TECNOLOGIA E CIDADE: NOS TRILHOS DO TEMPO
Profa. Dra. Ana Cláudia Ribeiro de Souza
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas
RESUMO: Neste artigo sublinhamos alguns itens frutos da reflexão do conceitos de autores como
S. Hall, R. Koselleck e H. G. Gadamer que nos permitem refletir a filosofia da ciência e a
tecnologia nos seus momentos germinais, dialogando com a cidade de São Paulo no alvorecer da
República. Ela foi uma destas cidades onde a elite cafeeira implanta mudanças, que pela sua
magnitude alteram sua fisionomia social e urbana. Estes autores são pertinentes as discussões da
filosofia da ciência no Brasil, na constituição das bases do ensino universitário, como por
exemplo, da Escola Politécnica de São Paulo no final do século XIX, levando a discussão de que
o historiador faz parte da história, pela historicidade do seu próprio conhecimento
problematizando conceitos como experiência, tempo e linguagem na implementação do ensino
tecnológico em São Paulo.
PALAVRAS-CHAVE: Escola Politécnica; Desenvolvimento Tecnológico; São Paulo.
No entanto, importa que nos mantenhamos longe do erro de que
o que determina e limita o horizonte do presente
é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso
a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido
(GADAMER, 1997, p. 457).
1. Introdução
Brasil, final do século XIX e inicio do século XX, é neste cenário que com a
Proclamação da República ocorrida apenas um ano após a libertação dos escravos, o País
vivenciou uma significativa mudança em seu sistema produtivo, no qual abandonou as relações
escravistas como base da cadeia produtiva, e com isto o conceito de trabalho inerente a este
sistema. Mesmo que timidamente, começa a se desenvolver as relações assalariadas não somente
na zona urbana, mas também nas áreas de produção rural. E esta é, na realidade, apenas uma das
muitas outras transformações que daqui a diante ocorreram em seu vasto território e de modo
particular em algumas de suas cidades, que pelo desenvolvimento em diversas áreas, industrial,
comercial ou serviços, tornaram-se focos catalisadores das emigrações rurais.
O crescimento industrial do País, por exemplo, começa a despontar como um marco
necessário a sua modernização e muitas vezes esteve ligado à exploração de uma matéria-prima
básica, como a borracha, que promoveu um surto de desenvolvimento em algumas cidades da
região Norte, ou o café, que se desenvolvendo nas regiões Sudeste e Sul do País, gerou uma nova
elite nacional industrial e urbana que desempenhou o papel de articuladora dessa nova
mentalidade modernista a ser desenvolvida na República, onde dentre tantas ações, buscou na
ampliação do ensino superior às bases de constituição de uma maior cultura letrada para
possibilitar o crescimento do País, isso quando mesmo o ensino primário era privilégio de uns
poucos afortunados. Longe estavam os anos em que se falaria de universalização do ensino, pois
mesmo hoje continua o desafio de erradicar o analfabetismo no Brasil.
O espelho desta nova sociedade industrial passa a ser a cidade, e é nela que encontramos
a burguesia desfrutando das benesses da nova tecnologia, como a iluminação elétrica, o bonde e
mesmo o cinema, então preto e branco e mudo. Em algumas destas cidades, como Rio de Janeiro,
São Paulo e Manaus este período será marcado por um grande crescimento populacional
provocando uma nova rearticulação urbana de seus sujeitos sociais. Mas, a idéia de cidade, como
nos diz D. R. Fenelon:
... nunca deve surgir apenas como um conceito urbanístico ou político, mas sempre encarada como o
lugar da pluralidade e da diferença, e por isto representa e constitui muito mais que o simples espaço
de manipulação do poder (1999, p. 07).
2. Fundamentação teórica
Autores como S. Hall, R. Koselleck e H. G. Gadamer nos permitem refletir a filosofia da
ciência e a tecnologia nos seus momentos germinais, e a cidade de São Paulo no alvorecer da
República é uma dessas cidades onde a elite cafeeira implanta mudanças, que pela sua magnitude
alteram a fisionomia social e urbana. Neste artigo nos propomos sublinhar alguns itens frutos da
reflexão destes autores por acreditarmos serem pertinentes as discussões da filosofia da ciência
no Brasil, na constituição das bases do ensino universitário. E, temos aqui a discussão de que o
historiador faz parte da história, pela historicidade do seu próprio conhecimento, advindo daí a
necessidade de se problematizar, entre outros, conceitos como experiência, tempo e linguagem.
Nosso foco de atenção nos conduzirá à Escola Politécnica de São Paulo. Nosso objeto de
pesquisa é então sobre um passado, mas não tão passado se lembrarmos que o ensino superior
como hoje entendemos no Ocidente, tem suas origens na Europa Medieval já nos idos do século
XII, e que nos Estados Unidos da América, esse ensino é implantado já no século XVI.
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Nossa hipótese é a de que os ecos da implantação desta escola de engenharia,
precipuamente de ensino tecnológico, ainda se encontram por demais presente nesta cidade, que
no final do século XIX e primeiras décadas do século XX passou a conviver com sua segunda
instituição de nível superior: a Escola Politécnica, inaugurada em 15 de fevereiro de 1894 e
criada pela Lei Estadual nº 191, de 24 de agosto de 1893, sendo essa resultado da fusão de duas
leis anteriores, a de nº 26, de 11 de maio de 1892, que autorizava a fundação de uma Escola
Superior de Agricultura e de uma Escola Superior de Engenharia e a da Lei Estadual nº 64, de 17
de agosto de 1892, que previa a criação do Instituto Politécnico que contaria com uma Escola
Superior de Matemática e Ciências Aplicadas às Artes e Indústria (SANTOS, 1985, p.424).
A Escola Politécnica funcionou inicialmente na Av. Tiradentes, no Solar do Marquês de
Três Rios, no bairro do Bom Retiro, essas instalações foram demolidas por volta de 1930 quando
da restauração viária daquela região proposta pelo prefeito Prestes Maia. Seu edital de fundação
apregoava a criação de cursos de engenharia nas áreas de civil, industrial e agrícola, além de um
curso anexo de artes mecânicas. A formação destes novos quadros competente ajudaria a
enfrentar, como veremos a seguir, o processo de urbanização da cidade que teve uma forte ênfase
na construção civil.
No espaço acadêmico da Escola Politécnica foram gestadas ações quanto ao pensar,
organizar e construir do viver urbano de São Paulo nas primeiras décadas de século XX. Isto se
deve a uma multiplicidade de fatores, dentre estes as relações que se estabeleceram entre a
engenharia e a ciência na elaboração de um discurso científico e tecnológico para o
desenvolvimento da cidade, que, cremos, ter tido na Escola Politécnica sua gênese e difusão
social. O que hoje é dado como conhecido, como o conteúdo epistemológico de conceitos como
técnica e tecnologia, naquele momento fundamental da sistematização do conhecimento em bases
científicas em solo nacional, estava em franca discussão, mas em sintonia com as idéias de
progresso e desenvolvimento difundidos pelos partidários do Partido Republicano, majoritário no
cenário político paulistano.
Podemos vislumbrar as transformações urbanas paulistas, já tão analisadas em seus
aspectos sócio-político-econômicos, a partir das salas de aula de sua escola de engenharia.
Percorrendo os corredores da Escola Politécnica, procuraremos auscultar os projetos de
articulação e re-articulação do sócio-urbano nas experiências de seus sujeitos sociais. Pois as
concepções de ensino pertinentes às origens de Escola Politécnica influenciaram na construção
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do projeto da modernidade industrial paulistana. Exemplo disso é a participação dos politécnicos
no sistema ferroviário, e nas obras de saneamento da cidade.
Durante o período que abordaremos a Escola Politécnica possuiu apenas dois diretores.
Antônio Francisco de Paula Sousa, desde sua fundação até 1917, quando de seu falecimento e
Francisco de Paula Ramos de Azevedo, de 1917, e também até seu falecimento, em 1928. Na
discussão da filosofia da ciência se tem presente a indicação de C. Lefort, para que: “...
fizéssemos surgir várias figuras ali onde distinguimos apenas uma” (1997, p. 295). Em mais de
vinte anos de história, na administração desses dois diretores, uma multiplicidade de sujeitos
sociais emergem, entre docentes, discentes e administrativos.
Estamos assim indo à busca da especificidade histórica nas experiências dos sujeitos
históricos inseridos na problemática do desenvolvimento e da inserção da tecnologia na cidade de
São Paulo.
O substrato do conceito experiência, como nos sugere H. G. Gadamer vai de Aristóteles
a Hegel, passando por Esquilo e Bacon, a se constituir “... em algo que faz parte da experiência
histórica do homem” (1997, p.525), onde: “A verdadeira experiência é aquela na qual o homem
se torna consciente de sua finitude” (1997, p. 527). E ainda: “A verdadeira experiência é assim
experiência da própria historicidade” (1997, p. 528).
É na experiência da construção de uma linguagem técnica a partir de 1894 que a Escola
Politécnica passa a se estruturar na cidade de São Paulo, e ela não está sozinha nessa experiência,
pois concomitante a sua criação, ocorrem também, para compor a intelectualidade paulistana,
instituições como a Escola Normal, fundada para preparar as normalistas responsáveis pelo
ensino primário das crianças republicanas, o Instituto Histórico Geográfico de São Paulo,
fundado simultaneamente em várias capitais brasileiras, reunia os grupos locais de intelectuais,
além de organizar bibliotecas e museus, e o Museu Paulista, destinado ao estudo da história
natural da América do Sul e do Brasil, além de colecionar e arquivar documentos relativos à
independência política do Brasil. Assim encontramos aqui um terreno fértil de construção das
experiências sociais.
Não devemos, então, como nos alerta H. G. Gadamer, nos descuidarmos da questão da
linguagem, pois ela é interpretativa das experiências de cada grupo, são fenômenos que expressão
as experiências vividas no social, bem como as palavras também são frutos da experiência social.
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Nós somos inúmeras possibilidades de linguagens, e os engenheiros da Escola Politécnica
traduzem suas preocupações com a estrutura urbana da cidade na linguagem de seus ensaios,
teoremas, plantas e cálculos, mas essas também são expressões de suas experiências sociais
cotidianas (1997, p. 559-576).
Pensar o tempo presente sem compartimentá-lo em definições prontas e acabadas é um
dos atuais desafios do meio acadêmico, pois as experiências sociais vividas pelos sujeitos
históricos em seu tempo não podem ser apreendidas pela academia como um objeto geométrico
de proporções rígidas, definidas e acabadas. Essas experiências não estão postas de uma vez para
sempre, como que emolduradas no tempo estático, não, elas estão em constante diálogo com o
historiador que delas se aproxima, sabendo que o tempo é sempre o tempo presente, e como nos
diz J. G. Herder:
Propriamente, cada objeto mutável tem a medida de seu tempo em si mesmo; subsiste incluso quando
não existiria nenhum outro; os objetos do mundo não possuem a mesma medida de tempo... Assim,
pois, no universo existem (se pode dizer com propriedade e atrevimento) em um momento, muitos e
inúmeros tempos (1993, p. 14)
O tempo presente está repleto de dimensões diversas que se dão a conhecer num ir e vir
continuo por meio dos diversos tipos de linguagem, que se configuram numa das fontes para que
possamos dialogar com o passado. Esse tempo passado continua sendo revisitado pelos
historiadores que nele estão sempre re-descobrindo múltiplas formas, seja num olhar sobre novas
fontes ou quiçá num novo olhar sobre as fontes já tantas vezes re-visitadas, mas agora
questionadas com novas interrogações.
Para os sujeitos sociais o tempo não é linear, nem progressivo, pois este assim pensado
foi uma construção do iluminismo, na base da estrutura do capitalismo.
O processo da Revolução Industrial é inicialmente identificado como uma mudança
tecnológica dos meios de produção, mas é possível perceber bem mais que isso, já que uma
expressiva transformação social desencadeou-se oriunda da necessidade de novas articulações
entre os diversos grupos envolvidos não só no processo produtivo, mas em toda a conjuntura
histórica do momento. Aqui a ciência ganha contornos de deusa e transforma-se em sinônimo de
progresso, esse identificado com a modernidade.
No Brasil, e em São Paulo, vivencia-se essa transformação social-tecnológica numa
menor brevidade temporal do que em países como Inglaterra, por exemplo, onde Peter Gay
visualiza todo o século XIX como um tempo de incertezas para os ingleses, incertezas essas
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advindas das rupturas pelas quais os diversos grupos sociais estavam vivenciando, como as novas
obrigações no trabalho e na sociedade civil criando assim um misto de esperanças e ansiedades
desconhecidas. Entre as camadas pobres multiplicavam-se as agitações pelos temores dos novos
tempos enquanto que entre os “bons burgueses”, uma classe em expansão que viria a se constituir
como classe média, esses mesmos novos tempos eram esperados como expectativa de dias
melhores (GAY, 1987, p. 12-45).
É neste contexto que ganha ênfase o evolucionismo cultural proposto por E. B. Tylor
que afirmava ser a história da humanidade, a história de um desenvolvimento ascendente,
conectando a história social a um continuo progresso tecnológico oriundo da ciência (GAY,
1987, p. 25).
3. A cidade, a tecnologia e a Escola Politécnica
O processo de industrialização é um fato eminentemente urbano e com isso, em
dimensões até então não experimentadas a cidade passou a ser reduto da ciência e do progresso.
Esse mundo surgido com a dinâmica da indústria forja em seu seio novas relações
sociais, tanto quanto novas formas produtivas. No Brasil encontramos concatenados às mudanças
da produção econômica uma nova ordem política, a República. É fomentado pelo novo governo
um ideário de progresso associado ao desenvolvimento tecnológico, onde um espaço especial
estaria reservado à categoria emergente dos engenheiros, arautos da ciência.
Com os lucros advindos das lavouras cafeeiras do Vale do Paraíba, São Paulo irá pouco
a pouco, e depois velozmente adentrar na busca de sua modernidade, da sua belle epoque. Na
segunda metade do século XIX as duas principais cidades brasileiras eram Rio de Janeiro, Capital
Federal, e Manaus, capital dos trópicos, modernizada na velocidade dos trens expressos por conta
do látex. São Paulo, bem, São Paulo era um pequeno núcleo urbano que tinha em suas fazendas
cafeeiras seu grande destaque. A capital contava com aproximadamente 240 mil habitantes e
cortada pelos rios Anhangabaú e Tamandatueí, com suas ruas iluminadas por lampiões a gás e
tendo como principal meio de transporte os bondes puxados por burros.
Alicerçado no desenvolvimento das exportações do café, a cidade sofre um rápido
processo de urbanização, com a expansão de seu perímetro urbano, impõem-se problemas que
necessitavam da arte da engenharia para serem solucionados. A implantação da Escola
Politécnica vem de encontro a essa conjuntura.
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A instalação de uma instituição de ensino superior traz em si a marca da modernidade e
em São Paulo isto é marcado com a criação da Escola Politécnica que se configura como a
terceira instituição de ensino técnico superior do País, criada após a Escola Politécnica do Rio de
Janeiro, de 1810, e a Escola de Minas de Ouro Preto, de 1875. Em São Paulo existia apenas,
enquanto ensino superior, a Academia do Largo São Francisco, instalada em 1827, para a
formação de bacharéis em Direito.
Sabemos que o processo de urbanização é eixo de múltiplas culturas e temporalidades e
que cada conceito associado a uma palavra tem sua historicidade, como nos diz R. Koselleck:
Cada conceito depende de uma palavra, porém cada palavra não é um conceito social e político. Os
conceitos sociais e políticos contêm uma concreta pretensão de generalidades e são sempre
polissêmicos, contém ambas as coisas, não são apenas simples palavras para a ciência e para a
história.
...
Uma palavra contém várias possibilidades de significado, um conceito unifica em si a totalidade do
significado (1993, p. 116 e 117).
Assim: São Paulo - urbano - Escola Politécnica constituem-se no eixo de uma
problemática de pesquisa, não em sua conceituação atual, mas no que a hermenêutica destas
palavras reportam àquele momento histórico anteriormente descrito. A articulação entre aqueles
conceitos à experiência histórica do seu tempo descortina os modos do pensar o urbano em São
Paulo, nas salas de aula, gabinetes e escritórios da Escola Politécnica, trilhando o cotidiano
daquele tempo, na busca de compreender a mentalidade daquela época, suas experiências e seus
costumes, que hoje é ocultado pelo próprio tempo que passou, mas também pelas temporalidades
dos sujeitos, nós e eles, e do re-significado dos conceitos no presente histórico.
A República traz consigo os símbolos da modernidade, deixando para o Império os
ícones da tradição. Essa bipolaridade será outro eixo de nossa pesquisa, como argumenta A.
Giddens:
... nas sociedades tradicionais, o passado; é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e
perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo qualquer atividade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por
práticas sociais recorrentes (apud HALL, 2002, p. 14).
E nos diz Hall:
A modernidade, em contraste, não é definida apenas como a experiência de convivência com a
mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida (2002, p. 15).
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“Uma forma altamente reflexiva de vida”, cremos que os espaços da Escola Politécnica
eram adequados para pensar, projetar e principalmente concretizar este novo espaço urbano
paulistano desejado pelos “bons burgueses”, que viam os novos tempos com olhares de júbilo e
esperança, para lembrarmos Peter Gay. Neste espaço de ensino da engenharia, seria possível
rapidez em propor soluções adequadas aos problemas locais, sem mais necessitar esperar a vinda
e soluções dos engenheiros de outros países ou quiçá do Rio de Janeiro ou Minas Gerais. Não,
agora nos próprios gabinetes, instalados na Av. Tiradentes a modernidade paulistana poderia ser
gestada.
Um exemplo disso é que em 1905, então com menos de 10 anos de funcionamento, é
lançado o Manual de Resistências dos Materiais, pelo Grêmio Politécnico, com informações
sobre propriedades físicas, mecânicas e químicas dos materiais de construção a serem usados nas
futuras construções e cálculos estruturais realizados nos solos do Vale do Anhangabaú e nas
margens do Rio Tamandatueí. Ali estavam contempladas indicações experimentais a cerca dos
materiais de construção brasileiros, numa abrangência que levou tal publicação a tornar-se
referência na área, sendo posteriormente citado em periódicos de engenharia (SANTOS, 1985, p.
415).
Outro exemplo, também na área da construção civil acontece em 1913 quando o
Gabinete de Resistência dos Materiais participou do estudo experimental completo e ensaio dos
materiais utilizados no primeiro edifício de concreto armado de São Paulo, construído à Rua
Direita, nº 7. Esse estudo foi completado por uma prova de carga sobre um pavimento interior do
edifício (SANTOS, 1985, p.213).
4. O Ensino Politécnico e as Companhias Ferroviárias
Vários autores afirmam que “... a construção das estradas de ferro foi o primeiro grande
desafio que a engenharia teve de enfrentar aqui no Brasil” (TELLES, 1984, p. 227) e que “... foi
exatamente o café o principal responsável pela necessidade das estradas de ferro” (TELLES,
1984, p. 228), isso por que há toda essa correlação entre a implantação do transporte ferroviário
como elemento fundamental para dinamizar o setor agro-exportador, e desses dois como fator da
urbanização de cidades, com a construção de repartições públicas, e construções particulares,
com a necessidade de se organizar os serviços de utilidade pública, em prol das lavouras
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cafeeiras. A necessidade de toda essa infra-estrutura urbana, entre outros fatores, favorecia o
crescimento da atuação do engenheiro na área das ferrovias, bem como atividade industrial em
São Paulo, já que às margens nas ferrovias, em seus pontos de paradas, as cidades se constituíam.
A importância das estradas de ferro na engenharia nacional pode ser avaliada por esse
juízo dado por P. C. da S. Telles:
É importante observar que, por essa época [1890] até cerca de 1920-30, a engenharia ferroviária era a
especialidade mais importante, e até quase única da engenharia brasileira: fazer engenharia no Brasil era,
praticamente, sinônimo de projetar, construir ou operar estradas de ferro (TELLES, 1984, p. 387).
Para que isso ocorresse, foi necessário o ingresso de disciplinas ligadas à temática das
ferrovias no ensino universitário. Isto começou a acontecer em 1858 no Rio de Janeiro, quando
da grande reforma na Escola Militar, passando a denominar-se Escola Central, e ainda sujeita a
administração militar; ministravam-se matemática, ciências físicas e naturais e engenharia para
civis, e esses cursos passaram a ter um enfoque voltado para as problemáticas das estradas de
ferro. Desta Escola, saíram os primeiros engenheiros brasileiros que se dedicaram às questões
ferroviárias, como: Francisco Pereira Passos, Antônio Pinto Rebouças, João Teixeira Soares,
Herculano Velloso Ferreira Penna, Antônio Augusto Fernandes Pinheiro, João Chrockatt de Sá
Pereira de Castro e Hermillo Cândido da Costa Alves (TELLES, p. 453-457). Além do ensino de
disciplinas ligadas às estradas de ferro serem ministradas na Escola Central, surge, nas oficinas
da Estrada de Ferro Central do Brasil, a Escola Ferroviária Nacional voltada exclusivamente para
a formação e o estudos de problemáticas dessa área, sendo essa de nível médio e não superior.
Na primeira metade do século XIX as estradas de ferro se consolidaram como o meio de
transporte da agricultura e do comércio no Brasil. No período imperial, a resolução nº 101, de 31
de outubro de 1835, da Assembléia Legislativa, promulgada pelo regente Diogo Antonio Feijó,
autorizou o governo a conceder o privilégio a uma ou mais companhias para a construção de
estradas de ferro do Rio de Janeiro para as capitais das províncias de Minas Gerais, Rio Grande
do Sul e Bahia. O caminho que percorreria a estrada de ferro do Rio de Janeiro até Porto Alegre
necessariamente passaria pelo estado de São Paulo, mas por questões diversas, dentre essas a
falta de profissionais nacionais que pudessem levar a frente tal projeto, nesse momento, a
construção dessa estrada de ferro não se concretizou, embora pudesse ter sido a primeira em
terras paulistas (PINTO, 1903, p. 28-35).
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Ainda na primeira metade do século XIX, o governo paulista tentou dar início à
implantação do sistema férreo no Estado, com a edição de várias legislações sobre o assunto, mas
também sem maiores sucessos. Entretanto, devido à bem-sucedida lavoura de cana-de-açúcar na
região de Itu e Porto Feliz, começava-se a delinear o projeto de uma estrada de ferro ligando
essas cidades ao porto de Santos, principal cidade portuária do Estado, passando pelos
municípios de S. Carlos, atualmente Campinas, e Constituição, atual Piracicaba. Dentre os fatores
apontados para o insucesso das tentativas desse período estão a grande soma de capitais que tal
empreendimento necessitaria e a falta de pessoal com conhecimento técnico-científico da região,
então sujeitos com suas experiências.
Com todo o desenvolvimento subseqüente, quando se formou a primeira turma de
engenheiros politécnicos, São Paulo já contava com uma média de 3.393 km de estradas de ferro,
dos quais 905 km pertencentes à União Sorocabana e Ituana, 863 km pertenciam a Paulista, 139
km à Inglesa, e os demais divididos entre pequenas empresas, e percursos de companhias de
outros Estados (FERREIRA, 1959, p. 124).
Uma escola de engenharia era muito bem-vinda por essas terras aonde o progresso
chegava tão velozmente, embora com ele também os desastres e as desconfianças no seu uso.
Certamente, os paulistas não esqueceram e ainda tinham na memória os acontecimentos do dia 6
de setembro de 1865 quando chegaria à Estação da Luz o primeiro trem procedente de Santos,
mas que descarrilou em Pari. São Paulo agora formaria profissionais capazes de evitar acidentes
como esse e outros tantos que a modernidade trazia a cidade.
Vários podem ser os fatores que indicam a correlação entre o ensino na Escola Politécnica
e as companhias ferroviárias paulistas. Dentre esses, vamos destacar em nossa análise quatro: a
correlação e a interligação realizadas pelo corpo docente da Escola, com diversas Companhias.
Vários dos seus professores, a começar por Paula Sousa, exerciam funções ligadas ao sistema
ferroviário, favorecendo: o intercâmbio entre ambas; a formação dada aos discentes que tinha
disciplinas, como Estradas, Tráfego e Economia Política, voltadas para essa área; as estradas de
ferro como área de trabalho que se iniciava com o prêmio de praticagem oferecido pelas próprias
Companhias Ferroviárias; e a parceria entre ambas no que diz respeito aos laboratórios da Escola,
que pela sua amplitude será analisado no próximo item.
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Podemos dizer que a correlação da Escola Politécnica com as estradas de ferro paulista
encontra suas origens na própria atuação de Paula Sousa, antes de ele se tornar o primeiro diretor
da casa. Tendo se formado engenheiro em 1867, com 25 anos, em Karlsruhe na Alemanha, ao
retornar ao Brasil assumiu alguns cargos públicos, dentre eles o de Ministro da Agricultura. Em
São Paulo, o governador Saldanha Marinho encarregou-o de organizar e dirigir a Repartição de
Obras Públicas da Província, que mais tarde tornar-se-ia um dos principais redutos de trabalho
dos politécnicos.
No início de sua atuação profissional, organizou os projetos para a construção da Estrada
de Ferro Ituana, onde instituiu pela primeira vez a bitola de 1,00m. Nesse mesmo período, foi
nomeado árbitro na questão suscitada entre a Companhia Paulista e os empreiteiros da construção
da linha que ligava de Jundiaí a Campinas sobre qual bitola deveria ser usada na extensão da
linha. Foi também chefe do trecho de Tatuí à Rio Claro, no prolongamento das linhas da
Companhia até aquela cidade (Escola Polytechnica, 1914, p. 4).
A presença de Paula Sousa nessa discussão é importante, pois a bitola é uma característica
fundamental tanto do traçado como da exploração ferroviária, e a contenda sobre a dimensão da
mesma era de basilar na constituição da malha ferroviária de um País. Alguns defendiam que
deveria haver uma uniformidade nessas dimensões, com a prévia fixação de um padrão geral para
todas as linhas capazes de constituir, um dia, artérias mais ou menos importantes da rede geral.
Outros afirmavam que só um profundo estudo técnico e econômico permitiria, em cada caso,
chegar à solução mais conveniente para uma determinada área. Mas bitolas diferentes numa
malha ocasionariam dificuldades de condições técnicas e no regime do sistema de tráfego. No
Brasil, devido às condições topográficas, extensão territorial, população e elementos naturais de
riquezas, tal discussão era de acirrar os ânimos entre os engenheiros. Em 1903, A. A. Pinto
afirmou:
... o exame d’este assumpto, que estava alias ao alcance dos conhecimentos da época, foi
completamente descurado. Não só não houve nenhum empenho em adoptar um typo uniforme para as
linhas principaes, como a bitola preferida para as primeiras linhas foi a menos compatível com as
condições peculiares ao meio (PINTO, 1903, p. 90).
Na Europa, a bitola normal em uso para as grandes linhas era d de 1,45m. No Brasil,
alguns engenheiros como Paula Sousa, contra a indicação de todas as circunstâncias para o uso de
uma bitola mais modesta, como a de 1,20m, por exemplo, foi adotada como bitola padrão pelo
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Plano Nacional de Viação a de 1,60m, chamada bitola larga. Essa foi a bitola das primeiras linhas
construídas, como a da Estrada de Ferro D. Pedro II, a da São Paulo Railway, e da Companhia
Paulista. Essa bitola, pelo menos por algumas décadas do século XIX, prevaleceu também nos
ramais.
Em 1867, a conclusão da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí representou a transposição da
Serra do Mar, trecho mais complicado da ligação ferroviária entre o mar, com a cidade de Santos
e o seu porto, e o planalto, e todas as cidades da região como São Paulo, Campinas e Jundiaí.
Esse feito abriu caminho para a iminente difusão da malha viária do Estado. Como conseqüência
de sua atuação neste setor, Paula Sousa publicou em 1873 o livro Estradas de Ferro da Província
de São Paulo.
Paula Sousa discutia a superioridade da bitola estreita, de 1,00m sobre a bitola larga, de
1,60m, apregoando a necessidade da diminuição da distância entre os trilhos pelas vantagens
oferecidas pela bitola estreita que eram as de: curvas de menor raio; menor largura da plataforma,
terraplenos e obras; economia de lastro, dormentes e trilhos; material rodante mais barato; menor
resistência à tração e economia nas obras de arte, sobrepondo-se assim às desvantagens de: menor
capacidade de tráfego; menor velocidade e necessidade de baldeação nos entroncamentos com
outras bitolas, que pela adoção inicial pela bitola padrão seria inevitável. Com a difusão de várias
companhias de estradas de ferro no Estado, ele vislumbrava num futuro próximo, o que de fato
ocorreu, a incompatibilidade de interligar a malha ferroviária dessas diversas companhias, caso
cada uma utilizasse uma dimensão de bitola ou uma determinada distância entre os trilhos.
Paula Sousa abriu então um escritório de engenharia em Campinas, de onde procurou
difundir o uso de bitolas estreitas, como as Decauville. Em 1883, convidado pelo então Barão do
Pinhal assumiu o cargo de engenheiro chefe da Estrada de Ferro Rio Clarense, difundido a
metodologia de, ao se construir uma obra, iniciar pelos trabalhos de campo e utilizar um
instrumental tecnológico, como o tacômetro. Em três meses, terminou a exploração e o projeto de
105 quilômetros de linhas de estrada. Já em 1888, assumiu a Inspetoria Geral da Companhia
Ituana re-estabelecendo o tráfego ora quase interrompido, com a estruturação dos seus trilhos e
bondes (Escola Polytechnica, 1914, p. 4).
5. Considerações
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Podemos dizer que para muitas das questões do nosso tempo, desenvolvimento dos
transportes, por exemplo, o passado não é compreensivo, como a atuação de Paula Sousa no
desenvolvimento, mas de fato ele não foi vivido para se tornar respostas às nossas inquietações
presentes, mas para responder as inquietações do seu próprio tempo, assim sendo, cada
experiência tem a sua própria temporalidade, cada época tem seu próprio ponto de gravidade, e
este é o terreno fascinante no trabalho do historiador. Buscar perceber em cada época as
linguagens constitutivas daquele momento, o contexto no seu contexto, procurando entender nos
documentos históricos as mudanças lá acontecidas, na experiência de determinados grupos
sociais.
Estamos efetuando nossa reflexão naquele passado não tão passado onde mais de 100
anos nos separam de nosso sujeito histórico determinado, de nosso objeto de pesquisa, mas que
na realidade não são “sujeito” e “objeto”, são experiências vivenciadas por outros sujeitos, eles
também históricos como nós. Assim sendo, essa transitoriedade do tempo permite um horizonte
móvel entre nós historiadores presentes, e o passado presente nas suas experiências históricas por
nós pesquisadas, como afirmam H. G. Gadamer:
O passado próprio e estranho, ao qual se volta à consciência histórica, forma parte do horizonte móvel
a partir do qual vive a vida humana e que a determina como sua origem e como sua tradição (1997, p.
455).
6. Referências
Escola Polytechnica, O Estado de S. Paulo, p. 4, 4 de maio de 1914.
FENELON, D. R., org. Cidades. São Paulo: Ed. Olho d'Água, 1999 (Série: Pesquisa em
História).
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