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Quinta-feira
4 de dezembro de 2014
Jornal do Comércio - Porto Alegre
Geral
Prevenção
não é mais prioridade
Suzy Scarton
[email protected]
Semelhança entre
expectativa de vida
de infectados e
de não infectados
serve como
impulso para
o descuido
Os números são altos, mas já foram maiores. A doença ainda assusta,
mas já foi sinônimo de sentença de
morte. De acordo com o Ministério da
Saúde, nos primeiros 21 anos da epidemia no Brasil, entre os anos 1980
e 2001, o número de casos de Aids
registrados foi de 275.850. No Estado,
foram 21.577. Já nos 11 anos seguintes,
entre 2002 e 2013, foram registrados
481.192 casos no País. O Rio Grande do
Sul, no mesmo período, contabilizou
54.735 diagnósticos de HIV.
Percebe-se que não houve queda no número de ocorrências. Ao
contrário, em 11 anos (2002 a 2013),
o número de novas infecções é 74,4%
maior do que nas duas décadas anteriores (1981 a 2001). O fato curioso
é que foi exatamente nesse período,
mais especificamente a partir de
1996, que o Brasil garantiu o acesso
universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais no Sistema Único
de Saúde (SUS). Ou seja, mesmo com
mais atenção na rede pública, as infecções não cedem.
Com a disseminação do tratamento com antirretrovirais, as pessoas infectadas pelo HIV vivem mais. E vivem
bem. Em outubro deste ano, 398,4 mil
indivíduos estavam em terapia antirretroviral, o equivalente a 54% das pessoas que viviam com o vírus no Brasil.
O número é bastante superior aos 125
mil beneficiados em 2002. No entanto,
ainda é preciso levar em consideração
que, somente em 2013, 35,2% dos casos
de Aids deixaram de ser notificados ao
Ministério da Saúde. O sub-registro
questiona a qualidade do serviço de
controle e vigilância, uma vez que
deixa alguns infectados à mercê da
própria sorte. Dessa forma, a evolução
do combate à doença foi boa, mas não
ótima. De acordo com a coordenadora
do programa das Nações Unidas sobre
HIV/Aids (Unaids) no Brasil, Georgiana
Braga-Orillar, existe, agora, uma fadiga
na questão da prevenção.
O assunto saiu da pauta. Os jovens de hoje não acompanharam o
desespero dos ídolos de outrora, que
enfrentaram e padeceram diante da
enfermidade. A Aids é quase vista
como uma peste negra, que foi perigosa no passado, mas não representa
ameaças no presente. É por isso que os
novos casos ainda são preocupantes.
A camisinha, principal método preventivo contra a infecção, é deixada
de lado. O tradicional comportamento inconsequente dos jovens aparece
como possível justificativa para o desleixo com relação à proteção durante
relações sexuais.
Quanto aos idosos, avanços na
medicina proporcionaram um aumento na expectativa de vida. Sendo
assim, pessoas na terceira idade ainda mantêm uma vida sexual ativa e
precisam, naturalmente, se prevenir.
Em 2002, houve 995 casos de Aids
em pessoas com 60 anos ou mais notificados no Brasil. Em 2013, o número
passou para 1.978. “Os idosos, principalmente as mulheres, têm vergonha
de assumir que são sexualmente ativos. Têm vergonha de entrar em uma
farmácia e comprar preservativo”, relata Georgiana. Para que essa situação
mude, a coordenadora argumenta que
é preciso trabalhar na sensibilização
dos profissionais da saúde para identificar o idoso como público-alvo.
Sensação de segurança contribui para o
aumento no número de casos nos últimos anos
Para o coordenador da Área Técnica HIV/AIDS e Hepatites Virais da
Secretaria Municipal da Saúde (SMS)
de Porto Alegre, Gerson Winkler, os
avanços médicos que dizem respeito ao tratamento e à assistência dos
pacientes e a constatação de que os
infectados vivem com uma qualidade de vida igual à dos não infectados certamente contribuíram para o
afrouxamento das medidas preventivas. “Perdemos o contexto de visibilidade com relação ao HIV. Chegamos
a pensar que seria preciso ressignificar questões acerca da prevenção e
do uso da camisinha”, argumenta.
Porto Alegre é a capital brasileira que apresenta maior incidência
de novos casos no País. Winkler
acredita que fatores que dificultam
o acesso ao serviço de saúde pública
e à informação contribuem para que
esse número seja tão alto. A SMS trabalha com especial atenção na Vila
Cruzeiro e nas regiões da Lomba do
Pinheiro e do Partenon, na zona Leste, que possuem alta incidência da
doença. Além de prestar atendimento às escolas da região, a pasta, em
parceria com a Secretaria Municipal
da Educação, elaborou o “Galera
Curtição”, um projeto que propõe
diálogo com as escolas através de
programas de auditório e gincanas.
A SMS estabeleceu, também,
um acordo com proprietários de
estabelecimentos noturnos, como
bares e boates, para que disponibilizem gratuitamente camisinhas
masculina e feminina e géis que facilitam a prática sexual entre idosos.
Quem tem mais de 60 anos também
está no foco de ação da secretaria.
“Os idosos se reúnem nas unidades
de atendimento à saúde, então trabalhamos para que a discussão sobre a prevenção esteja mais presente
no cotidiano deles.”
De acordo com o último relatório
da Unaids, divulgado em julho, entre
2005 e 2013, as mortes por Aids caíram 1/3 no mundo. No Brasil, os novos casos cresceram 11%. Para Georgiana, coordenadora do programa no
País, esses números causam suspeitas de que a epidemia esteja voltando. Ela atribui parte do aumento das
incidências ao silêncio da sociedade,
da mídia e dos órgãos governamentais com relação aos perigos da Aids,
uma vez que um falso sentimento de
segurança possa ter se espalhado e
provocado novas infecções.
Estado tem preocupação
com grupos vulneráveis
A preocupação do Estado com relação à doença
é basicamente a mesma demonstrada pelo município.
De acordo com o coordenador da Política Estadual de
DST/Aids, Ricardo Charão, a pasta vem trabalhando,
desde 2011, de modo a aperfeiçoar a qualidade das
ações preventivas e de tratamento aos gaúchos infectados. “Oferecemos apoio a organizações não governamentais que trabalham especialmente com as populações mais vulneráveis à infecção, como homens
que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e
usuários de drogas, que por vezes se contaminam devido à troca de seringas”, descreve.
Segundo Charão, entre 2012 e 2014, cerca de R$ 5
milhões foram investidos no trabalho dessas ONGs.
Além disso, R$ 15 milhões do tesouro estadual foram
aplicados em ações de prevenção e na redução de
prejuízos originados devido à ausência de investimentos em governos anteriores.
Charão também destaca o distanciamento da geração atual do peso nefasto da doença. “Quem já alcançou a casa dos 40 anos, lembra bem do momento
em que a epidemia se espalhou, relembra o sofrimento
do cantor Cazuza e de outras figuras públicas que não
sobreviveram à luta contra a Aids”, comenta. Hoje, com
a universalização do tratamento e a distribuição gratuita dos medicamentos para a prevenção e cuidados,
torna-se cada vez mais rara a morte de alguém vitimado pela doença. “É algo que afeta o comportamento,
diferentemente das gerações anteriores, que passaram
a usar preservativos e tomar muito cuidado porque temiam os riscos.” O coordenador destaca que, embora a
educação sexual nas escolas seja importante para ensinar que a sexualidade é boa para o ser humano, a ideia
de cuidado e de responsabilidade no uso de preservativo precisa ser igualmente difundida.
A atenção dispensada ao combate à infecção deve
ser diferenciada para evitar um recrudescimento da epidemia. O Estado apresenta uma grande concentração de
grupos vulneráveis. Contudo, há aqueles fora desse espectro que também contraem a doença. De acordo com
Charão, o perfil dos adultos infectados mudou nos últimos anos e atinge grupos que não eram julgados vulneráveis, como homens heterossexuais entre 20 e 45 anos.
Mesmo que, nos últimos três anos, o Rio Grande do
Sul tenha investido no combate, Porto Alegre ainda é a
capital com a maior incidência. Para Charão, o quadro
não mudará tão cedo. “Estamos captando, agora, casos
antigos de infecção. Ainda seremos, por muito tempo, a
capital com maior número de casos.”
Número de pacientes em terapia
antirretroviral no Brasil
FONTE: MINISTÉRIO DA SAÚDE
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
85.078
93.414
113.191
125.175
139.868
156.670
164.547
174.270
180.640
192.535
231.146
257.037
284.390
313.175
354.519
* até outubro
398.477
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não é mais prioridade