Mal-estar nas escolas: será possível educar?
Juliana de Oliveira Guimarães - Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Juiz de Fora
Resumo: Este trabalho tem por objetivo central discutir o espaço social ocupado pelos
professores atuais, bem como pelos alunos de nosso tempo. A relação de convívio de
professores com seus alunos na escola se caracterizam por queixas e atitudes de desistência
ou recuo quanto ao desempenho de suas atividades de mestres. Há um fenômeno que
envolve a atualidade e que é trabalhado pelo campo da Psicanálise: a falência do Nome-doPai, o significante da Lei no inconsciente, o que interdita o puro prazer. Figuras antes de
referência sólida estão humilhadas ou ausentes, inseridas no cenário social. O Estado, a
cultura e a ciência, na atualidade, interferem na qualidade dos vínculos sociais, inclusive,
naqueles estabelecidos entre professores e alunos. A educação nas escolas, lugar de
transmissão da história da humanidade e de formação de valores éticos tornou-se um
contraponto da atualidade, marcada pelo individualismo e a transitoriedade do valor do que
quer que seja, inclusive dos sujeitos e das instituições. A pesquisa de campo em duas
escolas que trabalham com adolescentes na cidade de Juiz de Fora, possibilitou evidenciar o
que sentem os professores em seu cotidiano e seu ofício, e através da palavra, ilustraram o
conflito vivido hoje no processo educacional: será possível educar?
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A escola sob a mira de uma nova configuração de mundo e de sujeito:
A perda da qualidade nas relações subjetivas nos espaços sociais é visível:
adolescentes ditam as regras em seus lares, pais acuados cedem aos caprichos dos filhos,
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órgãos assistenciais e legislações de ‘proteção’ dizem aos responsáveis de crianças e
adolescentes o que fazer, como agir e educar. No ambiente escolar, professores recebem
projetos educativos prontos para serem executados, alguns até definindo índices de
reprovação aceitáveis ou a proibição de que haja qualquer índice de fracasso oficial. Apesar
de tantas possibilidades de formação e capacitação de professores na atualidade, problemas
de ordem relacional entre alunos e professores tornam-se cada vez mais complexos. Sendo
a escola um espaço de ação educativa, escolhemos encontrar suas contradições e discuti-las,
e isso só se tornaria possível se estivéssemos a fim de ouvi-la por meio de seus personagens
mais diretos nas relações de aprendizagem: pais, professores alunos, coordenação e direção.
A fim de revelar uma hipótese que possuíamos: a de que independentemente da classe
social à qual a escola atenda, o modo de relação entre professores e alunos e do aluno é um
sintoma social geral, escolhemos duas escolas de regiões e clientela socialmente distintas.
Uma delas da rede privada, localizada numa região central da cidade de Juiz de Fora, e
outra, na mesma cidade, da rede pública municipal, localizada numa periferia. Também
com a hipótese de que era entre adolescente que o processo de aprendizagem mais demanda
qualidade nas relações de fato entre professores e alunos, escolhemos educandos entre 12 e
18 anos para ilustrarmos alguns pontos desse artigo.
Em todas as conversas estabelecidas, e quando se referiam à escola, atualidade e
perspectiva de futuro, o mesmo traço era delineado: a decadência nas relações entre pais,
mestres e alunos, confusão de papéis e a progressiva queda da qualidade de ensino. Pais e
professores dividem a mesma realidade e as mesmas perguntas: e agora, o que fazer com
nossos jovens?
Para Amaral (2006, p.81), o problema é que a escola parece não estar
acompanhando as mudanças sociais, ainda mantendo-se presa ao ensino tradicional, que se
limita a ensinar, dando pouca ênfase ao aspecto relacional professor e aluno, o que invalida
a subjetividade e a cultura de nossos jovens. Isso torna a escola muito mais um palco de
conflito do que de intercâmbio enriquecedor.
Na escola da rede particular, falando sobre seus alunos, a professora Andréa, uma
das entrevistadas na pesquisa de campo, desabafa: “Eu acho que eles estão tão perdidos
como nós, para entender essa mudança social, que é de costume mesmo”.
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Articulada a essa desorientação, admitida pelo profissional, a deturpação dos ideais
democráticos, tem feito surgir um novo discurso: o discurso de direitos em detrimento de
evidenciar, da mesma forma, os deveres de cada um. É corrente a idéia de relativização do
papel do professor na aprendizagem, e o que se vê é o fortalecimento da crescente inversão
de funções entre o que ensina e o que aprende, ou o progressivo desconhecimento delas. A
mesma professora conta um episódio que viveu em 2005 de parar sua aula, percebendo um
desinteresse da turma, resolveu perguntar aos alunos o que não estaria bom e pedir opiniões
para a mudança. Acreditando ter sido democrática e que esse seu comportamento
provocaria mudanças, surpreendeu-se com seus efeitos, pois alguns deles passaram a
desafiá-la depois disso, tiravam o sapato em sala, a depreciavam em sua forma de trabalho
docente. Um aluno, inclusive, chegou a pichar coisas sobre ela no muro da escola. “Isso
tudo me deixou muito chateada”, disse a mesma, trazendo o descontentamento em ceder a
uma prática democrática, sem bem ao certo saber como seria isso, senão uma tentativa de
mudança.
Há novas configurações sociais que projetam cada vez mais professores num lugar
comum, e que foram reveladas pela professora da rede pública, Kátia, outra participante de
nossa pesquisa. Ela fala sobre o declínio do lugar de mestre:
O... o aluno, em si, não respeita o professor. Ele não respeita o próprio
colega. Ele trata o professor como um qualquer, não como aquele que
está ali para poder ensinar, para ajudar. Eles não vêem o professor
assim não. Eles consideram o professor como um qualquer também(...) o
que eles têm pra falar, eles falam, qualquer palavra que vier eles falam,
entendeu? Então, eles não respeitam mais não.
Alguns fatores, considerando a fala desses sujeitos, podem estar interferindo nessa
mudança do vínculo entre jovens e adultos e, portanto, na relação entre professores e
alunos.
O primeiro deles seria o contexto social global em que estamos inseridos. Para
Bauman (1999, págs. 67-8), a globalização se distingue do que se entendia por universalizar
o mundo, que traduzia a “vontade de tornar o mundo diferente e melhor do que fora e de
expandir a mudança e a melhoria em escala global, à dimensão da espécie”. Além disso,
“declarava a intenção de tornar semelhante as condições de vida de todos”. Hoje, o que
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temos se refere aos efeitos globais de forças anônimas. Para ele, a “globalização não diz
respeito ao que todos nós, ou pelo menos, os mais talentosos ou empreendedores,
desejamos ou esperamos fazer. Diz respeito a que está acontecendo a todos nós”, que marca
o domínio da economia sobre o Estado, que já não pode controlar suas riquezas.
Os sujeitos, incluindo os jovens, ainda mais vulneráveis, estão capturados pela
dinâmica ideológica da globalização e da cultura do consumo, e possuem grande
dificuldade de estabelecer relações de respeito e reconhecimento da autoridade de quem
quer que seja, pois elas não lhes oferecem um ganho imediato. A sociedade atual que
abandonou sua crença no sagrado, representado pela figura de Deus e dos dogmas que
advém desta crença, passou a valorizar aquilo que a faz gozar, o objeto, santificando-o.
Fleig (1999, p. 130), afirma que:
[...] em nossa cultura, o objeto é que passa a comandar a cena e a nos
comandar. Já não somos nós que exercemos o poder sobre os bens e os
objetos, mas são estes que passam a comandar nossa existência. Se antes
o poder vinha do alto, era sagrado (aquilo que não pode cair) porque se
originava nas divindades, hoje o poder também vem do alto, mas o que
está santificado é o objeto.
A promessa de satisfação plena de nossas pulsões, estratégia da sociedade de
consumo, que vende pílulas para a felicidade, cartões para a realização de ideais, quase
sempre consumíveis (e, portanto, efêmeros), articula-se com a excessiva permissividade do
adulto em relação ao jovem, pois o adulto também se encontra imerso nessa cultura. O
reflexo disso é que o adolescente possui dificuldades de reconhecer, por exemplo, o
professor como legítimo, figura de autoridade, interditor do que quer que seja: sem controle
psíquico, sem inserção sólida no registro do simbólico, o adolescente realiza a qualquer
custo seu querer, violenta, agride, e já não mais sonha, argumenta ou transgride regras
sociais com propósito de transformá-las. Afinal, que referenciais as substituirão, quando
tudo é móvel e transitório?
O segundo dos fatores é a forma como os governos hoje tratam o sistema de ensino,
determinando a implementação de políticas, que retiram do professor e de sua equipe de
trabalho a autonomia, assim como, por outro lado, esses governos vêm perdendo seu poder
de decisão sobre o ensino da rede privada, dirigida, em geral, por empresários com pouca
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formação pedagógica, pouca vivência educacional e baixo desejo subjetivo pela
aprendizagem, senão aquele subordinado à sede de lucro e bons índices de aprovação. Seja
em s públicas ou privadas, os professores vêm perdendo sua legitimidade e se tornaram
mão-de-obra; muitas vezes, de baixo custo.
Políticas impostas e ordens não construídas no chão da escola invalidam a palavra
de seus atores, retirando deles a liberdade em articularem os conteúdos formais com a
subjetividade da cultura de cada comunidade e com a própria subjetividade. A construção
de um plano que destaque a palavra daqueles que compõem a escola, é importante para
fortalecê-la enquanto espaço de ação e não só de subserviência a políticas e intenções que
localizam o professor e o conhecimento como bens de consumo e não como valores
duráveis.
O professor, submetido a injunções externas, é desautorizado de seu lugar de
mestre e muitos, pela força com que chegam as novas ditaduras do sistema ou pela perda de
seu desejo de ali estar, desautorizam-se igualmente.
Diante disso, nas escolas, professores, coordenadores, diretores e funcionários estão
diante de uma crise social que impulsionou um fenômeno bem conhecido: a decadência do
papel do educador, do valor do conhecimento. Se o novo desafio é educar, é submeter o
sujeito às leis gerais, que restringem sua sexualidade e seu prazer, mas que proporcionam a
vida coletiva, como fazê-lo se quem educa se sente destituído do lugar de autoridade, lugar
duvidado, ‘negociado’?
A perda do lugar de mestre cede lugar ao mercado de diplomas e aos arranjos do
sistema para se ‘aprender’ mais em pouco tempo. No entanto, sem esse lugar de mestre não
será possível a educação do sujeito, já que ele não se entenderá aluno e com o desejo de
saber, a confirmação de que internalizou que algo lhe falta, de que algo lhe falta.
Historicamente, partiu-se do modelo legitimava a posição do professor, já que se as
famílias acreditavam que ele é quem tinha a razão e o poder, e qualquer tentativa de que o
filho questionasse o seu saber, um castigo físico ou moral o aguardava. E hoje estamos do
outro lado, também extremo: o que vemos são professores que já nem geram o desejo de
saber nos seus alunos, já que não ocupam o lugar de mestre, não querem se desgastar, ou
por preverem o desgaste, aceitam a perda do valor do seu exercício, sem qualquer
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resistência. Talvez, já não se reconheçam, não sabem o lugar que devem ocupar, e,
digamos, estão tão perdidos quanto os pais de seus alunos, parafraseando o que disse uma
das professoras da pesquisa. Zelcer (2006, p. 104) discute sobre a atual situação das escolas
e articula sua progressiva perda de sentido com a falência do próprio Estado que a criou,
seu Pai decadente:
A Escola foi um bastião da cultura; foi uma instituição organizadora
pelo Estado Nacional, que, por sua vez, lhe outorgou o seu sentido; foi
também por meio desta entidade que o Estado nacional se estabeleceu.
Mas atualmente é comum perceber (já não é nenhuma novidade dizê-lo)
que o Estado Nacional está falido e que perdeu a sua eficiência. Então,
quem ou o que fundamenta a Escola? Quem agora a referencia e a
planeja? E quem a constitui hoje?
A autora afirma ainda que a escola saiu das mãos do Estado para as mãos dos
operadores de mercado, e isso comprometeu bastante seu lugar na sociedade.
Nas mãos do mercado e na perda de sentido, a escola passou a ser desacreditada
pelos responsáveis dos alunos, os pais, que conseqüentemente, transmitiram aos filhos a
desvalorização do professor. Somada a essa desistência profissional sentida em nossos
tempos, a instituição familiar também fracassa no processo educativo (Lebrun, 2004). Ela,
inclusive, já que não se sente mais nesse direito, e já não está mais respaldada pela tradição
patriarcal, que naturalmente a legitimavam como ‘família’. Os professores, em meio a essa
dinâmica social, estão mais vulneráveis aos pedidos de limite dos alunos, já que estes já o
têm precariamente no âmbito familiar.
Já não havendo um sistema social capaz de simbolizar a castração, a lei terá de ser
incessantemente lembrada no plano concreto, o que exigirá uma conduta contínua do
professor ao se colocar nesse lugar não tão agradável nos tempos modernos, do daquele que
castra, que barra, que interdita, apesar de todo o discurso de liberdade e igualdade. A tarefa
de ser mestre tem sido cada vez mais árdua, e refutar-se a ela traduz um sintoma da
atualidade, manifesto por queixas de cansaço, falta de desejo e licença por doenças do
trabalho.
Muitos educadores escolares abrem mão de serem os ‘senhores’ de suas aulas e via
de transferência para o processo educativo. Não há muitos adultos hoje que se permitem ser
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o alvo do sentimento de ódio dos alunos, do não saber deles, e da suposição de saber tudo
deles.
Eis agora o que Lebrun (2004, p.8) fala sobre a crise da autoridade e a crescente
desistência daqueles que estavam autorizados a ocupar posições de referência, como no
caso dos professores:
[...] as figuras que sustentam esse lugar não querem mais ser alvo do
ódio, não querem mais ser aqueles que vão suportar o ataque. O que
fazem – e aí é que está a administração – é fazer tudo para evitar a
conflitualidade. Então preferem não dizer nada a arriscar-se ao conflito,
porque se houver conflito não se sabe mais como seria possível sair dele
[...]
Destituindo-se os adultos desse lugar, e já que o interdito é o que fundamentalmente
garante o estatuto de sujeito, ele será naturalmente buscado pelos adolescentes por meio de
outras vias dirigidas ao social, sem endereçamento e com conseqüências por vezes
destrutivas. A autoridade, o que aponta uma subtração do gozo, que é uma barreira para as
pulsões, é o que torna possível o desejo, e com ele, o sonho, a expectativa do porvir e a luta
por novos dias, elementos já tão ausentes nos tempos atuais.
O terceiro fator de interferência para o mal-estar nas escolas, e talvez, aquele que
esteja na interseção dos dois outros: decidir o que é certo ou errado já não está mais nas
mãos da família ou da escola, mas nas mãos dos ditos científicos.
Em nome da liberdade, o que faremos com a educação?
A crise da educação na atualidade se instalou porque a sociedade hierárquica, sob os
moldes do patriarcado, já não se faz possível, e a fragmentação dos espaços e a ampliação
do tempo veio para essa substituição, confundindo sujeitos e lugares sociais, cada vez mais
transitórios. O que se defende hoje, nos discursos idealistas de paz, é o nivelamento entre
todos, a horizontalidade, como então apregoam os códigos jurídicos, em grande número
inclusive, que enfocam a convivência humana na base da igualdade. No entanto, será
possível a igualdade, em meio a tantas diferenças?
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Arendt (1972, p. 229) fala sobre o movimento que a América do Norte fez para
romper com os princípios do Velho Mundo: abriu mão de tudo aquilo que historicamente
foi construído pelos predecessores da humanidade. E o resultado foram os baixos índices
de aprendizagem, comparados aos países europeus. Além disso, a sociedade americana
sempre foi defensora do conceito de igualdade que tenta fortemente empreender o
apagamento das diferenças, particularmente entre adultos e crianças, e entre alunos e
professores. Há um temperamento político que repudia qualquer forma de governo ou de
avaliação que não seja a democracia igualitária, ao contrário de muitos países europeus
como a Inglaterra. E o que vemos acontecer nos Estados Unidos, senão um governo que
patrocina a indústria do armamento, apesar de falar de igualdade e paz entre os povos?
Precisamos entender, portanto, nas escolas dos dias atuais e de todos os outros
tempos, que: haverá sempre manifestações subjetivas que não se poderão evitar, embora
pelo discurso vigente, caia sobre o profissional da educação toda a responsabilidade pelo
fracasso: o fato é que haverá alunos que vão recuar ante a aprendizagem e outros que vão
superar as expectativas e estimativas da instituição de ensino, apesar de qualquer coisa que
se fizer. E isso não dependerá exatamente do quanto o professor estudou ou do quanto ele
ganha pelo cargo que ocupa, mas do seu desejo, que não é algo aprendido, mas que ele
existe ou não. E a aprendizagem não dependerá só do desejo do professor, mas do desejo do
aluno que aprende num momento específico de vida, com aquele professor.
Através do amor de transferência, que é o que impulsiona o aluno ao desejo de saber
sobre o que o professor ensina, esse aluno supera o registro imaginário do que seja o
conhecer, ancorado no ideal da educação, e o faz tomar posse do registro simbólico desse
ato, posicionando-se subjetivamente em relação à aprendizagem que é o que aponta para o
sujeito a incompletude do ideal cultural, e o caminho próprio que terá de fazer para o
enfrentamento desse Outro (ROCHA, 2003), que é a linguagem que pré-existe, e que
interdita, pois que dotada de código social, de freio às pulsões.
A fim de que o aluno aprenda, é preciso que tenha sido despertado nele esse desejo
e o professor em sua subjetividade e naquilo que deseja como tal, possa desencadear esse
feito.
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Portanto, como diz Souza (2004), para a Psicanálise, a aprendizagem não está
focada nos conteúdos, mas no campo que se estabelece entre professor e aluno, e isso pode
favorecer a condição ou não para a aprendizagem independente dos conteúdos. Em
“Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar”, Freud (1914) acredita que ao professor
é endereçado o sentimento dos alunos sobre figuras afetivas muito primitivas deles, como
os pais e os irmãos. O professor é um objeto de transferência de seus alunos, e é para o
mesmo que são transferidas experiências vividas de forma primitiva com os pais deles.
Relações precárias entre pais e filhos, evidenciadas na atualidade, desdobram-se nas
escolas, e educadores, vulneráveis a alunos que chegam à procura de laços sociais,
necessários para a construção de sentido de vida em comunidade, desolam-se, perdem-se de
seu lugar. Há muitos professores que já recuam, protegem-se por escudos, ao invés de
enfrentarem essa realidade: entendem o insulto como desacato e não como desejo de que o
barrem em sua palavra, ou entendem que o atraso do aluno na chegada em sua aula é um
sinal de desprezo pelo seu trabalho. Construindo justificativas subjetivas para as atitudes de
seus alunos, tornam a profissão de professor um ato de penitência, sentem-se sós, adoecem,
demonstram seu medo e são vencidos, entregando suas armas: o conhecimento e o lugar
que acreditavam possuir nos seus anos de formação docente inicial. O aluno, endereçando
ao professor o papel de pai, procurando-o, vê esse professor como um incapaz de suportar
esse lugar, e também se desola, projetando na sociedade ou em si mesmo seu infortúnio:
droga-se, mata, briga de maneira constante, isola-se...
Diante dos ideais de paz, casos de agressividade têm sido entendidos como sinais de
delinqüência, quando na verdade, podem ser evocações de procura pelo Nome-do-Pai, o
significante que marca a interdição no sujeito e que o barra em sua manifestação das
pulsões no mundo externo. Um desacato ao professor ou a depredação de um móvel da
escola, podem revelar o sinal de busca por esse laço.
A travessia da adolescência pela qual terá de passar adolescentes e também
professores na atualidade das escolas, está constituída por todos os ingredientes sociais e
psíquicos que ressaltamos nesse trabalho, do qual se destaca a importância da subjetividade
do professor no cotidiano da escola e das relações que nela se estabelecem com os alunos,
sejam elas de aprendizagem ou de afetividade, intimamente ligadas. Como ressalta Gutierra
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(2003, p. 114), o “mestre não deve recuar em seu dever, sustentando sua palavra e
‘encarnando’ o lugar do pai no sentido de funcionar como organizador diante do
adolescente que pede para ser reconhecido”. No entanto, não acreditamos que suporte esse
lugar o educador que se considera perfeito detentor do saber da ciência, ou aquele em que
falte o desejo de ensinar.
E agora?
Diante do cenário social descrito, acreditamos não existirem culpados. O que há é
uma grande rede na qual estamos capturados. A organização mundial na atualidade
favorece o quadro que descrevemos: a falência da autonomia do sujeito, do lugar especial
de educadores, que são sujeitos, acompanhado do confuso atravessar da adolescência para o
mundo adulto, a partir do caos instalado, das promessas de felicidade e de juventude
defendidas pela mídia publicitária e novelística. Tornar-se adulto, deixando assim a
juventude e seus experimentos, tornou-se algo prescindível e prejudicial à liberdade dos
tempos modernos. Capturados pela possibilidade de não envelhecermos e de não termos de
fazer escolhas decisivas, tornamo-nos objeto a ser consumido e a consumir o outro e as
coisas.
Os professores têm tornado os atos de seus alunos, suportáveis, pois previsíveis há
bem pouco tempo, em atitudes infracionais, motivações para desistência profissional. Em
que tempo estaremos tratando nossos alunos como sujeitos, escutando-os, interditando-os
como devem fazer os Pais que desejam o crescimento de seus filhos, já que é assim que de
forma inconsciente, somos vistos por nossos alunos?
Na conexão entre o sujeito e a cultura atual, marcada pelo declínio da palavra, nosso
desejo de educador precisa estar presente para não recuar desse papel, pois como nos
esclarece Ribeiro (2003), muitos adolescentes de hoje não têm sido apresentados aos
limites, à interdição de um terceiro que marque a impossibilidade da felicidade total,
promessa criada na contemporaneidade.
Encarar com mais naturalidade a adolescência de nossos alunos, sem naturalizar
seus atos anti-sociais, é o caminho subjetivo que cada professor deve tomar para si,
entendendo que é um período de muitos conflitos, atualmente tamponados pela promessa
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do consumo, seja do eletroeletrônico, da marca de grife, da droga que alucina, ou do status
do crime.
A adolescência é
um tempo de reelaboração do Pai, registro da Lei no
inconsciente, e é isso o que fecunda a entrada do sujeito na civilização, o que o faz
responder de forma responsável por sua conduta no mundo. A travessia se dá de maneira
não harmoniosa, nem tampouco linear, e na modernidade, ocorre por demanda de registros
no real para tornar possível um ponto de chegada. Ações cada vez mais concretas têm sido
necessárias para confirmar ao sujeito sua inserção nesse universo simbólico. Internações
para desintoxicação, para tratamentos psiquiátricos e encaminhamentos a Varas da Infância
e da Juventude são alguns desses sinais da necessidade do real para a construção desse
simbólico.
A intrusão do real, insistente em nossos dias, para a passagem da adolescência,
representa o trabalho incansável de alguns adultos de demarcarem espaços e apontarem
caminhos socialmente aceitáveis para que os jovens tracem seus objetivos. A construção de
projetos de vida será possível quando alguma barreira for registrada simbolicamente no
psíquico do adolescente. É como se dissessem: isso não posso fazer, mas isso...bom, isso só
será possível se... A capacidade de sonhar só ocorre quando o sujeito se dá conta da
impossibilidade de viver tudo, a qualquer custo. Assim, projeta-se, escolhem-se metas, que
não podem ter resultados imediatos, mas demandam tempo. Tempo significa espera e
esforço. Esses sentidos que hoje, mesmo acreditando neles, estão na marginalidade.
Compra-se muita coisa. O adolescente, inserido nesse contexto social, desacredita no
projeto, no sonho, no porvir, e entregam-se ao hoje. Aos profissionais da educação cabe a
apresentação do jovem sujeito ao futuro, por meio dos valores que aprenderam quando
jovens. Esse movimento entre gerações é o que possibilita firmar o laço social e tornar a
escola um lugar menos angustiante.
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