VIII Colóquio Internacional Marx e Engels Centro de Estudos Marxistas (Cemarx),
Unicamp.
Título do trabalho: “O local oculto da produção”: a visibilidade social como campo de
disputas e demanda específica nas lutas do trabalho (o caso de Suape-PE).
Autor: Pedro Henrique Santos Queiroz. Doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Unicamp.
GT 05. Relações de classe e lutas sociais no capitalismo contemporâneo.
Em minha dissertação de mestrado, intitulada “Trabalhadores de Suape: Estudo
sobre a diversidade de experiências operárias”, orientada pelo Professor Doutor Fernando
Antonio Lourenço, realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) e defendida em novembro de 2014 pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia, abordei um conjunto de experiências1 de trabalho, de não-trabalho e de ação
política vivenciadas por um grupo operário composto pelas categorias da construção civil
pesada e construção naval, ambas circunscritas à região do Complexo Industrial Portuário
de Suape, localizado no litoral sul do Estado de Pernambuco entre os municípios de Ipojuca
e Cabo de Santo Agostinho. No trabalho aqui apresentado ao VIII Colóquio Internacional
Marx e Engels, irei desenvolver e aprofundar reflexões já esboçadas em minha dissertação
sobre algumas situações que remetem ao problema da visibilidade social como importante
nível de realidade das lutas empreendidas pelas classes trabalhadoras. De início, faço uma
apresentação sumária das principais conclusões obtidas a respeitos das experiências de ação
política dos trabalhadores de Suape de forma a contextualizar a discussão a ser
desenvolvida. Em seguida, irei trazer elementos teóricos que, acredito, podem auxiliar na
compreensão do fenômeno da invisibilidade social do trabalho e de algumas de suas
implicações políticas. Nesse sentido, serão mobilizadas contribuições encontradas na teoria
do reconhecimento, desenvolvida pelo teórico crítico Axel Honneth, para lidar com o
problema geral da invisibilidade social e a contribuição da crítica ao fetichismo da
1
Como principal suporte teórico foi empregada a categoria experiência, tal como elaborada
pelo historiador britânico Edward Palmer Thompson. Tal escolha buscou dar conta da
diversidade de formas pelas quais as situações concretas de vida são apropriadas
subjetivamente pelos sujeitos históricos.
mercadoria, encontrada em O Capital de Marx, para lidar com o problema específico da
invisibilidade social do trabalho e dos trabalhadores. Por fim, faço algumas considerações
gerais, baseando-me tanto nas questões levantadas pela pesquisa de mestrado quanto nos
elementos teóricos.
As experiências vividas pelos trabalhadores empregados nas obras de construção da
Refinaria Abreu e Lima e Polo Petroquímico de Suape (construção civil pesada) e pelos
trabalhadores empregados no Estaleiro Atlântico Sul (construção naval) revelam uma série
de características em comum, notadamente quanto aos seguintes aspectos: natureza
específica do processo de trabalho2, perfil socioeconômico dos grupos (marcado pela
presença significativa de trabalhadores oriundos de outros Estados da federação, sobretudo
Bahia e Rio de Janeiro) e perfil dos conflitos trabalhistas observados entre os anos de 2008
e 2012. Esse período foi marcado por uma atividade grevista excepcional em ambos os
setores, sendo esta condicionada por fatores como o elevado poder de barganha adquirido
por esses grupos operários, consequência direta do mercado de trabalho local bastante
aquecido; alto grau de ativismo político independente das “bases”; enfrentamento de
dificuldades de legitimação e representatividade por parte das lideranças dos sindicatos e
comissões de base estabelecidos e pelo emprego por parte das empresas de práticas
antissindicais. Em suma, pode-se dizer em um esforço esquemático que o quadro geral
enfrentado pela ação política desse setor dos trabalhadores de Suape é caracterizado pela
ocorrência de fatores econômicos favoráveis e fatores políticos desfavoráveis.
Para introduzir o problema da visibilidade social e discutir sua relação com algumas
das questões levantadas em minha pesquisa não vejo forma mais eficaz do que remeter o
leitor a um episódio concreto analisado em minha dissertação. É a manhã do dia 09 de
fevereiro de 2011. Algo entre cinco e dez mil trabalhadores (as estimativas variam
conforme a fonte) estão reunidos no pátio central da portaria 2, principal via de acesso ao
2
Por processo de trabalho, adota-se aqui a definição de Marx, que o define em sua forma
mais simples como criação de valores de uso, tendo como elementos “(...) a atividade
orientada a um fim, ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios”. Especificamente sob o
modo de produção capitalista – caracterizado pela propriedade privada dos meios de
produção (objeto e meios) e pela compra e venda da força de trabalho -, o processo de
trabalho é sujeito ao processo de valorização do capital, tornando-se, assim, trabalho
abstrato (Marx, [1867] 1996, p. 298).
canteiro de obras da Refinaria Abreu e Lima. Aldo Amaral, presidente do sindicato que
representa a categoria, o Sintepav, ligado à Força Sindical, discursa do alto de um palanque.
Em determinado momento de sua argumentação, é exposta a ideia de que a proposta ali
debatida de realizar uma greve àquele momento era descabida e deveria ser atribuída à
preguiça e falta de comprometimento dos “baianos” com o desenvolvimento de
Pernambuco. Na mesma toada, Aldo acrescenta que eles, os “baianos”, eram pessoas que
não gostavam de trabalhar, mas apenas de “dançar axé” e “comer acarajé”. Em reação a tais
ofensas, um grupo de trabalhadores “partiu pra cima” dos representantes do sindicato que
fugiu, às pressas, em um gol preto enquanto tiros foram disparados contra a multidão
enfurecida. Thiago Ramos de Souza, jovem armador baiano de Paulo Afonso, é atingido na
boca, tendo sua mandíbula quebrada3. No calor do momento, um grupo de trabalhadores
decide bloquear a PE 60 que dá acesso ao Complexo de Suape. O batalhão de choque chega
dentro de poucos instantes. Segundo o relato a mim concedido por Adalberto da Silva, que
iria fazer parte da comissão de trabalhadores da Refinaria formada no dia 14 daquele mês, o
diálogo com o comandante do batalhão foi relativamente tranquilo. Quando perguntados
sobre quais seriam suas exigências para encerrar o bloqueio, os trabalhadores apresentaram
os seguintes pontos: prestação de atendimento médico ao companheiro Thiago e que fosse
chamada a imprensa. O cenário era de agonia: naquele momento, amigos de Thiago haviam
lhe levado a um banheiro e lavavam seus ferimentos numa tentativa desesperada de
providência de primeiros socorros. O que mais me chamou a atenção nessa pauta mínima
de negociação é que ela dispõe lado a lado em um mesmo patamar de prioridade as
necessidades de garantia da integridade física do companheiro caído (e que demanda
poderia ser mais elementar do que essa?) e de que aqueles acontecimentos ali ocorridos
fossem levados ao conhecimento de um maior número de pessoas. Nas palavras de
Adalberto:
3
Relatos jornalísticos sobre esse episódio podem ser conferidos em: Babel de tensão e
interesses. Jornal do Commercio, 20/02/2011; Operário é baleado no rosto durante protesto
em Suape. Jornal do Commercio, 09/02/2011; Testemunhas dizem que trabalhador foi
baleado por segurança do sindicato. Diário de Pernambuco, 09/02/2011; Suape: Segurança
acusado de balear operário é preso. Jornal do Commercio, 17/02/2011. Para uma análise
pormenorizada do movimento grevista desse período em Suape, cf. Oliveira, 2013;
Queiroz, 2014, Rodrigues, 2012.
Então a gente resolveu fechar a BR em sinal de protesto. Minutos depois, chegou
o batalhão de choque. O comandante do batalhão, cheguei a conversar com ele,
falei o que é que tava acontecendo, o que tinha ocorrido. E ele foi um sujeito
muito paciente, porque ele sabia da gravidade do problema. Então ele esperou.
[comandante] “O que é vocês querem para vocês saírem da BR?” [trabalhadores]
“Primeiro, [queremos] a presença da imprensa, pra ser divulgado. Porque isso
aqui vai... Como tantas outras coisas, todas as outras atrocidades que já
aconteceram, ninguém soube de nada”.
Apesar de este ser um exemplo extremo (cabe dizer que o episódio acima relatado
desembocou na primeira greve geral do setor da construção civil pesada em Suape), não se
trata de um caso isolado: ao longo da pesquisa pude constatar a recorrência da demanda
pela visibilidade social em vários episódios de conflito, o que, sem dúvida, deve ser
atribuído no caso específico de Suape ao fato de o Complexo Industrial e Portuário se
constituir em um condomínio fechado, cujo acesso é controlado por guarda patrimonial e
sendo o porte de câmeras fotográficas impedido pelas normas de diversas empresas ali
instaladas. Mas a quê deve ser atribuída essa importância tamanha - em algumas vezes
decisiva ao ponto de se equiparar à necessidade de garantia da vida - da demanda por ser
visto e percebido?
De uma perspectiva prática, parece evidente que a situação de invisibilidade social
das experiências dos sujeitos históricos subalternizados implica na dificuldade de que sua
ação política possa receber por parte da “sociedade civil” uma avaliação justa e ponderada.
Isso porque há uma tendência a que a existência de tais sujeitos e de sua ação política só
seja percebida em situações excepcionais de quebra da ordem pública (protestos, bloqueios,
confrontos etc). Dessa forma, a atividade política desses sujeitos é facilmente percebida
como violenta e irracional. No caso dos trabalhadores de Suape por mim estudados, é
sintomático que as notícias sobre suas greves e conflitos apareçam sempre nos cadernos de
economia dos três grandes jornais pernambucanos, eventualmente até nos cadernos
principais quando os fatos noticiados são de maior impacto, porém nunca nos cadernos de
política. Estes são dedicados exclusivamente à cobertura exaustiva e rica em detalhes da
atividade de um grupo restrito de políticos profissionais enquanto que assembleias que
podem chegar a reunir milhares de trabalhadores não são consideradas dignas do esforço de
enviar sequer um repórter para apurar coisas tão triviais quanto o conteúdo dos discursos ali
pronunciados, a pauta discutida, o ânimo geral das pessoas presentes etc. E quando uma
greve geral explode resultando em vários dias de trabalho perdidos, confrontos com a
polícia e demissões em massa, fatos esses que se impõem à cobertura de imprensa, o leitor
de jornais não possui elementos para avaliar adequadamente o background e a justeza das
questões colocadas pelo movimento de contestação. Esse foi o caso, por exemplo, da greve
geral da construção civil pesada iniciada em julho de 2012: após o anúncio público de um
acordo firmado entre sindicato e empresas, inicia-se uma paralisação espontânea de
proporções alarmantes cuja motivação mais básica não poderia ser conhecida pelo público
leitor de jornais, já que a ele havia sido sonegada a informação de que a assembleia que
decidiu por esse acordo havia sido grosseiramente fraudada (fiz observação etnográfica
dessa assembleia que foi simplesmente ignorada pela imprensa pernambucana). Em suma,
acredito que tal distorção tem como pressuposto a concepção do trabalho e dos
trabalhadores como nada além do que fatores de produção, uma tecnicalidade quase.
Para além desse aspecto mais imediato, a questão da visibilidade social também se
mostra relevante para a compreensão da lógica interna dos conflitos sociais do ponto de
vista da formação das identidades individuais e coletivas. Para Axel Honneth, a mera
sinalização de identificação visual do “outro” através de gestos expressivos (um sorriso, um
meneio de cabeça, um aperto de mão etc.) pressupõe uma forma elementar de
reconhecimento pelo qual se identifica esse “outro” como alguém portador de determinado
grau de valor social e autoridade moral aos quais deve se prestar a devida deferência. É por
essa razão que a inobservância de tais ritos sociais é percebida pelos sujeitos tornados
“invisíveis” como profundamente desrespeitosa (Honneth, 2003a, passim). Ainda segundo
o autor, os gestos de sinalização de identificação visual teriam também a função de
sinalizar para o tipo de interação da qual os sujeitos se dispõem a participar (mais ou menos
formal, amigável etc). Em Honneth, a categoria reconhecimento é pensada como dimensão
essencial das relações intersubjetivas, podendo se expressar em três esferas de formação
identitária dos sujeitos, quais sejam: o amor (relações primárias mediadas pela família e
pelas amizades), o direito (relações jurídicas mediadas pela instituição de direitos e
deveres) e a solidariedade (relações de estima social mediadas pelo pertencimento a uma
comunidade de valores). No âmbito da solidariedade – no qual se insere a questão da
visibilidade social - o desrespeito (impedimento da auto-realização dos sujeitos) às formas
de reconhecimento aí previstas se traduz nos sentimentos de degradação e ofensa, que, por
sua vez, resultam em um impulso moral possivelmente estruturador de conflitos mais ou
menos abertos (Honneth, 2003b, sobretudo capítulos 5 e 6).
Seguindo a concepção de Honneth, as disputas em torno da definição dos limites da
visibilidade social – concebida agora como campo instável aberto à negociação e conflito
permanentes – assumem uma generalidade que abarca a vivência cotidiana dos diversos
grupos subalternizados na contemporaneidade: mulheres, negros, indígenas, homossexuais,
migrantes etc. Porém, como explicar de forma mais específica a situação de invisibilidade a
qual estão sujeitos o trabalho e os trabalhadores no moderno modo de produção capitalista?
Por que as fábricas, campos, canteiros de obras etc se configuram como esse “local oculto”,
distante do olhar e escrutínio do público4? Conforme as elaborações de Marx em O Capital
sobre o “fetichismo da mercadoria”, a submissão das relações de produção ao imperativo de
produção de mercadorias e valorização do capital transforma a própria percepção de mundo
dos agentes históricos. Isso porque, sob o modo de produção capitalista, a compra e venda
dessa estranha mercadoria, a força de trabalho, se dá necessariamente através do
“apagamento” das singularidades dos diversos tipos de processos de trabalho, convertendoos em trabalho abstrato, medido em tempo de trabalho socialmente necessário, portanto
intercambiáveis entre si. Assim sendo, perde-se a referência aos produtores diretos, os
trabalhadores, e conforma-se a aparência de um mundo de coisas que se trocam livremente
umas pelas outras:
Por isso, aos últimos [os produtores] aparecem as relações sociais entre os seus
trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais
entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as
pessoas e relações sociais entre coisas (Marx, [1867] 1996, p. 199).
De forma sintética, o argumento que estou tentando construir nessa comunicação a
partir das referências teóricas mencionadas e da reflexão sobre a minha própria pesquisa de
mestrado e que, humildemente, quero trazer para discutir nesse espaço propiciado pelo
Cemarx é a seguinte: não seria a demanda específica da visibilidade social do trabalho algo
que extrapola o âmbito do imaterial e simbólico no sentido de que sua reivindicação nos
força a um ajuste de percepção pelo qual nos damos conta de que o mundo de coisas que
consumimos é criado por homens e mulheres cuja existência ignoramos? Assumindo o
4
A expressão é de Marx e aparece no sexto capítulo do primeiro volume de O Capital: “O consumo da força
de trabalho, como o consumo de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercado ou da esfera da
circulação. Abandonemos, então, (...) essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a todos os olhos,
para seguir (...) ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler no admittance except on business.
(Marx, 1996, pgs: 292-293. Itálico meu.)
risco de soar sentimental ou demagógico, quero lembrar que foi só porque esses
trabalhadores de Suape em algum momento de seu processo de luta exigiram ser vistos que
alguns de nós puderam se dar conta, algo surpresos, de que havia seres humanos (!) por trás
de coisas tão fantásticas, misteriosas e incompreensíveis como o crescimento acima da
média nacionaldo Produto Interno Bruto de Pernambuco a partir da segunda metade dos
anos 2000, a produção de grandes navios que transportam o óleo extraído pela Petrobrás e a
construção de instalações que irão prepará-lo para fazer com que nossos veículos se
movam.
Bibliografia
HONNETH, Axel. Invisibility: On the Epistemologyof
‘Recognition’. Aristotelian
Society – Supplementary Volume, Londres, V. 75, n. 1, pgs: 111-126, 2003a.
____________. Luta por Reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo, Editora 34, 2003b.
MARX, Karl. O Capital – critica da economia política, vol 1, livro primeiro: o processo de
produção do capital. São Paulo, Nova Cultural, [1867] 1996.
OLIVEIRA, Roberto Véras de. Suape em construção, peões em luta: o novo
desenvolvimento e os conflitos do trabalho. Caderno CRH, Bahia, Vol. 26, N. 68, 2013.
QUEIROZ, Pedro Henrique Santos. Trabalhadores de Suape: Estudo sobre a diversidade
de experiências operárias. 2014. (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de
Campinas, Instituo de Filosofia e Ciências Humanas.
RODRIGUES, Victor de Oliveira. Para não dizer que não falei das flores: As lutas dos
trabalhadores da construção civil no Complexo Industrial e Portuário de Suape (PE)
(Dissertação de mestrado). 2012. Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia
e Ciências Humanas.
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Pedro Henrique Santos Queiroz - Instituto de Filosofia e Ciências