõem (classes sociais, por exemplo), com unidades
participantes (o ser humano) dotadas de volição (o que não é o caso
dos átomos ou células) e que realizam ações com significado tanto
para si como para os outros. Além do mais essas sociedades são
descontínuas no espaço (embora cultura e normas sociais possam
ser transpostas de um lugar para outro muito distante) e no tempo (no
mesmo lugar geográfico, por sua vez, podem ter existido culturas
bastante distintas).
Um universo (o físico e o natural) independe da existência
e das ações dos homens, enquanto o outro só existe porque foi
criado por eles através das reações mútuas que estabeleceram.
Conseqüentemente, as relações entre sujeito e objeto são muito
diversas num tipo e outro de ciência. Nas histórico-sociais eles são os
mesmos (o sujeito está contido no objeto), enquanto nas da natureza
eles são estranhos um ao outro. As ciências sociais procuram mais
do que conhecer, compreender os fenômenos que estudam, situandoos em suas caracterísitcas específicas. As segundas (físico-naturais)
voltam-se para o estabelecimento de relações causais gerais, não
havendo necessidade de compreendê-las (busca de sentido) como
quando se trata de ações e relações sociais. Daí resulta a tendência
dos formados cientificamente no âmbito das ciências físicas e naturais
de buscarem o que é geral, enquanto os cientistas sociais tendem à
determinação das diferenças, que, para eles, são as realmente
José Carlos de Medeiros Pereira
107
explicativas, já que o universo com que lidam tem aquelas
características citadas de descontinuidade, ocorrendo os fenômentos
e processos estudados em realidades históricas, tornando a referência
ao lugar e tempo específicos indispensáveis na explicação.
Outra diferença que decorre disso é quanto ao modo de encarar
a própria realidade. Os cientistas físico-naturais tendem a crer que os
atributos que examinam são inerentes à realidade mesma; eles se
imporiam ao sujeito que investiga, ao qual caberia simplesmente
reproduzi-los o mais fielmente possível para fazer boa ciência. No
caso dos cientistas sociais (embora não seja o caso de todos), se
entende, por vezes, que a realidade, na verdade, é ordenada segundo
os interesses do investigador. Haveria distintas perspectivas, a visão
do problema se alterando radicalmente se se adota uma ou outra.
Esta segunda maneira de encarar as relações entre o sujeito e o objeto
leva à convicção de que a ciência só é possível porque os investigadores
têm um determinado ponto de vista, a partir do qual ordenam a realidade
e a tornam inteligível. Já os cientistas físico-naturais tendem geralmente
a crer que o objeto é que se impõe ao sujeito, sendo, portanto, limitadas
as possibilidades (ou se reduzindo, no limite, a apenas uma) de
explicações. Devemos dizer, no entanto, que discordando da visão
estritamente positivista ou subjetivista, há a dialética, segundo a qual
há uma ação recíproca entre sujeito e objeto, ambos se construindo
mutuamente. Tais diferenças poderiam ser explicadas pelo fato de
que as ciências físicas e naturais, normalmente, têm um único
paradigma, concordando com eles os cientistas que nelas trabalham
(são raros os deslocamentos de um por outro, como foi o caso em
que a física de Einstein substituiu em grande parte a de Newton). Em
se tratando das ciências sociais não há esse consenso porque ele
implicaria em que todos os que nelas trabalham teriam a mesma
concepção geral do mundo e da sociedade. Isto nos parece impossível
em razão mesmo dos conflitos e antagonismos existentes na sociedade.
Traçamos um painel limitado das diferenças existentes entre
os dois tipos de ciência. Além do mais, ele foi feito por alguém que
milita na área das ciências sociais, o que pode introduzir algum viés
108 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
quanto à interpretação das caracteríticas das ciências físico-naturais.
No entanto, cremos que ele é suficiente para chamar a atenção para
a necessidade de realizarmos uma certa rotação de perspectivas para
entender os problemas dos campos de estudos alheios. Ao criticar a
postura dos “outros” seria conveniente que nos colocássemos primeiro
a questão de saber até que ponto podemos generalizar nossos próprios
pontos de vista sobre a ciência (por exemplo, a respeito da publicação
nacional ou internacional dos resultados). Se a área alheia possuir
especificidades, só conhecendo-as compreenderemos o porquê de
certas posturas “científicas” daqueles que a cultivam.
José Carlos de Medeiros Pereira
5. SAÚDE E POLÍTICA
CIENTÍFICA,
TECNOLÓGICA E
EDUCACIONAL
109
110 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
111
5.1. SOCIEDADE E EDUCAÇÃO MÉDICA*
Em termos mais gerais, a educação contribui para o processo
socializador. As instituições educacionais procuram inculcar nos
educandos aqueles valores, normas, atitudes, comportamentos etc.
que são comuns à cultura da sociedade em questão. A educação
tem, assim, um papel homogeneizador. Devemos considerar, no
entanto, que as sociedades complexas são sempre segmentadas de
vários e diferentes modos, apresentando diversas subculturas, de modo
que existem também diversos sistemas educacionais, de acordo com
esses meios sociais variados. Sob essa ótica, o papel social que a
sociedade atribui à educação é conservador. Ela funciona como um
dos principais processos de controle social. Entendendo-se educação
como produto da vida social, é difícil pensar-se em moldar a sociedade
a partir dos sistemas educacionais, o que não impede que se possa
pensar a educação como um agente de mudança social.
De qualquer forma, o sistema educacional tende antes a sofrer
o impacto das transformações sociais do que a ser esse agente. Há
uma espécie de demora cultural no caso das instituições educacionais
em relação ao que se passa no sistema social global. Mais ainda, os
sistemas educacionais da maioria dos países tem uma história
pregressa, de modo que eles próprios dificilmente também podem
passar por modificações drásticas. Sua história, suas tradições,
constituem uma realidade viva, de modo que qualquer mudança que
se imagine no aparelho formador de profissionais, por exemplo, não
pode supor que se possa partir da estaca zero, ainda que existam
* Palestra proferida no “Seminário sobre o Ensino Médico na FMRP-USP”, realizado
de 26 a 30 de maio de 1980 . Publicada originalmente em Medicina, 12 (3 e 4):
17-19, 1980.
112 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
modelos muito melhores. Os mortos, de certo modo, sempre guiam
os vivos, o que não significa que não nos possamos subtrair a essa
direção. Também o futuro pode ter grande influência na orientação
do presente. De fato, mais e mais a idéia que se faz do futuro, os
planos existentes em relação ao mesmo, contribuem para que o
presente seja moldado de acordo com essa idéia, com esses planos.
Encarando as relações entre sociedade e educação sob os
aspectos abordados até aqui, fica claro que, com referência à
formação de profissionais, em nosso caso o médico, o que os grupos
sociais, econômica e politicamente dominantes esperam é que eles
sejam formados de acordo, sobretudo, com as necessidades do sistema
econômico. Em termos realmente societários, a idéia norteadora é de
que sejam formados de acordo com a realidade nacional na qual esses
profissionais vão agir. É uma idéia inegavelmente correta, mas,
infelizmente, incompleta, porque não é fácil definir-se a realidade
nacional na qual tais profissionais vão atuar e, principalmente, a que
interesses estarão atrelados, mesmo contra sua vontade, uma vez
formados.
Qual é, de fato, a realidade dos paises subdesenvolvidos? A
realidade é que são países economicamente dependentes, às vezes
também politicamente, mas o que, talvez, seja o mais grave,
culturalmente dependentes. Ora, uma das manifestações da
dependência cultural é o desenvolvimento de mentalidades
igualmente dependentes (PARDO, s/d.) no sentido de boa parte das
pessoas desses países tenderem a considerar sua própria sociedade
como possuindo uma cultura inferior comparativamente ao paradigma
que porventura elas tenham. Em consequência, sua criatividade,
frequentemente, visa ajustar o sistema de formação profissional de
seus países aos padrões tecnológicos vigentes na sociedade tomada
como modelo. É evidente que seria um contra-senso rechaçar a
tecnologia dos países desenvolvidos pelo simples fato de que seja
estrangeira. O que se repele é a escolha da mesma em desacordo
com as necessidades societárias reais do país dependente.
Não tendo em conta, também, a realidade própria do país o
José Carlos de Medeiros Pereira
113
sistema educacional corre o risco de formar profissionais de nível
superior com habilidades, conhecimentos e valores ajustados a uma
realidade alheia. A evasão de cérebros é uma das consequências
bem conhecidas dessa política educacional.
Quanto ao modo de a sociedade influir na educação
profissional, um estudo levado a cabo na Universidade Autônoma
Metropolitana-Xochimilco, do México, intitulado El Diseño
Curricular (1976), mostrou que a relação não é direta, havendo
uma mediação representada pela prática social da profissão.
Transformações radicais na prática médica, por exemplo, repercutiriam
“sobre o currículo tradicional, modificando-o parcialmente ou gerando
novas oportunidades profissionais”. Esta conclusão é importante, pois
demonstra que não é a produção do conhecimento a variável principal
responsável pela mudança na educação profissional mas sim a
aplicação desse conhecimento. Há, contudo, um fator de complicação.
É que há várias práticas sociais da profissão, até mesmo antagônicas,
embora uma possa ser dominante num momento. Certamente, na
profissão médica, essas várias modalidades de prática existem. A
dominante projetará sua influência sobre a educação profissional,
embora tanto as práticas decadentes como as emergentes influam. A
maneira como essas práticas acabam repercutindo sobre o currículo
vai depender de intermediações políticas propriamente ditas e da
Universidade, que é onde se decide se uma prática vai se integrar ou
não ao currículo. (Cf. pp. 25 a 27 principalmente).
Tendo em conta as relações mais específicas entre educação
e economia (também parte de nosso tema), ficou claro, sobretudo a
partir da Segunda Guerra Mundial, que a educação, especialmente a
profissionalizante, constitui um dos grandes investimentos que a
sociedade pode realizar, por ser altamente produtivo e,
consequentemente, um fator significativo para levar a cabo os
processos de crescimento econômico e de desenvolvimento social.
No caso da educação médica, ela tem particular importância não só
social como também econômica, desde que contribua efetivamente
para elevar o nível de saúde da população, uma vez que a sanidade
114 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
desta é um dos fatores relevantes de promoção de ambos os processos.
Merece ainda referência, na discussão das relações entre
sociedade e educação, o modo como a maioria da população,
brasileira no caso, vê a educação sistemática, especialmente a que
conduz a uma profissão. Predomina aqui uma visão utópica e
insatisfatória: a do mito de que a obtenção de um diploma de
nível superior constitui o canal de ascensão social e econômica
por excelência. Há um divórcio entre crença e realidade. Uma das
conseqüências desse modo de encarar a educação superior, é de que
a população acaba dando excessiva importância à educação formal
em seus aspectos exteriores, tomando o acessório pela essência. Ou
seja, não percebe que as portas do sucesso sempre se abriram mais
facilmente para aquele que dispunha de um diploma, mas desde que
este constituísse o coroamento de uma situação sócio-econômica
anterior elevada. Especialmente as camadas médias tomaram a nuvem
por Juno, vendo a posse do diploma como causa da posição privilegiada
de alguns e não o inverso, isto é, o diploma de curso superior como
manifestação daquela posição superior.
Finalmente, quanto ao papel criador da educação, normalmente
é exercido em grau mais elevado pela Universidade. A ela,
principalmente, cabe ser a mediadora entre os objetivos da sociedade
inclusiva e a educação formal, como também a tarefa de contribuir
para que a própria sociedade se altere. Já dissemos que ainda que, de
modo geral, a educação seja um produto social, isso não obsta a que
a Universidade possa cumprir esse papel inovador. Para cumprí-lo é
preciso, porém que ela não exagere seu papel de instituição
transmissora passiva de conhecimentos. A Universidade autêntica
não se limita tão-somente a formar profissionais, mas desempenha
uma missão maior que é a de duvidar e negar, ou seja realizar a
crítica, o que implica na apreciação do valor do pensamento, dos
conhecimentos produzidos e da ação deles derivada. Isso significa
reagir sobre o meio, tentanto alterar os aspectos da realidade que o
conjunto dos membros da instituição considere como indesejáveis.
Ao realizar tal tarefa nós estaremos fazendo história e não somente
José Carlos de Medeiros Pereira
115
sofrendo-a.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1 - Heilbroner, R. L. –O Futuro como História, Zahar, Rio, 1963.
2 - Marx, K. – El Capital, “Prólogo”, Fondo de Cultura Econômica, 2ª. ed.,
México, 1959.
3 - Pardo, P. H., - “El médico y la realidad nacional”, Departamento de Medicina
Preventiva y Social, U. N. A. H., Honduras, mim., s/d.
4 - Pereira, J. C. – a) “Sobre os rumos do sistema educacional”, Forum
Educacional, FGV, Rio, ano 1, nº 4, 1977; b) “Sobre a tendência à
especialização na Medicina”, Forum Educacional, FGV, Rio, ano
3, nº 3, 1979.
5 - Schultz, T. W. – O Valor Econômico da Educação, Zahar Editores, Rio,
1967.
6 -UAM – Xochimilco, División de Ciencias Biológicas y de la Salud, El
Diseño Curricular, México, 1976.
7 - Vaizey, J. – Economia da Educação, IBRASA, São Paulo, 1968.
116 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
5.2. SAÚDE E POLÍTICA NACIONAL DE CIÊNCIA E
TECNOLOGIA*
1. INTRODUÇÃO
É uma das “modas” atuais considerar-se o desenvolvimento
da ciência e da tecnologia como um dos principais fatores
propulsionadores do processo de desenvolvimento sócio-econômico.
Independentemente do exame das relações entre o sistema científicotecnológico e a estrutura e o funcionamento do sistema social global,
aquela consideração corre o risco de se preocupar
excessivamente com os aspectos administrativos e quantitativos
da ciência e da tecnologia, tornando-se simplista. Ciência e
tecnologia não podem ser examinadas como variáveis
independentes. Seus efeitos propulsores são limitados ou
ampliados pelo contexto político principalmente. (1)
Deve-se, pois, ter plena consciência de que os fins de uma
política científico-tecnológica serão determinados, em grande parte,
fora de área. Muitos estudiosos têm evitado o debate da questão
supondo, implícita ou explicitamente, que o Estado representa os
interesses mais gerais de toda a sociedade, economia e cultura ou
está acima dos interesses classistas. Isto significa encará-lo como
um absoluto, como um demiurgo, como se as várias camadas sociais
fossem passivas diante do conjunto de órgãos políticos, jurídicos e
*
Trabalho apresentado em Sessão de Temas Livres no I Simpósio sobre Política
Nacional de Saúde, realizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, em
Brasília, de 9 a 11 de outubro de 1979. Publicado originalmente em Educação &
Sociedade, Cortez Editora/Autores Associados/CEDES, ano II, nº 6, junho de 1980,
pp. 19-32.
José Carlos de Medeiros Pereira
117
administrativos que o constituem, existindo ele além e acima da
sociedade.
Obviamente, tal formalismo é inaceitável. Sem dúvida as
autoridades que detêm o poder, constituindo o Governo do Estado,
não se dissociam da nação, mas podem ou não representá-la como
um todo. O mais das vezes representam tão-somente uma parte dela,
a mais influente politicamente. Se o Estado pode constituir um
fator limitante, dependendo do ponto de vista do observador
interessado, é inegável que seus dirigentes mantêm conexões objetivas
com a realidade social. Donde, quando se pensa na ação do Governo,
há de se ter em conta os porquês, como e para quês da mesma, a
razão dos quais pode e deve ser procurada nas condições sociais
concretas.
Desse ponto de vista, o Estado moderno reflete o dinamismo
de um processo em que a sociedade e a economia se diversificaram
e se tornaram mais complexas. Impulsionados por tais transformações,
os órgãos dirigentes do Estado tiveram que pôr em prática políticas
no campo científico-tecnológico, condicionadas pelas contingências
históricas, representadas principalmente pela internacionalização da
economia e da ciência e tecnologia. Por vezes tentaram se opor à
tendência desnacionalizadora, ora a ela se atrelaram de um ou outro
modo. Em outras palavras, a ciência e a tecnologia não são campos
neutros, e sim submetidos, como os demais, ao ritmo de transformações
e conseqüentes tensões da sociedade e economia, as quais alteram
inevitavelmente a visão que as elites dirigentes têm dos interesses
mais amplos do conjunto da população do país.
Se aceitas essas considerações, a discussão sobre a política
científico-tecnológica tem de partir de uma definição de alvos na qual
intervenha a comunidade científica e tecnológica como representante
não só de interesses seus definidos, como de grupos fora do poder
que por ela possam ser representados, desde que, evidentemente, ela
consiga conquistar tal representação. Essa comunidade, da qual se
espera tenha uma percepção mais clara de questões que digam
respeito, pelo menos, à ciência e à tecnologia e ao adequado
118 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
aproveitamento destas para o aceleramento do processo de
desenvolvimento social, e cuja posição, concretamente, é superior à
de muitos outros grupos sociais, como grupo profissional responsável
e consciente, tem até mesmo o dever de tentar pressionar o Estado
para que se engaje numa política que considere construtiva para os
destinos do país. Isto significa tomar uma posição política frente ao
problema, não se omitindo, através de uma pseudo neutralidade
científica, que não pode existir em relação a fins. Estes não são
passíveis de discussão científica, uma vez que a um fim se pode
contrapor, validamente, outro. Mas, também, validamente se pode
discutir as conseqüências de se optar por um conjunto de fins e não
por outro.
2. CIÊNCIA E TECNOLOGIA COMO FATORES DE
DESENVOLVIMENTO
A questão que se coloca é: como o desenvolvimento científicotecnológico pode contribuir para o desenvolvimento (sem
adjetivações) do país? Isto significa discutir o próprio conceito de
desenvolvimento. Mesmo que suponhamos que o fundamental deste
processo está no crescimento econômico (com maior ou menor
dependência dos centros econômica e políticamente hegemônicos, etc.),
há de se procurar estabelecer, inicialmente, a relação existente entre o
avanço científico e tecnológico autônomo, crescimento e
desenvolvimento.
A história dos atuais países desenvolvidos demonstra essa
relação, mas ela varia de país para país, sendo, em razão das
condições históricas vinculadas às relações de dominaçãosubordinação ao nível internacional, muito mais frouxa nos atuais
subdesenvolvidos. Alguns motivos podem ser alinhados para explicar
o fato: a) o processo substitutivo de importações, característico do
processo de industrialização por que passaram ou passam esses países,
foi, em grande parte, baseado na utilização tanto de tecnologia como
de capitais estrangeiros; b) não há pressões societárias suficientemente
José Carlos de Medeiros Pereira
119
fortes para o aproveitamento do “know-how” produzido no país. Em
decorrência, os pesquisadores nacionais tendem a se concentrar na
pesquisa “pura”, imitando as comunidades científico-tecnológicas dos
países mais altamente desenvolvidos ou em pesquisas irrelevantes
em termos de contribuição para o processo; por outro lado, dado o
não aproveitamento de suas possíveis contribuições, os pesquisadores
nacionais se concentram, freqüentemente, na carreira pessoal
(produzindo teses para concursos) e em trabalhos individuais. (2)
Ainda que frouxa, em nosso caso, a relação entre crescimento
econômico e desenvolvimento científico-tecnológico, a política
referente à segunda variável tem de partir de uma definição clara e
viável de seus objetivos. Esta definição, contudo, será condicionada
pela política econômica global. Questões do tipo: como serão
aproveitadas as contribuições geradas pela comunidade científicotecnológica, como será planejada a pós-graduação, a carreira
universitária e, principalmente, que opções tecnológicas fará o país,
são fundamentais para lastrear uma política científico-tecnológica.
Só depois de definidos os alvos é que se poderão determinar,
agora com base objetiva (geralmente confundida como a única científica),
os meios de que se lançarão mão para melhor atingir tais fins. A esse
nível, a racionalidade dos meios usados será mensurada tendo em conta
sua adequação àqueles fins com o mínimo de esforços, o domínio das
reações negativas da ação que possam ser previsíveis, a alteração da
situação, as correções que se farão necessárias quando da avaliação
dos resultados alcançados, a criação de uma situação favorável à
consecução dos objetivos programados, etc. Esta tarefa deveria caber,
em grande parte, às universidades, onde, no Brasil, é produzido quase
todo o conhecimento original no país, aos Institutos de pesquisa, órgãos
governamentais responsáveis pela distribuição de recursos para a
pesquisa e políticos voltados para as áreas sociais (como a saúde),
econômicas e outras que serão beneficiadas, direta ou indiretamente,
pela política científico-tecnológica pela qual se optou.
120 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
3. O DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO
Na discussão sobre uma política científico-tecnológica devemos,
necessariamente, partir de um diagnóstico da situação existente,
especialmente dos problemas que, definidamente, constituam um
obstáculo à consecução dos alvos tidos como desejáveis pela parcela
lúcida da comunidade científico-tecnológica, no sentido de se preocupar
com as conseqüências sociais de sua atividade específica e com os
entraves que dificultam o aproveitamento socialmente construtivo de
seus esforços. Ao apontá-los ou deles tomar consciência, damos um
primeiro passo para sua superação.
Talvez uma das questões fundamentais diga respeito à
dependência, que tende a se ampliar, quando um país em
desenvolvimento propende à imitação dos padrões vigentes nos
desenvolvidos quanto à orientação dada ao seu sistema científicotecnológico. O exemplo concreto dos países subdesenvolvidos mostra
que essa dependência constitui como que um pecado original:
estabelecida no passado a desigualdade entre as nações nesse campo,
ela tende a se ampliar por fatores econômicos e políticos.
Particularmente ilustrativo é o exemplo brasileiro no que se refere a
pesquisas na área médica e farmacêutica. Dada a necessidade de
combate às doenças tropicais, foram criados Institutos como o Butantã,
Oswaldo Cruz, Manguinhos, etc. que se voltaram para a solução de
problemas brasileiros sem perder sua qualidade e seus padrões
universais. Estas experiências, porém tenderam a se conflitar com
poderosos interesses estabelecidos.
Além do mais, a crescente influência de capitais estrangeiros
acabou impedindo maiores esforços na direção inicial. O mesmo se
pode dizer da dominação da indústria famacêutica e de instrumentos
médicos por esses capitais. Evidentemente, a política científica e
tecnológica é inevitavelmente afetada, uma vez que, geralmente, não
é do interesse desses capitais o desenvolvimento de uma ciência e
tecnologia próprias aos países em desenvolvimento. Agravando-se a
carência de recursos, em virtude, inclusive, do desinteresse, por
José Carlos de Medeiros Pereira
121
omissão ou não, das camadas dirigentes, a ciência e tecnologia
desenvolvida nesses países torna-se mais dependente e alienada dos
problemas do próprio país. Os laboratórios dos países de origem
fornecem às filiais as últimas invenções e novos produtos, pouco se
preocupando em estimular os laboratórios e universidades locais
autônomas a elaborar pesquisas visando os interesses da
população nativa. Os centros de pesquisa mencionados podem
interessar a esses capitais, normalmente, apenas na medida em
que, financiados do exterior, passam a realizar pesquisas
encomendadas ou estimuladas de fora. (3)
A situação a que se referiu acima prejudica, igualmente, a
utilização de cientistas e técnicos formados no país por indústrias
nele instaladas. Tornando-se as oportunidades de emprego muito
limitadas, muitos dos mais bem dotados dirigem-se para os países
desenvolvidos, uma vez que só nestes encontram emprego produtivo
para seus conhecimentos e habilidades. Esta “evasão de cérebros”,
por sua vez, constitui mais outra contribuição, no caso relativamente
sutil, dos subdesenvolvidos para a manutenção e ampliação da
desigualdade científica e cultural entre os países, concentrando-se a
ciência, ou assim parecendo, naquele reduzido universo de nações
ditas desenvolvidas. Em tais condições precárias, pesquisadores de
valor vêem-se desestimulados de se dedicar à ciência aplicada por
não ter ela utilização no país de origem. Por outro lado, vêem-se
também frustados no terreno da ciência “pura”, dada a quase
impossibilidade de competir com os laboratórios e universidades dos
países avançados, com sua vastidão de recursos materiais e humanos.
Entendido isso percebe-se o quanto é frequëntemente errôneo
criticar toda a comunidade científica e tecnológica, ou conjuntos de
pesquisadores de um país subdesenvolvido, pelo que podemos
considerar descaminhos de seu sistema científico-tecnológico. As
exigências culturais, sociais e econômicas do meio ambiente
condicionam amplamente o desenvolvimento desse sistema, só em
parte podendo-se dizer que as condições são estabelecidas pelos
modelos científicos e por seus cultores. É a sociedade, as
122 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
exigências culturais do meio ambiente, que compelem os cientistas a
desenvolver seus projetos de investigação e de aplicação.(4) Se estes
projetos estão disssociados das necessidades práticas de alcance social,
é porque a ideologia dominante condicionadora da interpretação dessas
necessidades e do modo de aproveitamento das contribuições da
produção científica e tecnológica está operando em sentido inadequado.
No caso brasileiro, especificamente naquela produção voltada para a
melhoria ou manutenção das condições de saúde da população, as
limitações referidas e ainda outras, como escassez de recursos, falta
de autonomia dos centros de pesquisa etc., existem em alto grau.
4. A TAREFA DOS CIENTISTAS E TÉCNICOS
Estas condições desfavoráveis não eximem, contudo, o cientista
e o técnico (voltados ou não para o campo da saúde), de suas
responsabilidades sociais. E o primeiro passo para que alguma coisa se
faça é, como foi dito atrás, a tomada de consciência dessa
responsabilidade. De fato, não se pode conceber que o rumo das
pesquisas, os problemas abordados, a utilização dos conhecimentos
acumulados e descobertas feitas não dependam, em boa parte, das
atitudes e comportamentos dos agentes sociais citados. Alhear-se sob
a justificativa de que uma tomada de posição representa uma
manifestação “extra-científica” é um preconceito “científico” e como
tal pode e deve ser combatido. Os obstáculos existentes deveriam, antes,
servir de estímulo a cientistas e tecnólogos para se voltarem à tarefa
de, manejando os valores mais altos da ciência e da tecnologia,
transformarem o Brasil num país mais saudável, mais desenvovildo,
cultural, social e economicamente.
De fato, a obrigação mais alta do verdadeiro cientista é a
atividade criadora em todos os níveis e a integridade intelectual. Ambas
representam um papel de primeira plana numa luta (que não precisa
ser necessariamente partidária, ainda que política) para a
definição dos alvos da política científico-tecnológica adequada
para a área da saúde e para conseguir os meios para alcançá-los.
José Carlos de Medeiros Pereira
123
Essa luta é travada em vários terrenos. E, talvez, a principal barreira a
ser vencida, encontrada pelos trabalhadores intelectuais, seja a própria
sociedade global, muitas vezes acanhada para fazer valer suas
reivindicações em determinadas áreas, de que é exemplo a de melhor
saúde. Em face disso, a motivação indispensável à realização das tarefas
necessárias pode esmorecer. Esta é, pois, a primeira tarefa: vencer a
insuficiente plasticidade da sociedade brasileira para aproveitar
eficientemente o resultado de um labor intelectual realmente profícuo
em termos desse alvo.
Não sentindo exploradas construtivamente suas
contribuições, muitos cientistas e técnicos desanimam. Cria-se
um círculo vicioso na relação entre esses trabalhadores e a sociedade:
não produzindo conhecimentos tidos como úteis pela sociedade
inclusiva (ou por suas camadas mais influentes), ela nega prioridade
ao saber científico e tecnológico, inclusive ao saber médico. Não
conseguindo obter satisfações morais (como o reconhecimento do
próprio valor, por exemplo) e materiais, as pessoas voltadas para as
várias áreas do saber deixam de dedicar a elas o máximo de seus
esforços porque lhes falta estímulo. Uma possível saída para o impasse
seria tentar produzir uma ciência e tecnologia claramente relevantes
para o desenvolvimento nacional e, em nosso caso específico, para a
melhoria da saúde coletiva, e tentar mostrar, através dos meios
disponíveis de comunicação, essa relevância, a fim de que grupos e
camadas sociais com influência sobre a política científico-tecnológica
se disponham a apoiar aquela preconizada pela comunidade científica.
5. O PAPEL DA UNIVERSIDADE
Devemos reconhecer, no entanto, que muito do descrédito de
que goza a ciência e a tecnologia nacionais tem sua razão de ser nas
características passadas e presentes do ensino superior
brasileiro. No passado se atribuía pouca importância à pesquisa
(“pura” ou “aplicada”) nas universidades, havendo uma nítida
negligência em desenvolver no corpo quer docente quer discente
124 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
“hábitos de pensamento produtivos”. Atualmente, a pletora de cursos
de pós-graduação acabou tendo o mesmo efeito, embora tenha havido
um extraordinário aumento quantitativo de pesquisas. É que se
substituiu o desinteresse anterior por um afã ardoroso de pesquisar,
mas de pesquisar qualquer coisa “não importa com que fito ou com
que proveito”.(5) Ou melhor, produzem-se pesquisas em série visando,
tão-somente, alcançar títulos acadêmicos, hoje uma espécie de “doença
infantil” que avassala a instituição universitária. Em decorrência, há
um desperdício de recursos materiais e humanos incompatível com
uma política científico-tecnológica socialmente produtiva e também
incompatível com a integridade intelectual de uma comunidade
científica atenta às suas responsabilidades sociais e empenhada, de
fato, na solução dos problemas nacionais e no desenvolvimento do
corpo teórico da ciência e em seus desdobramentos práticos. Ao se
produzir uma pseudociência, estribada numa rede invisível de
interesses extracientíficos, dificulta-se o avanço da verdadeira ciência,
detendo-se suas tendências frutíferas. (6)
A grave sintomatologia descrita é causada, por sua vez, em
larga medida, como já nos referimos, pelos vários tipos de obstáculos
ao aproveitamento construtivo das contribuições científicas e
tecnológicas de valor. Basicamente eles decorrem do fato de sermos
econômica e culturalmente dependentes, mas também de fatores
institucionais (por exemplo, a estrutura e funcionamento do sistema
educacional brasileiro), políticos, sociais, culturais, etc. Quanto aos
obstáculos institucionais, dois são patentes: a falta de entrosamento
entre os vários núcleos universitários e congêneres onde se faz pesquisa
científica; donde o desconhecimento mútuo do que cada grupo está
realizando. Um segundo obstáculo bastante importante é quanto à
inexistência, neste momento, de pressões societárias organizadas, que
estimulem o financiamento da pesquisa científica visando clara e
objetivamente a promoção do desenvolvimento sócio-econômico e
cultural em geral e especificamente, no campo da saúde. Tudo isso
compromete a formulação de uma política científico-tecnológica como
se pretende: ou seja, “racional”, socialmente satisfatória e, o que é
José Carlos de Medeiros Pereira
125
muitíssimo importante, viável dentro das condições existentes ou que
possam vir a ser criadas. Creio que, pelo menos em parte, essas
dificuldades poderiam ser sanadas por um interesse mais ativo da
comunidade científica por estas questões de suma valia. À falta de
estímulos como os mencionados, principalmente os provenientes do
sistema econômico, correr-se-á o risco de os pesquisadores
continuarem desenvolvendo “suas atividades muito mais com vistas à
sua carreira pessoal (teses, concursos) do que em função dos problemas
relevantes da comunidade nacional”. (7)
6. A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS
A ruptura do círculo vicioso poderia ocorrer tanto pelo lado da
sociedade global, na qual podemos incluir a “classe” política, como
pelo lado da comunidade científica, estabelecendo uma compreensão
mútua melhor de seus interesses e capacidades. À medida que
camadas sociais mais amplas possam fazer ouvir suas reivindicações
e pressionar os órgãos governamentais responsáveis, essa ruptura
tenderá a ocorrer, potenciando os esforços dos dois grupos
estrategicamente situados acima assinalados (políticos e cientistas).
A “classe” política, por exemplo, pressionada, poria sua grande
capacidade de “vocalização” a serviço do objetivo apregoado. Quanto
aos cientistas e tecnólogos, como grupo profissional consciente da
importância de suas contribuições para o desenvolvimento do país,
receberiam os estímulos que lhes estão faltando atrás mencionados.
A ação decisiva de grupos estratégicos dentro da sociedade global
poderia levar à formulação conjunta, por parte de políticos e cientistas,
pelo menos, de uma política científico-tecnológica definida, encorajando
pesquisas socialmente orientadas. Essa definição é fundamental pois,
como já se afirmou, as descobertas, tanto no campo da ciência pura
como no da aplicada, inexistindo essa política, acabam sendo sobretudo
ocasionais. Conseqüentemente, a assistematização no relacionamento
entre os que trabalham nas mesmas áreas ou afins torna-se a regra:
dificulta-se a percepção das conseqüências produtivas do labor
126 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
intelectual para a sociedade e a economia. Sem essa política definida,
podemos esperar a manutenção da descontinuidade de esforços, do
subaproveitamento de recursos materiais e humanos, da falta de rumos,
igualmente definidos, na orientação da pesquisa científica, da carência
crônica de recursos, etc. Resultado: os problemas de saúde do país
tenderão a continuar sendo enfrentados não pela remoção de suas
causas fundamentais, mas através do combate aos efeitos e causas
aparentes.
Há, contudo, uma outra possibilidade de interpretação do quadro
negativo e pessimista que traçamos. Segundo uma perspectiva otimista
poderia tratar-se, simplesmente, de uma situação passageira,
consubstanciando uma crise de crescimento da ciência e da tecnologia
no Brasil. Mas, então, a crise poderia ser mais rapidamente superada
se os problemas fossem enfrentados com maior vigor, discutindo-se
os alvos da política científico-tecnológica (em nosso caso voltada para
o campo da saúde) a partir de questões cruciais como a dependência
nessa área. Ela constitui uma simples imitação ou representa algo
mais sério, como a manifestação, no âmbito científico, da subordinação,
que cremos real, dos sistemas sócio-econômicos “periféricos” aos
centrais? Se a ciência e a tecnologia que estamos produzindo e
ensinando não são adequadas à sociedade e economia como um todo,
a quem ou a que elas aproveitam? A comunidade científico-tecnológica
nacional está atrelada aos interesses, manifestos ou disfarçados, de
alguns grupos? De quais? Por quê? Deve-se dar mais ênfase, ou não,
à produção de conhecimentos científicos originais, competindo no nível
internacional, ou dar prioridade à adaptação dos existentes à realidade
brasileira? E assim por diante.
A comunidade científica e tecnológica tem responsabilidades
especiais, às quais, como já insistimos, ela não pode fugir através de
uma pseudo neutralidade. Contribuindo para definir uma política, ela
poderá encontrar soluções para o problema, por exemplo, da existência
de canais, institucionais ou não, para o aproveitamento produtivo, da
ciência médica por exemplo, que está sendo ou vier a ser produzida.
Se os recursos são escassos, eles também podem estar sendo mal
José Carlos de Medeiros Pereira
127
utilizados naqueles projetos de pesquisa improdutivos a que nos
referimos. Há, pois, de sensibilizar os que podem fornecer esses
recursos, desenvolvendo uma produção científica e tecnológica
organizada, visando campos em que temos amadurecimento e
capacidade para realizar contribuições profícuas. Neste ponto, os
cientistas e tecnólogos têm de atentar para duas ordens de fatores:
viabilidade dos projetos e significação dos resultados alcançados.
O engajamento da comunidade científica nesse processo de
mudança, enfrentando responsabilidades e desprendendo-se de um
intelectualismo estéril, é fundamental, ainda, porque essa comunidade
tem, pelo menos virtualmente, as maiores condições de tentar frear
as tendências negativas assinaladas. Para isso, os cientistas têm de
abandonar a neutralidade cômoda e a restrição à sua especialidade,
preocupar-se com o essencial (que está nas contribuições societárias
e propriamente científicas) e não com o acessório, abandonar a
competição improfícua entre grupos e pessoas, fonte lamentável de
individualismos e facciosismos, e, ao contrário, formar grupos coesos,
lutando por interesses comuns.
A responsabilidade social dos cientistas e tecnólogos da área
da saúde é muito grande quando se analisam as conseqüências
negativas para a sociedade brasileira da ruinosa prioridade que tem
sido dada, em muitos casos, à tecnologia em si mesma ou à utilização,
também excessiva, de técnicas importadas, quando nossos
problemas sociais e econômicos exigiriam um maior desenvolvimento
do pensamento inventivo em todos os campos, criando ou adaptando
tecnologias. Inclusive porque, muitas vezes, ao se insistir na imitação
canhestra do uso de produtos e técnicas de uso comum nos países
economicamente desenvolvidos, estaremos mostrando uma
incapacidade injustificável, sob qualquer ângulo que se a
examina, de levar a cabo um desenvolvimento autônomo da
sociedade brasileira.
128 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
7. O ESTABELECIMENTO DE PRIORIDADES E SUA
IMPLEMENTAÇÃO
O estabelecimento das prioridades envolvidas dependerá, em
larga medida, como se deixou claro, dos comportamentos e atitudes
da comunidade científico-tecnológica brasileira. É evidente que a
discussão permanecerá em aberto quanto aos reais interesses
coletivos, tarefa que não é apenas dos cientistas e técnicos, mas,
numa sociedade pluralista e aberta, de todas as camadas sociais. Na
determinação desses interesses e prioridades, entretanto, é
inquestionável que esta comunidade muito poderá contribuir, tanto
para estabelecê-los, como para, uma vez realizada essa tarefa
fundamental, coordenar os meios materiais e humanos necessários.
Por exemplo, poderia contribuir especialmente no tocante à
racionalização desses meios, já que, sabidamente, a produção científica
e tecnológica de alto nível é um empreendimento caro, não se podendo
barateá-lo além de certos limites. Esta colocação nos leva a uma
outra questão, que é a de expandir organizadamente a Universidade
brasileira e outros centros de produção de conhecimentos científicos
e tecnológicos originais. Urge, numa política científico-tecnológica
nacional, global, da qual a Saúde é um componente de raro significado
sócio-econômico, rediscutir as possibilidades criadoras da instituição
universitária, hoje sofrendo uma crise de crescimento desordenado,
com os resultados negativos assinalados em outra parte deste trabalho.
Isso porque, sendo na Universidade onde se produz o “grosso”
dos conhecimentos mencionados, o sistema universitário, no que diz
respeito ao recrutamento, seleção, formação e aperfeiçoamento de
pessoal, precisa ser reestudado, verificando-se sua adequação quanto
aos objetivos da política que se proporá. Como são inegáveis as
relações entre o ensino universitário e o mercado de trabalho na
formação do pessoal técnico-científico, será necessário procederse a um diagnóstico dos recursos de que o sistema de atenção médica
carece, isto se permanecer o modelo em voga. Há também que se
proceder a um prognóstico quanto às possibilidades de sua alteração
José Carlos de Medeiros Pereira
129
e conseqüentes futuras necessidades de recursos humanos. É ponto
relativamente pacífico de que quando é grande a incerteza quanto a
tal evolução, é preferível formar pessoal treinável, com boa formação
geral, do que pessoas treinadas em determinadas especialidades, que
poderão se tornar ociosas ou supérfluas, não se ajustando ou se
ajustando com dificuldade a novas situações. Infelizmente, creio que
o sistema de formação de pessoal médico atual está cometendo este
último erro.
A universidade, igualmente, deveria ser reestruturada no que
diz respeito à criação de condições institucionais para o
desenvolvimento da pesquisa, como já foi mencionado. De fato, a
rigidez vigente na maioria das universidades brasileiras faz com que
os investigadores precisem, freqüentemente, dedicar ingentes esforços
não à própria pesquisa mas à criação de condições adequadas à sua
realização. Da rigidez mencionada decorrem dificuldades relativas à
obtenção de verbas, à contratação de pessoal auxiliar, ao
conseguimento de meios técnicos, como aparelhamento, livros e outros
itens necessários, ao atendimento a exigências burocráticas
freqüentemente descabidas ou exageradas, etc. Obviamente estas
condições deveriam estar institucionalizadas. É evidente a esterilidade
da repetição de tais esforços por parte dos pesquisadores. (8)
Acreditamos, também, que uma das principais missões da
Universidade, depois de formulada e posta em prática a política
científico-tecnológica preconizada, é realizar a avaliação continuada
da eficácia dos esforços que estejam sendo feitos. Diga-se, a propósito,
que, ao contrário das empresas privadas, quase todos os serviços,
ligados direta ou indiretamente ao Estado brasileiro, têm uma visível
aversão a se auto-avaliarem.
O próprio modelo de universidade brasileira e a importância
que, normalmente, confere à pesquisa científica original também se
coloca em questão, no caso. A Universidade, para realizar sua
parte nessa política científico-tecnológica para a área de saúde,
não poderia, simplesmente, limitar-se a uma passiva transmissão
de conhecimentos e habilidades prontos e acabados. “A ciência,
130 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
como sistema institucionalizado de conhecimento, reconstrói-se e
aperfeiçoa-se de modo incessante, em função do progresso do homem
no domínio e na utilização de suas formas de conhecimento. Para
poder transmitir essas formas de conhecimento, a universidade tem
de absorver o ensino das técnicas de pesquisa científica; para poder
acompanhar os progressos incessantes dos diversos ramos do
conhecimento científico, a universidade precisa produzir, por meios
próprios, pelo menos algumas parcelas daqueles progressos...”.(9)
8. CONCLUSÕES
Em face do exposto entendemos que a Política Nacional de
Saúde se interliga, em boa parte, à política de ciência e tecnologia, e
que uma e outra, se integram, por sua vez, na política social e
econômica global. Ou seja, os objetivos específicos de grandes campos
de atuação como a educação e a saúde serão, sobretudo, decorrência
daquilo que tenha sido definido em nível societário. Só depois dessa
definição pode-se propor para esses campos uma estratégia
específica. Por outro lado, para que os grupos encarregados de
executar os objetivos propostos se empenhem decisivamente em sua
tarefa é necessário que participem de sua formulação. Só assim eles
os assumirão como seus. Igualmente, como nenhum grupo social pode
se arrogar o monopólio da verdade, a definição desses amplos objetivos
a nível político deveria se realizar de um modo democrático.
A participação de cientistas e técnicos nessa formulalção, como
grupo social com interesses definidos, com respostas próprias às
questões que se colocam é de suma importância, como já se afirmou.
Mas a eles também cabe, freqüentemente e sobretudo, traçar meios
alternativos. Ainda que a decisão quanto ao uso destes meios
seja igualmente política, ela poderá se lastrear, em maior grau,
em argumentos menos emotivos, ocorrendo a participação
mencionada. Outro aspecto a assinalar é que a opção por uns e
não por outros meios gera subprodutos os quais são capazes,
inclusive, de produzir conseqüências não desejadas da ação
José Carlos de Medeiros Pereira
131
planificada, contrariando os objetivos propostos. Talvez os mais
sensíveis a estas conseqüências, quando imediatas, sejam os políticos
e não os cientistas e técnicos. Contudo, estes, muitas vezes, são mais
aptos a antecipar tais conseqüências quando mediatas e, ainda, a
avaliar com certa isenção a consecução dos ditos objetivos. Talvez
seja preciso uma auditoria externa para acompanhar o uso de meios
e a consecução dos fins propostos pela política escolhida. Isto remediaria
o costumeiro defeito (não só nosso, diga-se de passagem) de deixar
que os próprios executantes se auto-avaliem. É claro que esta é, no
momento, uma proposta inexeqüível. Mas a utopia, mudando as
circunstâncias, pode vir a se tornar realidade no futuro.
Para finalizar, queremos destacar, sobretudo com base nos
trabalhos citados de Florestan Fernandes, o que consideramos principal
na discussão até aqui estabelecida para a formulação de uma política
de ciência e tecnologia, nela incluída a área da saúde, definida e válida
para o Brasil. À guisa de conclusão, mencionaríamos os seguintes
pontos: 1) a redução ou mesmo eliminação da pesquisa inútil, que não
contribui para o avanço do corpo teórico da ciência, para o
conhecimento mais aprofundado ou específico de determinadas
questões, nem visa a aplicação, nisso não se incluindo as pesquisas
de treinamento; 2) a diminuição do desperdício de recusos materiais
e humanos; 3) o enfrentamento da dependência científica e
tecnológica; 4) a atenuação do domínio da economia nacional por
empresas multinacionais que dificultem, ou mesmo impeçam o
aproveitamento construtivo da produção científica e tecnológica
nacional original e dos recursos humanos formados; 5) a superação
dos obstáculos sócio-político-culturais a esse aproveitamento; 6) maior
resistência à tendência à importação de soluções tecnológicas
inadequadas às condições brasileiras ou que levam a uma maior
subordinação do país às economias centrais do sistema
capitalista; 7) a luta contra o vício arraigado, em boa parte dos
membros do sistema universitário, de maior preocupação com
interesses individuais e grupais do que com os objetivos mais
altos da ciência; 8) o encontro de soluções, ainda que parciais,
132 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
para vencer a tendência, também comum, de os grupos se degladiarem
numa competição estéril, isolando-se e conflitando-se, em vez de se
associarem para um trabalho profícuo; 9) a conscientização, dos
grupos e pessoas mencionados atrás, de que a integridade intelectual
é matéria a ser vivenciada, repelindo-se o dogmatismo existente em
certas áres com relação não só quanto aos alvos e métodos da ciência,
como quanto aos problemas sociais, políticos e econômicos envolvidos
na solução dos problemas da saúde, dogmatismo esse que se traduz
numa limitação da liberdade de pesquisa de temas e uso de métodos;
10) o estímulo à responsabilidade social dos cientistas e técnicos no
tocante ao aproveitamento dos resultados dos avanços da ciência e
da técnica ocorridos na área; 11) o abandono, pelos mesmos, da
carapaça de uma neutralidade inexistente, como justificativa
“racionalizadora” de seu próprio comodismo em face dos problemas
cruciais de saúde no Brasil; 12) a falta de entrosamento entre
instituições, grupos e pessoas para debaterem problemas que dizem
respeito à comunidade científico-tecnológica, ao sistema de atenção
médica e ao sistema social inclusivo, procurando soluções concretas
para os mesmos; 13) o debate a respeito do tipo de conhecimentos a
serem produzidos; 14) a criação de canais institucionais através dos
quais esses conhecimentos possam ser aproveitados construtivamente
pelo sistemas de atenção médica existentes ou a serem criados; 15)
a coordenação nacional do sistema científico-tecnológico, a fim de
evitar descontinuidade de esforços e subaproveitamento dos resultados
produzidos; 16) a apresentação de projetos viáveis e significativos,
não só do ponto de vista científico e técnico, como do ângulo societário;
17) a criação de condições para que os cientistas e técnicos formados
no país, na área e em outros, encontrem nele emprego produtivo,
evitando a “evasão de cérebros”; 18) o exercício de pressões coletivas
sobre empregadores (estatais e privados) para que os elementos
humanos que constituem (e vierem a constituir) quadros com propostas
alternativas, recebam estímulos adequados, sobretudo econômicos
(devendo-se deixar claro que o fazer ciência não pode ser concebido
como sacerdócio); 19) a reavaliação dos objetivos e funções da
José Carlos de Medeiros Pereira
133
universidade, pois sendo o principal centro de pesquisas do país,
necessita, para cumprir adequadamente sua missão, não só reformar
velhas-estruturas, como impedir que quaisquer alterações nas mesmas,
através da manutenção e mesmo expansão de interesses extracientíficos venham impedir (ou dificultar) o alcançar aquela missão;
20) a avaliação contínua dos resultados da política posta em prática,
cotejando-os com os objetivos propostos e realizando, conforme o
caso, alteração destes ou dos meios que estejam sendo utilizados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1 - Rattner, H. “Considerações sobre ‘Política Científica-Tecnológica’”,
Revista de Administração de Empresas, F.G.V., vol. 17, nº4, julh/
agosto de 1977, p.45;
2 – Idem, pp. 45-46;
3 - Lopes, J. L., “Ciência e Universidade no Terceiro Mundo: a experiência
no Brasil”. In Furtado, Celso, Brasil: Tempos Modernos, Editora
Paz e Terra, 1968, Rio de Janeiro, principalmente pp. 140-1, 145,
149-150;
4 – Fernandes, F., A Sociologia numa Era de Revolução Social, Cia Editora
Nacional, S. Paulo, 1963, cap. 1, “O cientista brasileiro e o
desenvolvimento da ciência”, p.11;
5 – Idem, Educação e Sociedade no Brasil, Dominus Editora/Editora da
USP, S. Paulo, 1966, parte 2, cap. 2, “Pesquisa e ensino superior”,
pp. 209-210;
6 – Idem, A Sociologia numa Era de Revolução Social, op. cit., 22;
7 – Rattner, H., op. cit., p.46;
8 – Fernandes, F. Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução?, Editora
Alfa-Ômega, S. Paulo, 1975, cap. 9, “ A universidade e a pesquisa
científica”, pp. 248-9;
9 – Idem, ibidem, nota 32 à p. 246.
134 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
6. ESPECIALIZAÇÃO NA
MEDICINA
135
136 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
137
6.1. SOBRE A TENDÊNCIA À ESPECIALIZAÇÃO NA
MEDICINA*
INTRODUÇÃO
A tendência à especialização na medicina é presentemente
universal nos países ocidentais. A profissão, que há duas décadas
mais ou menos tinha por protótipo o clínico geral, hoje,
praticamente, tem por protótipo o especialista. Isso dá a entender
que aquilo que era uma tendência, na verdade já se transformou
em norma. Nossa intenção aqui será discutir certo número de
condições e fatores geralmente considerados como responsáveis por
essa mudança e, em seguida, dar um enfoque diferente a essas
interpretações.
EXPLICAÇÕES CORRENTES
Há uma série de explicações correntes do processo. Talvez a
mais mencionada seja a que se refere à evolução da medicina como
ciência aplicada. Entende-se que tal evolução implicou numa
crescente complexidade técnico-científica que, do ponto de vista
prático, veio tornar muito difícil para a mesma pessoa dominar todo o
campo de conhecimentos abrangido pela medicina. Em outras
palavras, o próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologia
relacionadas com a prática médica teria forçado os médicos a, por
assim dizer, restringirem seu campo de atuação, especializando-se no
* Publicado originalmente em Educación Médica y Salud, vol. 14, nº 3 (1980): 252261.
138 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
campo restrito que pudessem dominar e, inclusive, aprofundar.
Freqüentemente, a sofisticação tecnológica no campo médico,
no caso brasileiro e outros assemelhados, está vinculada a nossa
dependência cultural (no amplo sentido), principalmente dos Estados
Unidos. Ao tomar como paradigma a medicina praticada neste último
país (efeito de demonstração), as instituições formadoras de médicos
e as classes de renda mais alta tenderam a valorizar positivamente o
profissional especialista. Em conseqüência, este se tornou o modelo
para os futuros médicos e alterou os conceitos sobre atendimento
médico “ideal” do restante da população.
O exemplo do professor-especialista, por sua vez, teria
influenciado os alunos no sentido de optar precocemente por uma
especialização ainda no próprio curso de graduação. A própria
precocidade da opção produziria neles certa insegurança quanto aos
seus conhecimentos globais, o que poderia inclinar os recém-formados
às especializações gerais num primeiro estágio e às
microespecializações num segundo. Além do mais, ao receberem
seu ensino em hospitais universitários, onde a sofisticação do
aparelhamento é a regra, vão se tornando mais e mais dependentes
de um complexo instrumental que só pode ser utilizado por quem
tenha conhecimento especializado de seu uso, o que dificultaria
posteriormente o abandono do setor restrito em que se especializaram.
Esse tipo de ensino de graduação também faria com que os alunos se
familiarizassem sobretudo com doenças raras, crônicas e
degenerativas, características de um nível terciário de atendimento,
que necessitam de cuidados médicos especializados em maior grau.
Em suma, a especialização seria estimulada já durante o período de
formação do futuro médico, a qual tenderia para dois aspectos
principais: a citada imitação do modelo de assistência médica vigente
num país desenvolvido e o aprendizado voltado para um padrão de
saúde e doença típico de países em estágio de desenvolvimento mais
avançado e não do Brasil, fazendo com que grande número de médicos
tenha uma formação relativamente inadequada para enfrentar a
realidade concreta de nosso país.
José Carlos de Medeiros Pereira
139
Outra explicação habitual refere-se à expansão da procura de
serviços médicos especializados, induzida, entre outros fatores, pelo
aceleramento dos processos de urbanização e industrialização e pela
conseqüente enorme ampliação do número de pessoas vinculadas à
Previdência Social. Quando esta passou a prestar assistência médica
aos seus associados, não só veio ao encontro de suas necessidades
sentidas, como estava interessada em prestá-la a baixo custo e a um
grande número de pacientes, diminuindo seus dispêndios com
afastamentos do trabalho, por exemplo. Nesse ponto, teriam entrado
em cena os interesses da “classe” médica e dos órgãos
governamentais. Assim, o credenciamento em massa de especialistas
por parte do INPS poderia indicar, de um lado, que o órgão
previdenciário considerou o atendimento médico por este grupo mais
satisfatório quanto à rapidez de recuperação do paciente; e de outro
lado, que esse credenciamento de especialistas procurou atender a
uma preocupação da “classe” médica, no sentido de diminuir suas
tensões internas, decorrentes da competição no mercado de trabalho.
Isto significaria que a política de saúde do Ministério da
Previdência Social (pois este é mais importante nessa matéria que o
Ministério da Saúde) respondeu a considerações não apenas ou
sobretudo médicas (desde que quantidade de pacientes atendidos a
baixo custo e a ampliação do mercado de trabalho para médicos não
podem ser tidas como considerações de cunho médico) mas também
de política econômica e social. Ademais, o processo de especialização
na medicina teria sido acelerado pela entrada dos órgãos
previdenciários no campo da assistência médica, por se haverem eles
rendido às pressões de interesses particularistas quanto à assistência
hospitalar, financiando, a juros baixos e a longo prazo, a construção e
o aparelhamento de hospitais. Essa política teria sido, ao mesmo tempo,
causa e efeito do grande destaque ganho pela assistência médica
hospitalar, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país, com a utilização
de equipamentos sofisticados e custosos. Poder-se-ia dizer que tal
tipo de assistência levou à ampliação do número de especialistas, já
que requer mais os serviços destes. Assim, tanto direta como
140 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
indiretamente, o INPS, com sua política de saúde, teria reforçado a
tendência à especialização.
Concomitantemente, ao nível de atendimento particular, ocorreu
uma promoção também acentuada de necessidades artificialmente
criadas (levando ao que Ivan Illich chamou de “medicalização” da
vida), cujo efeito real foi o aumento de assistência médica
especializada. Essa assistência, embora vindo atender à procura de
camadas que podem pagar, que dão preferência ao uso, por parte do
médico, de equipamento sofisticado e à confirmação de diagnósticos
através de exames laboratoriais e outros, repercutiu, em virtude do
citado efeito de demonstração, sobre as demais camadas sociais,
incentivando a especialização, inicialmente nas grandes cidades e,
posteriormente, em todo o país.
Quanto à oferta de serviços médicos, o aspecto mais relevante
que se tem buscado é o crescimento do número de profissionais, em
termos tanto absolutos como relativos. Não nos interessa aqui discutir
a razão da grande procura das escolas médicas por parte dos
estudantes em vias de entrar para um curso superior. Objetivamente,
o resultado do grande número de candidatos a futuros médicos foi
pressionar o Estado e estimular entidades privadas a instalar maior
quantidade de escolas de medicina. Se os novos médicos, em sua
grande maioria, se dedicassem à clínica geral, a competição entre
profissionais se tornaria por demais acirrada.
Outro fator freqüentemente citado entre os que teriam
contribuído para que a especialização se tornasse a regra é o de que
porção ponderável dos antigos clínicos gerais não se mantivera
atualizada sobre os avanços da medicina, prestando (com numerosas
exceções) serviços deficientes. Assim, teria sido natural que os jovens
médicos desejassem ostentar o título mais prestigioso de especialistas,
desvinculando-se de uma imagem que se estava tornando negativa.
Finalmente, mas sem exaurir o assunto, outro tipo de explicação
usa as tradicionais colocações a respeito do surgimento e evolução
do processo de divisão social do trabalho, cuja amplitude é uma das
caracteríticas centrais das sociedades econômica e socialmente
José Carlos de Medeiros Pereira
141
complexas. Em sua obra De la Division du Travail Social, Durkheim
considera tal divisão como conseqüência do aumento do volume e da
densidade da população. O processo teria levado a um tipo especial
de solidariedade entre os homens, a solidariedade orgânica, que teria
por fundamento suas diferenças, em contraposição à solidariedade
mecânica, em que tal fundamento seria suas similitudes. A função
social da divisão do trabalho, para Durkheim, seria a evitação do conflito.
Durkheim enfatiza pouco o aspecto econômico da divisão do
trabalho, ao contrário de Adam Smith (An Inquiry into the Nature
and Causes of the Wealth of Nation), que está interessado na divisão
técnica do trabalho como um dos principais meios de elevar sua
produtividade, fator primacial para se atingir o que, em linguagem
atual, seria o desenvolvimento econômico. No contexto destas
observações, dir-se-ia que a divisão social do trabalho levou ao
surgimento dos ofícios e profissões (como a de médico) e que o
avanço do processo produziu a divisão técnica dos próprios ofícios e
profissões (o especialista, em nosso caso), nitidamente voltada para o
objetivo consciente de produzir economicamente mais. A fragmentação
da profissão médica, como a das demais profissões liberais, ainda que
ocorrendo muitas décadas após o mesmo processo ter atingido os antigos
ofícios, teria causa semelhante: as exigências do sistema de produção.
UMA CONCLUSÃO PARCIAL
Ainda que não exaustivo, este conjunto de condições e fatores
teria militado em favor da especialização. Ainda que sua utilidade,
quando excessiva, seja quase sempre questionável em termos do que
se poderia entender por uma assistência médica “ideal” num país
como o Brasil, seria ela a expressão de um processo que atenderia,
de um lado, aos anseios dos próprios médicos, que poderiam manter
relativamente intacta sua coesão grupal, e viria, de outro, ao encontro
de ponderável parte daqueles que procuram assistência médica, que
se julgaria melhor quando prestada dentro do esquema da
especialização. Sob outro prisma, a tendência à especialização
142 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
permitiria aos médicos uma assimilação mais rápida dos avanços
técnicos e científicos ocorridos em sua área de atuação, melhorando
a qualidade dos serviços prestados. A possível elevação de seus custos
seria compensada pela rapidez e eficiência que se supõe estarem
associadas à especialização.
ALTERANDO O ENFOQUE: O OUTRO LADO DA
QUESTÃO
Sugerem as colocações anteriores que a intensificação da
especialização na profissão médica respondeu a um processo social
que beneficiou seus dois principais protagonistas: o médico e seu
paciente. No entanto, isso só ocorreu na aparência: se
aprofundarmos a interpretação, ela nos mostrará a outra face
da moeda. De fato, o movimento subjacente ao processo escapou ao
controle dos participantes, e principalmente aos próprios médicos. A
especialização na medicina, vista por um prisma diferente, se apresenta
como um produto de mudanças sócio-econômicas. Sendo produto,
não foi uma criação conscientemente planejada por médicos e
enfermos. Não há dúvida que uma das facetas mais características
dessas mudanças é a divisão técnica do trabalho. A realização de
tarefas cada vez mais específicas é uma constante na evolução da
sociedade humana, já que incrementa a eficácia e o aumento da
produtividade. A essa tendência, que se intensificou enormemente
nos dois últimos séculos, não escapou a medicina.
Resta, contudo, perguntar a quem de fato mais tem aproveitado
a fragmentação do trabalho. É sintomático que o processo se acelerou
à medida que o regime capitalista de produção sobrepujava regimes
em que predominava a reprodução simples do capital. A atividade
artesanal, responsável pela produção direta de bens, foi a
primeira a desaparecer, porque não atendia às necessidades do
processo de reprodução ampliada. Ao parcelamento dos ofícios,
seguiu-se o das profissões. Se é certo que o homem que realiza
um trabalho parcial torna-se capaz de efetuá-lo com maior perfeição,
José Carlos de Medeiros Pereira
143
rapidez e eficiência, por ficar restrito a uma porção do todo (como
mostrou Adam Smith no caso da fabricação de alfinetes), o mesmo
não ocorre, necessariamente, em profissões como a de médico, em
que o agente tem que ter a noção clara desse todo. Isto para não nos
referirmos ao que possa ocorrer com o trabalhador parcial, cujo grau
de alienação aumenta, como mostra Erich Fromm, entre outros.
A mesma atividade de coordenação que a especialização em
tarefas específicas impôs ao empresário, no caso do trabalho industrial
pulverizado, passou a ser necessária no caso dos médicos que, em
virtude de sua especialização excessiva, se tornaram incapacitados
de encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social e
cultural. Disso resultou uma forma de atendimento que é produto
comum de profissionais parciais, assim produzindo uma faca de dois
gumes: desde que se trate de encarar o homem enfermo como um
somatório de partes, cada qual suscetível de tratamento isolado, o
especialista pode proporcionar mais serviços médicos em quantidade
e qualidade; e tanto médicos quanto pacientes podem passar a
depender de uma instituição mais ampla, representada pelos serviços
estatais de assistência médica, empresas proprietárias de aparelhos
sofisticados, hospitais, laboratórios, etc. Do ponto de vista do prestador
de serviços médicos, o problema se desloca para o domínio daquele
instrumental; e do ponto de vista daquele que os recebe, para o de
seu atendimento como um homem integral e não fragmentado. A
eficácia do profissional em aspectos restritos não garante tal
atendimento.
Voltado para sua atividade parcial, a questão raramente preocupa
o especialista e, muito menos, o proprietário de “indústrias” que
pretendem, direta ou indiretamente, proporcionar saúde e/ou combater
a enfermidade. O primeiro tende a se aprofundar apenas em seu
campo limitado, desinteressando-se de outros, igualmente importantes
da perspectiva tanto individual como social, e perdendo mesmo, quando
transformado em ultra-especialista, a liberdade de atuação dentro da
própria profissão. Para ele, é mais difícil mudar de especialidade ou de
lugar de trabalho, ou mesmo desvincular-se de empregadores, que podem
144 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
existir em número limitado (algumas vezes representados tão-só pelo
Estado).
A atomização do trabalho médico pode levar também à
atomização de responsabilidades, em parte porque a excessiva divisão
técnica da profissão acentua a necessidade de serviços administrativos
de apoio, com o conseqüente realce da burocratização e possível
impessoalização das relações. Max Weber (Economía e Sociedad,
na tradução em língua espanhola) enfatiza a superioridade técnica da
organização burocrática, em decorrência exatamente de sua
imparcialidade, mas burocratização nem sempre significa
racionalização das atividades às quais se aplica. Independentemente
do significado dúbio do termo “racional”, é patente a freqüência com
que a instituição encarregada da organização dos meios tende a se
tornar um poder à parte e superior, subvertendo a hierarquia entre
meios e fins e perdendo de vista o objetivo central. Mesmo que isso
não ocorra, uma das conseqüências da intensificação do processo de
burocratização é tornar mais difícil e complicada a vida das pessoas
envolvidas. Como membro de uma organização burocrática, é difícil
ao médico não absorver um pouco de uma de suas mais marcantes
características, qual seja, a impessoalidade, que muitas vezes leva à
citada atomização de responsabilidades.
De qualquer modo, e isto é o fundamental, não procede atribuir
aos médicos, seja em nível individual ou grupal, a tomada de decisões
quanto ao avanço do processo de especialização na medicina. O
médico, o mais das vezes, torna-se especialista para se integrar ao
mercado de trabalho existente e não porque assim o tenha decidido
de moto próprio. Como especialista, poderá ter melhores oportunidades
de obter maiores salários ou honorários, porque o sistema de atenção
médica desenvolvido no Brasil privilegia o emprego de especialistas.
Nessa qualidade, mesmo nos raros casos em que possa ser o dono de
seus intrumentos de trabalho (porque a regra é o assalariamento, pelo
menos nos grandes centros urbanos), a vinculação a instituições tornase para ele quase obrigatória, desde que dificilmente estará em
condições de proporcionar atendimento aos pacientes encarados como
José Carlos de Medeiros Pereira
145
uma totalidade. Entendemos, pois, que é de todo procedente fazer-se
uma distinção entre o processo inicial de divisão social do trabalho e
seu desdobramento, a divisão técnica e profissional: o significado social
do primeiro processo é bastante nítido, enquanto, no segundo caso, é
maior a motivação econômica, não dos que sofreram o processo,
mas dos detentores dos meios de produção. Na divisão social, os
beneficiários são o conjunto da coletividade; na divisão técnica e
profissional, os prejudicados é que são muitos, e poucos os
beneficiários. Em tal situação, o especialista passa a ser vítima, porque
não encontra condições de exercer a clínica geral nem de proporcionar
assistência médica integral.
CONCLUSÕES
Através da inversão na análise e interpretação, verificamos
que o principal beneficiário da especialização provavelmente não é o
médico nem o paciente, mas a “indústria” de assistência médica. Não
se esgota nela, contudo, o número dos favorecidos pelo processo.
Também os setores industriais dedicados à produção de aparelhos e
instrumentos indispensáveis à medicina sofisticada, confundida, nem,
sempre com razão, com a de alto padrão. Uma colocação desse tipo
é necessária para evitar a tendência de encarar apenas o médico
levado à especialização como o agente mais importante através do
qual se pode e deve interpretar o problema. As pressões, condições e
fatores que desencadeiam e reforçam a tendência à especialização
são mais significativos: o mercado de trabalho médico, a intervenção
do Estado, as diversas esferas da produção voltadas para o setor
médico, os processos econômicos que condicionam e mesmo
determinam a divisão técnica e profissional do trabalho. Os pacientes,
por sua vez, são induzidos a valorizar o especialista com argumentos
nem sempre racionais. Quanto aos governos, incentivam a
especialização pressionados por todos os atores envolvidos e também
para diminuir tensões numa área sensível como o é a da saúde. E as
industrias farmacêuticas e de material utilizado na prática médica de
146 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
todo o tipo, seguindo a dinâmica do sistema capitalista, dependem da
criação de uma demanda (real ou artificial) cada vez maior de
medicamentos, aparelhos, instrumentos, etc.
Por outro lado, o conjunto do empresariado interessa-se em
aumentar a produtividade da força de trabalho mediante a melhoria
ou recuperação, a baixo custo, das condições de saúde desta. A
utilização de serviços médicos prestados por empresas e pela
Previdência Social, empregando especialistas que fragmentam o
atendimento, pretende fazer com que, mais rapidamente e a esse
custo mais baixo, a mão-de-obra, sobretudo a mais qualificada, seja
recuperada para a atividade produtiva. Contudo, neste ponto,
podem (ou poderão) surgir conflitos de interesse dentro do próprio
empresariado, quando parte dele, dedicada à “indústria” da
saúde, eleva os gastos com a assistência médica, e o restante,
empenhado em expandir seus ganhos, visa o aumento da
produtividade e, mais ainda, o da rentabilidade, o que implica
na diminuição dos custos dos serviços médicos, de tensões dentro e
fora das empresas, ou seja, no sistema social global.
Ora, o aumento da rentabilidade exige a ampliação da
demanda, o que pode ser prejudicado se os gastos com a atenção
médica se elevam em demasia, diminuindo a proporção das rendas
destinadas à aquisição de bens e serviços não médicos. Neste
sentido, cremos poder concluir que, para os participantes diretos
da relação, as conseqüências da especialização não foram
realmente benéficas, ou o foram em proporção bem menor do
que se costuma referir.
Sendo acertadas estas conclusões, não pode ficar sem reparo
o papel discreto e conservador que tem exercido a universidade
brasileira nesse particular, e especialmente suas faculdades de
medicina. A função criadora, que deveria ter como princípio diretor e
orientador um ponto de vista crítico, foi muito obscurecida. Uma e
outras exageraram seu papel de instituições transmissoras passivas
de conhecimentos, não agindo sobre o meio no qual estão inseridas,
mas tão-somente, de modo geral, recebendo seus influxos. Autênticas
José Carlos de Medeiros Pereira
147
instituições universitárias não se podem transformar em simples
agências formadoras de profissionais de nível superior, desvinculandose da missão maior que as define: o pensamento reflexivo e organizado
que não só afirma, mas, principalmente, duvida e nega, ou seja, crítico,
o que implica na apreciação do valor desse pensamento (sob todos os
aspectos) e da ação dele derivada.
Para exercer esse papel, a universidade precisaria agir sobre o
meio. Para isso, os professores universitários, que são sem dúvida o
que de mais importante existe na instituição, têm que atentar para os
problemas de sua realidade social, percebendo-os com maior clareza.
Feito o diagnóstico da situação, tão preciso quanto seja possível, o
passo seguinte é atuar no sentido de alterar seus aspectos que possam
ser considerados como indesejáveis. Ainda que a universidade seja
também, em grande parte, um produto de processos sociais mais gerais,
sobre os quais nem sempre pode atuar com vigor, nada obsta que aja
dentro dos limites que lhe são outorgados e que, diga-se de passagem,
podem ser alargados. Afinal, são os homens que fazem a história. A
maioria deles, é certo, tem condições excessivamente limitadas para
fazê-la. Não, porém, em nosso entender, os membros da comunidade
universitária. Se eles, de quem se espera tenham uma consciência
mais aprofundada dos problemas, e cuja posição é superior à da maior
parte de outros grupos sociais, não tiverem um mínimo de condições
para alterar os rumos de um processo social parcial, teríamos que
reconhecer que somos meros autômatos.
RESUMO
Da evolução da medicina como ciência aplicada à expansão
da procura de serviços médicos especializados, passando pela
influência do professor-especialista sobre a decisão precoce do aluno
de optar por um ramo especializado, o autor faz um apanhado de
explicações do processo de especialização, para concluir que um de
seus principais fatores é, no caso do Brasil, a política do sistema de
previdência social que favorece o especialista.
148 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
São também citados: 1) a preferência (nem sempre justificada)
do paciente — pelo menos o que pode pagar — pelo médico que
trabalha com equipamento sofisticado; 2) o interesse econômico da
indústria que produz ou possui esse equipamento; 3) o desejo do médico
novo de escapar à acirrada competição que o esperaria na prática
geral; 4) o interesse de muitos médicos, novos ou não, de se
descartarem da imagem um tanto negativa de parte de antigos clínicos
gerais que não se mantiveram a par dos avanços da medicina.
Examinando a questão no contexto de teorias sociológicas
da divisão social e técnica do trabalho, assinala o autor que o
processo conduziu à atomização de responsabilidades entre
médicos, que a especialização excessiva tornou incapacitados
de encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social e
cultural.
José Carlos de Medeiros Pereira
7. SOBRE TUBERCULOSE
(com Antônio Ruffino Netto)
149
150 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
151
7.1. MORTALIDADE POR TUBERCULOSE E CONDIÇÕES DE VIDA: O CASO RIO DE JANEIRO*
I – INTRODUÇÃO: O PROBLEMA
Voltou-se hoje, como num passado não muito remoto da história
da Medicina, a enfatizar a importância de fatores não-biológicos
determinantes da morbidade e da mortalidade. Em algumas
enfermidades a influência de tais fatores é mais nítida. Entre elas a
tuberculose. Nesta, já ficou patente que sua causa necessária é menos
significativa do que as condições suficientes. A simples presença do
bacilo de Koch não basta para causá-la. Freqüentemente, os fatores
de ordem social, econômica e cultural têm que estar presentes para
que a moléstia se desenvolva. Assim sendo, muitas vezes, alterações
nas condições de vida das pessoas são fundamentais para explicar
modificações em sua incidência e prevalência.
Entendemos que os dados de mortalidade por tuberculose
(coeficiente/100.000 habitantes), no antigo Distrito Federal (hoje,
município do Rio de Janeiro), no período de 1860 a 1977,
apresentados na figura 1 (8, 12, 13)1 poderiam exemplificar o que
estamos afirmando. A impressão geral é de que se trata de uma
doença cuja mortalidade está declinando progressivamente, com
velocidades aparentemente diferentes de acordo com períodos
*Artigo redigido em colaboração com Antônio Ruffino Netto. Publicado originalmente em Saúde em Debate, Nº 12, 1981, pp. 27-34.
1
Deve-se assinalar que os dados referentes ao período de 1860 a 1940 foram recuperados a partir da referência 12, pág. 48.
152 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
históricos.
Uma vez que estes dados estão apresentados em escala
aritmética, qualquer conclusão seria um tanto precipitada podendo
levar a inferências descabidas. Projetando-se, contudo, estas
informações numa escala semi-logarítmica (apresentada na figura 2)
é possível perceber que a “curva total” é composta por 3 retas, que
traduzem a tendência de mortalidade por tuberculose a declinar com
velocidades desiguais, de acordo com diferentes períodos. Assim é
que para o período que antecede 1885, encontrou-se:
log y = 24,7611 – 0,0117X;
para o período que medeia entre 1885 e 1945, encontrouse:
log y = 11,4965 – 0,0046X;
após 1945 encontrou-se:
log y = 75,9634 – 0,0378X
onde:
y = coeficiente de mortalidade/100.000
x = ano calendário.
José Carlos de Medeiros Pereira
153
Apesar de se tratar de dados de qualidade discutível, sendo em
parte, inclusive, recuperados a partir de um gráfico, é inegável que
houve decréscimo nos coeficientes de mortalidade por tuberculose
em períodos em que, praticamente, não havia ocorrido nenhum avanço
significativo no tratamento da enfermidade por tuberculostáticos.
Dado que a tendência do fenômeno (mortalidade) se apresenta
sob forma de 3 retas 2 , sendo 2 “relativamente” paralelas,
imediatamente nos perguntamos: “que fatores teriam condicionado
2
Se se tentasse ajustar uma única regressão para o período de 1860 a 1945, a reta
seria dada por : log=15,7622 - 0,0069X, onde se observa um coeficiente de declínio
(0,0069) que é cerca de 1,7 vezes menor do que o observado no período 1860-1885
(0,0117), ou seja 0,0117/0,0069=1,7; por outro lado, seria 1,5 vezes maior do que o
observado no período 1885-1945 (0,0046), ou seja, 0,0069/0,0046=1,5. Estas
considerações reafirmam a conveniência de se tratar o problema da tendência como
constituído por 3 retas separadamente.
154 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
tal comportamento?”. Formulamos um conjunto de hipóteses tentando
explicar as diferentes velocidades de declínio expressas pelas 3 retas.
Uma primeira hipótese poderia ser a busca de uma interpretação
que analisasse o fenômeno de um ponto de vista estritamente biológico.
Assim é que, quando se pensa nas relações hospedeiro-parasita alguns
epidemiologistas(1) assinalam que haveria diferentes períodos: numa
primeira etapa das relações entre hospedeiros e parasita resultariam
a doença e a morte. Existiria, contudo, um imperativo biológico que
levaria ambas as espécies a sobreviverem e alcançarem uma condição
de equilíbrio depois de muitas ondas epidêmicas que, gradualmente,
iriam se amortecendo, passando-se assim de uma situação epidêmica
para uma endêmica. Haveria, desta forma, uma modificação marcante
(quantitativa e qualitativa), na relação hospedeiro-parasita, passando
por períodos de flutuações epidêmicas, períodos de flutuações
decrescentes (ondas amortecidas) e período de endemia.
Para comprovar tais colocações, ARMIJO (1, pp. 6-9) lança
mão de 3 tipos de argumentos: a) história da medicina (mostrando
estatísticas de mortalidade por escarlatina em Liverpool no período
de 1849 a 1925, bem como as variações ocorridas na mortalidade
por sarampo e difteria); b) epidemiologia experimental; c) epidemias
geradas teoricamente.
Assim, para a tuberculose (biologicamente falando), seria
de se esperar que após sua introdução no Brasil3 , estivéssemos, desde
muito antes de 1860, numa etapa de ondas epidêmicas decrescentes.
Milita contra a aceitação desta teoria o fato de que ela poderia
ser válida para uma população relativamente fechada, com movimentos
migratórios desprezíveis, especialmente externos, o que,
absolutamente, não se aplica ao caso em tela. De fato, nele, as relações
hospedeiro-parasita não ocorreram dentro da situação teórica,
hipotética, descrita, e sim no interior de uma sociedade cuja estrutura
populacional (qualitativa e quantitativamente) estava apresentando
mudanças tão rápidas que poderiam alterar completamente o
3
Atribui-se ao Pe. Manuel da Nóbrega, chegado em 1549, o ter sido a primeira
fonte conhecida de infecção neste país (12, p. 17).
José Carlos de Medeiros Pereira
155
comportamento da tendência da doença.
Em face disso é que entendemos que as variações assinaladas
devem ser atribuídas, fundamentalmente, a modificações nas condições
de existência da população carioca, sobretudo das classes sociais
desafortunadas. Esta constatação nos encaminha ao exame de
possíveis transformações ocorridas na formação econômico-social,
representada pela região do Rio de Janeiro, ou mesmo pelo Brasil, no
período em discussão. Serão algumas destas modificações, que
reputamos terem sido expressivas, que apontaremos e discutiremos a
seguir.
II – PRIMEIRO PERÍODO: 1860-1885
Em relação ao primeiro período e parte do segundo, cremos
que as modificações observadas na curva de mortalidade,
possivelmente, estão bastante vinculadas com alterações ocorridas
na economia cafeeira. Esta se desenvolveu inicialmente, como se
sabe, no Vale do Paraíba, tanto em terras da província do Rio de
Janeiro, como em regiões de Minas Gerais e São Paulo ligadas à
capital do Império. O período de fastígio do café, no Vale do Paraíba,
segundo STEIN (17), ocorreu entre 1850 e 1864, sendo o período de
decadência o representado pelo último quartel do século passado.
Isto está de acordo com as indicações de CELSO FURTADO (6, pp.
137-138), que mostra como os anos 30 e 40 do século XIX foram de
preços declinantes para o café, ao passo que a partir de 1850 as
cotações passaram a apresentar-se em alta. Disso se poderia concluir
que a maior parte do terceiro quartel do século passado se constituiu
num período de prosperidade para toda a região cafeeira do Vale do
Paraíba voltada para o Rio de Janeiro. Quanto à própria cidade, é de
supor-se que as modificações das condições de vida nela imperantes
se tenham processado no sentido de favorecer uma existência mais
saudável.
Presumimos, igualmente, que a prosperidade proporcionada pelo
café repercutiu na composição demográfica da cidade. Em primeiro
156 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
lugar, essa prosperidade teria atraído imigrantes europeus desejosos
de se aproveitarem do crescimento econômico gerado pela cultura
do café, seja como prestadores de serviços, seja como elementos
vinculados ao seu comércio. É preciso que se diga que a expansão
econômica do Vale do Paraíba foi possível, em grande parte, graças a
capitais e créditos fornecidos pelo capital financeiro internacional da
época. No Rio de Janeiro estabeleceram-se casas exportadoras (e
importadoras) e outros intermediários. Não seria descabido conjecturar
que os estrangeiros atraídos pelas possibilidades econômicas abertas
por essa expansão fossem mais saudáveis do que os habitantes nativos.
Em segundo lugar, a criação de empregos em maior número e mais
rendosos, aliada ao fato de que a cidade era o centro do Império,
proporcionando aos seus moradores, com condições de se acercarem
do poder, possibilidades de maior ascensão social e política, exerceria
atração sobre pessoas de condição sócio-econômica elevada
residentes em outras partes do Brasil. Esse movimento migratório,
por ter atraído pessoas com menores possibilidades de serem
portadoras de tuberculose ou de a contraírem, repercutiria no
decréscimo do coeficiente de mortalidade por essa enfermidade.
Esse processo de europeização e de embranquecimento da
cidade, indicado acima, vinha já desde a vinda da família real para o
Brasil. No entanto, um outro fenômeno migratório que teria contribuído
para isso, a diminuição do número relativo de negros e mulatos
escravos poderia ter sido determinado por uma utilização crescente,
pela lavoura cafeeira, de seres humanos vivendo em condição servil
antes utilizados em serviços domésticos e outros afazeres urbanos.
Julgamos que se teria passado algo semelhante ao que ocorreria
posteriormente na cidade de São Paulo: quando o chamado “oeste
paulista” ultrapassou o Vale do Paraíba como principal região produtora
de café do Brasil, houve deslocamento da mão-de-obra escrava da
capital para o interior, afluxo de libertos para a capital e acréscimo da
população branca graças à fixação de imigrantes (4, pp. 9/10). Dado
que a condição de vida do escravo sujeitava-o a um muito maior risco
de se infectar pelo bacilo de Kock, qualquer redução relativa de seu
José Carlos de Medeiros Pereira
157
número contribuiria para o decréscimo dos coeficientes de mortalidade
por tuberculose.
A intensificação das influências sócio-culturais européias, que
se estava operando desde há muito, como se disse atrás, manifestouse numa série de alterações na forma de viver do povo brasileiro.
Elas abrangeram o tipo de habitação, hábitos alimentares, vestimentas,
vida familiar etc. Gilberto Freire entende ter havido uma
“reeuropeização” da sociedade brasileira, com importantes mudanças
nos hábitos coloniais. A progressiva ocidentalização teria restringido
as velhas influências orientais (2,5).
Vale a pena destacar alguns dos aspectos anteriores que
passaram a ser criticados. No caso da habitação, a alcova, local do
sono, na casa colonial estava situada no centro da residência. Ela
“não dispunha de aeração, iluminação ou qualquer outra comunicação
com o exterior” (2:100; 5:419). Calcado em Freire e F. P. Candido,
afirma J. F. Costa que, “do ponto de vista da higiene, a habitação
antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada,
impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos ‘maus
ares’, ventos e miasmas foi cruamente atacada pelos médicos como
insalubre e doentia”. Em seus “Relatórios sobre as medidas de
salubridade reclamados pela cidade do Rio de Janeiro”, Francisco de
Paula Candido afirmaria: “As casas do Rio de Janeiro parecem
destinadas antes a Lapônia ou à Groelândia do que à latitude tropical...
uma fatal alcova, dormitório predileto, escura e modesta sala com um
corredor escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto de
saúde, pouco mais escura do que a sala da frente, mas munida de
infalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea” (2,
p. 110: 5, pp. 433-4).
Com a “reeuropeização” da cidade, estimulada pela imigração
de maior número de europeus, facilitada pela melhoria das condições
econômicas e ativada pela ação dos médicos, a casa vai se tornando
mais higiênica. Já durante a estada da família real, haviam sido abolidas
as rótulas ou gelosias. Paulatinamente, as casas, até então escuras e
úmidas, passam a apresentar outras características, com janelas e
158 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
portas mais amplas. Ganhavam outra aparência, com modificações
no seu interior. Concomitantemente, há mudanças nas roupas e nos
hábitos higiênicos; desenvolvem-se novos gestos, rituais e atitudes (2,
pp. 123-150).
De qualquer forma, as alterações na arquitetura levaram à
construção de casas com melhores condições de aeração e de
insolação. As casas do período anterior, bastante fechadas e escuras,
visando proteger seus moradores dos “miasmas”, provavelmente
seriam, ao mesmo tempo, excelentes ambientes à manutenção do
bacilo de Kock e sua transmissão. Trabalhos bem recentes no campo
da Tisiologia têm mostrado a preocupação e o interesse dos
pesquisadores em relação a essas condições de manutenção e
transmissão do bacilo de Kock (14, 18), assinalando o quanto a
ventilação e insolação são elementos importantes no controle da
tuberculose. Tal ocorrência, por si só, possivelmente, teve grande efeito
nas condições de transmissão da doença e, portanto, na epidemiologia
da enfermidade no período assinalado.
Importantes para a compreensão do fenômeno que estamos
discutindo serão também as mudanças operadas nos costumes, hábitos
familiares e valores. As mulheres, por exemplo, são incitadas a sair
mais de dentro de suas casas. O mais significativo, talvez, tenha sido,
contudo, a transformação ocorrida no papel representado pelo escravo
doméstico. Ele passou a significar uma ameaça à saúde, principalmente
para as crianças, tendo sido “alinhado junto com os miasmas, insetos
e maus ares” (2, p. 122). Entendemos que o fator fundamental nessa
exclusão dos escravos do serviço doméstico esteja relacionada com
sua crescente utilização na lavoura cafeeira, onde o capital por ele
representado seria muito mais rentável. Não se deve ignorar,
entretanto, o efeito de demonstração constituído por aristocratas
portugueses e burgueses estrangeiros que acorriam ao Rio de Janeiro,
que raramente admitiam negros ao seu serviço. De qualquer forma,
também os brasileiros começaram a dispensá-los.
Outro estímulo nesse sentido foi dado pelos médicos, que
passaram a responsabilizar os negros pela perpetuação de hábitos
José Carlos de Medeiros Pereira
159
incultos, de maneiras grosseiras e rudes e de serem fonte de variados
males, constituindo uma ameaça para a saúde (2, pp. 125-6). Uma
das conseqüências da exclusão dos escravos do ambiente familiar,
em termos de processo de transmissão do bacilo de Kock, foi de
que, com ela, diminuiu bastante a excessiva aglomeração de pessoas
sob o mesmo teto, existente no começo do século XIX. Luccock,
por exemplo, “calculava que o número de pessoas numa casa do Rio,
em 1808, era de 15”, enquanto Gendrin estimava que “numa família
comum havia 7 ou 8 negros” (2, p.84). A par disso, os médicos da
época passaram a apontar, cada vez mais, a inconveniência de muitas
pessoas dormirem no mesmo quarto. Mais ainda fizeram os médicos.
O Dr. Paula Candido, presidindo a Junta Central de Higiene da capital
do Império, conseguiu, junto ao Parlamento, que fossem adotadas
novas medidas sanitárias para início de controle da tuberculose. “Assim
é que, pelo Decreto nº 6.387, de 15 de novembro de 1876, os serviços
sanitários, em diversas cidades do Império, foram reorganizados” (12,
pp. 43-44). Muitas das leis baixadas a partir de 1870 estavam
relacionadas com as condições de habitação. Tanto assim que,
“de 1876 a 1886 foram baixados cinco decretos e um aviso ministerial,
além de várias instruções, relativamente à polícia sanitária domiciliar.
Preocupava-lhes muito o problema das condições higiênicas das
habitações coletivas, chamadas ‘cortiços’ e as epidemias de varíola,
febre amarela, disenterias, visitantes habituais da cidade” (12, p.45).
Em suma, percebe-se que uma série de fatores interatuantes
poderia estar, no período em causa, interferindo na epidemiologia da
tuberculose e, conseqüentemente, na mortalidade pela mesma.
III – SEGUNDO PERÍODO: 1885-1945
No segundo período continuou a decrescer a taxa de
mortalidade por tuberculose, ainda que o ritmo da queda tenha
declinado, passando 0,0117 para 0,0046 (ou seja 2,5 vezes menor).
Este declínio não significou uma piora das condições de vida. Teria
sido como se, nesse intervalo de tempo, os fatores positivos e negativos
160 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
tendessem a um certo equilíbrio, ainda que com predomínio dos
primeiros. Muitos daqueles a que nos referiremos a seguir propiciaram
antes melhores condições de vida do que piores, ainda que, às vezes,
possam ter atuado, durante algum tempo na segunda direção. Isto
explicaria a queda do ritmo. Lancemos mão de um exemplo: a
expansão do processo de industrialização no antigo Município Neutro.
Geralmente este processo, em seus primórdios, é visto como tendo
contribuído para a piora daquelas condições, sobretudo porque
tendemos a compará-lo com o acontecido na Inglaterra.
Nesta, no entanto, o avanço do capitalismo industrial significou
a transformação do artesão e do camponês em assalariados. Isto
implicou seu despojamento da propriedade dos meios de produção de
que gozavam. No Brasil as coisas não se passaram do mesmo modo.
As condições de trabalho na indústria eram igualmente péssimas.
Ocorre que as condições de vida anteriores eram também desumanas.
O trabalhador industrial brasileiro, no início do processo, geralmente,
ou tinha sido escravo ou um homem livre que não encontrava
lugar num sistema econômico-social em que se era escravo ou
senhor. Disso decorreu a existência de uma população marginal nas
cidades (11) inclusive, e talvez principalmente, no Rio de Janeiro.
Do mesmo modo que usamos a industrialização para
exemplificar nosso raciocínio, poderíamos ter usado outros processos,
como os de migração e de urbanização. Enfim, cremos que, no
conjunto, a partir da década de 1880, os fatores e condições
intervenientes melhoraram menos significativamente as condições de
existência, quando as comparamos com tempos anteriores.
Julgamos que, também neste período, as variações observadas
na taxa de mortalidade por tuberculose estão grandemente
relacionadas, pelo menos nas primeiras décadas do mesmo, com a
economia cafeeira. Ao contrário do que ocorrera nas décadas
anteriores, o último quartel do século passado foi de decadência
dessa economia no Vale do Paraíba.
Uma das repercussões graves dessa situação teria sido a queda
do poder aquisitivo dos grupos ligados à economia cafeeira, com
José Carlos de Medeiros Pereira
161
conseqüências negativas sobre a atividade comercial e de serviços
em geral, agravada pela tendência desses grupos de minimizarem
suas perdas através do conhecido processo de socialização dos
prejuízos, mediante a depreciação externa da moeda. Tal processo
acabava encarecendo excessivamente o preço dos produtos
importados, os quais constituíam parcela importante dos bens
consumidos por uma população como a do Rio de Janeiro. Isto teria
produzido uma piora do padrão de vida da população da cidade.
A queda de produção e de preços do café, aliada ao definitivo
solapamento do regime escravocrata em 1888, determinou um
movimento migratório de ex-escravos para o Rio Janeiro. Se
permanecessem nas zonas cafeeiras decadentes do Vale do Paraíba,
teriam que se submeter a condições de trabalho “substancialmente
análogas às anteriores” ou teriam de se integrar na economia de
subsistência (4,p.5). Entre estas duas opções teriam optado, em grande
parte, pela migração para o Rio de Janeiro.
Nesta cidade, possivelmente, viveram em condições
precárias de vida. De um lado, por não estarem preparados para
competir por posições estratégicas no sistema econômico, coube-lhes
os setores residuais da economia (4, pp.5-6). De outro, porque teriam
resistência a venderem sua força de trabalho, tendendo a identificar
liberdade com o não-trabalho, “com o direito de não fazer nada” (4,p.
56; 3). Ora, para que alguém venda sua força de trabalho é preciso
não somente que seja despossuído de meios de produção, mas também
que esteja ideologicamente disposto a vendê-la, não preferindo “à
condição de assalariado, a miséria e mendicidade” (15, p.45). Em
vista disso, possivelmente, suas condições de vida, mormente em
termos de alimentação e de moradia, deviam ser precárias.
Conseqüentemente, é de se supor que sua saúde também o fosse,
tornando-se pessoas mais predispostas a desenvolverem a tuberculose
doença.
Se os antigos escravos resistiam à sua transformação em
trabalhadores assalariados, submetendo-se com dificuldade “à
disciplina própria à produção capitalista”, também uma parcela de
162 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
brasileiros brancos despossuídos tendiam à mesma resistência. Isto
porque, no Brasil, era máximo o preconceito contra o trabalho braçal
por estar identificado com uma atividade exercida por escravos. Em
conseqüência, qualquer depressão dos setores de serviço poderia fazer
com que piorassem as condições de vida, inclusive sob este aspecto.
A decadência da economia cafeeira do Vale do Paraíba teria
ainda contribuído para o grande crescimento demográfico da cidade.
Tinha ela, conforme os dados dos Censos gerais, 274.972 habitantes
em 1872, 522.651 em 1890, 811.443 em 1900, 1.157.873 em
1920 e 1.764.141 em 1940, do que se depreende que o grande salto,
em termos demográficos, ocorreu no último quartel do século passado.
É que, sabidamente, com a crise do café, há um refluxo dos colonos
para as cidades (7, pp.45), em busca de empregos na burocracia, nos
serviços e mesmo na indústria em expansão. A cidade “incha” em
termos populacionais e, dadas suas condições geográficas, que
dificultam a ocupação do espaço, as habitações “sobem” os morros.
Cortiços e favelas tornam-se locais de moradia. Estamos diante de
uma urbanização sociopática que facilita a disseminação da
enfermidade.
Inversamente, a crise cafeeira no Vale do Paraíba induz a um
abandono do mesmo por parte de grandes plantadores, que são atraídos
pelo oeste paulista. Da mesma forma, ela leva a um déficit imigratório,
com muitos dos melhores elementos estrangeiros buscando outros
países, como a Argentina e os Estados Unidos. De fato, em 1900,
pela primeira vez, o número de emigrados do país superou o de
imigrados para ele, sendo que em 1903 o excesso de saídas sobre o
de entradas superou 18.000 pessoas (11, p. 219). De modo geral, as
pessoas que migram são as mais competentes, ativas e esforçadas. É
claro que se poderia dizer o mesmo dos migrantes internos que
procuraram o Rio de Janeiro. No entanto, é de se presumir que os
que saíam eram mais saudáveis do que os que chegavam. Além do
mais, estes vão enfrentar condições de vida mais precárias pelo próprio
excesso de pessoas vivendo na cidade.
A migração é facilitada pelas estradas de ferro. A que se dirigia
José Carlos de Medeiros Pereira
163
a São Paulo, a D. Pedro II, alcançou seu ponto terminal em Cachoeira,
em 1874 (9, p.74), quando a lavoura cafeeira entrava em decadência.
Destacaremos aqui não tanto o fator de prosperidade por ela
representado, e sim o fato de que sua existência não só facilitou a
procura do Rio de Janeiro pelos migrantes, como a expulsão de seus
problemas sociais pelas cidades menores do Vale do Paraíba.
Realmente, muitas vezes, as pequenas cidades se deparam com um
menor número desses problemas, em relação às metropóles, em
decorrência de tenderem a repeli-los para estas últimas. Entre tais
problemas, poderíamos incluir todos os socialmente indesejáveis, que
são pressionados a abandoná-las, inclusive os tuberculosos, vítimas,
especialmente no século passado, de sério estigma social. Dentro
dessa mesma linha de raciocínio é possível levantar outra hipótese. A
de que a diminuição do ritmo de queda dos coeficientes de mortalidade
por tuberculose decorreria, parcialmente, do fato de que essa
facilidade de comunicação permitiria às pessoas doentes
demandarem em maior número o centro de assistência médica que
era o Rio de Janeiro.
Entre os fatores negativos que poderiam contribuir para essa
diminuição poderíamos, talvez, incluir também a migração estimulada
pela grande seca de 1877-80 que despovoou o interior nordestino.
Ainda que a maior parte dos migrantes se tenha dirigido para o vale
amazônico, uma parcela dos mesmos, habitantes dos Estados mais
ao sul da região, se dirigiram tanto para São Paulo como para o Rio
de Janeiro. Tratando-se de pessoas geralmente subnutridas, com
resistências orgânicas reduzidas, pode-se conjecturar que se tenham
constituído presa mais fácil para a moléstia. Acrescentaríamos
igualmente a esse conjunto de fatores negativos a expansão da
burocracia com a instauração da República. A incorporação aos
quadros da organização burocrática, pressupomos, freqüentemente
significou vida sedentária, trabalho em ambientes fechados, pouco
ensolarados e arejados, com roupas inadequadas ao clima da cidade.
Julgamos, contudo, que o processo social mais importante
ocorrido no período e ao qual se poderia atribuir boa parte da explicação
164 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
pelo acontecido com a curva de mortalidade por tuberculose, teria
sido, ao lado do de urbanização, o de industrialização. A indústria em
expansão no Brasil, desde o final do Império e nas primeiras décadas
do período republicano, concentrou-se no Distrito Federal.
Evidentemente, as condições de trabalho vigentes nos primeiros
estabelecimentos industriais deviam ser bastante insalubres,
especialmente se considerarmos que mais da metade dessa atividade
ocorria no setor têxtil. Assim é que, em 1889, 60% do total do capital
industrial estava aplicado nesse setor, (16, p.16), no qual,
reconhecidamente, as condições de trabalho são geralmente piores.
Em relação à primazia do Distrito Federal no parque industrial
brasileiro, isso fica claro, quando nos utilizamos dos dados do Censo
Industrial de 1907. Nessa data, nos 3.250 estabelecimentos industriais
brasileiros trabalhavam 150.841 operários, sendo que, à capital
de República, cabiam 30% da produção total, 24% do operariado e
20% dos estabelecimentos (16, p.17), ou, mais precisamente, 670
empresas e 35.243 operários (15, p.84). Nessa época, São Paulo
contribuía com 16% da produção total. Já pelo Censo de 1920 existiam
no Distrito Federal 1.541 estabelecimentos industriais, nos quais
trabalhavam 56.229 operários.
Nas primeiras décadas, esse desenvolvimento industrial usou
mão-de-obra que não encontrava lugar na economia cafeeira e que
se fora concentrando no Rio de Janeiro. É claro que a remuneração
era baixa, tendo sido este, inclusive, um dos principais fatores da
prosperidade dessa indústria. De fato, essa “população marginal, sem
ocupação fixa e meio regular de vida, era numerosa”, encontrando
dificuldade em se “entrosar normalmente no organismo econômico e
social do país. Isto (...) resultava em contingentes relativamente
grandes de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e
aleatória e que davam, nos casos extremos, nestes estados
patológicos da vida social, a vadiagem criminosa e a prostituição
(...). A indústria nascente (...) encontrará naqueles setores da
população um largo, fácil e barato suprimento de mão-de-obra”
(11, p.203).
José Carlos de Medeiros Pereira
165
As novas condições de vida proporcionadas pelo trabalho
industrial, mal remunerado e ao mesmo tempo insalubre, poderiam
ter contribuído para manter relativamente elevada a incidência da
tuberculose entre os trabalhadores industriais. É de se supor,
contudo, que o grosso das vítimas da enfermidade estivesse
concentrada nessa população marginal, sem ocupação fixa, a que se
refere Caio Prado Jr., pois o desenvolvimento industrial carioca não é
de molde a ocupar toda ela. Além do mais, estava essa população em
constante crescimento, devido à atração exercida pela cidade grande,
capital do Império e da República, sobre pessoas de todo o Brasil
mas, principalmente, sobre as que antes habitavam o Vale do Paraíba
e que não encontravam, nas pequenas “cidades mortas” da região,
possibilidades de subsistência.
Vários acontecimentos, como a Primeira Guerra Mundial,
as constantes crises do café, o “crack” do capitalismo mundial de
1929-30, a Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial, não
foram de molde a alterar significativamente para melhor a situação
que expusemos.
IV – TERCEIRO PERÍODO: APÓS 1945
Num período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial,
aumenta a velocidade de declínio da curva por tuberculose. Ela passa
agora a 0,0378. Entendemos que esse aumento de velocidade foi
devido ao fato de que convergiram condições e fatores de natureza
sócio-econômica, que melhoraram o padrão de vida de grande parte
da população vivendo exclusivamente no Rio de Janeiro, e fatores de
ordem estritamente médica, como a utilização extensiva e intensiva
de tuberculostáticos.
A industrialização se intensificou no período subseqüente
ao final da guerra, mercê de um processo de substituição de
importações grandemente estimulado pela deterioração das
relações de troca. De fato, com a queda acentuada dos preços
dos produtos primários no mercado internacional, tivemos cada vez
166 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
menos capacidade de continuar importando produtos industrializados
e, portanto, fomos obrigados a produzi-los internamente. Com isso,
houve possibilidade de absorver uma porção razoável de mão-deobra pelo setor industrial e por setores comerciais e de serviços
altamente beneficiados pela expansão da indústria. Os salários reais
até mesmo subiram, principalmente a partir da segunda presidência
de Vargas e até 1958 pelo menos.
Mesmo quando estes começaram a cair, com a política salarial
posta em prática a partir da segunda metade da década de 60, o fato
de as indústrias continuarem a se concentrar no município, mas não
grandes parcelas da população trabalhadora, poderia explicar aquela
continuada curva de mortalidade. De fato, é possível que a população
moradora das cidades-dormitórios não contribua para a mortalidade
geral e específica da cidade do Rio de Janeiro. Assim, assumimos a
hipótese de que grande parte da população moradora nesta é
beneficiária do processo de industrialização, da expansão do turismo,
do desenvolvimento dos serviços públicos etc. e que, ao mesmo tempo,
parte ponderável da população trabalhadora, que poderia ser a mais
prejudicada, em vista de morar na Baixada Fluminense, não contribui
para a elevação de suas taxas de morbidade e mortalidade. Da mesma
forma que a descentralização de atendimento dos tuberculosos (como
se verá adiante) retirou grande número deles da cidade, a
impossibilidade de muitos trabalhadores viverem na mesma, diminuiria
a mortalidade por tuberculose.
É possível também que o Rio de Janeiro se tenha beneficiado
com a transferência da capital para Brasília. Tornando-se menos
atrativa, em termos de migração interna, diminuiu seu ritmo de
crescimento demográfico, com repercussões positivas naquelas taxas.
Talvez até mesmo atraia, em proporção igual ou até maior do
que no passado, pessoas de elevada posição sócio-econômica,
que nela passam a residir.
Sendo, além do mais, uma cidade que concentra parte
razoável das classes possuidoras e dominantes, a prosperidade
geral do país repercute sobre ela. Mais ainda. É sabido que há
José Carlos de Medeiros Pereira
167
uma tendência de os governos aplicarem mais recursos materiais nas
regiões próximas ao poder. Especialmente depois da redemocratização
do país em 1945, quando os chefes do poder executivo dependiam do
voto das grandes cidades, o Rio de Janeiro pode ter atraído benefícios
para si, com a elevação da arrecadação de impostos e taxas federais,
por ser, ao mesmo tempo, grande cidade e capital do país.
Quanto a medidas de caráter médico-preventivo desenvolvidas
no período, é preciso que consideremos que muitas delas só alcançam
certa repercussão depois de alguns anos, de modo que incluímos aqui
algumas tomadas durante a Segunda Grande Guerra. É de 1940, por
exemplo, o Plano Federal de Construção de Instalação de Sanatórios
que previu o término do Sanatório do Distrito Federal que fora iniciado
em 1937 (12, pp. 127-138). Em 1941 foi criado pelo Departamento
Nacional de Saúde o Serviço Nacional de Tuberculose (SNT), ao
qual caberia dedicar-se, especificamente, ao estudo dos problemas
relativos à tuberculose e ao desenvolvimento de meios de ação
profilática e assistencial (12, pp. 144-152). No ano seguinte criaramse, naquele Departamento, cursos de aperfeiçoamento e especialização
em Tisiologia (12, pp 141-2). De 1942 a 1945 o SNT instalou e
inaugurou vários sanatórios por todo o Brasil, estendendo a assistência
aos tuberculosos do interior do país, procurando evitar seu afluxo
para as capitais. Outras atividades desenvolvidas pelo SNT, a partir
de 1942, poderiam modificar a epidemiologia da doença, entre as quais
um censo torácico-tuberculínico em todo o país (tentando vacinar os
analérgicos, orientar os já infectados e isolar os bacilíferos). Tal censo
foi efetuado através de núcleos fixos e móveis. Núcleos fixos foram
instalados no próprio Distrito Federal e, no Estado do Rio de Janeiro,
em Volta Redonda e Petrópolis, enquanto um móvel, fazendo pião em
Campos, foi instalado num vagão da Estrada de Ferro Leopoldina,
servindo a zona norte fluminense.
Em 1946 foi criada a Campanha Nacional Contra a Tuberculose
(CNCT) (12, pp. 169-192), que passou a coordenar todas as atividades
de controle da doença, dando-lhes uniformidade de orientação e de
comando, ainda que sugerindo a descentralização dos serviços. As
168 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
atividades da CNCT aumentaram, sem dúvida, a eficiência do
programa de controle da enfermidade, alterando,dessa forma, seu
quadro de mortalidade, não só no Rio de Janeiro como em todo o
país.
Por fim, devemos ressaltar a grande contribuição para o declínio
das taxas de mortalidade determinada pela utilização dos
tuberculostáticos: estreptomicina a partir de 1948; ácido para-aminosalicílico (PAS) a partir de 1949; hidrazida a partir de 1952 (12, p.
48).
V – COMENTÁRIOS FINAIS E CONCLUSÕES
Ainda que a qualidade dos dados trabalhados seja discutível,
como já foi assinalado na “Introdução”, parece-nos ser inquestionável
uma alteração significativa na tendência secular de mortalidade por
tuberculose no Rio de Janeiro. Ressalte-se, além do mais, a adequação
do uso de dados de mortalidade para se estudar a epidemiologia dessa
enfermidade. Afirma A. Pio a respeito: “a mortalidade é o indicador
mais apropriado para a descrição epidemiológica do problema e a
objetivação do propósito de mudança. Sua escolha se justifica porque
a mortalidade, além de ser o indicador de que se dispõe de melhor
informação, é ainda de alta magnitude na maior parte da população”
da América Latina (20).
O conjunto de hipóteses levantadas neste trabalho procurou
destacar a importância dos fatores inespecíficos para explicar a
alteração da tendência. De fato, os métodos de controle da tuberculose
(entendidos como ações de saúde que interferem no ciclo natural
de transmissão da doença) podem ser classificados em
específicos e inespecíficos. Entre estes, tem-se enfatizado a
relevância do desenvolvimento sócio-econômico que “determina,
entre outras coisas, uma melhoria nas condições de alimentação,
aumentando as defesas naturais inespecíficas e, portanto,
diminuindo o risco de morbidade dos infectados; de habitação,
diminuindo o grau de contato entre o caso bacilífero e o grupo
José Carlos de Medeiros Pereira
169
humano que o rodeia; e de atenção médica, diminuindo o tempo entre
a aparição da doença e o tratamento”. Quanto aos métodos específicos
(vacina, quimioprofilaxia, diagnóstico e tratamento), têm eles “um efeito
direto sobre a transmissão da infecção, o risco de ficar doente, e
morrer por tuberculose” (10).
Mesmo sem ter esgotado todas as possíveis hipóteses
explicativas das tendências periódicas observadas, julgamos poder
concluir que, apesar de ser marcante o impacto determinado pelos
métodos específicos de controle da tuberculose, não menos
significativo é o efeito dos métodos inespecíficos. Acrescente-se que
a repercussão destes é muito mais abrangente, em termos de saúde,
dado que a melhoria das condições de vida reduz a morbi-mortalidade
de grande número de doenças e não apenas da tuberculose.
RESUMO
Os autores analisam os dados de mortalidade por tuberculose
na cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977. Através de
uma metodologia específica evidenciam que a curva de velocidade
de declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressões distintas,
equivalentes aos períodos 1860-1885; 1885-1945 e após 1945.
Efetuando um estudo da formação econômico-social da
cidade, região (e mesmo do Brasil) destacam alguns fatores
(econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) que
apresentam como hipóteses explicativas para as diferentes
velocidades de declínio.
Concluem que apesar de ser marcante o impacto determinado
pelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menos
significativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle
(melhoria de condições de vida).
170 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Classes, São Paulo, 1964.
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5. Freire, G., Sobrados e Mocambos, 2ª ed., Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1951, apud Costa, Jurandir Freire, op. cit.
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Cultura S. A., Rio de Janeiro, 1959.
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São Paulo, s/d.
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programas integrados, Publicación Científica nº 376, 1979.
11. Prado JR., Caio, História Econômica do Brasil, 4ª edição, Editora
Brasiliense, São Paulo, 1956.
12. Ribeiro, L., A Luta Contra a Tuberculose no Brasil, Editorial Sul Americana
S/A, Rio de Janeiro, 1956.
13. Rocha, E. P. da, “A mortalidade por Tuberculose no Estado da
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14. Rouillon, A.; Perdizes, S. & Parrot, R., “La transmissión del bacilo
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Brasiliense, São Paulo, 1961.
José Carlos de Medeiros Pereira
171
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13, The Royal Netherlands Tuberculosis Association, The Haye,
1971.
19. Taunay, A. d’E., História do Café no Brasil, D.N.C., Rio de Janeiro, 19391943, apud Silva, Sérgio, op .cit.20. Pio, A., “Normas técnicas y
administrativas para elaborar e implementar programas de
tuberculosis”, OPAS, Referência CD/TB/5, 1975.
172 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
7.2 - SAÚDE-DOENÇA E SOCIEDADE
A TUBERCULOSE – O TUBERCULOSO*
1 – INTRODUÇÃO
De um modo geral, na visão da doença pelos técnicos da área
de saúde, busca-se um relacionamento entre fatores (guardando uma
“racionalidade interna”) tentando descrever o que se chama história
natural da enfermidade. Assim é que encontramos uma série bem
grande de “ciclos biológicos” de bactérias, parasitas, fungos, etc. já
muito bem descritos e elaborados sem margem para maiores
contestações. Uma vez descritos estes ciclos, tem sido preocupação
daqueles que militam na área da Saúde Pública descobrir elos da
referida cadeia que sejam mais frágeis e/ou vulneráveis para aí atuarem
na tentativa de reduzir o problema focalizado.
É certo que a história tem mostrado que alguns destes elos
foram profundamente estudados, trabalhados e, quando
manuseados, capazes de causar um impacto marcante na redução
do problema. Exemplo deste fato é a vacinação antivariólica.
Nosso propósito porém, dado que discorreremos sobre
problemas de saúde humana, é, ao voltar nossa atenção para os ciclos
biológicos das doenças, focalizá-la num determinado ponto do ciclo
(independentemente do seu tamanho) no qual surge o homem
(esquema 1).
Na quase totalidade dos casos, a busca da “racionalidade
interna” da cadeia epidemiológica procura ver o círculo descrito como
*Artigo escrito em colaboração com Antônio Ruffino Netto e publicado originalmente
em Medicina, 15 (1 e 2): 5-11, 1982.
José Carlos de Medeiros Pereira
173
se fosse uma letra O ou um zero. Contrariamente a este modo de ver,
no presente trabalho enfatizaremos o fato de que esse ciclo único
(um zero), pode ser transformado em pelo menos 2 ciclos (isto é, num
oito) que tem um ponto em comum, qual seja um homem, histórico,
concreto, que preenche um lugar no tempo e no espaço (esquema 2).
O questionamento da razão daquele homem ocupar aquele lugar e
naquele tempo, poderá mais facilmente explicar porque ele fatalmente
será engajado num ciclo biológico de uma doença qualquer.
(ESQUEMA 1)
(ESQUEMA 2)
A reflexão sobre esta maneira de encarar o problema mostranos que impactos seguramente serão causados, na redução da doença,
174 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
atuando-se tanto no ciclo I como no II. A eficácia e eficiência da
atuação num ou noutro ou em ambos deveria ser devidamente
analisada pelos militantes da Saúde Pública ainda que varie sua visão
do problema.
A título de ilustração, tomaremos a tuberculose. No ciclo I,
mostraremos como o problema biológico é visto e o que tem sido
obtido; quanto ao ciclo II, não cabe mostrar “cadeia de fatores”, mas
tão somente que as relações sociais globais é que levam aquele
determinado indivíduo a ocupar aquele determinado ponto do ciclo
biológico num instante dado, no qual, freqüentemente, se tornará um
tuberculoso. Vê-se, de imediato, que a solução do problema do
tuberculoso está muito restrita ao ciclo I, enquanto o entendimento do
processo gerador da tuberculose tem o seu componente explicativo
no ciclo II.
2 - TUBERCULOSE COMO EXEMPLO DO PRESENTE
OBJETO DE REFLEXÃO
2.1 – Ciclo I – Ciclo biológico (“O Tuberculoso”)
Uma das formas mais claras e objetivas de visualizar o
encadeamento entre os diversos estados da doença capaz de
proporcionar um modelo de interferência, levando a ações de controle
da tuberculose no ciclo natural da transmissão da infecção, é
apresentado no esquema 3 (OPS, 1979):
Na referida publicação são analisadas detalhadamente cada
uma das setas do esquema 3, isto é: A – risco de infecção; B – risco
de adoecer; C – cura espontânea ou com tratamento específico; D –
letalidade; E – transmissão da infecção; bem como qual seria o impacto
esperado através de cada um dos meios (chamados “específicos”)
de controle da doença: vacinação BCG, quimioprofilaxia, localização
e tratamento dos casos.
José Carlos de Medeiros Pereira
175
(ESQUEMA 3)
Assim, vacinação com BCG em recém-nascidos e dos
tuberculino-negativos diminuiria em 80% o risco de adoecer (B); a
quimioprofilaxia com hidrazida, nos tuberculino-positivos, diminuiria
em 90% o risco de adoecer durante o período de medicação e em
70% nos 5 anos seguintes.
Segundo PIO (1975), como resultado esperado de um programa
adequado de controle da tuberculose, “vai-se produzir uma aceleração
na diminuição dos atuais indicadores da tuberculose. Pode-se
prognosticar uma mudança brusca na mortalidade, especialmente em
menores de 15 anos. Com um programa eficaz de vacinação BCG,
em poucos anos, deveriam desaparecer as mortes por tuberculose
nas crianças. Por outro lado um programa eficaz de diagnóstico e
tratamento deverá influir rapidamente na mortalidade dos adultos”.
...”Em caso de contar com a informação sobre o risco de infecção,
deve-se considerar que, se o programa é eficaz, a incidência de
infecção irá diminuindo a uma velocidade não menor que 10% ao
ano.” ...”Se a diminuição é menor que 10%, pode-se duvidar da
176 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
eficácia do programa”.
2.2 – Ciclo II – Ciclo social (“A Tuberculose”)
Em publicação recente, RUFFINO NETTO & PEREIRA
(1981) analisaram os dados de mortalidade por tuberculose (todas as
formas) na cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977
(esquema 4)
(ESQUEMA 4)
Através de uma metodologia específica, evidenciaram que a
curva de velocidade de declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressões
distintas (esquema 5), equivalendo aos períodos: 1860 a 1885; 1885 a
1945 e após 1945.
Chamando-se y = coeficiente de mortalidade (por 100.000) por
tuberculose e x = ano calendário, encontraram:
- para o período 1860-1885:
„
log y = 24,7611 – 0,0117x;
- para o período 1885-1945:
„
log y = 11,4965 – 0,0046x;
José Carlos de Medeiros Pereira
177
- para o período 1945-1977
„
log y = 75,9634 – 0,0378x.
Efetuando os autores um estudo da formação econômica social
da cidade, região (e mesmo do Brasil) destacaram alguns fatores
(econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) que
apresentam como hipóteses explicativas para as diferentes velocidades
de declínio da mortalidade. Concluem que apesar de ser marcante o
impacto determinado pelos “métodos específicos” de controle da
tuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodos
inespecíficos de controle (melhoria de condições de vida).
(ESQUEMA 5)
2.3 – Impactos sobre o problema da tuberculose
Apesar da qualidade discutível dos dados de mortalidade
utilizados no trabalho referido (fato esse que foi amplamente discutido
178 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
no próprio artigo) é possível evidenciar que nas 3 velocidades de
declínio (-0,0117; -0,0046 e –0,0378), no caso dos dois primeiros
períodos assinalados, o declínio foi decorrente sobretudo de influências
de ações praticadas ao nível do ciclo II, enquanto só no terceiro período
ter-se-ia destacado a influência de ações ao nível do ciclo I.
Em outras palavras, houve grande declínio da mortalidade por
tuberculose, inclusive numa época em que era praticamente
desconhecido o ciclo biológico (ciclo I) da doença.
3 – DISCUSSÃO
Queremos salientar que a referência à tuberculose foi feita em
termos de exemplo. De fato, a preocupação que nos norteou na
redação do presente trabalho foi mostrar como, na explicação
cabal da produção tanto da saúde como da doença entre os homens,
na quase totalidade dos casos, é preciso ter em conta as relações
sociais globais (ou seja, econômicas, políticas, culturais, etc.) ao nível
da realidade social concreta. A Medicina alopática que, no presente
século, se tornou a oficial, dado seu positivismo cientificista, tende a
fragmentar excessivamente os fenômenos e processos que estuda,
além de tecnificar problemas que, freqüentemente, são antes sociais
do que própriamente médicos. Neste sentido é que ousaríamos afirmar
que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é
incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia
e melhores condições higiênicas de vida, a incidência e a prevalência
da doença de Chagas, possivelmente, diminuiriam em proporção maior
do que quando se tentam aquelas soluções técnicas. Estas, ao não se
voltarem para as condições sociais de existência da população afetada,
mantêm intocada a estrutura social determinante da doença. Da
mesma forma, poderíamos nos referir ao combate à esquistossomose.
Neste caso, há uma extensa discussão a respeito de quais os melhores
moluscocidas; de qual o elo mais fraco: o caramujo ou o parasito na
fase de miracídio ou de cercária. Semelhantemente, diríamos que se
as pessoas vivessem em condições de não precisar entrar em contacto
José Carlos de Medeiros Pereira
179
com águas infestadas a doença diminuiria de muito, independentemente
de quaisquer outras medidas.
Em todos estes exemplos, a discussão epidemiológica,
freqüentemente, parte de um pressuposto que nos parece errôneo, ou
seja, o da inevitabilidade da presença do homem numa determinada
cadeia epidemiológica, que chamamos de ciclo biológico tipo zero.
Em nosso entender, o homem não necessariamente participaria da
cadeia se as relações que estabelece com os outros homens e com a
natureza fossem diferentes da que está ocorrendo naquele lugar e
naquele momento histórico. Por isso insistimos em que a explicação e
a solução globais do fenômeno doença e da razão da manutanção da
saúde, devem alicerçar-se na constatação de uma cadeia
epidemiológica tipo oito, em que se englobam as relações sociais que
determinam ou condicionam a participação do homem num
determinado ciclo biológico.
Sem que tais relações sociais sejam levadas em consideração,
há uma inevitável tecnificação das questões, o que, convenhamos,
constitui um modo pouco científico de explicação e de solução de
problemas. É que, neste caso, nos limitamos a enfrentar a doença
já produzida, voltando-nos para a série de causas necessárias
que a provocaram, deixando de lado aquelas condições
suficientes, sem a presença das quais a moléstia não se instalaria
naquele terminado organismo biológico. Evidentemente, este
modo de proceder constitui uma solução correta em face do
problema individual existente, mas não como explicação e solução,
ao nível coletivo, do fenômeno doença, que está inserido em processos
ao mesmo tempo biológicos e sociais.
A resistência ou dificuldade da visão positivista de ciência de
realizar uma rotação de perspectivas e encarar uma questão qualquer
sob óticas diferentes das usuais, radica não apenas na já mencionada
excessiva fragmentação do objeto de estudo, em que se procura
analisá-lo não em sua totalidade mas em termos de relações limitadas
entre um número de variáveis também limitado. Ela se enraiza,
igualmente, na tendência de se voltar para as características universais
180 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
da produção do fenômeno, a exemplo das ciências físicas sobretudo;
estas, realmente, tratam com universos contínuos, em que as diferenças
podem ser, geralmente, impunemente desprezadas. Não é o caso de
qualquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em
termos societários, a desconsideração da descontinuidade do universo
com que estamos tratando inevitavelmente nos conduzirá a uma visão
limitada, por ignorar as especificidades e diferenças características
do universo social.
Assim, voltando-nos novamente para os exemplos fornecidos
pelo estudo da tuberculose, diz-se que numa determinada população
há uma incidência x e uma prevalência y da doença; que um doente
infecta um certo número de pessoas com as quais manteve contacto;
que, dos infectados, uma determinada porcentagem se torna bacilífera
e outra não; que a letalidade da doença é z. O raciocínio está
formalmente correto. Contudo, se não nos voltarmos para as diferenças
sociais de incidência da doença na população, nossas constatações
serão, concretamente falando, incorretas. Isto porque serão
principalmente alguns segmentos da população, ou seja, determinados
grupos ocupacionais e classes sociais, que serão afetados, enquanto
outros o serão pouco ou nada. Ao nos preocuparmos com as diferenças,
imediatamente descobriremos que, tendo em conta a divisão da
população em classes, grupos e segmentos sociais, aqueles índices
ou coeficientes referentes à população global constituem mera
abstração. Realmente, se o fenômeno se comporta diferentemente
por razões sociais e não em decorrência de causas biológicas, incidimos
em erro quando estudamos esse mesmo fenômeno utilizando apenas
variáveis biológicas. Como as pessoas não enfermam e morrem
segundo tão-somente estas variáveis, a desconsideração do ciclo II,
o mais importante na explicação da variabilidade da produção da
doença, faz-nos obter resultados falsos, já que a população é uma
abstração, se deixarmos de lado suas divisões.
É em decorrência do fato de as relações sociais variarem
historicamente que existe também uma historicidade das doenças.
Ao desconsiderar de que modo de produção se trata, as especificidades
José Carlos de Medeiros Pereira
181
da formação social concreta com sua peculiar estratificação social, a
estrutura social na qual o fenômeno se manifesta, estrutura esta em
que seus membros têm direitos e deveres diferentemente distribuídos,
acabamos construindo um modelo ideal que diverge flagrantemente
da realidade social concreta à qual queremos aplicá-lo.
Conseqüentemente, nossa explicação e atuação serão parciais. Tal
parcialidade não é percebida porque a atuação decorrente, técnica,
aparentemente neutra, socialmente asséptica, ao produzir resultados
(no caso do combate à tuberculose, embora não no caso de outras
moléstias), vem ao encontro de necessidades percebidas sem, ao
mesmo tempo, em nada afetar a estrutura social.
4 – CONCLUSÕES
A explicação e a solução do fenômeno representado pelo
binômio saúde-doença, para atingirem a máxima plenitude, devem
considerar toda a riqueza de determinações da totalidade na qual o
fenômeno se manifesta. Assim sendo, já que não é absolutamente
inevitável que os homens participem de uma determinada cadeia
epidemiológica, haveria que estudar as razões vinculadas à estrutura
social que os fazem dela participar. Por outro lado, uma vez que o
fenômeno varia por razões sociais, tal variabilidade teria que ser
estudada sob esse prisma principalmente e não apenas por uma ótica
que privilegia as variáveis biológicas. Sendo o universo social
descontínuo, com especificidades e diferenças marcantes, constitue
mera abstração considerar a população como um todo,
desconsiderando suas divisões em classes sociais, grupos
ocupacionais etc. e a historicidade da estrutura social na qual o
fenômeno se produz. Em termos de solução pois de problemas de
Saúde Pública, se nos voltarmos exclusivamente para os “ciclos
biológicos” das doenças, chegaremos a soluções muito parciais, com
eficácia freqüentemente discutível e com eficiência que pode ser muito
baixa.
182 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
RESUMO
Os autores, tomando como exemplo a tuberculose, propõem
um esquema diverso do usual para representar o ciclo biológico de
certas doenças, nas quais os fatores sociais são essenciais.
Comumente, o ciclo é representado sob a forma de uma letra O.
Entendem que se poderia pensar em pelo menos dois ciclos, tendo
como ponto comum o homem, ficando o esquema transformado num
8. Neste segundo ciclo o fundamental seriam as relações sociais
globais, que levam o homem a entrar no ciclo biológico de uma doença
qualquer. Desta forma, ficaria claro que nem sempre é inevitável que
os homens participem de determinada cadeia epidemiológica. Isso
levaria mais facilmente o investigador e o técnico, em suas
interpretações e nas soluções propostas, a considerar a estrutura
social e suas características especifícas, que fazem com que a
doença se individualize em uns homens e não em outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. OPS – (Organización Panamericana de la Salud) – Control de tuberculosis
in Americana Latina. Publicación Cientifica nº 376, OPS, 1979.
2. Pio, A. – “Normas técnicas y administrativas para elaborar e implementar
programas de tuberculosis”. OPS – Referência: CD/TB/5, 1975.
3. Ruffino Netto, A. & Pereira, J. C. – “Mortalidade por tuberculose e condições
de vida: o caso do Rio de Janeiro”. Revista Saúde em Debate 12:
27-34, 1981.
José Carlos de Medeiros Pereira
8. DOENÇA DE CHAGAS
RESENHA DE TESE
183
184 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
185
8.1. A EVOLUÇÃO DA DOENÇA DE CHAGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO*
A tese de doutoramento do médico Luiz Jacintho da Silva, sob
o título acima, foi apresentada ao Departamento de Medicina Social
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP e defendida em
12 de fevereiro de 1981, tendo recebido o louvor da banca
examinadora. O autor é professor de Medicina Preventiva da
Universidade de Campinas. Trata-se de um trabalho de excelente
nível e bastante original em seu modo de procurar compreender a
evolução da endemia chagásica em nosso Estado. Esta evolução foi
vista em termos das transformações por que passou a totalidade
representada pelo espaço social e geográfico correspondente à região.
Mostrou como nesse espaço, construído pelos homens nas relações
que estabelecem entre si e com a natureza, a partir de certo momento
criaram-se condições mais favoráveis à disseminação da mais
importante espécie de barbeiro responsável pela veiculação da doença,
o Triatoma infestans, por ser a mais domiciliar de todas.
O processo responsável pela alteração do espaço, que facilitou
essa disseminação, teria sido a cafeicultura estritamente capitalista,
ou seja, a baseada na utilização da mão-de-obra livre, em
contraposição à cafeicultura escravocrata. A região onde se
desenvolveu esta última, o Vale do Paraíba, sempre foi indene,
enquanto que nas demais, à medida que avançava a frente pioneira,
estimulada pelo café, ampliavam-se os limites da zona endêmica da
doença de Chagas. O autor defendeu a hipótese de que a doença
deve sua existência “a um conjunto de relações determinadas pelas
* Publicado originalmente, como resumo de tese, em Medicina, 14 (3 e 4): 51-53,
1981.
186 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
características do espaço”. Como a organização deste é um produto
histórico, dependente das relações sociais e econômicas que nele se
estabelecem, a própria doença é também um evento a ser analisado
sob uma perspectiva histórica. No caso da doença de Chagas, a
estrutura e organização sociais associadas à cafeicultura eram de tal
molde que facilitaram a disseminação do T. infestans. É que essa
organização do espaço social e geográfico se caracterizava, ao
contrário do período escravocrata, por uma cada vez mais intensa
mobilidade social, por interações sociais freqüentes e pelo aumento
da densidade demográfica. O barbeiro é, desse modo, transportado
mais facilmente de um local para outro, além de o número maior de
pessoas chagásicas, vivendo juntas, proporcionar melhores condições
para a infecção dos próprios insetos.
De fato, sabendo-se que o barbeiro com características mais
domiciliares (a espécie infestans), introduz-se numa dada região
“através do transporte passivo, geralmente entre os pertences de
migrantes”, o autor da tese adota a hipótese de se poder aceitar a
existência de um “limiar de contato humano entre os domicílios, acima
do qual seu transporte seja eficiente, e que este contato deve estar na
dependência direta da distribuição espacial destes mesmos domicílios
e do grau de interação social dos seus ocupantes”. O T. infestans se
tornaria mais facilmente endêmico onde a distribuição dos domicílios
fosse mais densa e maior a interação social entre os habitantes. Por
isso é que a região de cafeicultura escravocrata do Vale do Paraíba
teria permanecido indene. As fazendas eram compactas do ponto de
vista da habitação, estando todas as casas situadas muito próximas
dentro da fazenda, mas a grandes distâncias das demais fazendas.
Os contatos sociais eram quase inexistentes entre escravos de
diferentes fazendas e a mobilidade social espacial quase nula, pois,
freqüentemente, um escravo nascia e morria dentro da mesma
fazenda.
Com a desarticulação do espaço social e geográfico onde a
endemia estava presente no Estado de São Paulo, ela foi
desaparecendo, a ponto de hoje, em nosso Estado, praticamente
José Carlos de Medeiros Pereira
187
inexistir a transmissão natural da doença. Esta desarticulação do
sistema de relações sociais e econômicas se deveu à menor
importância da cafeicultura na economia do Estado; ao fato de que a
frente prioneira, tendo atingido as fronteiras do Estado, essa lavoura
foi cada vez mais desenvolvida em outras regiões; à intensificação da
industrialização paulista e ao avanço do processo de urbanização. É
claro que a tudo isso se devem somar as campanhas de Saúde Pública
visando o controle da doença de Chagas. A preocupação com a
doença, no entanto, teria sido estimulada, no começo da década de
50, pela preocupação com a recuperação das terras rurais do Estado
e, junto com isso, a recuperação do homem rural paulista.
O fundamental, contudo, foi a modernização da agricultura, que
levou a uma diminuição da mão-de-obra ocupada no setor primário.
Intensificou-se o esvaziamento do meio rural paulista; a população
diminuiu não só em termos relativos como absolutos. Assim, é que
enquanto em 1950 a população rural era de 4.330.212, ela passou, em
1970, para 3.460.019 com uma variação para menos de 870.193
habitantes. Com isso diminuiu de muito o número de domicílios. Entre
1960 e 1970, desapareceram 270.388 moradias na zona rural paulista.
Certamente as que foram destruidas eram as que estavam em piores
condições, justamente aquelas favoráveis ao barbeiro. Em suma, com
a diminuição da população rural, diminui o número de indivíduos
infectados que possam ser picados pelos barbeiros, ficando prejudicada
a circulação do Trypanosoma cruzi, de uma pessoa a outra, através
daquele vetor.
Um dos pontos altos do trabalho realizado diz respeito ao
fato de o autor ter abordado a doença de Chagas não só num
contexto histórico, mas procurando entender esse contexto como uma
totalidade. Além disso, ao contrário do que ocorre freqüentemente
nos trabalhos epidemiológicos que procuram incorporar o social como
se este fosse constituído principalmente por características de pessoas
(como, por exemplo, nível de renda, escolaridade, ocupação etc.), o
prof. Luiz Jacintho da Silva percebeu, nitidamente, que tais
características, o mais das vezes, são apenas um produto de forças
188 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
sociais mais profundas que só podem ser adequadamente
compreendidas quando se presta atenção ao bosque e não às arvores
que o compôem. Esse bosque, essa totalidade, foi captado através da
noção de espaço geográfico, mas um espaço construído pelo homem.
Ainda que a totalidade realmente utilizada, possivelmente, ultrapasse
o nível de espaço geográfico, para apanhar também o da formação
econômico-social correspondente, o fato digno de nota é que o trabalho
encampa uma visão geral do mundo, especialmente das razões que
levaram à mudança social e econômica e a alterações da saúde e da
doença na região estudada.
Uma das contribuições mais significativas do trabalho está em
que ele, praticamente, construiu um modelo de estudo da evolução da
endemia chagásica. Creio que o modelo se construiu quando o autor
mostrou tanto o conjunto de eventos que levou à disseminação da
doença, como aquelas situações que, ao se desviarem daquele padrão,
levam à diminuição ou mesmo ao desaparecimento da endemia.
Construído o modelo, ele poderá ser aplicado a outros contextos
geográficos e históricos, proporcionando uma possibilidade de
comparações e, conseqüentemente, de pôr à prova as hipóteses
defendidas pelo autor. Esta possibilidade tem uma enorme significação
no estudo da determinação social da saúde e da doença.
9. VÁRIOS
190 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
José Carlos de Medeiros Pereira
191
9.1. A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL*
Os problemas de saúde, vistos do ângulo da Medicina Social (o
que significa dizer do ângulo sócio-econômico), implicam num estudo
das enfermidades tendo em conta a população, os grupos que a
compõem, o sistema econômico e social. Não se trata de estudar
apenas a história natural da enfermidade num indivíduo, como faz o
clínico, mas ter em conta os diferentes riscos a que estão expostos os
vários grupos constitutivos da sociedade e por quê. A interpretação
desses porquês exige que nos voltemos para as relações entre o meio
ambiente e o homem, o meio e o agente e, sobretudo, para as relações
entre os homens (o ambiente sócio-econômico-político-cultural). Um
dos principais aspectos desse último ambiente decorre da diferente
distribuição da riqueza entre os vários grupos, diferenças estas que
estão ligadas à propriedade e não-propriedade, ao assalariamento,
ocupação, possibilidade maior ou menor de conquistar prestígio e poder.
Outros aspectos derivados seriam hábitos, costumes, situação de
moradia, tipo de trabalho, lugar de residência, tipo e qualidade de
alimentação etc.
Quando verificamos alguma relação significativa entre aspectos
sócio-econômicos e a incidência-prevalência de uma enfermidade ou
mortalidade por ela, temos que alterar os aspectos desse meio que
estão contribuindo para o aumento dessas taxas. A dificuldade está
em que, para alterar as influências sócio-culturais, econômicas etc.
vamos nos deparar com fortes resistências, sobretudo de natureza
política e econômica, além de barreiras propriamente sociais e
culturais. Aos médicos, individualmente e mesmo como classe, não
* Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e na
Tribuna de Batatais de 24 de junho de 1981.
192 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
cabe a tarefa de realizar mudanças societárias. Mas como grupo
cônscio de fatores extramédicos que estão afetando a saúde da
população, ou parte dela, pode caber, pelo menos, a responsabilidade
científica e social de chamar a atenção para tais fatores.
Sem nos preocuparmos excessivamente com a estrutura e
funcionamento de um sistema econômico e social em particular,
poderemos, usando uma classificação do Prof. Hernán SAN
MARTÍN (Salud y Enfermidad, Ecología Humana. Medicina
Preventiva y Social), indicar alguns fatores sociais que podem
freqüentemente relacionar-se com a enfermidade. Alguns deles dizem
respeito a características culturais de grupos raciais, nacionais,
religiosos e outros, como hábitos alimentares, educação, condição
social dos sexos e dos diferentes grupos etários etc. É preciso dizer,
porém, que muitos fatores que parecem estar relacionados a certos
aspectos sócio-biológicos, podem derivar do fato de que o grupo é
discriminado social, econômica, política e culturalmente pela sociedade
inclusiva, como ocorre freqüentemente com os negros em quase todos
os países onde originalmente foram escravos, com certas
nacionalidades e povos em países para onde migraram e exercem
ocupações de baixo prestígio. Nestes casos, a característica que
poderia ser tomada como causa é, na verdade, um efeito, como é o
caso do baixo nível educacional e ocupacional encontradiço entre
muitos grupos discriminados.
Outros fatores sociais freqüentemente relacionados ao
fenômeno saúde-doença são ocupação, renda, escolaridade, hábitos
de lazer etc., os quais, como os anteriores, dependem de como
está estruturada a sociedade e a economia. Os mais significativos
no entanto são os relacionados à distribuição da renda, dos meios
de produção e trabalho existentes, da correlação de forças sóciopolíticas, da política econômica posta em prática, das relações
(sobretudo econômicas) com o exterior, de processos sócioeconômicos relevantes como industrialização, urbanização,
migração rural-urbana, inflação com elevação do custo de vida para
camadas assalariadas etc.
José Carlos de Medeiros Pereira
193
O estabelecimento dessas relações entre características sociais,
econômicas, culturais, etc. e saúde e enfermidade, nos levam ao
conceito de enfermidade social. Pode-se dizer que “toda enfermidade
é um fenômeno social porque tem componentes sociais que a originam
e conseqüênciais para a sociedade. Porém, ainda quando todas as
enfermidades estejam condicionadas por fatores sociais e produzam
alguma repercussão sobre a sociedade, certas enfermidades têm maior
significação para a comunidade do que outras, devido às suas
características epidemiológicas ...” (p. 25). As enfermidades que têm
tendência a reduzir a capacidade produtiva e, portanto, com maior
repercussão sobre o sistema econômico, normalmente adquirem maior
significado social. Diz SAN MARTÍN: “Um problema médico deixa
de ser individual e passa a ser de incumbência coletiva cada vez que
em sua solução dominam fatores sociais, requerendo ação social
organizada” (p. 25).
Segundo ele, a maior ou menor importância social da
enfermidade depende, em primeiro lugar, de sua freqüência na
população; em segundo, da forma como se distribui essa freqüência:
grupos de idade afetados; sexo; repercussões sobre a produção
econômica; gravidade do curso da moléstia (exigindo somas
elevadas em seu tratamento); letalidade (se a porcentagem dos que
morrem é alta, as repercussões evidentemente serão maiores);
cronicidade (tempo e dinheiro requerido para tratamento e
reabilitação); tipo e grau da incapacidade (por exemplo enfermidades
que afetam órgãos do sentido e locomotores); finalmente, um fator
que pesa na determinação da importância social da enfermidade é a
possibilidade de que se estenda por parte ponderável da população
(Cf. pp. 25-26). Em síntese, as enfermidades que têm maior importância
social são as que produzem mudanças na composição da população,
na expectativa de vida, na porcentagem da população economicamente
ativa, nos índices de produção (como ausência do trabalho), as que
exigem consideráveis gastos médicos com tratamento e reabilitação
etc. É claro que o tratamento da enfermidade chamada social consiste
na eliminação dos fatores predisponentes, produtores ou mantenedores
194 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
da enfermidade que têm sua origem na estrutura sócio-econômica e
não na utilização, tão-somente, de recursos estritamente médicos.
Quaisquer melhorias nas condições gerais de vida fazem com
que caiam os índices de morbidade e mortalidade, sobretudo entre as
crianças, mais suscetíveis do que os adultos jovens à desnutrição e
subnutrição. Alguns trabalhos mostraram, por exemplo, como a queda
dos níveis de salário mínimo é acompanhada por um avanço da
mortalidade infantil. A desnutrição, decorrente fundamentalmente de
como se estruturou o sistema sócio-político-econômico entre nós,
tornou-se fenômeno tão comum, em certas camadas da população
brasileira, que é anormal encontrar-se nelas crianças sem nenhum
grau de desnutrição. Assim é que um levantamento feito pela Fundação
SESP (Serviços Especiais de Saúde Pública) e CEME (Central de
Medicamentos), em 1972, estimou que, no Brasil, as crianças de 6
meses a 5 anos, em estado normal de nutrição, representavam 29,8%
do total, enquanto as desnutridas de 1º grau constituiam 37,7%, as de
2º grau perfaziam 21,8% e as com desnutrição de 3º grau atingiam
10,7% (Cf. Anais da V Conferência Nacional de Saúde, 1975, p.
228).
Agrava o quadro da relação entre doença e miséria, o fato de
que, nos lugares onde moram pessoas pobres, normalmente não são
encontrados serviços razoáveis de saneamento nem de assistência
médica. As casas são pequenas e insalubres. O trabalho a que as
pessoas se dedicam aumenta o risco que correm de se adoentarem.
Isto faz com que se ampliem as diferenças no potencial das
enfermidades. É maior a incidência e prevalência de doenças
infecciosas agudas nesses meios. É evidente que a contínua exposição
a condições de vida insalubres, sob quaisquer pontos de vista que
examinemos a questão, mina a resistência das pessoas. A debilidade
decorrente pode torná-las suscetíveis a outras enfermidades além
daquela que as acometeu, abrindo também caminho para variadas
complicações. Enfim, os pobres além de estarem muito mais expostos
à doença, têm muito menos acesso aos benefícios da Medicina (Cf.
COE, Rodney M., Sociología de la Medicina, p. 77).
José Carlos de Medeiros Pereira
195
Outro fator limitante, em termos de saúde, para as camadas de
baixa renda é representado pela impossibilidade de adquirir
medicamentos caros ou simplesmente adquiri-los. Também o
conhecimento dessas pessoas sobre o processo saúde-doença
costuma ser precário. Ora, sabidamente, alguém que tenha melhor
conhecimento das enfermidades, tem maiores possibilidades, em
igualdade de condições sócio-econômicas, de procurar
assistência médica no estágio inicial da doença. Em termos de
população, esse conhecimento é de primordial importância. De fato,
o desconhecimento do modo de atuar da enfermidade e dos efeitos
que causa torna mais difícil a essa população, inclusive, melhor utilizar
os serviços médicos disponíveis.
É bem verdade que os mais ricos podem se deparar com
um problema inverso, que é o de se exporem a um excesso de
atos médicos. Realmente, é conhecida a concentração de médicos e
de assistência médica nos lugares onde as possibilidades de consumir
atos médicos é maior, ou seja, nos centros urbanos grandes e
prósperos. Disso pode até mesmo criar-se, como afirma Ivan ILLICH
(Cf. A Expropriação da Saúde, Nêmesis da Medicina), “uma
perigosa correlação natural entre a intensidade do ato médico e a
freqüência de curas”. O que certamente ocorre é que os médicos,
como quaisquer outros profissionais, é claro, tendem a se instalar
onde haja mercado para consumir seus serviços, ou seja, sobretudo
onde as pessoas podem pagar (pp. 25-26). Como, normalmente, essas
pessoas são mais saudáveis, a correlação estabelecida pode ser,
parcialmente ao menos, enganosa.
Enfim, quando analisamos fenômenos de morbidade e de
mortalidade em termos societários, precisamos ter em mente que as
causas necessárias das doenças podem não ser suficientes. Em outras
palavras, e usando um exemplo, freqüentemente os micro-organismos
patógenos não são suficientes, por si sós, para causar doenças
infecciosas, sendo necessária a presença de fatores coadjuvantes, de
natureza social, econômica, cultural e política para que a moléstia se
instale.
196 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
9.2. SOBRE A ETIOLOGIA SOCIAL DA SAÚDE E DA DOENÇA*
Até o começo do século XX, a Medicina dava grande atenção
ao meio social como fator etiológico da enfermidade e se preocupava
bastante com a relação médico-paciente como meio terapêutico, como
já ensinava Hipócrates. Nos escritos clássicos gregos e
freqüentemente na Idade Média e no Renascimento ainda se retinham
conhecimentos de etiologia social (de que são exemplos as
quarentenas). A história da Medicina mostra que “os grandes médicos
e cirurgiões do Renascimento, como Paré ou Paracelso, mostravam,
com freqüência, maior percepção da situação psicológica do enfermo
que de seus processos fisiológicos. No século XVII, homens como
Sydenham preconizaram a observação da história da enfermidade
em indivíduos e grupos como um requisito prévio para o conhecimento
médico” (Cf. Rodney M. COE, Sociologia de la Medicina,
Madrid, 1973, p. 20).
Uma preocupação maior com as condições e fatores sócioeconômicos das enfermidades significa, pois, uma volta a uma certa
tradição original da Medicina (ainda que não predominante), que
via o homem como uma totalidade em que não se dissociava o
biológico do social. Esta visão se foi esmaecendo sobretudo com a
crescente especialização, tornando o médico um cientista e profissional
com um conhecimento fragmentário do objeto que estuda e sobre o
qual atua. Em outras palavras, à medida que aumentou enormemente
o conhecimento científico sobre o ser biológico, a capacidade de
* Artigo publicado originalmente com o título “Determinantes sociais da saúde e da
doença” em Tribuna de Batatais de 8 de setembro e Diário de Notícias de 5 de
outubro de 1980.
José Carlos de Medeiros Pereira
197
compreender globalmente o homem se foi reduzindo, de modo que a
preocupação fundamental restringiu-se a causas imediatas bem
definidas e muito restritas. Enquanto se desenvolveram
extraordinariamente os achados de medicamentos visando debelar
cada enfermidade, atenuou-se “o ímpeto da Medicina por conhecer
a causa das coisas precisamente quando tais causas, as causas das
enfermidades, coincidiam cada vez mais (sem confundir-se) com as
causas dos males da sociedade” (Cf. BERLINGUER, Giovanni, in
Medicina y Sociedade, vários autores, Editorial Fontanella, S. A.,
Barcelona, 1972, pp. 10-11). As enfermidades não podem ser
consideradas como um processo puramente biológico, tendo sua
historicidade, alterando-se nos vários períodos históricos, segundo os
locais, as sociedades, as classes sociais (idem, p. 8).
Desde que a Medicina, até a algumas décadas atrás, pelo menos,
sempre reconheceu a existência dos fatores sociais na enfermidade,
a atual preocupação maior com eles significa o renascimento de uma
preocupação antiga mais do que um início. A conexão íntima entre as
enfermidades e o meio social se comprova pelo fato de que elas “não
são nem uniformes nem casuais em sua incidência”. É notório, hoje,
que o “o estudo destas distribuições diferenciais da enfermidade...
proporciona, com freqüência, as chaves acerca da natureza e causas
da enfermidade” (Cf. Rodney M. COE, op. cit., pp. 13-14).
Com o advento da teoria bacteriológica e as contínuas
descobertas nesse campo, a Medicina entrou na chamada “era
bacteriana”. Isto fez com que ela se restringisse cada vez mais ao
organismo biológico e com a resposta deste a estímulos também
biológicos e físico-químicos. Com isso, a Medicina passou a valorizar
fundamentalmente a Biologia como ciência básica para proporcionar
conhecimentos sobre o processo saúde-doença, procurando um
agente da enfermidade (microorganismos patogênicos) isolado
do meio social. Por outro lado, com o desenvolvimento da
tecnologia em geral e da Química e da Bioquímica em especial, ela
passou a pôr quase todas suas esperanças no laboratório, na descoberta
de medicamentos e aparelhos para diagnósticos e tratamento. Só mais
198 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
recentemente, a unicausalidade passou a ser questionada, verificandose que as causas das doenças são múltiplas, que o diagnóstico e
tratamento de várias doenças não pode prescindir da análise do meio
social, que a Medicina, freqüentemente, é utilizada para gerar lucros
para certos grupos etc.
Como se pode perceber, são relativamente claros os
determinantes sociais do processo saúde-doença desde que não nos
preocupemos apenas com as causas imediatas do fenômeno
enfermidade. Se o nível de análise for recuado, procurando
aquelas mais longínquas, em grande número de casos
reconheceremos causas extra-individuais e extrabiológicas da
doença. Ao nível populacional ficaria então evidente que as
soluções dos problemas de saúde-doença estão além das possibilidades
da Medicina e do profissional médico isoladamente, em que pese a
dedicação denodada da maior parte dos membros desse grupo
profissional. Freqüentemente, inclusive, os próprios médicos se tornam
vítimas dessa falta de autonomia da Medicina (aliás, como de qualquer
outra instituição) frente à sociedade. Ela é um produto social tanto
como a doença e a assistência médica.
A determinação social da Medicina é bem percebida quando
se estuda sua história, não em termos de vida de médicos ilustres e
de descobertas técnicas e científicas, mas procurando verificar a
variabilidade na concepção da saúde e da doença e a evolução e
diferenças de tratamento proporcionado aos vários grupos sociais.
Este estudo ensina como a prática médica e seu instrumental
conceptual variam historicamente. Na verdade, não é preciso ir longe.
Uma observação objetiva mostra como é distinta a prioridade
dada aos diferentes segmentos sociais quando se trata de atenção
médica. Os serviços estão estruturados de tal modo que a proteção
da saúde e da vida acabam dependendo de um cálculo econômico, a
ponto de se combater menos a enfermidade em geral e mais aquela
que acomete homens com capacidade de pagar. Como existe óbvia
relação da doença com o meio social, com as relações sociais
essenciais, especialmente as relações de produção, são exatamente
José Carlos de Medeiros Pereira
199
aqueles grupos sociais e econômicos que correm maiores riscos de
enfermarem que terminam recebendo menor proteção.
Enfim, de um lado o que se pode notar é que a doença tem
características universais quando se observam apenas indivíduos,
enquanto que, se nos preocuparmos com o nível social, verificaremos
que os homens adoecem e morrem desigualmente. De outro lado,
houve grande desenvolvimento da tecnologia de curar o indivíduo
em contraposição ao avanço do conhecimento para combater a
enfermidade em seu conjunto. Talvez tenha sido dada pouca atenção
ao combate às causas mais distantes da doença porque elas não
poderiam ser eliminadas sem que a própria sociedade fosse modificada.
200 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
9.3. AMPLIANDO O CONCEITO DE MEDICINA*
Especialmente a partir de 1960, um número crescente de
pessoas, preocupadas com o processo saúde-doença, com as condições
e fatores não biológicos que levam à doença e com a superação total
ou parcial das entidades mórbidas, perceberam que a Medicina,
isoladamente, não poderia enfrentar a questão. Até mesmo porque
uma tal visão equivaleria a conceber a Medicina como tendo quase
completa autonomia frente à sociedade, quando a própria Medicina
é, em grande parte, determinada e condicionada pela estrutura
econômica e social. De fato, hoje o que se pergunta cada vez mais é
que relações existem entre o processo saúde-doença, a assistência
médica e a sociedade global.
No caso da Medicina, considerada como aplicação de
disciplinas científicas, a problemática vai até mais além, colocandose a questão das relações entre ciência e tecnologia com a sociedade.
Uma das dificuldades desse tipo de análise está no fato de que apesar
de, em sua definição mais geral, a Medicina ser entendida como
práticas e saberes que têm como objetivo a prevenção e cura da
enfermidade e a preservação da saúde, a maneira de pôr em prática
esse objetivo varia segundo os períodos históricos e as diferentes
sociedades. Em nossos dias, sobretudo, os aspectos econômicos,
sociais e políticos da prática médica adquiriram enorme significado.
Dois aspectos, principalmente, levaram à percepção maior de
que o processo saúde-doença não é um fenômeno exclusivamente
biológico. Em primeiro lugar, ficou claro que se a enfermidade fosse
* Este artigo foi publicado originalmente com o título de “Medicina e Sociedade”
em Tribuna de Batatais de 30-8-1980 e no Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, de
21-9-1980.
José Carlos de Medeiros Pereira
201
apenas um fenômeno biológico, deveria afetar em igual proporção a
todos os indivíduos enquanto seres biológicos. Ora, sabemos que há
diferenças muito grandes quanto a isso, e que os indivíduos enfermam
e morrem desigualmente, por distintos motivos e em diferentes
momentos de sua vida. Independentemente de fatores biológicos ou
físicos, como idade, clima e outros, a classe social a que pertencem e
o lugar em que residem determinam importantes diferenças na saúde
das pessoas. Para resumir, está suficientemente comprovado que a
forma de viver determina a forma de morrer: de que, como e quando
morrerá um indivíduo específico.
Em segundo lugar, a atenção médica é, além dos conhecimentos
próprios de diagnóstico e tratamento, certo tipo de prática que, como
tal, é organizado e modelado dentro de cada sociedade. A atenção
médica não é, assim, um conjunto de medidas e de normas abstratas
e de validade universal, mas reconhece variações históricas. A
sociedade, e sua particular estrutura sócio-econômica, fixa as
condições em que essa atenção é dispensada: a quem, como, quando.
Isto levou a uma ampliação do conceito de Medicina porque,
encarada sob sua forma tradicional, que insiste em um enfoque
essencialmente reparativo, somático e individual, ela é relativamente
inoperante para alcançar seus grandes objetivos. Em outras palavras,
tomou-se cada vez mais consciência de que a Medicina não pode
avançar muito mais mantendo-se na situação de enfrentar a
enfermidade já produzida. Daí a revisão e ampliação do conceito
de Medicina, que consiste em considerar: a) que o objeto de ação
dela não é só a enfermidade e que a conduta da população frente à
doença e frente à atenção médica é tão importante quanto a própria
atenção médica, o que significa que os fatores de ordem social, e não
só biológicos, condicionam a etiologia, tratamento e evolução da
enfermidade; b) que a ação médica não pode se limitar a enfrentar a
enfermidade já produzida, mas deve atuar preventivamente, tanto em
relação ao indivíduo são, à sua família e à comunidade em que vive.
Estes aspectos conduzem a uma série de perguntas relativas à
prática médica, tais como: quais são os fatores sociais, econômicos,
202 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
políticos, culturais, etc. que influem no aparecimento, tratamento e
evolução de uma enfermidade? Quais são as transformações sociais
que precisariam ocorrer para controlar ou prevenir as enfermidades?
Como podem os médicos (e a Medicina como instituição) relacionaremse com indivíduos e grupos, entendendo os indivíduos como seres
sociais e os grupos mais do que como um conjunto de indivíduos? Em
face destas questões pelo menos três conjuntos de problemas levaram
a uma concepção de Medicina como uma disciplina social. Os
conjuntos citados foram: 1º) o exame da etiologia social das
enfermidades mostrou as variações sociais na incidência e prevalência
das enfermidades, conforme as pessoas estejam situadas
diferencialmente na estrutura social; 2º) as condições sociais que
condicionam a reação frente à enfermidade (a rede de relações sociais,
o grupo, a cultura etc. nos quais está inserido o enfermo) vão
condicionar e mesmo determinar o episódio como anormal ou não;
estas condições contribuirão para determinar qual o curso da ação
para recuperar a saúde e, portanto, facilitarão ou dificultarão a
recuperação e a reabilitação; 3º) a organização das instituições sociais
voltadas para a atenção médica depende da sociedade nas quais estão
inseridas.
Freqüentemente, a Medicina é encarada como um conjunto
organizado de conhecimentos, destrezas e atitudes voltadas para a
prevenção e cura das doenças, isto é, os serviços de saúde
institucionalizados, como hospitais, empresas, Secretarias,
Ministérios, outros órgãos públicos e privados que visam o processo
saúde-doença. Sob este aspecto, uma das principais questões a estudar,
dentro da visão aqui defendida, é como funcionam, estão modeladas
e organizadas essas instituições de atenção médica à população.
Dentro desse sistema de atenção podem ser assinalados alguns pontoschaves, como: 1) a determinação dos problemas que serão objeto de
atenção médica e o estabelecimento de prioridades em relação aos
mesmos; 2) o recrutamento e a formação do pessoal que enfrentará
os problemas de saúde; 3) a organização do pessoal nessas
instituições, tendo em vista a fragmentação da assistência médica.
José Carlos de Medeiros Pereira
203
Em suma, esta concepção de Medicina, a qual, em parte pelo
menos, constitui como que uma retomada da tradição anterior nesse
campo, procura fugir àquela que a vê como um conjunto de práticas
científicas e técnicas dissociadas do restante da sociedade. Ela
também procura não reduzir a análise do fenômeno “enfermidade”
ao nível biológico, individual e psicológico, procurando outras
determinantes para ele que, em última análise, só podem ser
encontradas no que poderíamos chamar de “totalidade” social. Este
tipo de análise igualmente não procura ocultar os conflitos existentes
na sociedade e a forma como a Medicina institucionalizada às vezes
intervém para preservar interesses de grupos.
_______________________
Observação: Na redação deste artigo vali-me de algumas
considerações contidas num texto mimeografado de Juan César
GARCIA intitulado “Medicina y sociedad”.
204 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
9.4. MEDICINA ALÉM DO BIOLÓGICO*
Atualmente são evidentes as várias relações mantidas entre a
Medicina e a sociedade global e, mais ainda, as determinações
sociais do processo saúde-doença e da atenção médica. Tais fatos
levaram, paulatinamente, a uma convergência crescente, no campo
da Medicina, entre o biológico e o social, possível de notar em vários
pontos.
1. Verificaram os médicos que, apesar de seu arsenal de
medicamentos capazes de vencer as enfermidades infecciosas, o
problema destas está fundamentalmente em sua prevenção e não em
sua cura. Entretanto, as medidas preventivas não são usadas por
parcelas ponderáveis da população, especialmente de países em
desenvolvimento como o Brasil, por encontrarem, aquelas
medidas, barreiras enraizadas em razões sociais, econômicas,
culturais e psicológicas. Passou a preocupá-los o fato de,
freqüentemente, doenças evitáveis não poderem ser controladas
através de esforços baseados apenas em conhecimentos médicos.
2. Um dos problemas enfrentados atualmente pela Medicina é
que as enfermidades crônicas parecem não ter uma causa única
definida, mas múltiplas. Entre essa multiplicidade de causas seria
importante o modo de vida, entendendo-se por isso coisas como
hábitos, tipo de trabalho, produtos consumidos na sociedade industrial,
condições de habitação. Inclusive como fatores causais intenta-se
mostrar a influência maléfica de alterações provocadas no ambiente
pelo próprio desenvolvimento da sociedade industrial. Relacionado
* Artigo publicado originalmente sob o título “O biológico e o social na Medicina”
em Tribuna de Batatais de 13 de setembro de 1980 e Diário de Notícias de 22 de
janeiro de 1981.
José Carlos de Medeiros Pereira
205
igualmente com o problema está o custo elevado do tratamento dessas
doenças, as conseqüências sociais para a família, a comunidade e o
enfermo, o que significa pensar em termos sociais, econômicos,
psicológicos e culturais
3. Ainda que a Medicina Preventiva e Sanitária sempre tenha
tido grande importância na Europa (ao contrário do que ocorreu nos
Estados Unidos, em que se restringia até há pouco quase que somente
ao controle de moléstias contagiosas), este ramo da Medicina foi
ganhando terreno em toda a parte, inclusive no Brasil. Seu
desenvolvimento teve como uma das conseqüências chamar a atenção
para o fato de que o conhecimento da causa imediata da doença é
menos importante, socialmente falando, do que o conhecimento das
causas mediatas, as quais devem ser removidas. Tais causas só podem
ser definidamente conhecidas estudando-se as condições de vida
diferenciais de faixas distintas da população.
4. O avanço da Medicina Social (grande nos países da Europa
Ocidental) repercutiu nos países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento. Dando grande importância à manutenção da
sanidade das populações, ela tem mostrado que para essa manutenção
e também para o restabelecimento da saúde da população
globalmente considerada, a remoção e detecção das causas
biológicas das moléstias são apenas uma parte. Ficou inclusive
patente que mesmo as causas biológicas não podem ser
inteiramente afastadas se a Medicina empregar tão-somente técnicas
baseadas em teorias bacteriológicas para assegurar a higiene e o
controle de vetores. Os estudos nesse campo têm mostrado que as
condições sócio-econômicas satisfatórias possuem tanta importância,
pelo menos, quanto o emprego dessas técnicas. A remoção de algumas
causas não-biológicas das enfermidades pode estar além das
possibilidades da Medicina (distribuição da renda, nutrição, condições
de moradia etc.) mas algumas causas biológicas poderiam ser
controladas estimulando-se as pessoas a viver (dentro de suas
possibilidades) de modo a favorecer a saúde. Isto implica em estudar
problemas de comunicação, nível educacional, atitudes, obtenção do
206 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
apoio da população para programas sanitários e assim por diante.
5. Verificou-se que a reabilitação de pacientes clinicamente
curados era mais problema social do que propriamente médico, se a
Medicina for encarada de modo restrito. Para enfrentar problemas
como estereótipos e estigmas sociais ligados a certas enfermidades,
por exemplo, os médicos têm procurado muitas vezes o auxílio das
Ciências Sociais.
6. O estudo do desenvolvimento industrial mostrou, em toda à
parte, que existem relações entre certas doenças e ocupações; os
acidentes de trabalho também tendem a aumentar. Por isso, os
médicos são, cada vez mais, solicitados a exercerem a Medicina do
Trabalho, em que não basta a aplicação apenas de conhecimentos
estritamente médicos. Exige-se, nesse campo, que eles possuam
conhecimentos outros, afim de melhor atuarem no sentido de manter
ou recuperar a saúde de operários industriais e de trabalhadores de
serviços e rurais, que, por sua vez, igualmente, apresentam doenças
específicas, relacionadas com seu tipo de trabalho (bancários, por
exemplo).
7. Foi-se desenvolvendo, no decorrer do tempo, uma
concepção positiva de saúde em vez de uma simplesmente
negativa que a encarava como ausência de enfermidade,
biologicamente considerada. Ainda que a definição de saúde
dada pela Organização Mundial de Saúde – OMS (“estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência
de doença ou enfermidade”) seja pouco operacional e ambígua, não
especificando o que seja este completo “bem-estar”, a definição
enfatiza a convergência mencionada. De qualquer forma, a saúde
passou a ser “considerada como o aspecto mais evidente da qualidade
de dada população e assim sendo, é incluída entre os componentes
que caracterizam o nível de vida das coletividades, definido como as
condições de vida consideradas como recomendáveis”. A saúde
passou a ser encarada como fim e meio do desenvolvimento
econômico e social. É fim porque “o desenvolvimento, em última
instância, tem por objetivo elevar o nível de vida das populações, no
José Carlos de Medeiros Pereira
207
qual a saúde está incluída. É meio, na medida em que uma população
sadia se configura como um dos maiores recursos para o próprio
desenvolvimento” (Cf. Indicadores de Saúde, Cadernos da
Secretaria de Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São
Paulo, série Indicadores Sociais, nº 3, 1974).
8. As investigações têm demonstrado que, no “stress”, o mais
significativo é o ambiente social do indivíduo. Esse ambiente pode ter
relações não apenas com enfermidades mentais, como produzir em
pessoas mais suscetíveis às pressões do meio, efeitos sobre os
processos fisiológicos. Com isso, os médicos foram levados a dirigir
sua atenção para o conhecimento das condições sociais de vida,
redescobrindo a importância da relação médico-paciente, servindo
tal relação e conhecimento, notavelmente, a propósitos terapêuticos
(donde a necessidade urgente da volta do médico de família).
9. As modificações que se estão processando em todo o mundo
no exercício da profissão de médico, estão levando-o, cada vez mais,
a ser um assalariado, ao contrário do que ocorria no passado. Este
processo está obrigando os médicos a se interrogarem sobre o
futuro de sua profissão, ligando-o à discussão das tendências
de transformações da sociedade com relação à Medicina.
Problemas típicos enfrentados pelos membros das organizações
burocráticas passaram também a ser uma preocupação dos
médicos assalariados, impelindo-os a estudar o processo
burocrático, geral em nossa sociedade, para melhor compreender sua
situação em face dessas transformações.
10. A qualidade e os custos crescentes da assistência médica
vêm sendo fortemente criticados. A Medicina foi estatizada em alguns
países europeus. Em outros surgiram cooperativas médicas,
funcionando ao lado das clínicas particulares e da Medicina
estatizada. O problema começa a ser debatido, em vários níveis, no
Brasil. Os médicos, individualmente e como grupo profissional, estão
procurando propor soluções alternativas para a organização da
assistência médica. Em grande parte tais questões, que visam, em
última análise, racionalizar a assistência médica, são tanto médicas
208 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
(estritamente falando) como sociais.
11. Há um sentimento crescente entre os próprios médicos de
que a excessiva especialização chegou a um ponto crítico. Os
resultados parecem insatisfatórios quanto à assistência proporcionada
à população. De um lado, há o fracionamento dessa assistência e sua
impessoalização, levando ao desconhecimento do enfermo como ser
humano. De outro, a especialização só pode ser exercida com sucesso
(freqüentemente) em grandes centros urbanos. Aumenta a
competição nesses centros, enquanto certas zonas ficam desassistidas.
Não se questiona o avanço técnico proporcionado pela especialização,
mas seus resultados práticos tanto para os enfermos como para os
próprios médicos. Enfrentar este problema extrapola o campo médico,
dadas suas repercussões sociais.
12. Começa também a ser questionada a assistência
hospitalar. Verifica-se, atualmente, uma preocupação tanto com
seus aspectos técnicos como humanos (adaptação do enfermo ao
ambiente hospitalar, despersonalização do paciente, tensões entre o
pessoal, escassez e qualidade dos serviços para-médicos, problemas
administrativos etc.). Do ponto de vista econômico tem sido analisado
o custo elevado da assistência hospitalar em relação aos resultados
proporcionados quando comparados com a assistência ambulatorial e
domiciliar. Os defeitos da instituição hospitalar, para serem sanados,
exigem contribuições da Administração, Economia, Sociologia e
ciências afins.
13. Há, hoje, a nítida percepção de que o exercício da atividade
médica é mais proveitoso quando se compreende claramente o que o
paciente costuma esperar do médico, as razões de suas reações e de
seus familiares e os possíveis conflitos entre as expectativas destes e
as do médico. Este precisa compreender melhor, de um lado, quanto
a sua visão da enfermidade e do enfermo está determinada e
condicionada pela introjeção, nele, de uma perspectiva específica do
meio científico que freqüentou. De outro, como os sentimentos,
expectativas, ansiedades, tensões etc. dos enfermos e suas famílias
são condicionadas por uma visão diversa da prática médica. Em suma,
José Carlos de Medeiros Pereira
209
o médico precisa ter uma compreensão melhor da origem dos conflitos,
que por vezes surgem entre sua visão e a do paciente, por terem sido
socializados e ressocializados em meios diferentes.
Ainda que, evidentemente, não tenhamos esgotado os pontos
de convergência, acreditamos ter ficado suficientemente clara a
preocupação cada vez maior da Medicina pelos aspectos sociais e,
vice-versa, dos cientistas sociais por problemas relacionados ao
processo saúde-doença.
210 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
9.5. RIQUEZA, PODER E DOENÇA*
É de senso comum que riqueza, poder e prestígio estão
estreitamente associados. Também é de senso comum que aqueles
mais ricos, poderosos e de posição social elevada vivem mais e melhor.
Qualquer consulta às estatísticas de mortalidade infantil nos
mostra que os coeficientes variam segundo as condições sócioeconômicas dos pais. Ora, se a simples possibilidade de
sobrevivência depende dessas condições, igualmente delas
depende a esperança de vida ao nascer, a probabilidade de se
manter ou não sadio, a de adquirir esta ou aquela enfermidade.
Vemos, de fato, ao compulsar os dados relativos às causas dos óbitos,
que moléstias evitáveis e passíveis de cura tais como as doenças
transmissíveis, do aparelho respiratório, do aparelho digestivo e da
primeira infância são causadoras de mortes entre os pobres, em
proporção muito maior do que entre os ricos, de educação superior,
detentores de autoridade e de posição social elevada. As pessoas,
nessas condições, morrem, em proporção maior, de outras moléstias,
como tumores e doenças cardio-circulatórias. As distinções existentes
entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos evidenciam-se nos
subdesenvolvidos entre ricos e pobres. Quer dizer, há um padrão de
morbi-mortalidade para países com condições diferentes e igualmente
um padrão diferente, dentro de cada país, para estratos sócioeconômico diferentes.
Em que é que uma condição sócio-econômica representada
por baixos rendimentos, escolaridade insuficiente em face das
* Publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e na Tribuna de
Batatais de 24 de junho de 1981.
José Carlos de Medeiros Pereira
211
exigências do mercado de trabalho, poucos contatos sociais etc. vai
interferir nas condições de vida que têm significado médico?
Fundamentalmente porque, quem ganha pouco, tem de dedicar a maior
porção desse ganho à alimentação e um pouco menos à moradia e
vestuário. Artigos de residência, assistência à saúde e higiene, serviços
pessoais, recreação, educação, leitura, viagens são deixados de lado.
Estes itens só ganham maior proporção quando a renda familiar se
eleva, o que está de acordo com a lei formulada por um estatístico
alemão do século passado (lei de Engel), segundo a qual, à medida
que aumenta a renda, aumentam em termos absolutos os gastos com
alimentação, vestuário, habitação (despesas correntes) mas diminuem
em termos relativos.
As várias pesquisas realizadas no Brasil, por organismos oficiais
ou não, confirmando a lei de Engel, mostram que as famílias que
ganham até um salário mínimo dispendem, de modo geral, mais de
80% de seus ganhos com alimentação, enquanto aquelas que têm
renda superior a 18 salários mínimos gastam apenas cerca de 15%
dessa renda com essa finalidade. Em 1970, os 40% mais pobres da
população brasileira auferiam apenas 10,01% da renda nacional,
enquanto os 10% mais ricos se apropriavam de 47,79% da mesma
(Cf. C. G. LANGONI, “Distribuição da renda e desenvolvimento
econômico do Brasil”). Esta desproporção se manteve nos últimos
dez anos. Daí não causar nenhum espanto o fato de que a desnutrição
e a subnutrição sejam endêmicas no Brasil.
Não se deve inferir disso que as pessoas ganhem pouco porque
trabalham pouco e, conseqüentemente, se tornem doentes. A
conhecida colocação a respeito do círculo vicioso da pobreza e da
doença (Cf. C. E. WINSLOW, The Coast of Sickness and the
Price of Health), poderia levar a essa conclusão. Afirma
WINSLOW: “Era claro... que a pobreza e a doença formavam um
círculo vicioso. Homens e mulheres eram doentes porque eram pobres;
tornavam-se mais pobres porque eram doentes e mais doentes porque
eram mais pobres”. Se as mediações entre os dois fenômenos não
forem devidamente esclarecidas, corre-se o risco de aceitar que, se
212 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
os homens forem mais saudáveis, tornar-se-ão mais ricos, o que não
é correto. A relação não é direta. A distribuição da riqueza depende
do poder que as várias camadas sociais detenham dentro de um
determinado sistema sócio-econômico e não da sanidade ou
enfermidade de seus membros. É extremamente importante ter-se
isso em conta, sem o que podemos estabelecer uma falsa relação de
causalidade. Uma ciência fragmentadora do real, além de
ideologicamente conservadora, freqüentemente não permite entender,
em se tratando da doença, que os problemas médicos decorrentes
não se resolvem apenas através da aplicação de recursos médicos,
ainda que sua solução dependa também dessa aplicação.
Quando não se atenta para as relações mais amplas
envolvidas no suposto círculo vicioso da pobreza e da doença
fica-se num aparente bonito jogo de palavras (cientificamente
incorreto e politicamente reacionário): alguém é doente porque
é pobre ou, ainda, é pobre porque é doente. A solução do impasse
implicaria sempre numa atividade missionária dos médicos, curando
os pobres doentes ou, então, fazendo com que tais pobres trabalhassem
mais. Essa proposição do círculo vicioso da pobreza e da doença (se
não for devidamente esclarecida) reduz-se a uma mera tautologia.
Se aplicada a um país, por exemplo, poder-se-ia expressar da seguinte
forma: “Um país é pobre porque é pobre”, ou, ainda “uma população
é doente porque é doente” (Cf. Gunnar MYRDAL, Teoria
Econômica e Regiões Subdesenvolvidas, MEC-ISEB, 1960, p. 26).
Descartemos, pois, o aspecto de responsabilidade individual
existente, em larga proporção, em tais afirmações. Consideremos
sempre os pontos essenciais da questão, que se vinculam à estrutura
e funcionamento do sistema sócio-econômico global. Façamos
sempre a pergunta pertinente ao caso, que é saber porque um conjunto
de homens não tem, muitas vezes, o bastante para comer. Não
apontemos como causa aquilo que, geralmente, é efeito: a doença, a
subnutrição. Para corrigir esse efeito seria preciso uma razoável
alteração estrutural de modo, por exemplo, que houvesse uma melhor
distribuição da renda, que a política econômica posta em prática
José Carlos de Medeiros Pereira
213
contemplasse uma maior criação de empregos, que fosse diminuída a
dependência econômica, política, tecnológica etc. que vivemos
do exterior e assim por diante. Em suma, as tautologias, por bem
expressas que sejam costumam ser cientificamente pobres como
explicação dos processos que pretendem esclarecer.
214 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
9.6. URBANIZAÇÃO, INDUSTRIALIZAÇÃO E SAÚDE*
Um fator reconhecidamente importante em relação à saúde é
o tipo de atividade exercida pela população, bem como as
condições ambientais sob as quais ela se realiza. Por isso, um
estudo de como ocorreram os processos de industrialização e
urbanização e que repercussões produziram sobre o modo de
viver dessa população pode proporcionar um melhor entendimento
da saúde gozada e da doença padecida por ela. Saúde e doença
relacionam-se com aqueles processos em termos dos requisitos físicos,
psicológicos, sociais e culturais exigidos pelas ocupações urbanas,
por exemplo. Mas há outras repercussões significativas. O viver num
ambiente industrial e urbano geralmente proporciona maior acesso à
educação formal e informal, isto é, tanto através da escola como
através de mais freqüentes e intensos contactos sociais. Tal educação,
aliada às novas experiências, altera a visão tradicional da doença,
seja quanto à interpretação da mesma, seja quanto ao tratamento.
Esse ambiente também proporciona maior acesso à assistência médica,
de modo geral. Isto para falar de alguns aspectos positivos.
Mas há, evidentemente, o outro lado da moeda, que são os
aspectos negativos e que dizem respeito às condições higiênicas, à
desorganização social e pessoal etc. associadas a ambos os processos.
De fato, deixamos de ser uma população concentrada na zona rural
sem que isto tenha significado o deslocamento dessa população para
a indústria de transformação. O setor terciário da atividade econômica
(serviços, comércio, transporte, governo etc.) passou a empregar cada
* Publicado originalmente no Diário de Notícias de 19 de abril e em A Tribuna de
Batatais 14 de julho de 1981.
José Carlos de Medeiros Pereira
215
vez mais pessoas. Mas esse emprego, muitas vezes, é subemprego e
mesmo desemprego disfarçado. Conseqüentemente as cidades
brasileiras “incharam” e não cresceram propriamente dito. Larga
porção da população se manteve à margem do processo de
industrialização, ainda que recebendo seus influxos indiretos.
Esse “inchamento” das cidades constitui um fenômeno que se
poderia chamar de urbanização sociopática. Isto porque grande parte
do contingente humano que as procura não encontra nelas condições
de moradia decentes; o favelamento e o “cortiçamento” intensos têm
efeitos desagregadores sobre a família; surgem problemas de higiene,
já que os municípios encontram dificuldade em estender a rede de
água e esgotos à periferia; rompem-se muitos laços de parentesco
não só por causa da mudança de valores, mas em parte porque muitas
das pessoas que procuram as cidades não vêm com suas respectivas
famílias e sim isoladamente (mesmo quando são famílias que emigram,
a família conjugal passa a predominar sobre a família extensa). Como
muitas dessas pessoas não encontram emprego, aumenta a
mendicância, a prostituição, a insegurança pessoal, o consumo de
álcool, o “stress” (principalmente nas cidades maiores). Além do mais,
a desorganização social que freqüentemente ocorre pela rápida
transposição de um meio rural para o urbano, pode levar à
desorganização pessoal e, conseqüentemente, ao aumento da
freqüência de distúrbios mentais.
Os processos de industrialização e urbanização têm muitas
outras repercussões sobre a saúde e a assistência médica. Há, por
exemplo, um aumento da população atendida pela Previdência Social
com o aumento do número absoluto e relativo das pessoas que passam
a trabalhar na indústria e no setor de serviços. Ainda que precariamente,
elas acabam tendo acesso a serviços médicos. Por outro lado, cresce
a freqüência de acidentes do trabalho, já que se trata de um operariado
que, em grande parte, não tinha experiência prévia do trabalho
industrial, nem um estilo de vida mais adequado a ele. É claro que, a
par disso, essa incidência de acidentes demandando assistência médica
tende a aumentar porque, em geral, nossas indústrias pouco se
216 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
preocupam em instalar aparelhamento que os minimize e em adestrar
seu pessoal de modo que faça sua prevenção. Possivelmente o estilo
de vida urbano-industrial, produzindo maior “stress”, tenda a fazer
aumentar a incidência e a prevalência de doenças do aparelho
cardiovascular (hipertensão, infarto do miocárdio etc.) e digestivo
(úlcera, colite ulcerativa etc.) ainda que se possa atribuir o aumento
da freqüência de tais doenças não tanto àqueles processos e mais à
competitividade inerente à estrutura social de países que tenham como
paradigma os Estados Unidos.
Como se disse acima, o aumento da freqüência e intensificação
dos contatos sociais ocorrido com a urbanização produz, geralmente,
uma modificação da percepção da doença. É que os valores tradicionais
a respeito tendem a se alterar com isso. Ainda que por simples
imitação (sem essa alteração de valores), o fato é que parte da
população urbana emigrada da zona rural tende a exigir, sempre que
possível, um tipo de serviço médico semelhante ao dispensado às
classes de renda mais alta. Ocorre com os serviços médicos fenômeno
parecido com o sucedido com outras necessidades e que os
economistas chamam de “efeito de demonstração”: as classes de
renda mais baixa desejam, naturalmente, usufruir dos mesmos padrões
de consumo (em termos relativos, é claro) gozados pelas classes de
renda mais alta. No campo da assistência médica, os governos,
pressionados, tentam diminuir as tensões que vão surgindo. Assim
sendo, bem ou mal, eles tomam algumas providências para atender a
esses desejos. Por outro lado, com a expansão da assistência médica,
o uso de antibióticos etc. aumenta a proporção de pessoas de 60 anos
e mais no conjunto da população. Como essa faixa etária necessita
de maiores cuidados médicos, essa maior demanda repercute no
aumento do número de médicos especialistas em doenças crônicas e
degenerativas, características da população mais velha.
Quanto às possíveis diferenças de problemas médicos entre as
zonas rurais e urbanas, elas decorrem, entre outros, dos seguintes
fatores: 1) o nível de vida na zona rural, de modo geral, é inferior; 2)
a natalidade é maior na zona rural; como o atendimento médico é
José Carlos de Medeiros Pereira
217
relativamente precário, a mortalidade infantil também é maior; 3) como
a densidade da população na zona rural é menor, a possibilidade de
epidemias é menor, uma vez que os contatos são menos freqüentes,
embora as condições de saneamento possam ser precárias; 4) como
os jovens adultos emigram para as cidades, a população rural conta,
proporcionalmente, com maior número de menores de 15 anos, o que,
por si só, torna seus problemas médicos algo diferentes dos que surgem
entre a população urbana; 5) os extremos sociais são maiores na
zona rural, pois, praticamente, ou se é proprietário ou se é assalariado
e mal pago. Sendo assim, e se associarmos esse fato a outros fatores
coadjuvantes (como a própria escassez de assistência médica), essa
população tem menores possibilidades de contar com essa assistência;
6) por causa do tipo predominante de moradias, hábitos de higiene,
alimentos muitas vezes contaminados, contato mais freqüentes com
animais, a população rural tende a apresentar maior freqüência de
doenças parasitárias, zoonoses, alguns tipos de micoses, infecções
intestinais, acidentes com animais peçonhentos, doença de Chagas,
malária (em algumas regiões) e assim por diante.
Apesar da listagem de diferenças apresentadas, devemos
esclarecer que é difícil fazer-se uma generalização a respeito da
sanidade da vida rural em relação à urbana porque as condições
variam, não só de país para país, como segundo regiões e microregiões do mesmo país. Talvez a única que se possa fazer é que,
como a densidade populacional no campo é muito menor do que
nas cidades, as possibilidades de qualquer contágio são igualmente
menores no campo e que as enfermidades infecciosas, transmitidas
pelas vias aéreas superiores, são mais freqüentes nas cidades. É claro
que acidentes de trânsito ocorrem mais nas cidades, mas a população
rural também está exposta a riscos específicos. Parece, por outro
lado, que há uma associação entre urbanismo e enfermidades como
câncer do pulmão, pneumonia, bronquite, arteriosclerose,
coronariopatias, hipertensão, não tanto em razão do local, mas em
virtude de condições de vida diferentes.
A industrialização propriamente dita, independentemente do
218 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
processo de urbanização, além dos acidentes de trabalho referidos,
afeta também a saúde, em alguns casos, porque a poluição é grande
em certas cidades industriais; por isso acaba afetando toda a população
e não apenas o trabalhador industrial. Por outro lado, algumas
atividades industriais propiciam condições favoráveis ao surgimento
de enfermidades ocupacionais. Realmente, os riscos, em algumas
indústrias, são maiores por causa do pó, de agentes químicos (solventes
por exemplo) e físicos (calor, umidade e ruídos excessivos).
Diretamente, estas seriam as principais relações que poderíamos
mencionar entre a saúde e industrialização (Cf. Hernán SAN
MARTÍN, Salud y Enfermedad).
Contudo, as repercussões indiretas, como foi visto, podem ser
de maior gravidade, representadas por certos desenvolvimentos
tecnológicos que depredam a natureza, alterando o ambiente de modo
a torná-lo menos salubre. Não se pode esquecer que a industrialização
apesar de, geralmente, ter constituído um fator de melhoria das
condições de vida, também causou muitas contaminações dos
alimentos humanos, os quais podem acabar se tornando prejudiciais
ao metabolismo. A propósito, um relatório de 1978, da Organização
Mundial da Saúde, revela a existência de mais ou menos 5.000
compostos usados como aditivos na indústria de alimentos. Apesar
disso, não devemos ser como aqueles críticos conservadores do mundo,
que tendem sempre a considerar o passado melhor do que o presente
e este melhor do que o futuro.
José Carlos de Medeiros Pereira
219
9.7. FOME E SUPRIMENTO DE ALIMENTOS*
A fome, em suas várias gradações, é muitas vezes relacionada
à incapacidade maior ou menor de produção de alimentos. É evidente
que, em determinadas sociedades e períodos históricos, isto de fato
aconteceu. A própria Bíblia se refere ao episódio de José, que foi
capaz de interpretar os sonhos do faraó e profetizar 7 anos de fartura,
seguidos de 7 anos de fome. Tais eventos, no entanto, ocorrem com
maior freqüência em sociedades pré-capitalistas, nas quais, realmente,
fatores climáticos e desorganização da produção, em consequência
de guerras por exemplo, podem produzir graves períodos de fome.
Nelas, além do mais, o desenvolvimento técnico é menos intenso, os
transportes são precários, pode não haver um governo com autoridade
suficiente sobre uma razoável extensão de território e capaz de fazer
com que más colheitas em uma região sejam compensadas pela sua
abundância em outras sob sua autoridade. E assim por diante.
Com o desenvolvimento técnico e dos meios de comunicação,
com a centralização do poder e a formação de estados nacionais,
com melhorias organizacionais na esfera tanto da produção como da
distribuição de bens, com o surgimento de sociedades amplas e
complexas cobrindo um território mais ou menos vasto, com o avanço
das trocas internacionais e, fundamentalmente, com o avanço do modo
de produção capitalista, a relação apontada não é mais tão evidente.
Mesmo em regiões superpovoadas (pelos padrões brasileiros), a fome
pode ser um fenômeno praticamente desconhecido, pelo menos em
suas formas mais graves. Em outras, pelo contrário, mesmo
subpovoadas, existindo terras férteis mais do que suficientes para
*
Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 34(7), julho de 1982, pp. 904-5.
220 MEDICINA,
SAÚDE E SOCIEDADE
sustentar uma população muito maior, pode ser que a população seja
bastante desnutrida. Uma ponderável parcela de países do Terceiro
Mundo encontra-se nessas condições.
É que o problema, na verdade, não é apenas técnico, mas
sobretudo político. Soluções técnicas para produzir maior quantidade
de alimentos existem em número mais do que suficiente. Nem todas,
é certo, economicamente viáveis. O que há é uma tendência notável,
em nosso tipo de sociedade, de tecnificar problemas políticos, fazendo
com que se desloque o fórum normal do debate. Da mesma forma,
problemas coletivos são transformados em questões individuais, como
se sua resolução coubesse às pessoas que estão sofrendo
conseqüências de políticas, sobre as quais, isoladamente, não têm
condições de intervir. Assim, seguindo tal tendência, são inúmeráveis
as discussões sobre a má nutrição do brasileiro e da população pobre
mundial, em que a fome de que padecem é vista como decorrendo,
em grande parte, simplesmente, da melhoria da técnica da produção,
ou mesmo, de ensinar a população carente a comer mais
racionalmente. Por mais bem intencionadas que sejam, tais soluções
são apenas paliativos.
Essas colocações técnicas desconsideram o fato inquestionável
de que mudanças de política econômica podem fazer com que os
produtores rurais usem suas terras tanto para produzir cana-de-açúcar
ou mais feijão e arroz. Tudo depende do lucro que obterão. Seria um
contra-senso, num regime capitalista de produção, pedir a um
empresário que deixasse de obter lucros e se descapitalizasse. Isto
não o beneficiaria, nem à população mais carente. Apenas aos que
comprariam seus produtos agora, e suas terras depois, a preços
aviltados. Ninguém pode ser impunemente Papai Noel no capitalismo.
Ou todos são ou aquele que se transformar em Quixote será punido,
até mesmo pela falência. Em todas as épocas históricas, os que tiveram
condições de pagar nunca passaram fome, a não ser em situações
extremas. Nesta questão, sempre encontramos duas posições polares:
de um lado, os que sofrem por desnutrição; de outro, os que estão
doentes por comer demais. Se os crânios de todos os mortos se
José Carlos de Medeiros Pereira
221
parecem quando reduzidos seus corpos a esqueletos, alguns conservam
durante mais tempo cabelos sobre eles ou matéria cerebral dentro
deles, como diz Giovanni Berlinguer em Medicina e Política.
Conseqüentemente, se pretendemos que os cabelos de todos
permaneçam mais tempo sobre seus respectivos crânios, sem
distinções de natureza sócio-econômica, então teremos que ir ao cerne
das questões. Aqui, ela reside no fato de que as pessoas não se
alimentam de forma conveniente principalmente por causa da miséria
em que vivem, o que implica em o setor produtor de alimentos não
receber os estímulos econômicos necessários. No capitalismo,
existindo quem pague, a produção tenderá a ser sufiente, quaisquer
que sejam os critérios usados para medir essa suficiência.
Para entender as leis que regulam o mercado, inclusive de
produtos alimentícios, não é preciso recorrer a nenhum economista
moderno ou heterodoxo. Basta-nos o pai da economia política mesmo,
Adam Smith, que publicou sua Investigação sobre a natureza e as
causas da riqueza das nações em 1776, há mais de dois séculos
pois. Distinguia ele um preço primário das mercadorias, que seria
aquilo que custariam àquele que as coloca no mercado, e um preço
natural, que seria o acrescentamento, a esse preço, do lucro normal
do capital na região, no país, no setor econômico em causa. O preço
de mercado flutuaria em torno do preço natural, dependendo da oferta
e da procura, sendo esta proporcional à quantidade daqueles
compradores efetivos dispostos a pagar o preço natural. Quando a
oferta é menor do que a procura efetiva, ocorre uma competição
entre os compradores e o preço se eleva. Quando a quantidade
produzida excede à procura efetiva, para que as mercadorias se
escoem, será necessário vendê-las ao preço pretendido por aqueles
que desejam pagar menos. Adam Smith acreditava que existiria como
que uma mão invísivel que regularia a oferta e procura de bens e
serviços postos no mercado.
Pois bem, se os compradores potencialmente efetivos ganham
pouco, a procura é menor do que poderia ser. Então alguma coisa
seria preciso fazer para estimular a produção. Ainda que a tal mão
222
MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE
invisível só exista, provavelmente, num mercado constituído por uma
multidão de pequenos compradores e vendedores, o que não é o
caso da economia moderna, o Estado poderia intervir para
desequilibrar a balança existente. De fato, numa economia como a
brasileira, em que a intervenção do Estado é a regra e não a exceção,
uma possível solução político-econômica seria lutar para que esse
Estado redistribuísse renda de um ou de outro modo. Há décadas,
vários países europeus, com governos social-democratas, praticam
tais políticas redistributivas. É claro que uma política voltada para a
coibição da maternidade e paternidade irresponsáveis constituiria
outra grande contribuição. Os recursos, evidentemente, só poderiam
vir de impostos e taxas; por exemplo, sobre bens supérfluos e de
alto valor unitário, consumidos pelos estratos sociais de alta renda.
Implementadas tais políticas, uma parcela bem maior da população
teria condições de comprar não só produtos alimentícios como outros
de primeira necessidade. A produção destes cresceria, sem dúvida.
Espero que a relação de forças políticas e econômicas evolua de tal
forma que, um dia, a subnutrição entre nós seja apenas uma
lembrança. Para isso, na verdade, ao contrário do que dizem muitos,
o modelo econômico em voga, ainda que fosse algo modificado,
não o seria no fundamental. Em suma, é principalmente através da
ação política e não técnica, que haveria maior possibilidade de
melhorar o nível de vida da população. E não só em termos de
alimentação, como se discutiu aqui.
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