Milton Rezende
Milton Rezende nasceu em Ervália (MG), em setembro de 1962. Escreve em prosa
e poesia. Obras publicadas: “O Acaso das Manhãs” (Edicon, 1986), “Areia (À
Fragmentação da Pedra)” (Scortecci, 1989), “De São Sebastião dos Aflitos a Ervália
– Uma Introdução” (Templo, 2006), “Uma Escada que Deságua no Silêncio”
(Multifoco, 2009), “A Sentinela em Fuga e Outras Ausências” (Multifoco, 2011),
“Inventário de Sombras” (Multifoco, 2012), “Textos e Ensaios” (Multifoco, 2012),
“O Jardim Simultâneo” (Penalux, 2013) e “A Magia e a Arte dos Cemitérios”
(Penalux, 2014). Possui inédito o livro: “Mais uma Xícara de Café”. (Set.2015).
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BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR
botão de ouro
primavera
dente-de-leão
rosa
ervilha
cicuta-menor
campainha azul
dulcamara
orquídea
junquilho
narciso
lírio amarelo
flor-de-lis
sépalas
pétalas
androceu
gineceu
ela e eu.
O Jardim Simultâneo
EXPLICAÇÃO DE UM SILÊNCIO
Fala em meu cérebro
o projeto de uma fala
que arquiteto em segredo
de não saber falar.
Levei muitos anos
para decifrar
meu código interior,
mas como não fiz anotações,
hoje não sei reproduzi-lo
em caracteres humanos.
Então falo comigo em silêncio
como se eu abarcasse em mim
toda uma plenária em murmúrio.
E aquilo que escrevo é o resultado
desse diálogo numa sala vazia.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
ISOLAMENTO
A lua na casa de saturno
saturno na casa da lua
todo mundo em casa.
A casa de todos no mundo
todo mundo na casa de
todo mundo e eu que não
encontro o meu lugar
em lugar nenhum,
no escuro.
O Jardim Simultâneo
CARNAVAL, BANDEIRA E EU
Quero banhar-me nas águas sujas
Quero banhar-me nas águas sórdidas
Sou a mais solitária das criaturas
Me sinto só.
Confiei às mulheres os meus amores
Caí de quatro pelas sarjetas
Cobri minha alma de decepções
Valei-me Manuel Bandeira.
Vozes da morte contai a história
Da pessoa boa que sempre fui
E eu dormia ouvindo o ruído calmo
Do bambuzal.
A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
O SOL NAS VIDRAÇAS
A tarde de setembro
fecha o cerco
sobre o quarto claro,
e o sol nas vidraças
não faz lembrar
o temporal de ontem.
As águas da chuva
descem pelo esgoto
sob a cidade lavada,
e o rio na planície
não deixa esquecer
o ciclo natural das coisas.
O destino das nascentes
sintetiza de forma mimética
a trajetória emocional
de um objeto humanizado.
Agora é andar obscuro
contra a corrente
e deixar que a pedra
arrebente a vidraça.
Depois o sol um dia
vai incidir o seu enigma
sobre uma antiga vitrine
depositária de nossos sonhos
— feito estilhaços no tempo —
O Acaso das Manhãs
OBSTÁCULOS
O homem
chega até
a vidraça
fechada
e observa
a chuva.
A chuva
chega até
o homem
fechado
e observa
a vidraça.
A vidraça
fica entre
universos
interpostos
e observa
a cena.
Inventário de Sombras
PASSANDO A LIMPO
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
A poesia não deve
ser nunca um desenlace,
uma saída para o impasse.
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
Poesia é certeza de conceitos,
de imagens e eu não sei
de nada, apenas acho.
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
Não convém só falar
de si mesmo, o tempo todo.
O mundo, eles dizem,
é muito vário e vasto.
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
A poesia, eles ensinam,
deve ser rápida e concisa
e não derrame verborrágico.
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
Se situar no tempo e no espaço,
fazer versos de memória e resgate.
Nada que seja residual porque
poesia não é inventário e se
assemelha à realidade virtual.
Não se deve fazer
poesia assim como eu faço.
A poesia não deve
ser nunca uma
alternativa ao suicídio.
Eu sei,
e faço.
A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
PORTAL DA DOR
“porque a morte é a alfândega,
onde toda a vida orgânica há de
pagar um dia o último imposto!”
Cap. I – Da Doença
Compressas frias, banhos mornos, cataplasmas sinapizadas,
injeções intravenosas de electrargol, injeções hipodérmicas de
óleo canforado, de cafeína, de esparteína, lavagens
intestinais, laxativos e grande quantidade de poções e outros
remédios internos.
Cap. II – Da Morte
Urna lisa, forrada com babado, envernizada, seis alças, com
visor, véu, velas, encaminhamento da certidão de óbito, flores
para ornamentação interna, livro de presença, paramentos
religiosos, cinco anúncios na rádio local, translado de até 70 km
e locomoção até a morada final.
Agradecimentos ao Augusto dos Anjos, à D. Ester Fialho e ao Pax Ervália que
funciona em frente ao necrotério.
A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
SALDO
De cotidianos resíduos
arrancados na solidão de prisioneiro
em que todo o meu ser se devora,
tento compor uma imagem humana
que me faça aceitável a mim mesmo.
No silêncio da morte aparente
na qual me recolho ao túmulo previsto
não sei com que ânsia mórbida de calma,
procuro juntar os cacos de culpa diária
que reunidos formam um apelo ao suicídio.
E não é só o remorso das manhãs doentias
pelo que na noite se desfez em delírios
de humana fraqueza cansada de si mesma,
é todo um saldo de perdas que tenho que fazer
e lançar no cômputo geral das misérias minhas.
De cotidianos resíduos
recolhidos no isolamento mental de indivíduo
em que todo o meu ser se liberta,
tento compor uma imagem poética
que se faça de idéias e despreze a vida.
O Acaso das Manhãs
SER
Não tenho que estar aqui
ou em qualquer parte.
Não tenho porque sentir
desta ou de outra forma
aquilo que não sinto em mim.
Nada justifica ou nega
a minha existência,
mas reforça a tese
da inércia como norma.
Mas se estou inerte
a minha inércia é uma postura.
É um estar aqui.
O que sou é este vazio em mim.
Este ímpeto não direcionado
a pulsar num imenso vácuo.
Um deserto interior a buscar água
num deserto exterior projetado.
Sou esta ânsia e esta calma.
Sou uma coisa e outra e não sou nada.
Sei que existo e saber isso não me ajuda
(a consciência que tenho de estar acordado
é a certeza que tenho de não estar dormindo).
Sei que posso mudar alguma coisa,
uma vez que tenho espaço físico
para agir como se fosse livre.
Mas nada do que eu fizesse teria significado.
Seria um trocar de camisa
depois de um suposto banho.
Seria como atravessar a rua
trazendo a outra margem dela até mim.
Serei sempre eu mesmo e na pior circunstância
de nada ter mudado em essência.
Sou isto:
Um porão vazio
abarrotado de quinquilharias.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
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Milton Rezende - Jornal de Poesia