ALGUMAS NOTAS SOBRE A
IMPORTÂNCIA DO ESPAÇO PARA O
DESENVOLVIMENTO SOCIAL
MARCELO
LOPES
DE SOUZA'
ABSTRACT
Some notes on lhe importance of space for social development
The paper discusses the impartance
of space for social develapment. !t intends to react to lhe disorientation and
lack ot theoretical/strategic creativity
which are now affecting the discussions on development, ironically in a
moment of sharpening of social contradictions and exclusionary practices
in ali geographical scales. Starting with
a criticaI discussion of the concept of
develapment, the article then gives
attention to that of social space. This
is fallawed by a general overview ot
the ways the spatial dimensian h.as
been incorparated in the histary ot
development's theary-building. At the
end, the paper stresses the importance
of social space for the construction of
an alternative canceptualization oi development.
Palavras iniciais
o presente trabalho é, a um só tempo, ambicioso e despretensioso.
Ambicioso, porque se pretendeu enfrentar, em algumas páginas, quatro tarefas nada fáceis: 1) esquadrinhar o conceito de desenvolvimento; 2) em seguida, fazer o mesmo com o de espaço social; 3) apresentar uma panorâmica
sobre o tratamento dispensado à dimensão espacial ao longo da história da
teorização sobre o desenvolvimento; 4) finalmente, discutir, com os olhos
voltados para uma conceituação alternativa de desenvolvimento, a importância do espaço social. Este trabalho é, contudo, também despretensioso, porque o autor está consciente de não poder oferecer, no âmbito de um artigo,
mais que um tratamento meramente introdutório dos assuntos que aborda.
Na verdade, para se fazer um mínimo de justiça à literatura atualmente disponível e ao acervo de conhecimentos acumulados, cada um dos temas das
. Professor Adjunto do Departamento de Geografia da UFRJ e pesquisador do CNPq.
14
Revista TERRITÓRIO,
ano 11,n2 3, jul.Zdez, 1997
seções, todos complexos e nenhum deles isento de controvérsias, mereceria, por si só, um extenso estudo. Seja como for, oxalá as imperfeições destas
páginas não as impeçam de estimular o aprofundamento de um debate que,
precisamente na atual conjuntura de desorientação e falta de criatividade teórica e estratégica a propósito do desenvolvimento, conjuntura essa que é
igualmente um momento de agudização de exclusões e contradições sociais
nas mais diferentes escalas, tem de ser valorizado.
1, O conceito de
desenvolvimento
Faz-se mister sublinhar, para começar, que, ao contrário do que freqüentemente se imagina, o conceito de desenvolvimento não é unívoco, e
muito menos se esgota na idéia de desenvolvimento econômico. A rigor, o
desenvolvimento econômico resume-se a uma conjugação de crescimento
(expresso através do incremento do PIS, do PNB ou da renda nacional per
capital com modernização tecnológica. Ele abrange, portanto, um aspecto
meramente quantitativo, mas o ultrapassa, pois compreende também o aspecto qualitativo que é uma crescente complexidade da estrutura da economia (progresso técnico, crescente integração intersetorial etc.), tudo isso traduzindo-se através de um aumento da produtividade média do trabalho. Ademais, não são incomuns, nos manuais de Economia do Desenvolvimento,
alusões complementares a objetivos como a melhoria dos níveis de educação e saúde da população. Infelizmente, entretanto, há limites para o que se
pode fazer com as palavras: ou bem a dimensão econômica da sociedade
passa a englobar todas as demais (religião, poder etc.), coisa que nem mesmo os economistas sugerem, ou então deve-se reconhecer que, conquanto o
desenvolvimento econômico seja dependente, a longo prazo, de fatores tais
como investimentos em "capital humano", ele não necessariamente se faz
acompanhar por uma diminuição dos problemas sociais - aliás, nem sequer
das disparidades sócio-econômicas.
Tomar o desenvolvimento econômico como sinônimo de desenvolvimento tout courté, com efeito, uma impropriedade, porque, se aquele se refere ao processo em cujo bojo uma sociedade consegue produzir bens em maior
quantidade, de melhor qualidade e com mais eficiência, ele concerne a meios, e não a fins. Se a renda per capita bem pode representar uma ficção
estatística, uma vez que nada revela sobre a distribuição da riqueza socialmente produzida, qual é, então, a sua utilidade como indicador de nível de
bem-estar, ainda que meramente material? A ponderação de que o crescimento, ao gerar empregos, possui um inegável apelo social, é, à primeira
vista, mais interessante, mas não é muito menos vazia: se o crescimento vier
a reboque de um progresso técnico poupador de mão-de-obra e de desemprego tecnológico, os empregos novos por ele gerados poderão não compensar, quantitativa e/ou qualitativamente, os empregos perdidos, e não evitarão
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
15
o agravamento de situações de exclusão. Por sua vez, a modernização
tecnológica, além de seus impactos sobre o mundo do trabalho, pode ter sua
positividade relativizada com a ajuda da consideração de diferentes aspectos, todos de interesse para se saber alguma coisa acerca da qualidade de
vida de uma população: as novas tecnologias (e as novas espacial idades, os
novos padrões de consumo) estimulam a criatividade e a convivialidade' de
seus operadores e usuários - ou antes embrutecem o espírito e atomizam a
sociedade? A modernização colabora verdadeiramente para uma vida mais
saudável?" A modernização contribui para uma participação mais ampla da
população nos processos decisórios, para estimular uma cultura política mais
democrática, para formar cidadãos mais conscientes, para uma maior liberdade individual e coletiva?
Dito isto, cabe insistir: o desenvolvimento estritamente econômico
só pode ser, na melhor das hipóteses, um meio, e jamais um fim, não
sendo razoável, por conseguinte, "economicizar" o conceito de desenvolvimento em geral. É óbvio que ninguém, em sã consciência, proporia que
o objetivo do desenvolvimento
se limita ao crescimento e à modernização
tecnológica. No entanto, precisamente porque a ideologia do desenvolvimento hegemônica recobre interesses vinculados ao fim (no sentido de
meta) que é a perpetuação do modelo social capitalista e, neste contexto,
dos benefícios de determinados grupos ou classes, ela privilegia um conceito que coloca em primeiro plano os meios pelos quais se pode aprimoraresse modelo. No interior desse conceito fortemente ideologizado a discussão ética e política sobre os fins é sacrificada (ou mesmo desaparece),
silenciosamente, em favor de uma discussão instrumental sobre os meios.
"Mas", retorquirão os mais conservadores ou conformistas, "os fins já não
são claros, dado que não há melhor sistema?" ... No âmbito de visões mais
explicitamentes
teleológicas
e historicistas,
como o clássico esquema
etapista de Rostow ou a arenga de raiz hegeliana sobre o "fim da história",
o fim (meta, desejo) implícito de alguns converte-se em fim (fé/os, objetivo
supremo, estágio final) explícito: vive-se no melhor dos mundos possíveis, o horizonte do modelo civilizatório capitalista é definitivo e intranspo-
1 A expressão "convivialidade" - designando uma situação onde a técnica (e, poderse-ia acrescentar, o espaço) aproxima os homens ao invés de afastá-los e estimula
a sua sociabilidade ao invés de miná-Ia - é indissociável do nome de Ivan IIlich, um
dos mais argutos críticos do "progresso" e das pseudovantagens oferecidas pela
sociedade industrial e de consumo (ILLlCH, (986).
2 A resposta a esta pergunta deve não apenas levar em conta os diferentes impactos
negativos sobre o ambiente natural e o desperdício de recursos, o que restringe a
qualidade de vida presente e futura, mas também o fato de que os avanços técnicos
no que diz respeito, por exemplo, à medicina, muitas vezes acabam sendo uma
resposta para problemas acarretados ou agravados pela própria modernização, como
o stress e outras "doenças da civilização".
16
Revista TERRITÓRIO,
ano 11,n2 3, jul./dez.
1997
nível (não estaria aí a implosão do "socialismo real" para prová-Io? ..). Eis,
aí, o próprio mito do desenvolvimento,
núcleo da ideologia hornônirna.ê
Entretanto, os fantasmas continuam a rondar, e o barulho do arrastar de
correntes até mesmo aumenta de intensidade: notadamente no âmbito do
capitalismo, um modo de produção que não pode abdicar do imperativo de
crescimento, posto que isso faz parte de sua essência, a espiral da degra·
dação ambiental parece ser algo muito mais sério que uma imperfeição
corrigível mediante ajustes; ao lado disso, a exclusão social, tradicional e
explosiva na periferia capitalista, insiste em se manifestar mesmo lá onde
se julgava estar diante da materialização
do fim mitificado (pense-se
no aumento do desemprego em um "Primeiro Mundo" cada vez mais
pós-fordista
e sacudido pela Terceira Revolução Industrial; pense-se
na "nova pobreza", no aumento da xenofobia e da intolerância interétnica
na Europa).
Ora, a própria literatura científica, a despeito da hegemonia dessa
ideologia do desenvolvimento
etnocêntrica (mais precisamente: europeicêntrica) e capitalistófila, tem gerado, aqui e acolá, várias reações, menos
ou mais radicais, ao reducionismo economicista. Tímido como fosse, o
enfoque redistribution with gro wth , de meados dos anos 70, representou
uma primeira autocrítica interna ao ambiente conservador (vale dizer,
acrítico perante o capitalismo), desde que as teorias da modernização e
do crescimento iniciaram o seu pontificado, na década de 50: constatouse - e com que atraso! - que crescimento e modernização não eram uma
garantia de maior justiça social. Posteriormente, mas sempre sem chegar
a fazer objeção ao modelo civilizatório capitalista em si, os enfoques da
"satisfação de necessidades básicas", do "desenvolvimento
de baixo para
cima", do "ecodesenvolvimento",
do "desenvolvimento
endógeno" e outros
foram, aos poucos, desafiando o economicismo mais tacanho, sem chegar a
destrona-lo completamente. É ineqàvel que a paisagem intelectual a respeito
das visões de desenvolvimento não tem sido, desde que o presidente norteamericano Harry Truman marcou simbolicamente, com seu discurso de posse em 1949, o começo do debate contemporâneo sobre o desenvolvimento
como um debate político e científico de grande visibilidade pública em escala
O mito expressa, segundo Leszek Kolakowski, dentre outras necessidades, "( ... ) a
necessidade de compreender as realidades empíricas, ou seja, de viver o mundo da
experiência
como dotado de sentido por sua relação com uma realidade
incondicionada que liga os fenômenos segundo os fins. A ordem finalista do mundo
não pode ser inferida por via dedutiva daquilo que pode ser legitimamente considerado como material empírico do pensamento científico; tampouco pode ela contribuir
com qualquer hipótese legítima que permita explicar os dados da experiência. (... ) O
mito degenerou quando se transformou em doutrina, ou seja, em uma construção
que necessitava de uma prova e a buscava. A forma em que se organiza a degeneração da fé é a tentativa de imitar a ciência." (KOLAKOWSKI, 1981:10).
3
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
17
mundial," algo homogêneo e isento de polêmicas e atritos, mesmo entre os
que não cogitam de uma aposentadoria do modelo social capitalista."
Quanto aos marxistas, sua percepção do desenvolvimento era, em um
sentido profundo, similar à capitalista-ocidental: a começar pelos próprios Marx
e Engels, o fato é que a objeção à desigualdade estrutural com que a riqueza
socialmente produzida é distribuída na sociedade de classes capitalista traduziu-se no marxismo por uma crítica das relações de produção capitalistas
(e, para usar a sua terminologia, da "superestrutura" jurídico-política e ideológica que as ampara), mas não das forças produtivas herdadas do capitalismo. O desenvolvimento da humanidade, de Marx aos dependentistas mais
fiéis à sua herança, passando por Lênin, Rosa Luxemburgo etc., incluiria,
forçosamente, um aproveitamento da matriz tecnológica (e espacial) do capitalismo. Essa matriz, em si mesma, seria uma conquista da humanidade; o
grande problema seria o de se achar gerida por mãos erradas e de maneira
errada, infortúnio a ser eliminado pelo proletariado revclucionário." Com isso,
Não se pretende sugerir que esse discurso marque o começo da discussão sobre o
desenvolvimento em geral. O erudito estudo de COWEN & SHENTON (1996), por exemplo, recua até a primeira metade do século XIX - mais especificamente até os legados
de Saint-Simon e Auguste Comte - em busca das raízes do que eles chamam de "a
moderna doutrina do desenvolvimento" - com o que o autor destas linhas concorda. No
entanto, o período da Guerra Fria e a onda de descolonização dos anos 50 e 60 representam o contexto onde a preocupação com o desenvolvimento adquiriu uma clara importância geopolítica, como peça de propaganda e arma na "guerra dos sistemas", e
passou a mobilizar tanto intelectuais das nações que se libertavam do jugo colonial (ou
que, no caso da América Latina, buscavam emancipar-se economicamente, após terem
conquistado já há mais de um século a independência política formal) quanto estudiosos
e institutos de pesquisa de países que buscavam capturar esses países para a órbita de
influência ocidental - destacando-se, aí, os Estados Unidos. O papel do "desenvolvimento" como peça-chave do discurso ideológico da Pax Americana é precisamente o
que simboliza o discurso proferido em 20/1/1949 perante o Congresso pelo presidente
Truman (apud ESTEVA, 1993:89-91). Daí a formulação provocativa e simplificadora do
intelectual mexicano Gustavo Esteva: "o subdesenvolvimento existe desde aquele 20 de
janeiro de 1949" (ESTEVA, 1993:90).
5 A diversidade
de visões sobre o desenvolvimento torna-se ainda mais evidente se
se considera uma série histórica mais longa, como os últimos duzentos anos. Aliás,
a própria inversão economicista entre meios e fins, no que tange ao conceito de
desenvolvimento, é peculiar sobretudo ao período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando o mito subjacente passa a ter na Ciência Econômica sua principal
legitimadora, em que pesem contribuições decisivas como a de Schumpeter, no começo deste século (ver discussão em COWEN & SHENTON, 1996).
6 Os testemunhos,
já no próprio Marx, são numerosos. Apenas para ficar em alguns
particularmente explícitos e didáticos, consulte-se os seus dois artigos sobre a dominação britãnica na índia, onde ele ressalta o papel destrutivo mas, ao mesmo tempo,
regenerador da Inglaterra, ao estabelecer "os fundamentos materiais da sociedade
ocidental na Ásia" (MARX, 1982b:520; ver, ainda, MARX, 1982a).
4
18
Revista TERRITÓRIO, ano li, nº 3, jul./dez.
1997
o marxismo assume nitidamente as feições de uma doutrina modernizante
alternativa, munida, inclusive, de um esquema etapista e uma teleologia próprios (o esquema da sucessão de modos de produção, do comunal-primitivismo
até o paraíso comunista).
Por fim, não se pode ignorar um certo gênero de critica teórico-conceitual
simultaneamente anticonservadora e não-marxista, o qual busca desvelar o
comprometimento histórico visceral do conceito de desenvolvimento com a
ideologia do "desenvolvimento" capitalista (alguns exemplos: CASTORIADIS,
1986a; LATOUCHE, 1986,1994 e 1995; SACHS, 1992; ESTEVA, 1993). Infelizmente, esse gênero de crítica costuma jogar fora o bebê com a água do
banho, ao anatematizar a própria palavra desenvolvimento. Na realidade, o
debate internacional sobre o desenvolvimento hoje já não possui a mesma
visibilidade pública de que gozava até a década passada, nem desperta o
mesmo interesse teórico que antes, por conta de fenômenos como a gradual
heterogeneização
do "Terceiro Mundo", a hegemonia
ideológica
do
neoliberalismo, a crise do pensamento de esquerda e, ao menos fora da Economia, uma certa influência antiteórica do "pós-modernismo". O mainstream
intelectual tem sucumbido, também no terreno da teoria, perante a guinada
neoconservadora observada desde a era ReaganfThatcher e agravada após
1989-90 - o convencionalismo analítico e o anacronismo, comentados pelo
autor em trabalhos anteriores (SOUZA, 1994; 1996a), chegam a ser constranqedores? -, e a agenda de discussões encontra-se, atualmente, fragmentada em tópicos cuja natureza trai a emasculação típica de um espírito {in de
siécte: caminhos para um crescimento econômico ecologicamente sustentável, maneiras de melhor ajustar-se à globalização, redução de jornada de
trabalho como a fórmula mágica contra o desemprego ... Diante desse cenário, quando mais se carece de novos marcos teórico-conceituais a propósito
das possibilidades de mudança social nas mais distintas escalas, mostra-se
insatisfatório um padrão de objeção que reduz a preocupação com o desenvolvimento ao respaldo intelectual à ocidentalização e ao "desenvolvimento"
econômico capitalista, de maneira ironicamente semelhante ao que fazem os
conservadores (com a óbvia diferença de substituir a idolatria pela iconoclastia).
Mais construtiva e razoável é, por exemplo," a defesa, por Roland KOCH
7 O festejado cientista político Samuel Huntington
(não mencionado nos referidos
trabalhos anteriores do autor), por exemplo, ao comentar as condições estruturais
favoráveis á democratização,
aprisiona a idéia de desenvolvimento
no antiquado
figurino do desenvolvimento econômico, inclusive atribuindo a um indicador paupérrimo como a renda per capita uma credibilidade analítica extemporânea
- embora
ele decerto não desconheça que o crescimento econômico não implica, necessariamente, menores disparidades sócio-econômicas
(HUNTINGTON, 1994).
8 Outros trabalhos
representativos de um esforço construtivo de superação do chamado "impasse na teoria do desenvolvimento" podem ser encontrados na coletânea
organizada por SCHUU RMAN (1996).
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
19
(1993), de um conceito
reflexivo
de desenvolvimento
(reflexiver
Entwicklungsbegrift)
em contraposição
a um transitivo
(transitiver
Entwicklungsbegriff) - vale dizer, a denúncia, devido ao seu caráter manipulativo e historicamente justificador de intervenções espúrias, do pensamento
segundo o qual uma sociedade pode ou deve levar o desenvolvimento a outra
(pano de fundo por trás das modernas teorias e estratégias de desenvolvimento), sem, no entanto, abrir mão da idéia de um desenvolver-se,
qual
tenha lugar mediante a exploração de potencialidades próprias. Falta ao trabalho de Koch, entretanto, uma imunização verdadeiramente convincente do
conceito reflexivo contra o vírus do teleologismo.
Mas, enfim: o que poderia ser, então, o desenvolvimento, para além da
ideologia e do mito? O autor vem tentando, há algum tempo, esboçar uma
resposta para essa pergunta que seja, ao mesmo tempo, consistente e nãoestreita. Sem querer ser simplesmente evasivo, o autor argumentou alhures
(SOUZA, 1996a) que o conteúdo do desenvolvimento (o fim, no sentido de
meta aceita pelos/acordada entre os membros de uma sociedade) deve ser
entendido como atrelado a cada universo cultural e social particular, sendo
logo, em um nível de detalhe que se preste à operacionalização,
variável,
plural. No entanto, em um plano de elevada abstração, uma formulação filosófica do desenvolvimento que deseje evitar a visão instrumental-economicista,
conservadora, etnocêntrica e historicista da ideologia do desenvolvimento
hegemônica poderia ser a seguinte: um movimento (sem fim - ou seja, sem
"estágio final" ou mesmo direção concreta predeterminados ou previsíveis e
que não poderá jamais ser declarado como "acabado" - e sujeito a retrocessos) em cuja esteira uma sociedade torna-se mais justa e aceitável para seus
membros.
Sem dúvida, a formulação acima, por demais singela, deve ser entendida meramente como uma primeira aproximação, a qual suscita questionamentos e carece de complementação. Um questionamento inicial seria: e se
a mudança social, enquanto um valor, for simplesmente estranha ao imaginário da sociedade em tela, conforme acontece com as sociedades tribais? Este
ponto foi já tocado pelo autor anteriormente (SOUZA, 1996a), e quanto a isso
não pode restar dúvida: a idéia de desenvolvimento não é, geográfica e historicamente, desenraizada; ela é um produto histórico do Ocidente. No entanto,
uma vez que o Ocidente efetivamente se mundializou e impactou, em maior
ou menor grau, todas as culturas do planeta, a idéia de desenvolvimento possui hoje um alcance potencial gigantesco - fato que não justifica o etnocentrismo, mas sugere, bem ao contrário, que mesmo a defesa de tradições de
coletividades
não-ocidentais
depreende uma resistência agora tornada
impensável sem algum tipo de mudança em alguma escala: a saber, mudanças em escala nacional e mesmo global que deixem à etnodiversidade alguma margem de manobra. Um outro questionamento poderia ser: e se os membros de uma sociedade não tiverem plena consciência do que seria, objetivamente, melhor para eles? Do Brave New Worldde Aldous Huxley ao 1984 de
°
20
Revista TERRITÓRIO,
ano 11, nº 3, jul./dez.
1997
George Orwell, ou das experiências concretas do totalitarismo nazi-fascista e
stalinista até a estupidificação e o conformismo na sociedade de consumo
contemporânea, é preciso levar em conta a possibilidade de gritantes discrepâncias entre aquilo que um observador crítico interno a uma sociedade poderia considerar como sendo "bom" ou "justo", e aquilo que a maioria dos
membros dessa mesma sociedade aceita como "bom" ou "justo". No entanto, olhando com atençâo, não é difícil perceber que os conflitos freqüentemente acabam indicando que, por baixo de um conformismo epidérmico, por
trás do individualismo. da asfixia política e da propaganda, insatisfações existem, frustrações se acumulam e tensões vão se formando, corroendo por
dentro o regime e esgarçando o tecido social (implosão do "socialismo real",
problemas de "ingovernabilidade" nos regimes democrático-representativos
ocidentais). A questão da justiça e da legitimidade é, pode-se convir, uma
questão que nunca poderá ser encerrada - mas nem por isso é vazia de
sentido.
A idéia de autonomia, tal como apresentada pelo filósofo Cornelius
Castoriadis - a auto-instituição consciente da sociedade, alicerçada na garantia política e na possibilidade material efetiva de igualdade de chances de
participação nas tomadas de decisão (o que inclui o acesso à informação) _,9
tem sido, para o autor do presente trabalho, a ponte por excelência entre a
"abertura" necessária e o alcance prático que o conceito de desenvolvimento
precisa possuir. Porém, essa idéia necessita, antes, ser tornada realmente
operacional, coisa com a qual Castoriadis abdica de se ocupar, voltado que
está para o desbravamento
de um campo radicalmente alternativo - a
refundação do projeto democrático, sob inspiração da herança grega clássica
(cuja substância é precisamente a autonomia) e pautada simultaneamente
em uma denúncia da incompletude estrutural da democracia representativa
moderna e em uma recusa do autoritarismo marxista (CASTORIADIS. 1983;
1986b; 1990; 1996a; 1996b). O processo de conquista da autonomia não é,
no entanto, um "tudo ou nada", mas um compromisso necessário entre um
horizonte estratégico de pensamento/ação e as modestas vitórias táticas hic
et nunc (vide SOUZA, 1996a). Além do mais, a autonomia não é um princípio
cuja operacionalização seja trivial, como o autor também já salientou em trabalho anterior (SOUZA, 1996a). A autonomia de um grupo para adotar uma
concepção específica de desenvolvimento ou, mais amplamente, um modo
de vida particular, exige a consideração desse grupo não isoladamente, mas
no contexto de sua relação com outros grupos (em qualquer escala, da local
à internacional), sempre à luz do seguinte desafio: por um lado, é preciso
respeitar a alteridade do Outro e a incomensurabilidade de universos culturais distintos ("justiça", "direitos humanos" e outras são noções cujo conteúdo
concreto pode variar bastante e apresentar afastamentos relativamente à con-
9
Ver, a propósito, CASTORIADIS.
1983; 1990.
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento
social
21
cepção moderna-ocidental); por outro lado, manifestações de uma dada sociedade que ferem a autonomia de outra, como o desejo de expandir-se territorialmente às custas dos vizinhos. devem ser veementemente rechaçadas. Ou
seja, a autonomia é um princípio que exige a consideração do plano interno (a
igualdade de chances de participação na tomada de decisões relevantes para
a vida social), mas igualmente que se leve em conta o plano externo (os
interesses legítimos e a autonomia do Outro, não importando o quanto ele
seja diferente de nós mesmos), conforme um princípio de não-intervenção
(SOUZA, 1994; 1996a). É bem verdade que a idéia de autonomia é, ela própria, tributária de uma matriz cultural específica, greco-ocidental, o que, é
preciso admitir, parece restringir a sua aplicabilidade, enquanto princípio, no
que toca ao plano interno a cada sociedade:" contudo, no plano externo, a
noção de autonomia, aqui representada pelo direito de autodeterminação dos
povos e culturas, aparece justamente como uma arma para a defesa da
etnodiversidade. Mas, a propósito da não-intervenção: o que são os "interesses legítimos" do Outro? Até que ponto aquilo que um observador externo
identifica como opressão e desrespeito sistemático aos direitos humanos,
ainda que afete apenas os indivíduos vivendo longe das fronteiras do território desse observador, pode ser tolerado enquanto "manifestação de uma cultura"? Certamente não haverá uma resposta simples para isso, e as dificuldades do diálogo intercultural permanecerão. E, na verdade, o critério da legitimidade de uma sociedade aos olhos da maioria da população, delineado anteriormente, não elimina o direito de qualquer analista de exercitar, sem arrogància, o seu senso crítico, diante de relações e práticas sociais por ele
julgadas opressivas ou insalubres, por mais que elas se achem sancionadas
pela religião ou pelos costumes. Seja lá como for, a crítica do etnocentrismo é
uma condição sine qua non para se edificar uma alternativa conceitual mais
justa sobre o desenvolvimento. Tanto no plano interno a uma sociedade quanto
no plano externo, o pensamento autonomista é capaz de sustentar uma concepção de desenvolvimento simultaneamente mais radical, generosa e consistente que aquilo que foi permitido pelo projeto "socialista" em qualquer de
suas versões. Essa concepção o autor decidiu denominar uma "teoria aberta"
do desenvolvimento sócío-espacial (SOUZA, 1996a).
10 Mesmo a seguinte ponderação de Castoriadis, tida pelo autor do presente trabalho
como lapidar, tem nos limites da referida matriz cultural os limites de sua própria
validade: "uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas para
sempre. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta, ou seja, onde existe sempre a possibilidade socialmente
efetiva de interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei" (CASTORIADIS,
1983:33; grifo no original). Que sociedades teocráticas, tribais etc., onde o requisito
acima de forma alguma é cumprido, estão longe de serem autônomas (internamente), isso é óbvio; o que não seria razoável seria classificá-Ias, por conta disso, de
injustas, indistintamente e sem considerar a relatividade cultural da idéia de justiça.
22
Revista TERRITÓRIO, ano li, nº 3, jul./dez.
1997
2. O conceito de espaço social
o que é o espaço? Não é interesse do autor navegar, nesta seção, por
todos os meandros da idéia de espaço, palavra essa que é, certamente, uma
das mais polissêmicas que existe, noção capturada e transformada em conceito pelas mais diferentes ciências e saberes. É impossível recuperar, dentro dos limites deste artigo, as discussões filosóficas mais gerais em torno do
termo - as diferenças entre o espaço dos físicos e o dos psicólogos, o espaço
absoluto em Newton ou o espaço como forma pura de intuição e princípio do
conhecimento a priori em Kant -, restando como viável, pragmaticamente,
comentar de forma direta e sucinta algo sobre o espaço como morada do
homem - o espaço social.
O espaço social é, primeiramente, ou em sua dimensão material e objetiva, um produto da transformação da natureza (do espaço natural: solo,
rios etc.) pelo trabalho social. Palco das relações sociais, o espaço é, portanto, um palco verdadeiramente construído, modelado, embora em graus muito
variados de intervenção e alteração pelo homem, das mínimas modificações
introduzidas por uma sociedade de caçadores e coletores (impactos ambientais
fracos) até um "ambiente construído" e altamente artificial como uma grande
metrópole contemporânea (fortíssimo impacto sobre o ambiente natural), passando pelas pastagens e pelos campos de cultivo, pelos pequenos assentamentos etc. Não é um espaço abstrato ou puramente metafórico (acepção
usual no domínio do senso comum e em certos discursos sociológicos, a
começar por Durkheim), mas um espaço concreto, um espaço geográfico criado nos marcos de uma determinada sociedade. No fundo, esse é o núcleo
de um conceito de espaço legado por diversas correntes inspiradas pelo materialismo histórico e que pontificaram nos anos 70 e 80 (Sociologia Urbana
marxista, Radical Geography etc.)."
A dimensão material do espaço social, tal como descortinada pelos
autores marxistas, é, em sua formulação mais geral, um ponto de partida
válido, embora não possa ser também o ponto de chegada de uma conceituo
ação exigente. Como qualquer realidade social, o espaço não é uma entidade
apenas objetiva;
sua objetividade
é lida (inter)subjetivamente,
sua
" Uma das principais fontes de desavença, e que originou um longo e famoso debate, se referia, justamente, ao status do espaço como elemento da totalidade social,
notadamente sob o capitalismo contemporâneo: produto material extremamente importante e dotado de particularidades
e poder condicionador, mas subordinado à
dinâmica do modo de produção (posição de sociólogos como CASTELLS (1983] e
mesmo de geógrafos como HARVEY (1980]), ou mesmo um simples reflexo das
relações de produção (convicção de muitos cientistas sociais marxistas), ou, pelo
contrário (como em LEFEBVRE [1981]), um domínio separado das forças produtivas
da sociedade e autônomo (e preeminente!) perante as tradicionais esferas da produção, da troca e do consumo?
Algumas notas sobre a importância
do espaço para o desenvolvimento
social
23
materialidade é dotada de significações específicas para cada indivíduo (subjetividade) mas que são, também, em certa medida, compartilhadas por vários indivíduos (intersubjetividade). Palco material e objetivo das relações sociais, o espaço, no contexto da experiência de sujeitos cognoscentes organizados em sociedade, é, em certa medida, "construído" (inter)subjetivamente:
bairro, região, "terra natal", "pátria" ... Em cada escala se pode encontrar exemplos de como esse palco, longe de ser um simples suporte axiologicamente
neutro, na verdade é uma materialidade impregnada de valores, um referencial
para a orientação quotidiana, um catalisador simbólico e afetivo (a rua onde
se nasceu, morou ou mora, "meu pedaço", "meu bairro", "minha região"),
amiúde um referencial ideologicamente manipulado (pelos regionalismos,
nacionalismos ...). Enquanto lugar, o espaço transcende sua condição meramente objetiva, de suporte material para o existir humano (produzir, habitar,
circular, amar, guerrear), reaparecendo em um plano conceitualmente mais
elevado: materialidade dotada de significado, parte da experiência humana
(ver, a propósito, TUAN, 1983, entre outros trabalhos representativos da Geografia Humanística)." Em um sentido não-material sutil, um espaço natural,
ainda que ainda não propriamente transformado por um dado grupo, pode ser
já considerado "social" a partir do momento em que, na mira de um projeto de
colonização ou, pelo contrário, protegido enquanto reserva biológica, parque
natural etc., foi já apropriado por um projeto social, passando a ser objeto de
uma leitura determinada e recebendo uma finalidade (e sendo mapeado, enquadrado). Assim, não apenas o trabalho, que produz materialmente o espaço social, "socializa"
espaço natural; as representações deste são, em si, já
uma forma de desnaturalização, ao significarem a sua captura pelo imaginário de uma sociedade e uma forma ou um projeto de apropriação. De toda
maneira, como o autor já havia grifado em um trabalho anterior (SOUZA,
1989: 151), a propósito de uma reflexão sobre o conceito de bai rro, é imprescindível ultrapassar a velha antinomia objetividade versus subjetividade, sem
o que o espaço será ou coisificado (objetivismo: o espaço é visto enquanto
materialidade historicamente forjada pelas "leis gerais da sociedade", um con-
°
12 Nem todo espaço social, em sentido objetivo, precisa ser um lugar ou fazer parte
da esfera experiencial de um grupo: é o caso, por exemplo, de uma hipótetica cidade-fantasma, a qual, desabitada e "deslugarizada",
nem por isso voltou, materialmente, à condição de espaço natural. Este exemplo, embora se refira a uma situação extrema e rara, mostra bem a precedência lógica do conceito de espaço social
relativamente ao de lugar, sendo este um desdobramento ou uma complementação
daquele. Diferentemente do substrato espacial (dimensão material do espaço), o
lugar não é simplesmente algo exterior às pessoas (ou seja, um "palco", para usar
novamente a metáfora), mas sim uma realidade da qual estas se sentem fazendo
parte, e cuja identidade - lugar agredável, perigoso, de má fama ... - não pode ser
dissociada da sua presença, independentemente
das eventuais discrepâncias de
percepção entre insiders e outsiders.
24
Revista TERRITÓRIO, ano li, n9 3, jul./dez.
1997
junto objetivo de formas espaciais e funções cuja dinâmica é indiferente às
subjetividades) ou fantasmagorizado (subjetivismo: o espaço é encarado como
uma realidade vivida e percebida pelos indivíduos e grupos particulares, mas
a realidade sócio-espacial que existe objetivamente, independentemente das
consciências individuais, não é examinada profunda e criticarnentej.P
Enquanto fonte de recursos (recursos naturais vitais e matérias-primas, mas também benfeitorias e toda sorte de valorização realizada, equipamentos, plantas industriais ...) ou, ele mesmo, um recurso (localizações
geoeconômica ou geopoliticamente estratégicas), o espaço é base de sobrevivência, fonte de poder e, por via de conseqüência, alvo de cobiça e desejo
de apropriação e controle. A isso se deve adicionar a importância não apenas
"instrumentai", militar ou econômica (visão bastante ocidental-moderna!), de
um espaço, mas também a sua relevância cultural para um grupo: espaço
sagrado, símbolo de uma identidade coletiva (em várias escalas - Rio de
Janeiro, Brasil, América Latina ... -, fazendo a pluralidade escalar eco à
multiplicidade simultânea de identidades); enfim, a sua relevância simbólica
e afetiva como lugar. Por tudo isso, o espaço tende a ser sempre objeto de
disputa e apropriação, de territoria/ização. Conforme o autor deste trabalho
sintetizou alhures, retomando e reciclando as contribuições de autores como
RAFFESTIN (1993) e SACK (1986), um território é um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder ou, dito de maneira mais precisa,
um "campo de força" concernente a relações de poder espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato (espaço material) referencial (SOUZA,1995).
3. O espaço na literatura sobre desenvolvimento:
uma brevíssima panorâmica
Por força dos vieses epistemológicos impostos pela divisão positivista
do trabalho acadêmico, com as dimensões da sociedade (economia, política,
cultura ... tempo, espaço) sendo loteadas entre as diferentes disciplinas existentes, o espaço amiúde não foi valorizado na literatura sobre o desenvolvimento. É claro que, de tão artificiais, as fronteiras entre História, Sociologia,
Geografia, Economia etc. comumente foram e são desrespeitadas - na realidade, ambíguas e mesmo contraditórias, essas fronteiras não podem, na prática, não ser desrespeitadas por qualquer um que queira realizar um trabalho
relevante. No entanto, as restrições epistemológicas existem, e são ainda
hoje levadas muito a sério por alguns: ademais, a própria maneira como se
organizam a produção e a difusão do conhecimento impõe condicionamen-
13 Vale a pena registrar que, em um quadro epistemológico distinto, mas de maneira
assaz interessante, também ENTRIKIN (1991) problematizou a referida antinomia.
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento
social
25
tos. Três fatores principais, atinentes a esse quadro, contribuiram decisivamente para o déficit de valorização do espaço no âmbito das teorizações
sobre o desenvolvimento:
1) A Geografia, que amiúde se arroga o privilégio de ser a "ciência do
espaço", sofreu, em larga medida justamente por causa de seu "holismo" superficial (indo do espaço natural ao social, mas evitando aprofundar-se nas
relações sociais, a superficialidade enquanto ciência social foi o preço tantas
vezes pago pelos geógrafos), de um empirismo exacerbado e de uma enorme dificuldade (e, durante muito tempo, relativo desinteresse) em construir
teorias próprias. Comparativamente a disciplinas como a Economia e a Sociologia, a contribuição teórica direta dos geógrafos para a reflexão sobre o
(sub)desenvolvimento foi insignificante. Mesmo a Ciência Política e, mais recentemente, a Antropologia, têm uma ficha de participação no debate teórico
a respeito mais extensa e expressiva que a da Geografia.
2) A Economia e a Sociologia, normalmente controladas por um vício
epistemológico setorializante (às vezes também historicizante, às vezes até
mesmo sincrônico/a-histórico),
amiúde não "espacializaram" suas reflexões
sobre o desenvolvimento e, quando o fizeram, fizeram-no de modo limitado.
É claro que houve vários autores importantes, em ambas as disciplinas, que
valorizaram a dimensão espacial da sociedade: lembre-se, para ficar somente nos autores não-marxistas, pela Economia, por exemplo, von Thünen,
Palander, (Alfred) Weber, Christaller (este, na verdade, um dublê de geógrafo),
l.ósch e Isard; pela Sociologia, como não recordar a Escola de Chicago ou
Chombart de Lauwe (e boa parte da Sociologia Urbana clássica em geral)? O
problema é que esses normalmente não eram os mesmos autores que estavam diretamente engajados com a teorização sobre o (sub)desenvolvimento.
Sem dúvida, também poderiam ser lembrados alguns autores importantes
que representaram essa ponte: Boudeville, Lasuen e outros teóricos dos "pólos de crescimento", seguindo a trilha aberta por François Perroux: Albert
Hirschman; Ignacy Sachs e outros autores ligados ao "ecodesenvolvimento".
Todavia, aí manifesta-se outro tipo de problema: a pobreza ou o reducionismo
presente nas conceituações e abordagens do espaço, do espaço econômico
perrouxiano ("topológico", abstrato) ao espaço basicamente como espaço natural dos "ecodesenvolvimentistas".
O espaço social concreto, objetivo e
(inter)subjetivo, substrato e arena de luta, lugar e território, escapava, em sua
riqueza e complexidade,
às "visões-coador"
das disciplinas setoriaisnomotéticas.
3) O terceiro fator é recordado por Kevin LYNCH (1994:103), que observa ser um preconceito muito comum aquele que presume que a materialidade espacial é relevante, sob o ângulo da qualidade de vida, na escala do lar
ou local de trabalho e mesmo na da vizinhança (neighborhood),
porém
irrelevante quando se trata de escalas mais abrangentes, como a da cidade
ou a da região. Esse preconceito, que Lynch combate frontalmente, é, como
ele nota, partilhado por muitos planejadores físico-territoriais, além de ter sido
26
Revista TERRITÓRIO,
ano 11, nº 3, jul./dez.
1997
reforçado pela história das design professions e pela natureza das decisões
regionais.
Diante disso, não é difícil explicar a relativa pobreza das ligações entre
espaço e desenvolvimento no âmbito das diferentes vertentes teóricas. Nas
teorias da modernização e do crescimento (cujo apogeu se deu nos anos 60),
onde muitos de seus autores pareciam encarar o espaço como um
epifenômeno, ou seja, um simples "dado" empírico indigno de maior atenção,
mesmo as exceções (teóricos dos pólos de crescimento, Hirschman, economistas regionais e urbanos) reduziram o espaço a um constructo econômico;
as correntes redistribution with growth e "satisfação de necessidades básicas" (anos 70) não fizeram melhor; o "ecodesenvolvimento" criticou o fetichismo
do crescimento, mas não contribuiu muito para avançar ao substituir o espaço econômico abstrato das teorias do crescimento por um espaço quase que
reduzido à condição de natureza (conceitos como ecossistema, biosfera etc.
adquiriram enorme importância), revelando um viés "naturalizante" agravado,
a partir dos anos 80, por seu sucessor, o "desenvolvimento sustentável"; as
correntes do "desenvolvimento endógeno" e do "desenvolvimento de baixo
para cima" (fins dos anos 70/anos 80), de algum modo promissoras apesar
de seu horizonte ideológico capitalistófilo, foram atropeladas pelo avanço da
globalização e condenadas ao ostracismo pela maré conservadora neoliberal.
Pelo lado do pensamento marxista, tipicamente economicista e não
menos produtivista que a Economia "burguesa", o espaço não mereceu, durante muito tempo, maiores atenções ou um quadro conceitual próprio, como
admitiu SOJA (1993), o qual julgou encontrar na publicação tardia da obra de
Marx Fundamentos da crítica da Economia Política (Grundrisse) e nas "tradições anti-espaciais do marxismo ocidental" explicações para esse déficit. Entre
os clássicos, insíghts inspirados e contribuições esparsas podem ser achados, sobretudo, em Marx e Engels (no Manifesto Comunista e em A ideologia
alemã, nos escritos de Engels A situação da c/asse trabalhadora na Inglaterra
e Para a questão da habitação, e em alguns escritos de Marx, como Para a
crítica da Economia Política e mesmo O capita~, os quais não foram, eles
próprios, muito além disso; em Trotsky (e já antes em Lênin) com sua visão
do "desenvolvimento desigual e combinado"; e nas contribuições de Rosa
Luxemburgo e Lênin sobre a internacionalização do capital e a dinâmica do
imperialismo. Somente nas últimas décadas a abertura do pensamento marxista para com a dimensão espacial tornou-se expressiva, e não apenas entre geógrafos e sociólogos urbanos: nomes como o do economista trotskista
Ernest Mandei, o do cientista político Nicos Poulantzas e o de Immanuel
Wallerstein, principal teórico do "sistema mundial capitalista", não podem deixar de ser lembrados.
Também no caso do marxismo, ou dos autores críticos em geral, aqueles que mais teorizaram e valorizaram a dimensão espacial (Henri Lefebvre,
David Harvey, Edward Soja e vários outros) muitas vezes não estavam preocupados com a "questão do desenvolvimento" ou em construir um diálogo
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
27
explícito com as teorias existentes (imperialismo, dependência). De toda
maneira, cumpre notar que, devido ao viés marcadamente objetivista e
economicista da maior parte desses autores, mesmo entre eles o espaço não
teve todas as suas facetas contempladas e teorizadas: a "construção"
(inter)subjetiva do espaço enquanto realidade social foi, compreensivelmente, secundarizada ou mesmo desqualificada; a banalização das dimensões
política e cultural fez perder de vista a riqueza por trás de processos de
territorialização/desterritorialização;
a problemática da degradação ambiental,
uma vez encarada a natureza como um manancial de recursos no bojo de
uma Weltanschauung produtivísta, não foi suficiente ou adequadamente
tematizada. As exceções (como Henri Lefebvre), aliás sempre relativas, só
confirmam a reqra."
4. As muitas faces do espaço no âmbito da "teoria aberta"
do desenvolvimento sócio-espacial
A importância do espaço para o desenvolvimento, no âmbito da abordagem alternativa delineada na primeira seção e em trabalhos anteriores do
autor, é múltipla.
Comece-se pela dimensão objetiva do espaço, pela sua materialidade.
Antes mesmo de se enfocar o espaço propriamente social, aliás, dever-se-ia
fazer alusão ao espaço natural, cuja importância histórica para os processos
de constituição e transformação social (e não apenas para o desenvolvimento em sentido autêntico) é óbvia: dos recursos naturais e fontes de energia
indispensáveis ao processo produtivo (embora sejam hoje em dia fatores muito
menos "estratégicos" que até poucas décadas atrás) às condições de "salubridade" do meio para a vida humana em geral (necessidade de se evitar a
poluição do ar e da água, de se evitar a contaminação e a erosão dos solos
etc.). De tão óbvia, essa importância do estrato natural originário chegou
mesmo a influenciar visões agrupadas sob a etiqueta determinismo ambiental
ou geográfico, abrangendo desde filósofos como Montesquieu até uma parte
considerável da Geografia clássica, onde os talentos e as capacidades dos
povos, e inclusive a sua vocação para o domínio territorial ou a subserviência, eram encarados como estreitamente dependentes das condições de seu
14 Uma outra exceção,
particularmente interessante, foi Kevin Lynch - o qual, na
verdade, sequer era marxista, nem mesmo "heterodoxo". Embora estivesse igualmente despreocupado, no âmbito de sua magnífica obra sobre a "boa forma urbana"
(LYNCH, 1994), em construir pontes com as teorizações sobre o desenvolvimento
(as quais sempre foram normalmente atinentes a escalas supralocais), ele oferece,
contudo, uma reflexão riquíssima e de longo alcance sobre os vínculos entre espaço
e qualidade de vida - e, o que é mais alvissareiro, sob um ângulo crítico bastante
compatível com uma abordagem autonomista inspirada em Castoriadis.
28
Revista TERRITÓRIO,
ano 11,n!.l 3, jul./dez.
1997
meio natural (clima, relevo, situação geográfica etc.). Ainda que sem exagerar essa importância - o que ajuda a imunizar-se contra o etnocentrismo e o
rassismo -, não há como negar, justamente sob um ângulo valorizador da
autonomia do indivíduo e da sociedade, que a minimização da taxa de degradação da base de recursos de um povo (minimização da entropia, poder-seia dizer recordando GEORGESCU-ROEGEN, 1980) é uma contribuição decisiva para a qualidade de vida dos homens do presente e das futuras gera-
ções."
A materialidade do espaço especificamente social, isto é, produzido
pelas relações sociais, possui uma importância múltipla. De um ponto de vista econômico, essa materialidade (a estrutura e as formas espaciais) poderá
facilitar e estimular menos ou mais, por exemplo, a circulação de bens e pessoas. De um ponto de vista político, os objetos geográficos e a configuração
da materialidade do espaço deverão ser trunfos visando ao controle e à segurança. De um ponto de vista cultural, essa materialidade (os símbolos e signos nela inscritos) manterá estreitos vínculos com a formação e reprodução
de identidades coletivas, a orientação quotidiana dos indivíduos e a psicologia social. Cada um desses aspectos pode ser conformado em sentido
subordinador-heteronomizante
ou emancipatório-autonomizante:
sob o capitalismo, a dimensão econômica é dominante, o que conduz muitas vezes
(mas não inteiramente!) à instrumentalização do resto; por exemplo, o ganho
de eficiência embutido em uma "modernização" do espaço objetivando acelerar a circulação de bens e pessoas tem como efetivo motor o imperativo de
acumulação de capital, e não a qualidade de vida dos usuários. Controle e
segurança normalmente traduzem-se por heteronomia, restringindo acessos,
disciplinando os indivíduos e corporificando-se em bastiões de uma ordem
excludente (dos muros de um castelo medieval aos dispositivos de segurança dos "condomínios exclusivos" da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ou de
Alphaville, em São Paulo), mas também podem expressar o legítimo domínio
Ter chamado a atenção da opinião pública mundial para essa responsabilidade
é uma das virtudes da perspectiva do sustainable development. No
entanto, isso não é, em si, algo novo: mesmo Marx, apesar de seu produtivismo em
última análise subestimador da irracionalidade ambiental da matriz tecnológica capitalista, já fizera alusão, no âmbito de uma denúncia da propriedade privada do solo
em O capital, àquele tipo de responsabilidade. Além do mais, o habitual viés
"ecologizante" dos autores que reclamam uma "sustentabilidade" para o desenvolvimento capitalista, viés esse responsável por uma lamentável superficialidade no trato dos problemas sociais engendrados pela própria lógica do capitalismo, não permite que se qualifique essa abordagem propriamente como crítica. Sobretudo se não
se perder de vista certas contribuições anteriores, como a obra de Nicholas
Georgescu-Roegen ou aquelas oriundas da "Ecologia Política" francesa (com destaque para Michel Bosquet), fica difícil considerar a moda atual do "desenvolvimento
sustentável" um avanço intelectual.
15
intergeracional
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento
social
29
de uma coletividade autogovernada sobre o seu espaço, como era o caso
com as muralhas da Atenas radicalmente democrática da Antigüidade. Quanto aos símbolos e signos inscritos na materialidade do espaço social, além da
própria forma e disposição dos objetos geográficos, tanto podem indicar proibições (uma placa, um muro) quanto possibilidades; tanto podem concorrer
para submeter ou domesticar um espírito quanto para libertá-lo; tanto podem
servir à massificação, atomização e alienação quanto ao cultivo do intelecto e
à formação de atitudes cooperativas; tanto podem induzir ao stress e à neurose quanto incentivar a meditação e a paz interior. Seja como for, o fato é que
a organização espacial precisa estar em consonância com as relações de
produção e necessidades tecnológicas, com as relações de poder e com as
representações sociais - enfim, com o imaginário instituído - de uma dada
sociedade, e precisará ser modificado para adaptar-se a cada transformação
social.
O controle do espaço e dos processos desenrolados no interior de um
determinado recorte espacial é, de sua parte, uma condição para o exercício
do poder, quer seja ele heterônomo ou autônomo. Não há poder sem base
territorial (sem territorialízação) , uma vez que esse é o fundamento do acesso
às fontes do poder: dos recursos naturais e da população às identidades politicamente legitimatórias territorialmente referenciadas (nacionalismos, regionalismos). Enquanto "campo de força" o território "adere" a um substrato
espacial, mas é um equívoco confundir ambos, conforme já se advertira em
SOUZA (1995); modificar as formas e estruturas espaciais para adaptá- las a
novas relações sociais é uma coisa, alterar territórios é outra diferente. Materialmente, pode-se reestruturar um espaço, para que ele não condicione ou
induza à separação, à alienação; enquanto "campo de força", um território
poderá ser fragmentado ou suprimido (desterritorialização),
expressando a
reciclagem ou eliminação de um poder que, antes, interditava o acesso e
segregava - sem que, com isso, se modifique necessariamente a materialidade, podendo esta ser meramente refuncionalizada. Na prática, transformações das relações sociais costumam demandar tanto reestrututurações quanto
refuncionalizações; e, quanto maior vier a ser a ruptura com as relações sociais instituídas, maior deverá ser a mudança, por meio de reestruturações e
refuncionalizações, do espaço herdado, pressupondo desterritorializações e
reterritorializações.
A dimensão (inter)subjetiva não é acessória, mas crucial e fundante,
uma vez que o espaço social, e a própria sociedade concreta como um todo
(relações sociais + materialidade), não se deixa reduzir a algo "objetivo". Um
lugar não se distingue de outros apenas por suas particularidades objetivas,
que podem até não ser significativas, mas por ser vivenciado (e, eventualmente, apropriado, territorializado) por um grupo específico, que em interação
com ele desenvolve uma identidade (bairrismo, regionalismo, nacionalismo ...).
De modo mais geral, um lugar sequer precisa ser vivenciado "de dentro" por
parte de um grupo,
qual bem pode vivenciá-lo "de fora" - situação que,
°
30
Revista TERRITÓRIO, ano li, nQ 3, jul./dez.
1997
precisamente, está na base da dialética do preconceito, onde ignorância e
exclusão se reforçam mutuamente. O habitante de um bairro julga, comumente,
conhecer não apenas aquilo que ele vivencia, e que deve sua imagem social
a uma interseção de "leituras" individuais como a dele, mas também aquilo
que ele, por medo ou desprezo, evita: favelas, áreas de obsolescência ... Sob
o ângulo da autonomia, uma tarefa é a busca da desmontagem de preconceitos que se escondem por trás das imagens de certos lugares. Outra tarefa
igualmente importante é investigar em que medida uma consciência e uma
identidade espaciais são construídas de baixo para cima ou, pelo contrário,
predominantemente estimuladas por interesses e iniciativas de elites territorialmente referenciadas (locais, regionais, nacionais). Uma identidade espacial (apego ao bairro, identidade regional e nacional) pode referenciar um discurso e uma prática ernancipatórios, totalmente congruentes, nos planos interno e externo, com a idéia de autonomia; mas pode, também, como aliás
tem sido freqüente, ter no espaço um catalisador das emoções e frustrações
de uma massa manipulada como sustentáculo para a dominação interna ou
para fins de expansão externa por parte de uma elite. Distinguir, por trás de
cada impulso territorialmente referenciado de "autonomização", o que é compatível com a idéia de autonomia no sentido castoriadiano e o que é manipulação de elites e intolerância xenófoba, é uma tarefa atualíssima, ademais de
central no campo do desenvolvimento sócio-espacial.
O reconhecimento do efeito do espaço não apenas como produto das
relações sociais, mas também como condicionador dessas relações, deve
englobar, para além do reducionismo operado pelas leituras marxistas que
estimularam a concepção original de uma "dialética sócio-espacial" (Edward
SOJA [1993], apoiado no pensamento de Henri LEFEBVRE [1981J, este muito mais flexível e "heterodoxo"), não somente os condicionamentos da objetividade material do espaço herdado, mas também das imagens e representações espaciais, da sua dimensão intersubjetiva portanto. Uma outra faceta
desse condicionamento, também negligenciada pelo marxismo, é a questão
da brutal destruição da base de recursos vitais (degradação ambiental), restringindo, assim, a margem de manobra das futuras gerações.16
Outro aspecto onde se revela a importância da dimensão espacial é a
questão da localização e seus vínculos com o desenvolvimento. Por exemplo, em que medida a proximidade geográfica, sendo uma facilitadora da difusão de inovações e também do acesso (em que pese isso ser cada vez mais
relativizado pela compressão espaço-temporal propiciada pela tecnologia de
comunicações e transportes) pode estimular o desenvolvimento? Fazendo
contraponto com as potencialidades físicas de difusão e acesso tem-se os
Seja, de passagem, observado que a percepção e tematização dos condicionamentos impostos pelo espaço social nunca esteve restrita ao ambiente intelectual
marxista. Um bom exemplo é, a propósito, LYNCH (1994).
16
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
31
problemas de territorializações fechadas de localizações (ou seja, situações
de monopólio locacional) e de barreiras sociais (culturais, econômicas) restritivas da difusão e da acessibilidade. Uma questão de suma importância que
deve ser colocada a respeito é a seguinte: diante das especificidades do espaço, como sua sua fixidez e (de um ponto de vista absoluto) irreprodutibilidade,
em que condições são essas territorializações defensáveis, e em que circunstâncias são injustas? Onde termina a territorialização perfeitamente legítima, sob o ângulo da autonomia, garantidora da preservação da base de
recursos e da identidade de um grupo, e começam o "corporativismo territorial" ou a segregação sócio-espacial, que ferem o princípio da igualdade efetiva de oportunidades?
Ainda um outro aspecto crucial é o desafio da globalização: fim dos
territórios, fim da "geografia", como já foi sugerido? Além de todos os aspectos anteriormente tratados, que ilustram a importância crucial do espaço para
o desenvolvimento (em sentido economicista-convencional
ou não), é preciso não exagerar nem os efeitos da "aniquilação do espaço pelo tempo" (compressão espaço-temporal) nem a capacidade homogeneizadora da mundial ização da cultura de massas. Como mostrou HARVEY (1994; 1996), a queda
de barreiras espaciais não redunda em decréscimo da significância do espaço para o capitalismo contemporâneo, pois certas diferenças na qualidade
dos lugares (da infra-estrutura ao "clima social") passam a ser mais valorizadas entre os potenciais investidores, ocasionando uma forte competição entre aqueles que disputam investimentos e buscam atraí-los para os seus respectivos espaços. De mais a mais, da fragmentação do tecido sócio-políticoespacial de uma metrópole como o Rio de Janeiro sob a influência da expansão do trafico de drogas e do sentimento de insegurança (SOUZA, 1996b)
aos movimentos regionalistas e nacionalistas da atualidade, as provas de
que a globalização econômico-financeira e mesmo cultural não homogeniza
o mundo ou esvazia a diversidade espacial (a diferenciação de áreas, para
usar uma antiga expressão geográfica) de sua relevância são numerosas
demais para serem negligenciadas.
Por fim, o espaço, além de ser uma realidade que é parte de nosso
objeto de estudo, nos remete ainda ao terreno metodológico: a combinação
de níveis de apreensão da realidade, de escalas geográficas. Teorizadas, a
partir da década de 70, por diversos autores (como LACOSTE, 1988, e RACINE
et ai., 1983). as escalas de análise e sua combinação transportam a velha
dialética entre o geral e o particular, o externo e o interno, para um plano
eminentemente concreto, referenciado por processos e dinâmicas reais (alcance espacial de problemas, redes, territórios, imagens ...). Vem a pêlo, porém, acrescentar que a própria autonomia é, em boa medida, uma questão de
escala. Por exemplo, a perda de autonomia dos moradores de favelas do Rio
de Janeiro na esteira da gradual territorialização destas por quadrilhas de
traficantes de drogas, postulada pelo autor em trabalhos anteriores (SOUZA,
1995: 1996b), diminui de importância na proporção em que se passa da esca-
32
Revista TERRITÓRIO, ano 11, nº 3, jul.Zdez. 1997
la da favela para a da cidade como um todo, e desta aos níveis nacional e
mundial - revelando-se, cada vez mais nitidamente, à luz dos fatores de
injustiça social emergentes nas diversas escalas, o quanto a autonomia do
favelado é e sempre foi medíocre, fato esse apenas agravado pela presença
inibidora dos traficantes, Ou seja, a autonomia efetiva é função de várias
coisas substantivas, as quais definem a resposta à pergunta autonomia para
quê?; mas, por tabela, é também uma função da escala. Se o horizonte utópico castoriadiano depreende, especialmente em um mundo globalizado, a valorização da escala geográfica global, uma visão operacional do problema, a
qual reconheça que a plena autonomia e a heteronomia mais brutal são somente os dois extremos de uma gradação de situações possíveis, tem, de
sua parte, forçosamente, de prestigiar muitas escalas e a combinação de
escalas.
Arremate
Faz-se mister ultrapassar a idéia de desenvolvimento etnocêntrica,
conservadora, economicista e historicista. É possível, com suporte na idéia
de autonomia, escapar do desenvolvimento enquanto algo exógeno, trazido
(ou imposto) de fora, culturalmente estranho e de conseqüências não raro
nefastas, ainda que fascinante ... como a modernização capitalista. Mais: na
medida em que o desenvolvimento não for teleologicamente concebido, e a
contingência e o inesperado tiverem o seu papel assegurado, não se estará
diante de um desenvolvimento endogenamente predeterminado, mas de um
processo cujo desfecho será sempre incerto. Na esteira desse duplo movimento de superação a idéia de desenvolvimento abandona. finalmente. o mito
para fazer-se história. Porém, ainda falta algo. Se se quiser que o conceito
assim renovado de desenvolvimento possua concretude e operacionalidade,
é imprescindível não subestimar o espaço social como dimensão de análise,
uma vez que a própria sociedade só é concreta com o espaço, sobre o espaço, no espaço. Espaço, agora, multifacetado, porque só pensado enquanto
multifacetado (multidimensional) pode ser autêntico o desenvolvimento. Não
é menos equivocado imaginar ser possível transformar as relações sociais
sem modificar o espaço social que as condiciona que pensar, a exemplo da
tradição urbanística corbusiana, que a sociedade mudará se as formas e
estruturas espaciais mudarem. Não padecer de hemiplegia mental é requisito
indispensável para se lograr uma abordagem não-reducionista da mudança
social.
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
33
Bibliografia
Uma vez que cada uma das seções deste artigo daria margem a uma
imensa lista de obras, tornou-se imperativa uma drástica seleção. Por isso,
numerosos trabalhos deixaram de ser mencionados no texto, a despeito de
sua relevância, enquanto que algumas obras clássicas tiveram apenas seus
títulos referidos. Em vários casos exemplificou-se alguma corrente ou posição apenas com nomes de autores representativos, sem que fosse citado,
contudo, qualquer trabalho específico, A bibliografia que segue restringe-se,
com efeito, àquela formalmente citada.
CASTELLS,
Manuel (1983 (1972]): A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
CASTORIAD IS, Cornelius
ma". In: Socialismo
Brasiliense.
(1983): "Introdução: socialismo e sociedade autônoou barbárie. O conteúdo do socialismo. São Paulo,
----
(1986a): "Réflexions sur le 'développement' etla 'rationalité'''. In: Domaines
de /'homme. Les carrefours du labyrinthe 11. Paris, Seuil.
----
(1986b): "La polis grecque et la création de la démocralie".
de /'homme. Les carrefours du labyrinthe 11. Paris, Seuil.
In: Oomaines
----
(1990): "Pouvcir, polilique, autonomie".
carrefours du labyrinthe 111. Paris, Seuil.
morcelé.
----
(1996a):
I'insignifiance.
----
(1996b): "La démocratie comme procédure et comme régime". In: La
montée de I'insigniliance. Les carrefours du labyrinthe IV. Paris, Seuil.
In: Le monde
Les
"Imaginaire politique grec et moderne". In: La montée
Les carrefours du labyrinlhe IV. Paris, Seuil.
COWEN, M. P. & SHENTON,
Routledge.
R. W. (1996):
Ooctrines
ENTRIKIN, J. Nicholas (1991): The Betweenness
Modernily. Londres, Macmillan
of Oeve/opment.
de
Londres,
of P/ace. Towards a Geography 01
ESTEVA, Gustavo (1993): Entwicklung. In: SACHS, Wolfgang (org.): Wie im Westen
so eut Erden. Ein polemisches Handbuch zur Entwicklungspolitik.
Rowohlt,
Reinbeck bei Hamburg.
GEORGESCU-ROEGEN,
Nicholas (1980 [1971]): "The Entropy Law and lhe Economic
Problem". In: DALY, Herman E. (org.): Economics, Ecology, Ethics. Essays
Toward a Steady-Slate Economy. São Francisco, Freeman.
HARVEY, David (1980 [1973]): A justiça social e a cidade. São Paulo, Hucitec.
----
(1996); Justice, Nature and the Geography
Oxford, Blackwell.
of Difference.
Cambridge
e
----
(1994 [1989)): Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens
da mudança cultural. São Paulo, Loyola, 4.ª ed.
Revista TERRITÓRIO, ano li, nº 3, jul./dez.
34
HUNTINGTON, Samuel (1994 [1991]): A terceira onda. A democratização
século XX. São Paulo, Ática.
1997
no final do
ILLlC H, Ivan (1986 [1975]): Selbstbegrenzung ( Tools for Con vivia lity) . Ei ne politisch e
Krilik der Technik. Reinbeck (Hamburgo), Rowohlt.
KOCH, Roland (1993): Entwicklungssehutz
slalt Entwicklungshilfe.
Die Bedeutung
entwicklungspolilischer
Theorien und Slrategien für den li:indlichen Raum in
der Dritten Welt. Saarbrücken e Fort Lauderdale, Breitenbach.
KOLAKOWSKI, Leszek (1981 [1972]): A presença do mito. Brasília, Editora Universidade de Brasília.
LACOSTE, Yves (1988 [1976]): A Geografia - isso serve, em primeiro
fazer a guerra. São Paulo, Papirus.
LATOUCHE, Serge (1986): Fau/t-il refuser le dévetoppement?
économique du Tiers-Monde. Paris, PUF.
lugar, para
Essai sur I'anti-
----
(1994): A ocidentalização do mundo. Ensaio sobre a significação,
cance e os limites da uniformização planetária. Petrópolis, Vozes.
----
(1995): La mégamachine. Raison technoscientifique,
el mythe du progrés. Paris, La Découverte!M.A.U.S.S.
LEFEBVRE,
o al-
raison économique
Henri (1981 [1974]): La produetion de /'espace. Paris, Anthropos.
LYNCH, Kevin (1994 (1981)): Good City Form. Cambridge (Massachussets),
Press.
The MIT
MARX, Karl (1982a [1853]): "A dominação britânica na índia". In: MARX, Karl &
ENGELS, Friedrich: Obras escolhidas, tomo I. Moscou/Lisboa,
Progresso!
"Avante!".
MARX, Karl (1982b [1853]): "Resultados futuros da dominação britânica na índia". In:
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich: Obras escolhidas, tomo I. Moscou/Lisboa,
ProgressoI"Avante!" .
RACINE, J. B. et aI. (1983): "Escala e ação, contribuições para uma interpretação do
mecanismo de escala na prática da Geografia". In: Revista Brasileira de Geografia, 45(1). Rio de Janeiro, pp. 123-135.
RAFFESTIN,
Claude (1993 [1980]): Por uma Geografia do poder. São Paulo, Ática.
SACHS, Wolfgang (1992): Zur A rcn« otoçie der Entwicklungsidee.
furt, Verlag für Interkulturelle Komunikation.
Acht Essays. Frank-
SACK, Robert D. (1986): Human Territoria/ity - Its Theory and History. Cambridge,
Cambridge University Press.
SCHUURMAN, Frans (org.) (1996 [1993]): Beyond lhe Impasse. New Directions
Development Theory. Londres e New Jersey, Zed Books.
in
SOJA, Edward (1980): "The Socio-Spatial Dialetic".
American Geographers, 70(2), pp. 207-225.
of
----
(1993): "A dialética
sócio-espacial".
Annals of lhe Association
In: Geografias
pós-modernas.
A
Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social
reafirmação
Editor.
do espaço na teoria social critica.
35
Rio de Janeiro, Jorge Zahar
SOUZA, Marcelo Lopes de (1989): O bairro contemporãneo: ensaio de abordagem
politica. In: Revista Brasileira de Geografia, 51 (2). Rio de Janeiro, pp. 139172.
----
(1994): "O subdesenvolvimento
das teorias do desenvolvimento".
cípios, nQ 35. São Paulo, pp. 27-33.
----
(1995): "O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento". In: CASTRO, lnà E. et. aI. (orgs.): Geografia: conceitos e temas. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil.
----
(1996a): "A teorização sobre o desenvolvimento em uma época de fadiga teórica, ou: sobre a necessidade de uma 'teoria aberta' do desenvolvimento sócio-espacial".
Território, 1(1). Rio de Janeiro, pp. 5-22.
----
(1996b): "As drogas e a 'questão urbana' no Brasil. A dinâmica sócioespacial nas cidades brasileiras sob a influência do tráfico de tóxicos". In:
CASTRO, Iná E. et aI. (orgs.): Brasil: questões atuais da reorganização do
território. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
TUAN, Yi-Fu (1983 [1977]): Espaço & lugar. A perspectiva
lo, Difel.
da experiência.
In: Prin-
São Pau-
Download

Algumas notas sobre a importância do espaço