“Transitando entre fronteiras”: aspectos da sociocosmologia e territorialidade
Mbyá-Guarani no litoral catarinense no contexto de
reconhecimento de direitos territoriais
Carlos Eduardo N. de Moraes1
Resumo
A região Sul tem recebido, nos últimos anos, diversos Grupos Técnicos (GTs) da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para o reconhecimento de direitos territoriais das
comunidades indígenas que nela habitam e circulam. Tais processos de demarcação de Terras
Indígenas estão, portanto, presentes na atual realidade desses grupos e são, invariavelmente,
orientados por uma lógica burocrática que rege as ações do Estado brasileiro, e que conflita
com a cosmo-lógica Mbyá-Guarani em seu holismo.
Este estudo aborda aspectos da sociocosmologia e da territorialidade Mbyá-Guarani no
Sul do Brasil, dimensionando as múltiplas relações que grupos no litoral catarinense
estabelecem entre si (relações de parentesco e aliança), com a natureza (relações
interespécies), com a sobrenatureza, com a sociedade regional e com o Estado em suas
diferentes instâncias. Para isso, busca-se nas categorias êmicas relativas à territorialidade
Mbyá-Guarani: Yvy rupá (nosso mundo/território), Para Guassu (o litoral Atlântico), -guatá
(caminhada/itinerância) etc; a chave de entendimento de seu enraizamento e investimento
simbólico sobre o território.
Tal contradição impõe à prática antropológica alguns desafios de âmbito teóricometodológico de adequação da etnografia à linguagem jurídica. Entretanto, não se esgota aí a
questão, e procuro demonstrar neste estudo que o diálogo com as categorias próprias aos
grupos indígenas, as quais devem ser apreendidas pela etnografia, pode descortinar novos
horizontes e sugerir novos aportes no trato do tema da territorialidade e sua apropriação
formal e burocrática pelas políticas de reconhecimento perpetradas por um Estado pluriétnico
e multicultural, alargando com isso suas fronteiras.
Palavras-chave: demarcação de terras, territorialidade, sociocosmologia Mbyá-Guarani
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Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGAS/UFRGS).
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Introdução
A questão das demarcações de Terras Indígenas (TI) no Brasil, nos últimos anos , vem
ganhando grande repercussão, tanto na mídia como nas mobilizações políticas indígenas e na
política indigenista em diferentes escalas. Após a Constituição Federal de 1988 (CF88), novos
aportes formais foram estabelecidos, sendo o direito à diferença reconhecido no país. Aliado a
isso, uma série de direitos diferenciados também passaram a ser reconhecidos pelo Estado
brasileiro, dentre eles aqueles que dizem respeito à ocupação tradicionais de terras pelas
comunidades indígenas.
A intenção de regulamentar o processo de demarcação de Terras Indígenas, data, no
entanto, de meados dos anos 1970, quando é introduzida a categoria identificação como
marco da política de reconhecimento de territórios aos indígenas. Essa legislação vem
sofrendo acréscimos e se adequando às realidades dos processos que se somam com o passar
dos anos, como veremos em seção específica deste texto. No entanto, política
A grande maioria das Terras Indígenas demarcadas pelo Estado Brasileiro situa-se na
região amazônica, entretanto, ultimamente, diversos Grupos Técnicos (GT) da Fundação
Nacional do Índio (Funai) tem se espalhado por outras regiões do país, realizando estudos de
identificação e delimitação de terras, incluindo aí a região Sul, foco desta reflexão
antropológica. Nesse contexto, o estado de Santa Catarina tem recebido o trabalho de GTs
para a identificação de terras entre os Guarani (Mbyá e Nhandeva/Xiripá) sendo o caso mais
marcante aquele que envolve a comunidade de Morro dos Cavalos, Tekoá Yma (Antiga
Aldeia), atualmente em fase de homologação e desintrusão.
Os Mbyá-Guarani surgem como sujeitos coletivos de direitos no início dos anos 1990.
Sua territorialidade não reconhece as fronteiras nacionais inventadas sobre seu território
antepassado, o qual se desdobra, ainda hoje, desde o sul da Bolívia, Paraguai, norte-nordeste
da Argentina, Brasil (regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, principalmente) chegando ao
Uruguai. Dominado pelas grandes plantations, principalmente a monocultura da soja,
acossados por grandes projetos desenvolvimentistas, passaram a ocupar as porções mais
inóspitas de seu outrora vasto território: margens de estradas, fundos de campo etc. Passaram
alheios aos seus direitos até que iniciaram uma estratégia étnica de luta pelos mesmos.
Aproveitando a oportunidade, apresento algumas questões e apontamentos acerca de
pesquisa etnográfica sobre territorialidade e sociocosmologia que venho realizando entre os
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Mbyá-Guarani no litoral catarinense. A pesquisa está centrada na comunidade do Massiambu,
localizada no município de Palhoça, mas assim como as redes sociais Mbyá-Guarani ela
acaba por estender-se por outras comunidades a ela ligadas por vínculos de parentesco e
trocas variadas.
Assim sendo, este artigo busca realizar uma reflexão antropológica sobre os processos
de identificação e delimitação de Terras Indígenas no Brasil em sua historicidade, que passa
pelo entendimento da legislação vigente no país, na discussão acerca da diferença entre terra e
território em sua acepção jurídica e antropológica, adentrando em aspectos específicos da
territorialidade Mbyá-Guarani no estado de Santa Catarina.
Focando nas múltiplas relações estabelecidas pelos Mbyá-Guarani no espaço, num
segundo momento desse texto, busca-se mostrar etnograficamente como se dá a apropriação
territorial pelo grupo de modo construtivo, ou seja, tratando a territorialidade como ponto de
chegada e não de partida. Nisso vou enfatizar as relações com o ambiente, que estão em
estágio mais avançado na pesquisa que venho desenvolvendo até o momento e que prestam a
expressar a perspectiva levada a cabo nesse texto e em pesquisa mais ampla em
desenvolvimento.
Por fim, se observa as incongruências entre a lógica formal e distante da legislação
brasileira e o holismo cosmo-lógico Mbyá-Guarani que caracteriza o seu investimento
simbólico no território. Como apreender tal complexidade e transpô-la para os rígidos
mecanismos formais previstos por lei?
1. Legislação indigenista em sua historicidade
O grande marco ao reconhecimento dos direitos diferenciados aos povos indígenas no
Brasil foi a Constituição Federal de 1988. Antes dela, os textos constitucionais previam
primordialmente a integração da população indígena à comunhão nacional (viés
integracionista). A tônica adotada, de cunho culturalista, sustentava o discurso de que os
índios estavam em vias de extinção, que foram importantes no passado em que viviam nus na
floresta, de modo que seu território por excelência seria a Amazônia. Essa ideia talvez
justifique a grande porção de áreas demarcadas na região amazônica em contraste com outras
regiões do país.
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É interessante ressaltar que a atuação ativa do Movimento Indígena foi decisiva na
composição final do texto Constitucional de 1988 garantindo às comunidades indígenas
direitos diferenciados bem como o direito exclusivo ao usufruto dos recursos naturais no
interior das Terras Indígenas. A pressão exercida pelas lideranças indígenas no Congresso
Nacional foi essencial para garantir-lhes – ao menos em texto – o direito a viver de acordo
com suas especificidades culturais em diferentes instâncias: além da legislação relativa às
Terras Indígenas, saúde e educação diferenciados são alguns exemplos das conquistas
indígenas (Cardoso de Oliveira, 1988).
Do ponto de vista das demarcações de terra indígena, a iniciativa do órgão indigenista
em formalizar – por meio de portaria normativa – as práticas administrativas relativas aos
procedimentos de regularização fundiária de terras indígenas, data de meados dos anos 1970,
com a Portaria nº 255/N, valendo-se da categoria, ainda vigente, de identificação (Souza Lima
e Barretto Filho, 2005: 10). No entanto, é também com a Constituição Federal de 1988 que os
direitos territoriais indígenas são assegurados, considerando a diversidade cultural e, com
isso, as diferentes formas de apropriação do território. A Constituição previa inclusive que
cinco anos após sua promulgação todas as áreas indígenas estariam demarcadas, o que não
ocorreu. Mais do que direitos sobre terras, pois eles já existiam em legislações anteriores, o
que a CF88 estabelece como grande avanço é no sentido de reconhecimento da diversidade, o
direito à diferença no seio de um Estado Nacional. O desfio posto é no sentido de viver-se
entre diferentes!
O Artigo 231 da CF 88 reconhece aos povos indígenas sua organização, costumes,
língua, crenças e tradições, além dos direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas,
sendo de responsabilidade da União, via órgão indigenista oficial sua demarcação e proteção.
Pelo conceito jurídico terra tradicionalmente ocupada o texto constitucional estabelece que
são aquelas: habitadas em caráter permanente; utilizadas para atividades produtivas;
necessárias à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar e; aquelas
necessárias a sua reprodução física e cultural. Esses são os quesitos imprescindíveis para a
comprovação da ocupação tradicional de terra por parte de comunidades indígenas no país.
Posteriormente, o Decreto 1775 de 1996 estabelece os procedimentos administrativos
para demarcação de Terras Indígenas, processo que passa pela orientação e responsabilidade
da Funai. É por meio do Decreto 1775/96 que é instituído o estudo técnico antropológico
como peça técnica para fundamentar as terras tradicionalmente ocupadas através de Relatório
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Técnico de Identificação e Delimitação (RCID). Com base no Decreto 1775/96, a Portaria 14
do Ministério da Justiça de 1996 estabelece as regras para a elaboração do Relatório Técnico
de Identificação e Delimitação de terras Indígenas. Ali estão estabelecidos os elementos que
devem constar no Relatório, que é dividido em sete partes. Um guia para sua elaboração
encontra-se no Manual do Antropólogo, que se trata de uma publicação da Funai que visa
orientar os antropólogos na elaboração de relatórios de identificação e delimitação de terras
indígenas.
O texto da Portaria 14 estabelece as sete partes em que se organiza o RCID contendo
diferentes quesitos, que devem ser contemplados pelo relatório, a saber: 1) Dados gerais que
caracterizam a população estudada; 2) Habitação permanente; 3) Atividades Produtivas; 4)
Meio Ambiente; 5) Reprodução Física e Cultural; 6) Levantamento Fundiário (onde se trata
da ocupação por não-indígenas); e 7) Conclusão e delimitação, contendo a proposta de limites
da área demarcada.
2. Panorama acerca das demarcações de Terra Indígena no Brasil
A partir das reflexões e informações apresentadas pelo professor Paulo Santilli (2014)
em palestra realizada no dia 10 de março, em programação comemorativa aos 40 anos do
PPGAS/UFRGS, realizada nessa Universidade. Relacionando-as a outros referenciais,
pretendo aqui traçar um panorama acerca da questão fundiária no Brasil no que tange as
Terras Indígenas e seus processos demarcatórios.
É interessante perceber, de início, a relevância para o processo de demarcação de
terras indígenas no Brasil, no período pós-Constituição, das articulações decorrentes da ECO
92, no momento em que o tema da preservação ambiental começava a ganhar outra dimensão
na agenda mundial, a participação de países mais desenvolvidos gerou a criação de um fundo
para apoio e preservação das florestas tropicais. Um braço desse projeto visava o apoio a
demarcação de terras indígenas, ou seja, a despeito dos avanços constitucionais sobre a
demarcação das terras indígenas, grande parte dos avanços na questão de terras se deu com
recursos internacionais deste fundo (Santilli, 2014).
Nesse contexto, emerge o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras
Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL) que consiste na vertente indígena do Programa Piloto
para a Proteção da Floresta Tropical Brasileira (PPG7). Esse projeto impulsionou os
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processos de demarcação de terras na Amazônia. Aliado a isso, os resultados em cifras e em
extensão territorial do reconhecimento de Terras Indígenas na Amazônia é muito mais
expressivo, numa região em que a densidade demográfica é baixa, sendo menos oneroso
politicamente.
Diante disso, Santilli (2014) apresentou alguns dados interessantes a respeito das
Terras Indígenas no Brasil. Atualmente, são 938 TIs no país, sendo que destas 420 estão
regularizadas, o que corresponde a 44,77%. Sua grande maioria está na Amazônia, de modo
que mais de 98% do território (em hectares) destinados aos indígenas no Brasil está na
Amazônia, contra 1,7% em outras regiões do país. Por outro lado, em contraste, na Amazônia
habita apenas 44% da população indígena do Brasil. Logo, a maioria da população indígena
habita nas regiões em que temos um território percentualmente exíguo demarcado. Por fim,
em 25 anos de CF88, tem-se 13% do território nacional de Terras Indígenas.
Nos últimos anos, a partir do segundo mandato do Presidente Lula, houve um
redirecionamento nos investimentos para demarcação de terras e se efetivaram
aproximadamente 40 GTs divididos nas outras regiões (não-amazônicas) do país. Na óptica
do Governo brasileiro torna-se muito oneroso realizar demarcações de terra nas regiões Sul e
Sudeste, por exemplo, por serem regiões mais populosas, mais industrializadas, portanto, mais
assediadas pelo capital e pelos grandes empreendimentos em que os conflitos de interesses
estão mais acirrados. Além de ser mais custoso financeiramente, mais difícil politicamente,
áreas demarcadas nessas regiões rendem menos (estatisticamente) do ponto de vista político
para o Governo Federal, descortinando-se a dimensão política que envolve a política de
demarcação de terras no Brasil.
O estado de Santa Catarina, nesse contexto, vem recebendo nos últimos anos os GTs
da Funai com vistas ao reconhecimento de terras Guarani (Mbyá e Nhandeva/Xiripá). A
questão acerca da territorialidade Guarani será discutida a seguir nesse texto.
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Até o momento apresentou-se elementos formais relativos às demarcações de terras
indígenas, tratando-as enquanto conceito jurídico. A proposta agora é dimensionar tais
informações numa reflexão antropológica que objetiva apontar diferenças entre o conceito
jurídico de Terra Indígena e a perspectiva antropológica acerca de territórios indígenas. Nessa
caminhada, a reflexão de Dominique Gallois (2005) será nosso guia.
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3. Terra ou Território?
Inicialmente, parte-se da tensão que surge na interseção entre a lógica burocrática do
Estado e as compreensões territoriais praticadas por diferentes grupos indígenas, entendendo a
territorialidade como uma abordagem que “não só permite recuperar e valorizar a história de
ocupação de uma terra por um grupo indígena, como também propicia uma melhor
compreensão dos elementos culturais em jogo nas experiências de ocupação e gestão
territorial indígenas (Gallois, 2005, 37). Nesse sentido, a autora destaca uma problemática na
compreensão da dimensão cultural que envolve a territorialidade indígena criticando a
imagem romântica de índios que se perpetua a respeito das tradições indígenas e que
interferem de modo negativo em sua luta por direitos, sob a alegação de que não são mais
índios.
A autora aponta para possíveis intersecções entre o conceito jurídico e o antropológico
aqui em debate. Tendo em vista os preceitos constitucionais já expostos aqui e que definem os
critérios para a elaboração do RCID e, consequentemente, da ocupação tradicional de terras
indígenas, seguindo os termos da Portaria MJ 14/96, os antropólogos “procuram evidenciar a
existência de diferentes lógicas espaciais que, em cada caso específico, promovem
articulações entre [as] distintas dimensões de uma Terra Indígena” (Gallois, 2005, 37)
prescritas no Artigo 231 da CF88. Além disso, busca-se nas categorias êmicas locais a
respeito de território, posse etc, elementos para fundamentar uma aproximação junto aos
conceitos ocidentais.
Segundo Gallois, costuma-se concluir pela inexistência de
correspondências semânticas nesse sentido, ou seja, a dificuldade de enquadrar as concepções
indígenas de apropriação territorial àquelas presentes na legislação vigente que garante às
comunidades indígenas seus direitos.
É interessante perceber como os processos de demarcação de terras, o contato
interétnico e a mobilização por direitos, faz surgir, dinamicamente entre as populações
indígenas, novas categorias de entendimento sobre si e sobre seu território. Pacheco de
Oliveira (1999 apud Arruti 1999) aponta que a situação interétnica está englobada pelo
quadro jurídico de um Estado-Nação. Assim, tanto a identificação étnica quanto a busca por
direitos deve levar em conta além de representações culturais e ideologias geradas pelo
contraste, o quadro institucional que as envolve, isto é, o ordenamento jurídico, policial, de
recursos, etc que passa a regular o contexto das interações. No caso dos territórios ocupados
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pelos indígenas, historicamente estão sendo afetados por todos esses elementos, de modo que
as áreas atuais não necessariamente correspondem com um território, por assim dizer,
tradicional.
Gallois salienta que o território não é apenas anterior à terra e terra não é somente uma
parte de um território. De acordo com a autora,
A diferença entre “terra” e “território” remete a distintas perspectivas e atores
envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra
Indígena. A noção de “Terra Indígena” diz respeito ao processo políticojurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto a de território remete a
construção e a vivência, culturalmente variável, da relação entre uma
sociedade específica e sua base territorial (Gallois, 2005, 39)
A noção de território remete às especificidades culturais e de contexto aos quais estão
inseridos os grupos humanos em questão. Abordar as concepções nativas de território é
essencial pra se entender uma rede mais ampla de relações que sobre ele (e junto a ele) se
estabelecem: relações de parentesco e aliança, por exemplo, que se desdobram para além do
confinamento territorial prescrito pelos limites de uma Terra Indígena, mas que envolvem
diferentes comunidades. Compreender as lógicas espaciais diferenciadas, segundo a autora,
nos permite falar de território indígena fora dos parâmetros da etnicidade ou do Estado-nação.
Finalmente, concluiremos essa seção com a premissa teórico-metodológica básica da
autora e que orienta a perspectiva a ser adotada a seguir, em que se tomará por foco a
territorialidade Mbyá-Guarani em Santa Catarina. Para Gallois, a premissa básica é que
“nenhuma sociedade existe sem imprimir ao espaço que ocupa uma lógica territorial”, a qual
passa pela apropriação cultural do território. Isso se dá num contexto, em que limites fixos são
estabelecidos ao território (o que antes não existia), no entanto, mesmo em sua dinamicidade,
cada comunidade manifesta uma forma de investimento simbólico sobre o território, e é
exatamente isso que se deve buscar.
4. Os Mbyá-Guarani e sua territorialidade em Santa Catarina
Dedicaremo-nos agora a explorar a forma como os Mbyá-Guarani experienciam
culturalmente seu território, focando nas múltiplas relações que estabelecem sobre ele, a fim
de compreender, a partir de categorias nativas, seu investimento simbólico sobre o mesmo.
Para tanto, algumas questões terão um tratamento especial devido a sua importância para esse
estudo: a categoria tekoá, tradicionalmente traduzia pela etnologia como aldeia, a ideia de
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Mbyá rekoa meme (“o mesmo jeito Mbyá de viver”), Yvy Rupá (“nosso mundo”). Vou determe mais profundamente nas relações com o ambiente “natural”, seus seres, suas propriedades
agentivas para dar conta da complexidade que envolve a relação de um grupo humano com o
território que habita.
Primeiramente, é importante situar que os Guarani são um grupo indígena classificado
etnolingüisticamente enquanto parte do Tronco Tupi, da família Tupi-Guarani, falante de
língua Guarani a qual subdivide-se nas parcialidades – diferentes lingüística e culturalmente –
Mbyá, Kaiowá e Xiripá. São povos amazônicos que se dispersaram pelos rios no interior do
continente e alocaram-se nas matas da região do Cone Sul atuais territórios de Bolívia,
Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil. Nesse processo, devido a suas características
antropofágicas e o contato com outros coletivos autóctones esses grupos foram se
diversificando e diferenciando.
A ocupação no Brasil se deu através do rio Uruguai, noroeste do atual estado do Rio
Grande do Sul (isso há aproximadamente 2.000 anos). Dali, rumaram para o leste, chegando
ao litoral atlântico de onde empreenderam marcha, pelo litoral, para o Norte (ao menos até
Ubatuba, norte do estado de São Paulo, onde teriam se encontrado com grupos Tupi que,
também oriundos da Amazônia, dispersaram-se pelo litoral) (Proença Brochado, 1989).
É interessante perceber que as atuais coletividades Mbyá-Guarani ocupam áreas
correspondentes àquelas por onde circulavam os Guarani históricos e pré-colombianos (áreas
de floresta tropical e temperadas) e que, além disso, conservam em sua cosmoecologia
categorias para denominar as diferentes regiões habitadas. Melia aponta que os locais de
ocupação Guarani correspondem a um tipo característico de ambiente e que com raras
exceções (devido a crises de diferentes naturezas) seu território não foge de tais características
paisagísticas. Adiante trataremos mais detalhadamente sobre tais especificidades ambientais.
Com o avanço do processo de colonização a reprodução de seu modelo de
assentamento foi tornando-se cada vez mais crítica. A exigüidade espacial foi oferecendo
novos desafios à organização social Mbyá-Guarani, centrada na figura do chefe cercado por
sua família extensa, onde o grupo familiar é entendido como unidade de produção e consumo
autônoma no conjunto social mais amplo (Souza, 2002). Os rios ainda continuam sendo
referências de sua territorialidade, bem como as áreas de mata, apesar de cada vez mais
escassas. Não é à toa que as faixas de domínio a beira de estradas foram ocupadas pelos
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Mbyá-Guarani até mesmo como estratégia de subsistência a margem das ações institucionais
do Estado brasileiro.
Esse quadro sofreu modificações com a promulgação da Constituição Federal de 1988
a qual reconhece o Brasil como nação pluriétnica e multicultural e prescreve às populações
indígenas direitos diferenciados (educação, saúde etc.), bem como o direito às terras
tradicionalmente ocupadas. Aos poucos, nessa nova conjuntura, os Mbyá-Guarani saem da
invisibilidade e buscam o diálogo com setores governamentais na luta por seus direitos, sendo
o mais importante a demanda por terras, a fim de garantir as condições para sua reprodução
física e cultural.
A mobilidade é outro fator que caracteriza o mbyá rekó (modo de estar Mbyá). A
migração de pessoas ou núcleos familiares acontece tanto no interior da tekoá, quanto entre
grupos locais ligados por redes de alianças e parentesco, sem que se dê muita importância às
fronteiras nacionais:
tradicionalmente estos indígenas tienen una alta movilidad debido a
migraciones laborales, a conflictos internos, a formas de sociabilidad y al
simples placer de viajar, pero en los escenarios emergentes se exacerba y
limita la estabilidad de los asentamientos (Fogel 1998: 16).
A família extensa (grupo doméstico) consiste na unidade mínima da organização
social Mbyá-Guarani, que está articulada ao parentesco. Cada unidade geográfica onde reside
uma coletividade Mbyá-Guarani é denominada tekoá. Irma Ruiz (2008) descreve tekoá como
o complexo "aldea-chacra-monte" (aldeia-roça-mato), mas seu significado transcende a idéia
de aldeia apenas enquanto espaço físico, pois a noção de tekoá se refere a um grupo local
unido por relações de parentesco e relações de reciprocidade (mborayu) (Fogel 1998: 13).
Mura e , fazem a crítica à máxima clássica na etnologia guarani que apregoa que sem
“tekoá, não há tekó”, sugerindo, numa perspectiva processualista, que essa categoria surge
historicamente com o contato. Não entraremos mais detalhadamente nesse debate por ora,
mas quero me deter na reflexão de Pissolato acerca de tekoá, segundo a qual ela sugere que a
categoria tekoá está ligada a “realização de um modo de ser, de um costume, de um modo de
vida, o que envolve certamente uma dimensão (...) espácio-temporal, mas não se define
inicialmente por ela” (Pissolato, 2007: 119). Nesse estudo adoto a perspectiva da autora e
avanço no sentido de dimensioná-la para além da unidade da tekoá, mas transpondo-a a outras
escalas com as quais encaro a territorialidade Mbyá-Guarani. Nelas, busco as diferentes
relações que o grupo estabelece com o ambiente, com os seres da natureza, sobre-natureza etc,
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o que certamente contém uma dimensão espacial, mas que não as esgota. Logo, o complexo
da territorialidade, na perspectiva teórico-metodológica adotada aqui, é ponto de chegada –
construída pela etnografia, na relação com os Mbyá-Guarani em Santa Catarina –, e não ponto
de partida!
Os Mbyá-Guarani mantêm intensa relação com o ambiente natural de onde extraem
bens materiais e simbólicos necessários a sua reprodução cultural. A distribuição dos
elementos naturais nos espaços significativos aos Mbyá-Guarani remete ao tema da
territorialidade que entendida em sentido amplo é habitada não apenas pelos grupos MbyáGuarani, mas também por seres da natureza (animais, vegetais) e seres sobrenaturais (deuses,
demiurgos, espíritos). A relação que os Mbyá-Guarani estabelecem com esses “outros” são
fundamentais para sua compreensão de si mesmos, do cosmos e da vida social.
O xamanismo ocupa um lugar de destaque no contato com os seres da natureza e
sobre-natureza que habitam o mundo Mbyá-Guarani, no entanto, essa faculdade não é
exclusividade do xamã e em diferentes esferas da vida cotidiana, e não apenas ritual, a busca
pelas propriedades e agências destes outros seres se faz presente. O processo de incorporação
dos atributos oriundos desses seres obedece a uma economia simbólica da predação (Fausto,
2001) em que tais propriedades atuam socialmente, entre outras coisas, na formação e
transmutação dos corpos e das pessoas por meio de objetos (colares, pulseiras, cocares),
pinturas corporais etc., ou seja, pelo seu uso sobre o objeto a ser transformado, no caso, o
próprio corpo humano.
Assim, perpassa a discussão aqui proposta o tema clássico da Etnologia acerca de
natureza e cultura, tendo em vista que é da natureza (e sobrenatureza) que os Mbyá-Guarani
“predam” elementos outros a fim de (re)produzirem-se culturalmente. Os elementos naturais e
sobrenaturais estão distribuídos no espaço que desse modo configura uma compreensão de
mundo, uma sociocosmológica própria, conformando o mundo Guarani que se difere de
outras experiências humanas.
No que se refere à ocupação Mbyá-Guarani especificamente no litoral de Santa
Catarina, Litaiff e Darella em estudo preliminar realizado em 2000 por ocasião da
implantação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro traça um panorama acerca da presença
Guarani na região citando diferentes fontes em diferentes momentos históricos, desde os
relatos de viajantes como Alvar Nuñes Cabeza de Vaca no século XVI e seus contatos com
indígenas Carijó do porto dos Patos (foz do rio Massiambu), até estudos antropológicos
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recentes de finais da década de 1990. No entanto, a autora enfatiza que a presença
contemporânea do grupo na região, no que se tem registro em documentos, estudos ou
propriamente contato pessoal com membros da comunidade, data de início dos anos 1970,
tendo como lócus privilegiado a atual Terra Indígena Morro dos Cavalos e arredores (Litaiff e
Darella, 2000).
Minha pesquisa etnográfica aponta para a presença Guarani na região no final dos
anos 1960 com a chegada de Seu Julio Moreira e família ao Morro dos Cavalos. Suas filhas
que atualmente residem no Cambirela e arredores (Praia de Fora) contam que estavam ali
antes das obras de abertura do atual traçado da BR-101. Que viram as máquinas chegando e
que a antiga estrada passava por dentro da atual localidade de Praia de Fora no município de
Palhoça. Além de ocuparem o Morro dos Cavalos, à época também residiram às margens do
rio Massiambu, próximo da área ocupada pela atual comunidade do Massiambu que utiliza o
local do rio para pesca, caça, coleta e banhos.
Segundo Litaiff e Darella (2000), a região é referência de ocupação no litoral para os
Guarani oriundos do Sul e do oeste catarinense, no entanto seus fluxos itinerantes se dão
também em outras direções. Tomando o caso do atual cacique do Massiambu, observam-se as
diferentes rotas traçadas pelo caminhar Mbyá: ele é oriundo do estado do Espírito Santo,
casou na região; seu sogro veio do oeste catarinense com a família, da Terra Indígena de
Limeira, próxima a cidade de Chapecó.
No que respeita as especificidades do agenciamento territorial entre os Mbyá-Guarani
na Grande Florianópolis tomo por base aquela comunidade com a qual tenho maior inserção
etnográfica, cujos membros me acolheram tornando-se meus principais interlocutores e que
acaba por interligar uma rede social de trocas intensas: a comunidade do Massiambu (tekoá
Pirá Rupá). Minha inserção na comunidade se deu enquanto coordenador do Grupo Técnico
(GT) de identificação e delimitação das Terras Indígenas de Massiambu e Cambirela, ambas
situadas no município de palhoça/SC no ano de 2011. Desde então venho realizando pesquisa
etnográfica acerca da sociocosmologia e territorialidade Mbyá-Guarani na região.
A Terra Indígena do Massiambu encontra-se atualmente em processo de identificação
e delimitação junto à Coordenadoria Geral de Identificação e Delimitação CGID/FUNAI, mas
seu processo de apropriação pelos Mbyá data de meados dos anos 1990. A reivindicação
Mbyá-Guarani ganha visibilidade com a duplicação da BR-282, onde habitava, na localidade
de Terra Fraca, a família de Augusto da Silva então cacique. Diante das precárias condições
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em que estava vivendo a comunidade Mbyá-Guarani, que sem alternativas, habitava as
margens da BR-282 no município de Palhoça, houve o empenho de participantes da
comunidade, bem como de representantes de instituições apoiadoras para solucionar o
problema deslocando os Mbyá-Guarani para outra área. Enfim, em janeiro de 1994, inicia-se a
transferência do grupo de Terra Fraca para o Massiambu.
Posteriormente, seu Augusto da Silva mudou-se para a então adquirida área
denominada Cachoeira dos Inácios, no município de Imaruí, a tekoá Marangatu e após
sucessivas trocas de liderança, o atual cacique Marco Antonio Oliveira assumiu o posto. No
entanto, as relações com a tekoá Marangatu continuaram estreitas, principalmente por conta
de serviços xamânicos prestados pela esposa do cacique, conceituada kunhã-karaí da região.
Mas não só isso, seguidamente eventos sociais como festas, bailes e partidas de futebol
colocam em contato membros dessas duas aldeias.
Na aldeia de M’Biguaçu, onde vive o karaí Alcindo e aldeia do Amâncio onde está o
antigo karaí do Massiambu, Graciliano, também são referências quando o assunto é o
tratamento xamânico. O sogro do cacique Marco trabalhou durante anos como professor na
escola da Tekoá Yma, Morro dos Cavalos, localizada a aproximadamente 2 km do
Massiambu. Essas duas aldeias também vivem fluxos constantes de seus membros.
Compartilham áreas comuns de coleta de matéria-prima para o artesanato, lenha, caça e pesca
nos rios Massiambu e Massiambu Pequeno.
Essas Terras Indígenas encontram-se sobrepostas ou em áreas limítrofes ao Parque
Estadual da Serra do Tabuleiro o que se por um lado implica questões legais e o debate que se
prolonga acerca da presença indígena em áreas de proteção, por outro lado, se trata de uma
região muito rica e diversa do ponto de vista de recursos ambientais necessários a produção
cultural dos Mbyá-Guarani. Sua localização privilegiada também é apontada como um fator
importante para o Massiambu manter o poder agregador no que tange os deslocamentos de
membros do grupo, considerada por muitos a mãe de todas as aldeias Mbyá-Guarani na
região.
Categorias espaciais
Minha etnografia indica que do ponto de vista de sua territorialidade os Mbyá-Guarani
reconhecem o seu território/mundo pela categoria Yvy Rupá, que compreende o vasto
território cultural guarani. A região do Paraguai, o centro da terra, é denominada Yvy Mbité; a
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mesopotâmia Uruguai-Paraná, na província de Misiones, Argentina, é chamada de Para Miri,
enquanto que as grandes águas sagradas do litoral Atlântico brasileiro são denominadas Para
Guaçu. Nessa perspectiva, as comunidades do litoral catarinense, na grande Florianópolis,
encontram-se em Para Guaçu. No entanto, há outra categoria nativa muito interessante e que
dá conta de uma província no interior desse território, e que foi dimensionada no trabalho da
antropóloga Ana Freitas. Segundo a autora,
Mbya Rekoa Meme traduz a percepção de que os tekoa (aldeias) associados à
Serra do Tabuleiro integram uma mesma província territorial: possuem
vínculos de parentesco constantemente atualizados em novas alianças
matrimoniais; estabelecem fluxos ambientais intensos traduzidos na troca de
sementes, mudas, pequenos animais; possuem vínculos intensos em termos de
articulação e organização sócio-política e sobretudo manejam espaços comuns
e similares em termos ambientais, o que confere uma dimensão de base
territorial a um conjunto de aldeias.
Nas palavras de seu interlocutor, na época cacique da TI Morro dos Cavalos,
(...) desde Tekoa Marangatu [T.I. Cachoeira dos Inácios] até prá cima do Yvy
Djú Mirim [C.I. de Amâncio],pegando Massiambu, aqui Morro dos Cavalos,
Cambirela, tudo uma coisa só. Um mesmo jeito Mbya, um Mbya Rekoa
Meme. (FREITAS, 2006: 12)
Percebe-se entre os Mbyá-Guarani no litoral de Santa Catarina, que há uma lógica de
apropriação territorial em diferentes escalas. A mobilidade que caracteriza sua organização
social poderia dar a entender exatamente o oposto, que numa espécie de nomadismo não
reconhecessem ou tivessem tão claro o senso de enraizamento territorial. A questão é que suas
redes são extralocais transcendem os limites da aldeia, da região, dos estados brasileiros e
inclusive das fronteiras nacionais com os países vizinhos do MERCOSUL.
A exemplo do que citei anteriormente em relação a categoria tekoá no sentido a ela
atribuído por Pissolato (2007), a expressão Mbyá rekoa meme, que pode ser traduzida como o
mesmo jeito Mbyá de viver, não corresponde a uma categoria espacial e sim diz respeito a
uma ampla rede de relações compartilhadas entre grupos familiares distribuídos em diferentes
comunidades. Todavia, mapeando essas relações, percebe-se que elas conformam o que
poderíamos denominar espacialmente uma província territorial. Afinal, pois, ela se realiza
num determinado espaço, conserva uma dimensão espacial. Dizendo isso, não quero atribuir a
essa dimensão espacial uma fixidez, sabendo que a dinâmica das relações Mbyá-Guarani e
seus fluxos, estarão a todo o momento ampliando ou restringindo suas fronteiras movediças.
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Essa reflexão aponta para a forma como encaro a territorialidade Mbyá-Guarani
levando em conta o que Gallois conceitua como o “investimento simbólico sobre o território”:
a partir do mapeamento das múltiplas relações estabelecidas no território, indicar sua
dimensão espacial, ou seja, a territorialidade do grupo é estabelecida de modo construtivo e
não arbitrário, não sendo fixada de modo essencializado.
O ambiente natural e seus agentes
Outro espectro que pretendo debater no que remete às múltiplas relações
experienciadas pelos Mbyá-Guarani são àquelas estabelecidas com o ambiente, a natureza e
os seus seres. Essa é a temática que tenho até o momento mais bem desenvolvida em minha
etnografia e por isso vou deter-me nela mais detalhadamente, até porque as informações
etnográficas que lhes dizem respeito funcionam com um bom exemplo da perspectiva aqui a
adotada. Assim sendo, torna-se importante a concepção de territorialidade para os MbyáGuarani na relação com sua sociocosmologia para o entendimento do que constitui o mundo
habitado pelo Mbyá-Guarani.
Pode-se estabelecer que o enraizamento territorial Mbyá passa pela relação com seres
da natureza e sobrenatureza. Não é debalde que as áreas ocupadas ou significativas para os
Mbyá devem ter cobertura de mata, estar próximas a rios e conter certos elementos naturais
que consideram imprescindíveis para sua produção cultural. Tais relações se estendem ao
“território celeste” habitado por demiurgos e por outras entidades que detém agência sobre os
humanos. Na mediação de relações entre pessoas e os sujeitos da natureza e sobrenatureza
mobilizo o conceito de predação, mais bem, a economia simbólica da predação no termos de
Fausto (2001).
Tomo o debate entre natureza e cultura para entender os fundamentos do holismo
característico dos Mbyá-Guarani que, em verdade, não operam tal dicotomia e mantém
relações sociais com o ambiente e seus seres. Essa compreensão é fundamental para se
entender as formas simbólicas as quais os elementos naturais atuam socialmente.
Descola (2005) apresenta uma argumentação problematizando a separação entre os
conceitos cultura e natureza propondo uma nova forma de lidar com o tema, principalmente
no que remete as ontologias. As disciplinas científicas dividem-se em ciências da natureza e
ciências do homem (desde meados do século XIX) e tratam de efetivar no campo do
conhecimento a separação que caracteriza a percepção ocidental da questão.
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O conceito de meio ambiente aponta para uma mudança de cosmologia, pois em
substituição ao de natureza, passa a compreender o espaço natural enquanto ação e
simbolismo humano. Descola oferece alguns exemplos de experiências científicas que
supõem uma ‘culturalização animal’ e contribui para enfraquecer a fronteira que separa
natureza e cultura.
No campo da etnologia duas correntes se destacam: as que submetem às condições
ambientais as adaptações e transformações culturais e as que buscam os sentidos dados ao
mundo natural pelo simbolismo cultural. A segunda abordagem vale-se da oposição em
questão enquanto método analítico e via os estudos totêmicos busca a explicação acerca dos
ritos, mitologias, cosmologias, enfim. Descola chama atenção para o fato de que muitas
sociedades tradicionais se relacionam com elementos naturais (animais, plantas, meteoros)
atribuindo-lhes os mesmos caracteres humanos, colocando em xeque a universalidade da
ferramenta heurística utilizada nos estudos simbólicos. O autor sugere que a etnologia deve
sim se debruçar sobre as diferentes formas humanas de relação e significação dos elementos
que compõem o que nós, ocidentais, classificamos natureza.
Com esse intuito estabelece o mecanismo de aproximação e diferenciação entre eu e
os outros, que podem ser seres da natureza, partindo das idéias de interioridade e
materialidade. Assim posso supor que o outro compartilha comigo uma interioridade ou uma
materialidade expressa no corpo, assim como posso compreendê-lo diferente (ou semelhante
em relação a um termo e diferente frente o outro). No que remete a minha etnografia junto aos
Mbyá-Guarani no litoral catarinense, trago o relato de uma anciã kunhã-karaí (xamã) que vive
na serra do e que discorre sobre o tema. Segundo ela,
O que é o vento? A gente não enxerga, só Nhanderu... está perto da gente e a gente
não enxerga (...) E os peixes? O que a gente faz com os peixinhos? Os peixes a gente
não deve matar, Nhanderu já botou pra preservar a água, pra tomar conta da água
todos os bichos da água... Tem dono, todos têm dono! Tudo quanto é arvore aí tem
dono e a gente não sabe. Essa aqui fala... Essas árvores falam, elas conversam... É vida
igual a nós. Tudo isso, por que que se mantém: a água, a natureza? Porque eles são
vivos, eles conversam.
Pesquisador: É yvyrá`já (dono das árvores)?
Isso, é yvyrá` já. Se tu pega um facão que nem aquele ali e dá um talho numa árvore
ela sente dor igualzinho a gente
Nas palavras da kunhã-karaí se observa a correlação da vida humana com a vida das
árvores, a qual se pode estender aos seres da floresta como um todo. O elemento humanizador
na cosmologia Guarani – a faculdade da fala – está presente nos seres da floresta, que além de
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conversarem, sentem dor igual aos humanos, ou seja, também são humanos, dotados de
racionalidade, no entanto, convivem noutra coletividade e se apresentam com outra roupa, nos
termos de Viveiros de Castro (2002). É interessante perceber essa extensão ao seres do reino
vegetal, pois o perspectivismo ameríndio tal qual apresentado pelo autor enfatiza os animais,
na relação predador-presa.
Outro tema que está presente na literatura ameríndia para os povos tupi-guarani é o
fato dos seres da floresta possuir um dono, ou senhor, que no caso Mbyá-Guarani é
denominado já. No excerto yvyrá`já trata-se do dono das árvores, ou espírito das árvores. A
kunhã-karai ressalta que não se deve pegar os peixes, entretanto observamos entre os Guarani
o grande apreço pelos pescados, de modo que ferir preceitos cosmológicos estabelecidos pelos
demiurgos, ou donos dos seres da floresta implica em riscos. Nesse sentido, o que observamos
é uma relação de predação que resulta na morte de um ser para ser consumido por outro. Isso
explica porque muitas atividades de caça iniciam na opy, sob consulta ao xamã Mbyá que
sonha com a caça como uma espécie de autorização de seus donos para que seja abatida.
O Cheramói (ancião, “nosso avô”) Graciliano, antigo morador da comunidade de
Massiambu, ao referir-se à caça, também ressalta o caráter de humanidade dos elementos
entendidos como naturais. De acordo com suas palavras, “quando caçava fazia armadilha,
usava outras coisas, caçava pra seu uso e não pra vender, em busca de alimentos. Nós,
respeitamos a natureza, e a natureza nos respeita. A gente pega as coisas da natureza, e pede
licença pra natureza”.
O que se propõe, nessa perspectiva, é uma mudança de mirada na interpretação de
objetos e agências de alteridades da natureza e sobrenatureza, pois elas deixam de ser
entendidas pela etnologia como representações de seres mitocosmológicos ou espíritos da
floresta para serem compreendidas, aproximando-se da perspectiva nativa, como a
presentificação de tais seres e seus atributos.
Por fim, em campo ouvi relatos acerca de duas categorias muito interessantes para se
pensar na relação dos Mbyá com elementos do ambiente, considerando suas propriedades
agentivas. São elas kerembá e jepotá. Acerca da primeira nada li na etnologia Mbyá-Guarani
clássica ou contemporânea. A segunda é discutida em algumas etnografias recentes (Prates,
2009, Pissolato, 2007 para citar alguns).
O cacique da comunidade do Massiambu relatou sobre os riscos que correm os Mbyá
de metamorfose animal. Esse risco é expresso com a noção de jepotá. Segundo ele,
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O jepotá é uma história real, a história do jepotá é muito forte. O jepotá é assim, pois
temos todo o costume de se preservar tanto é que a cultura Guarani é muito religiosa.
Temos uma regra de como tem que viver, que começa desde o nascer.
A mulher quando está grávida desde o primeiro mês já tem que se cuidar. Ela e o
marido se cuidam do primeiro ao terceiro mês que é a época em que a criança começa
a fazer movimento. Na historia fala que neste período o pai e a mãe se fazem algo de
errado, ou besteiras, esse é o tempo em que a criança imita a mãe. Se a mãe não se
cuida pode nascer uma criança deformada, ou... sei lá... acontece um monte de coisa.
Por isso sempre ficam próximos aos Cheramói pra dar apoio pra eles se cuidarem, por
que senão acabam sendo possuídos, porque o jepotá, geralmente se o pai não se cuidar
quando tiver o filho ele é atraído pelo espírito da floresta, ou por um espírito mal.
Então eles acabam se transformando. Só que o jepotá é assim: se acaba se
transformando, ele morre primeiro, ele morre como ser humano, depois ele é enterrado
e depois sofre uma mutação.
O jepotá representa o risco de perda da condição humana e a metamorfose em animal.
No caso relatado pelo cacique do Massiambu, ele enfatiza uma série de prescrições e cuidados
que os pais devem ter nos três primeiros meses da criança para que não atraiam o espírito do
jepotá. O risco que incide diz respeito à passagem de uma condição humana, para uma
condição inferior. Se por um lado, os Mbyá-Guarani buscam em vida retornar sua condição
pretérita de divindades (ou seja, ascender a uma condição superior sem passar pela prova da
morte), por outro lado, correm esse risco. Aqui estão colocadas, grosso modo, as dimensões
em que se subdivide o cosmos: natureza, sociedade e sobrenatureza.
Outra noção que destaco é o kerembá que expressa de forma contundente a forma
como as propriedades dos seres do ambiente (mata) podem transformar corpos humanos.
Nesse caso, exacerbando-o ao estatuto de uma espécie de super-herói. O trecho a seguir foi
coletado no Massiambu, em entrevista com o cacique da comunidade.
Naquele tempo existia em algumas aldeias um guardião chamado de kerembá. Esse
guardião era preparado desde criança. Primeiro o mais velho olha para o casal, se o pai
é bom e a mãe é boa... quando nasce o filho deles o cheramói escolhe junto com eles
e ensina a criança dando remédios pra ele. Remédio de macaco, de óleo de taturana,
cobra também, porque ele fica liso e ninguém consegue pegá-lo. E das árvores
também... Ele pega artimanha de tudo o que acontece na natureza... pra visão também.
Esse kerembá não é ser humano comum, ele fica forte porque ele pegou toda a
artimanha de cada ser da natureza. Ele tem agilidade, rapidez e muita visão, como uma
águia que enxerga de longe.
O interessante de perceber nesses relatos que demarcam de modo sociocosmológico a
relação Mbyá-Guarani com seres da natureza é que esses animais – que oferecem riscos ou
capacidades positivas por meio de propriedades agentivas sobre seus corpos – ocorrem na
região de mata do Parque da Serra do Tabuleiro, ali bem próximo da tekoá, no vale do rio
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Massiambu. Não são poucos os relatos de meus interlocutores sobre o encontro com o tiwi
(onça pintada) em expedições de caça, pesca ou coleta de matéria-prima. Isso tudo, expande e
indica aspectos da territorialidade Mbyá na região em sua complexidade.
5. Transitando entre fronteiras: a título de conclusão
O que se buscou nesse artigo foi refletir acerca da incongruência que define os
processos de demarcação de terras em confronto com a complexidade da territorialidade
indígena de um modo geral e Mbyá-Guarani no litoral catarinense, de modo mais específico.
Para isso, aproveitei para dimensionar aspectos etnográficos e teóricos que venho
desenvolvendo em minha pesquisa antropológica de doutoramento no PPGAS/UFRGS por
meio de informações específicas acerca daquilo que tenho como foco, mas que estou longe de
esgotar nesse momento: as múltiplas relações que os Mbyá tecem no espaço como meio de
estudar e delinear sua territorialidade. Nisso pesam as relações de parentesco e aliança (que
aqui não abordei), uma circulação intensa entre as comunidades que compõem o Mbyá rekoa
meme e além (incluindo outros estados da federação, e outros Estados nacionais do Conesul),
a relação com as cidades vizinhas como Palhoça e Florianópolis, lócus privilegiados de
comercialização do artesanato etc.
Uma crítica interessante sobre a rigidez das normas do Estado frente à fluidez espacial
perpetradas pelos grupos indígenas é feita por Barreto Filho tendo como foco específico os
dispositivos legais que instituem os instrumentos e procedimentos necessários à demarcação
de Terras Indígenas no Brasil (Souza Lima e Barreto Filho, 2005). A criatividade do
antropólogo no manuseio de tais instrumentos e sua aplicação é fundamental para conseguir
traduzir de forma satisfatória o complexo das territorialidades indígenas, ainda mais em
diálogo com outro campo do conhecimento, o jurídico.
A reflexão antropológica baseada em contundentes etnografias acerca da
territorialidade é o caminho para trazer à luz novas perspectivas no trato formal do tema e um
afrouxamento das fronteiras que tendem a separar as perspectivas cosmoecológicas indígenas
em confronto com a burocracia do Estado. O diálogo tolerante com as comunidades, o
respeito à diferença, a escuta atenta às demandas, metodologias e temporalidades de trabalho
é o caminho, e a antropologia tem um papel fundamental nesse sentido, pelo menos no modo
como compreendo a atuação de nossa disciplina.
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aspectos da sociocosmologia e territorialidade Mbyá