Entrevista com Omar Ribeiro Thomaz
Thomaz, Omar Ribeiro
Em um processo difícil, de guerras entre brancos e negros, nativos e colonizadores,
Moçambique conseguiu sua independência em 1975, mas o período de transição foi
marcado pela instituição de medidas impopulares que deixaram cicatrizes em boa parte
da população.
Por Simone Pallone
O historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de
Campinas, voltou recentemente de uma de suas viagens a Inhambane, uma província de
Moçambique, onde tem acompanhado um grupo de pessoas que foram levadas pela
Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique, na década de 1980 - para trabalhar em
campos que abrigavam pessoas tidas como desocupadas, inúteis, indesejadas, pelo
governo e que, então, deveriam ser reeducadas, a partir do trabalho braçal no campo.
Esse projeto, denominado Operação Produção, foi uma das medidas adotadas. Nesta
entrevista, Thomaz dá uma idéia do contexto histórico em que essas ações acontecem e
fala um pouco sobre o destino das pessoas que passaram ela Operação Produção.
ComCiência - Em seu trabalho o senhor trata dos deportados no período pós-colonial
em Moçambique, pessoas que eram levadas dos centros urbanos para os campos de
reeducação criados logo após a independência. O que o senhor tem descoberto pelas
narrativas dessas pessoas? A atuação da Frelimo marca realmente uma ruptura entre o
período colonial e o pós-colonial?
Omar Ribeiro Thomaz – A primeira coisa a dizer é que trabalho com a idéia de
deportado, mas as pessoas que passaram por essa experiência se dizem raptadas. Em
alguns contextos elas de fato foram seqüestradas pela Frelimo ou pela Renamo
(Resistência Nacional Moçambicana) durante a guerra civil. Eu uso o termo deportação,
que não é o termo que o Estado da Frelimo usava, para me referir às pessoas que eram
enviadas para os campos, fossem os de reeducação ou os de trabalho. E uso o termo
raptados para aqueles que foram seqüestrados durante a guerra civil, por parte da
Renamo, que era o movimento que se opunha ao governo da Frelimo, e que compunha a
maior parte de seu exército com jovens que pegavam nas ruas, sem consultar os pais e
sem nenhum processo formal. Isso era um rapto, um seqüestro. As pessoas que eu
entrevistei diziam: “fomos raptadas”. Elas faziam uso do mesmo termo que se usa para
falar das pessoas que foram raptadas efetivamente pelos exércitos, quer da Renamo,
quer da Frelimo, que muitas vezes usava do mesmo expediente.
ComCiência – Em que contexto surgiram os campos de reeducação?
Thomaz – O contexto é o da guerra de independência de 1964 a 1974. Em abril de 1974,
a Revolução dos Cravos em Portugal acabou ditando uma certa disponibilidade dos
portugueses para negociar com a Frelimo que, na prática, tinha também uma vitória
militar, pois os movimentos de libertação africanos estavam ganhando as guerras em
Moçambique, Guiné Bissau e Angola. A Frelimo já sinalizava a formação de um regime
de natureza revolucionária, marxista-leninista, e mesmo sem clareza do que estava por
vir, a maioria da população branca, criada na sociedade colonial fascista portuguesa –
cerca de 200 mil pessoas, que moravam em Moçambique – não se mostrava disposta a
viver uma revolução ou sob um regime de maioria negra, onde não pudessem manter
privilégios. Nesse período, de muitos conflitos entre brancos e negros nas cidades, boa
parte dessa população branca abandona o país rumo a Portugal. Alguns permaneceram,
mas procuraram sabotar iniciativas do regime que se instalava. Outros eram apenas
suspeitos de sabotagem. A esses, sendo portugueses, era aplicada uma punição: tinham
24 horas para abandonar o país e podiam levar 20 quilos de bagagem. Essa medida ficou
conhecida como o 20-24 e aconteceu com uma certa freqüência nos anos posteriores aos
acordos entre a Frelimo e Portugal e após a independência, em junho de 1975. Logo
após o estabelecimento dos acordos entre Portugal e a Frelimo – em 7 de setembro de
1974 – ocorreu o início de uma série de expedientes de ordem administrativa que vão
dar origem ao que posteriormente vão se chamar de campos.
ComCiência - Que expedientes foram esses?
Thomaz – A primeira coisa foi eliminar o habeas corpus. Foi criado um regime de
exceção, conferindo à Frelimo ou a órgãos ligados ao regime, poderes extraordinários
no tratamento de pessoas acusadas de sabotadoras, ou que teriam um comportamento
moral inadequado – mulheres suspeitas de prostituição, indivíduos alcoólatras, pessoas
consideradas vadias ou ligadas ao tráfico. Essas pessoas foram enviadas para o que foi
chamado de campos de reeducação, pois deveriam ser re-socializadas pelo trabalho.
Deveriam trabalhar na roça, que se chamam machambas e, nesse processo, deveriam
aprender os princípios do marxismo-leninismo e os da construção do homem novo. Para
esses campos eram levadas também pessoas consideradas suspeitas ou que teriam
conexão com o antigo regime colonial, colaboradores da polícia política portuguesa, ou
régulos, que eram as autoridades tradicionais atreladas ao funcionamento do Estado
colonial. Também eram levados indivíduos acusados de curandeirismo e feitiçaria e os
Testemunhas de Jeová. Isso porque o novo regime pretendia superar não apenas o
colonialismo, mas também o obscurantismo e o tribalismo. Portanto os régulos, os
curandeiros e os feiticeiros seriam representantes do obscurantismo e do tribalismo que
segundo uma análise das elites da Frelimo teriam promovido, em conjunto com os
portugueses, o sistema colonial fascista que tinha perdurado em Moçambique por tanto
tempo.
ComCiência – A esse processo deu-se o nome de Operação Limpeza?
Thomaz - A Operação Limpeza foi implantada ainda em 1974. Já existiam os acordos
entre o Estado português e a Frelimo, mas pouca clareza sobre o futuro do país, e
muitos rumores. A população branca estava muito assustada, inclusive porque
ocorreram dois dias de enfrentamento violento entre brancos e negros, em Lourenço
Marques, atual Maputo, nos dias 7 de setembro e 21 de outubro. Foram dias muito
difíceis. No 7 de setembro há um levante branco. A população branca se organiza e dá
um golpe de Estado, tentando promover uma independência branca em Moçambique.
Ela fracassa, mas nesse enfrentamento ocorreram muitas mortes, sobretudo de negros,
porque as milícias brancas saíam matando nas ruas. E no dia 21 de outubro, em um
enfrentamento no centro da cidade, militares portugueses matam um adolescente e
provocam um outro levante da população branca com a morte de negros, mas dessa vez
de brancos também. Esse processo fez com que aqueles que estavam dispostos a
permanecer, resolvam sair do país com medo.
Nesse processo a Frente estabeleceu novas medidas, em acordo com as tropas
portuguesas, a começar pela eliminação do habeas corpus. Iniciou-se então o que eles
chamam de Operação Limpeza no centro da cidade de Lourenço Marques (atual
Maputo). Isso ocorreu porque havia uma percepção, por parte de Samora Machel e de
parte da Frelimo, de que uma cidade colonial como Lourenço Marques era
forçosamente corrupta do ponto de vista de seus costumes, ou seja, uma cidade imoral,
onde a mulher seria corrompida pela prostituição, e o homem africano, pelo álcool.
Lutar contra o colonialismo significava também lutar contra esse tipo de
comportamento. Na Beira a coisa foi assim também. Mulheres que usavam minissaia ou
pintura nos olhos eram presas acusadas de prostituição, e levadas para algum desses
campos. Em 12 de novembro de 1974, dia em que se desencadeia a Operação Limpeza,
cerca de 142 mulheres foram enviadas para campos não se sabe onde. Elas
simplesmente foram colocadas em caminhões e levadas embora. A prisão de mulheres
suspeitas de prostituição foi recorrente em anos subseqüentes. E na Operação Produção
também. Uma das senhoras que eu entrevistei, que foi vítima da Operação Produção, foi
acusada de prostituição por ser mãe solteira.
ComCiência - E quantos eram esses campos de reeducação?
Thomaz - Não se sabe ao certo o número desses campos, mas tenho algumas estimativas
a partir da documentação encontrada em arquivos do Departamento do Estado
Americano. Calculo que, no final da década de 70, havia entre 20 mil pessoas – sem
contar os 10 mil Testemunhas de Jeová – que foram enviados para a reeducação. A
Operação Produção afetou entre 50 e 100 mil pessoas só na cidade de Maputo. Em
Inhambane e na cidade da Beira, a Operação Produção foi marcante também. Um
grande número de pessoas foi levado da cidade para os campos, sem nenhuma
notificação prévia, julgamento, ou apresentação de provas. A maioria dos campos se
concentrava na região do Niassa , e o Estado da Frelimo usava o termo colonização para
falar dessa operação. A idéia era tirar o excesso populacional da cidade e levar para
regiões vazias, mas não foi só nessa região.
ComCiência - Mas havia outro tipo de campo também, para prisioneiros políticos.
Thomaz - Sim. Outras pessoas foram enviadas a campos de prisioneiros políticos;
aqueles indivíduos, claramente inimigos do regime, que no período em que já se
sinalizava a independência cometeram o grande equívoco de se aliar aos portugueses.
Há uma série de lideranças africanas que vão se destacar tentando construir uma opção à
Frelimo, e que serão classificados como inimigos, tais como Joana Simão e Uria
Simango, entre outros. Eles foram enviados para um campo de prisioneiros no Niassa,
ao Norte de Moçambique e ali morreram.
ComCiência - A Operação Produção tinha o objetivo de reeducar os delinqüentes,
ociosos, mas tinha também uma função de gerar renda para o país?
Thomaz - A idéia era essa. Existia um expediente punitivo, mas havia uma idéia de
fundo de produzir para as pessoas e para o país. No campo que eu trabalhei, por
exemplo, eles produziam abóbora, feijão, vários gêneros alimentícios, só que não
ganhavam. Era um trabalho escravo, e as pessoas viviam em condições inaceitáveis,
muitos não agüentavam. Mas temos que perceber que isso tudo acontecia em meio a um
caos que se instaurava no país. O primeiro ponto é a saída dos portugueses que foi
bastante complicada porque eles controlavam o aparelho produtivo e burocrático do
país. Eles controlavam as escolas e tudo mais. Um exemplo que eu sempre dou é que
em 1974 havia 300 maquinistas em Moçambique e desses, somente um era negro. A
saída dos profissionais brancos seja médico, burocrata, professor, maquinista, gerou um
caos econômico no país, que precisava ser reorganizado.
ComCiência - Sobre o seu trabalho com as famílias seqüestradas pela Operação
Produção, como eles têm vivido depois do abandono dos campos?
Thomaz - No caso da região de Inhassune, eles têm as machambas, essas roças, e graças
à Dona Ester, uma senhora que tinha muita experiência em comércio, anterior à
Operação Produção, eles organizaram um mercado que se tornou um entreposto de
produtos onde os camponeses vendem e encontram mercadorias importantes como óleo,
sabão, açúcar, sal, e produtos para sua alimentação em geral. É uma vida bastante digna,
não é uma vida miserável.
ComCiência – E eles arrendam essas roças?
Thomaz - Até hoje a questão de terras é complicada, porque não existe propriedade
privada em Moçambique. As machambas comunais não existem mais, foram
abandonadas e essas pessoas que ficaram, fazem uso dessas terras abandonadas,
reconstruíram suas vidas em torno disso, mas a terra pertence ao Estado. O que pertence
às pessoas são as benfeitorias que forem feitas na terra, o que dá direito ao usufruto
dessa terra. Para promover algum tipo de desapropriação de terras seria preciso contar
com um mínimo de cumplicidade, de legitimidade por parte de algum setor da
população. Não é qualquer um que vai tirar a população dali. No período logo após a
independência, a Frelimo gozava de imensa legitimidade. Tinha ganhado uma guerra
contra uma potência colonial européia, tinha apoio e simpatia da maioria da população
moçambicana e do congresso nacional. Hoje em dia, a Frelimo e o governo não contam
com o apoio da comunidade internacional, de quem dependem, que são os doadores,
que prestam auxílio ao país, e nem têm apoio total da própria população.
ComCiência - Quais são as reivindicações dessas pessoas que foram raptadas, levadas
para os campos de produção?
Thomaz - As reivindicações não são claras. De forma geral, querem o reconhecimento
do sofrimento pelo qual passaram. Existe a idéia de que “nós sofremos, foi um
sofrimento injusto”, ou seja, “fui injustamente acusado de improdutivo, quando eu não
era improdutivo, durante anos eu não tive vencimento” – salário – “e agora eu não tenho
reconhecimento, nem um pedido de desculpas”. É muito interessante, conversando com
eles, percebemos que não queriam dinheiro, uma indenização, a casa de volta. O que
eles gostariam é que o atual presidente de Moçambique, Guebuza, fosse a Inhassune e
pedisse perdão, pedisse desculpas pelo que aconteceu. Imagino eu que eles espram um
reconhecimento público.
ComCiência – Essas pessoas não falam em voltar para suas casas, para as cidades de
onde vieram ou foram tiradas?
Thomaz - Não, eles consideram que houve uma ruptura. Afirmam claramente que há
uma vida antes e uma depois da Operação Produção. Mais de uma vez falaram: “eu não
recuperei a minha vida e não vou recuperar nunca”.
ComCiência - Eles têm medo de sofrer esse tipo de agressão novamente?
Thomaz - Têm. Isso também repetem com freqüência, que não gostariam que isso
ocorresse outra vez. O que indica que acreditam que existe essa possibilidade.
ComCiência – Qual o papel dos intelectuais no processo de libertação de Moçambique e
para dar visibilidade aos problemas do país? Essas histórias sobre os seqüestros, por
exemplo, chegam ao grande público?
Thomaz – Sim, essas histórias são claras, mas não há uma história oficial do país. A
Frelimo se nega a dar qualquer depoimento sobre a morte dos líderes políticos, mas não
se tem um silêncio da parte do Estado. Algumas vezes eles fazem referência às
lideranças. Mas todo mundo fala, a população comenta o tempo todo. E os intelectuais
viveram esse período. No final da década de 80, o editor do principal jornal do país,
Notícia, era o Mia Couto. Mas cuidado! Temos que entender que a Frelimo não é um
bloco. Dentro do partido havia tendências, oposições, como hoje. Havia pessoas que
olhavam a Operação Produção com verdadeiro horror. Há uma concentração de
movimentos literários em Moçambique e essa intelectualidade nasce comprometida com
a produção do país. Até hoje o compromisso deles – escritores, poetas, professores
universitários – com o país é uma coisa extraordinária. Com maior ou menor encanto.
Muitos sonharam que a revolução promoveria o fim da pobreza, e isso não aconteceu, o
que gerou uma certa amargura. Mas se vê uma ligação muito forte dos intelectuais com
toda a história do país.
ComCiência - Você diria que Moçambique é um país democrático?
Thomaz – O país tem uma imprensa livre, muito mais livre que muitos outros países,
comparável à África do Sul. Tem uma universidade livre também, onde é possível
discutir praticamente todos os problemas com bastante liberdade, tem livre circulação,
as pessoas podem sair e voltar. Tem eleições periódicas, que são mais ou menos
honestas. O que não significa que não tenha conflitos, que não haja corrupção, crimes
políticos. A questão é até onde chegam as instituições. A esmagadora maioria da
população está no campo, não tem acesso a benfeitorias como água, luz. Para essas
pessoas a palavra democracia não faz o menor sentido.
ComCiência – Essa é uma história da África que deveria constar do ensino que se
propõe para o Brasil?
Thomaz - O ensino da história da África é obrigatório hoje no Brasil, em diferentes
níveis de ensino o que exige um esforço historiográfico sério, o que implica incorporar
o trabalho de autores africanos e africanistas que estão trabalhando seriamente para
recuperar uma história recente. Acho que temos que tomar cuidado no sentido de tratar
apenas de uma África mitológica. Podemos tratar disso também, e é legítimo que os
movimentos negros reivindiquem uma África mitológica. Mas, existe uma lei que tem
que ser levada a sério e isso quer dizer não tentar fazer uma história de mocinho e
bandido. A história da África é complicada, como de qualquer outro contexto. E não
tem uma história da África, são histórias da África, são histórias nacionais e também
regionais.
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