DOSSIER
Em nome da fé
Que leva dois jovens
a deixar tudo e a
partir para entrar no
seminário? Unidos
pela fé e pelo carisma
da Consolata,
dois jovens, ligados
à comunidade
de Águas Santas
partem para Itália
para iniciar os estudos
que os hão-de levar
ao caminho da missão.
A estes, junta-se
um outro jovem
que regressa
à Consolata.
Todos
a caminho
do sacerdócio
Rui Jorge Sousa, 25 anos, de Ermesinde, gostaria de ir para a América do Sul
texto Lucília Oliveira * fotos Ana Paula
De tanto martelar no coração de Rui
Jorge Sousa, 25 anos, a voz de Deus
falou mais alto. Agora que olha para
trás, não poderia ter sido de outra forma.
“É difícil explicar como é que uma
pessoa se sente tocada. Eu não queria
a missão só para uma parte da minha
vida”, confessa o jovem de Ermesinde.
O facto do Daniel – dele falaremos
mais além – ter partilhado com o Rui
uma forma de vida no grupo de Leigos
Missionários da Consolata que não o
satisfez e a necessidade de algo mais,
foi o clique que ele precisava. Até
então parecia-lhe que “tinha tudo o
que queria. Só que Deus continuou a
‘chatear’. Pegou em mim e pediu-me
algo mais”. A decisão foi difícil numa
luta entre os sonhos de criança, de
casar, ter filhos e ir para a missão, e a
doação por inteiro a Deus e à missão.
“Basta! É a minha vez de me entregar,
não posso andar a fugir àquilo que
acho que é a minha vida”.
Agora a caminho de Itália, esperamno quatro anos de estudo e formação:
Propedêutico, Filosofia, Noviciado.
“Estudo, muita espiritualidade e crescimento” é aquilo que espera no futuro
mais próxi­mo. O entusiasmo e alegria
são a nota dominante deste jovem que,
comunicando a sua decisão a algumas
pessoas, foi encontrando espanto e
surpresa, particularmente em quem
não o conhece tão profundamente.
“Eu transmito um preconceito, porque
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quem quer ir para padre não vai ao
café, está sempre na igreja a acolitar.
Deus chama a toda a gente, punks,
inconformistas, como eu”, explica.
Sem medos
“Só tinha medo de encontrar um mau
formador e que, pela interpretação dele,
me dissesse que eu não podia ser padre”,
revela Rui Jorge. Que outros medos? Não
tem. “Se olharmos e pensarmos que, ao
procurar Deus, é o desconhecido”, aponta. Mas sabe também que a mais valia é
sentir-se na graça e ter um “companheiro para as horas difíceis”. Sabe ainda que
“momentos de solidão, tristeza”, fazem
parte das crises que poderá passar. Mas
“se nos sentimos bem e Deus estiver em
nós, não há que ter medo”.
Gostaria de ir para América do Sul,
“por causa do espanhol, sei falar um
bocadinho”, para completar os estudos.
“Eu transmito um
preconceito, porque
quem quer ir para
padre não vai ao café,
está sempre na igreja
a acolitar. Deus chama
a toda a gente, punks,
inconformistas como eu”
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Mas aceita que este possa não ser o seu
destino. “Todos têm desejos e gostavam que a missão fosse onde eles querem, mas a missão é onde Deus quer.
Pode ter um impacto inesperado, mas
se acharmos que é o que Deus quer
para nós, então, a alegria é boa”.
A pastoral juvenil é a actividade que
mais o atrai. Questionado sobre qual é
o seu dom, salienta que “a utilidade sou
eu”. Ou seja: “Se for preciso aprender
para fazer, aprende-se. Não vou limitado”. Vai preparado “para o que for preciso”. Mongólia, China, Coreia, eis alguns
destinos de missão para onde gostaria
de ser enviado. “Se calhar tem muito a
ver com o sonho de Allamano”, mas, “a
Europa também é um grande desafio”.
“Primeiro santos, depois missionários” é a frase do Beato Allamano que
norteia a sua vida. O espírito de família, a espiritualidade são qualidades
que fascinam aquele a quem todos
conhecem por Copi. Entre os missionários que trabalharam em Portugal e
que mais o marcaram destaca o padre
Zé Martins, a trabalhar actualmente
na África do Sul e o padre Domingos
Forte, no Brasil.
Um «sim» definitivo
Três anos de experiência fora do
seminário, em contexto escolar fizeram-no ter as certezas necessárias
para passar do ‘Se’ ao ‘Sim’ definitivo. Rumo a uma experiência pastoral
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DOSSIER
“Sinto mais a
falta da família
por detrás
dos jovens
do que sejam
propriamente
os jovens
o problema”
Marcos Coelho, de 27 anos, de Paço de Sousa, regressa para retomar a caminhada
de um ano, numa das comunidades
da região portuguesa, está Marcos
Coelho, de 27 anos. Seguir-se-ão três
anos de profissão temporária e a profissão perpétua, um ‘Sim’ concreto e
definitivo ao sacerdócio missionário.
Em 2004, achou que “estava na altura
de dar um passo mais firme. Decidi
mesmo parar, por vontade própria”.
Voltou à terra natal, Paço de Sousa, e
aí começou a experimentar as dificuldades pelas quais passam os jovens
da sua idade. “Foi muito difícil, não
tive quaisquer ajudas para encontrar
trabalho ou coisa do género”.
Entrara com 16 anos para o seminário,
a sonhar em ser missionário “no meio
dos leõezinhos”. A certo ponto sentiu
que tinha de, por si só, ser capaz de
algo mais. A dependência (pelo facto
de ter de pedir qualquer coisa que
pretendesse, levou-o a experimentar
outra realidade) perturbava-o.
A experiência no exterior do seminário mostrou-lhe um “mundo atractivo”, onde agora “até poderia continuar". É uma vida “mais fácil e,
para uma felicidade aparente, dava”.
Só que ele está mais virado “para
o essencial”. garante. “Não dá para
fugir à Consolata”.
Depois das caves do vinho do Porto,
onde trabalhou no primeiro ano, teve
oportunidade de leccionar Educação
Moral e Religiosa Católica. “Só que
para mim, moral não é catequese, e
eu senti uma fome de Deus a todo o
vapor”, salienta.
Determinante para o regresso foi “a
vontade de falar de Jesus, sem limitações”. Mais aos pais que aos filhos que,
em ambiente urbano, têm tudo, desde a
Internet aos jogos. Excepto “tempo para
pensar em Deus”. E há “muito facilitismo”, diz em tom de certa crítica.
Família falta aos jovens
“Sinto mais a falta da família por
detrás dos jovens do que sejam propriamente os jovens o problema”. Há
alunos que vão às aulas “porque os
pais os inscreveram e obrigavam” na
Educação Moral e Religião Católica.
Neste panorama escolar citadino, há
que ter em conta que há alunos crentes e não crentes.
São precisas “estratégias” para que
aprendam algo e é preciso envolver
as famílias. Receitas milagrosas não
há, é certo! Mas “se começarmos com
os jovens, certamente que chegaremos à família”.
O caminho é árduo e a dificulda­de
“não é acreditar” em Deus, mas as
pessoas, “às vezes, já estão tapadas
por dentro”. Para contrariar esta tendência deve-se “ir ao coração das
pessoas, dizendo-lhes certas verdades”. E de novo a crítica, desta
vez à própria Igreja: “Praticamente
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não se fala com esta clareza”.
O futuro de Marcos é uma meia incógnita. Agora que regressou, rumo ao
sacerdócio, não o preocupa o local
da missão: “Todo o trabalho é missão
para mim. Em todo o lado, onde houver um homem, pode-se ser missionário”. Aponta, por exemplo, as missões
da Consolata mais novas: Coreia e
Mongólia. “Até mesmo a América
Latina. Lá, a questão da família é
muito atraente”. O que importa é o “ir
ao encontro do outro, estar disponível,
sentir-me do mundo”. A pastoral juvenil pode ser uma das possibilidades de
especialização na missão e aponta a
característica mariana como o grande
fascínio que sente pelo carisma do
Instituto da Consolata.
Consolata, tal como o Copi. Ingressou
nos Leigos Missionários da Consolata
e já então dizia que “não queria partir
em missão apenas por um ou dois
anos". Tinha o sonho “de ser leigo
na missão por toda a vida”. Nessa
altura questionou-se: “Porque não
algo mais forte, mais arriscado, mais
coerente?”.
Numa das noites em que folheava a
“Vida Espiritual” de Allamano, percebeu que “tinha de fazer parte” do
Instituto. “Era a única forma de encontrar a felicidade”, salienta. Estávamos
em 2006. Entrou em crise profunda.
Aliás “senti medo só em pôr a hipótese
de ser padre”. Acrescenta: “Não tinha
problemas em ser irmão leigo na vida
religiosa”.
Deixou a “fé confortável”, mas que
não era consistente. Sabe-o agora.
Na altura “sofri muito", confessa.
“Quando comecei a imaginar a minha
vida, entrei numa crise de fé muito
grande. Punha tudo em causa. A única
solução que arranjei foi confiar”.
Com um período de discernimento,
com o padre Luís Maurício, “tudo
começou”. O quê? “Descobri
que o fundamento da
minha vida é Cristo e
é por Ele que quero
viver a vida. É com
Ele que a nossa vida faz sentido”.
Na sua relação com Deus mudou de
um estado em que “não havia relação,
mas apenas uma crença”, para uma
relação de amizade com Ele.
Testemunho
Daniel, como outros jovens da sua
idade que, agora, terminaram o
curso, podia ter entrado na profissão.
Foi-lhe feita uma proposta aliciante.
Recusou. Deixa amigos, uma vida
confortável, família e parte rumo ao
desconhecido. Leva na bagagem uma
enorme vontade de vencer. E alguns
receios a ultrapassar: “O coração
atraiçoa e podemos seguir sentimentos com medo de nos esforçarmos”.
Assalta-o “o medo de falhar, da Filosofia,
da nova língua, do relacionamento
com pessoas novas e desconhecidas”.
Defende que é preciso dar um passo de
cada vez: “Sem grandes atropelos ou
pressas”. Acrescenta: “A minha vida
tem sido encavalitada, umas coisas em
cima das outras, sem nada definido”.
Entregar a vida inteira numa so­ciedade
de consumo e do imediato
“faz sentido”, para Daniel.
Os amigos “não conseguem en­tender e
eu não lhes consigo explicar". Daniel
“Não quero trabalhar 50 anos numa missão
como enfermeiro. Quero fazer mais, ter a
possibilidade de trabalhar com os jovens,
em áreas diferentes da saúde”
Predestinado a Deus
Quem o conhece, sabia que este seria
um passo natural da sua caminhada.
Daniel Pinto, 23 anos, prefere falar
de “predestinado”. Garante: “Tanto
mais que sempre neguei. Nunca
achei que seria capaz de dar este
passo”. Agora, recém-formado em
Enfermagem, encontra-se a caminho
de Itália, en­tusiasmado com uma
nova etapa, o seminário.
A sua fé “estreitou-se”, em 2001, diante
do túmulo do Fundador da Consolata,
em Turim. Fez uma caminhada no
grupo dos Jovens Missionários da
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acrescenta: “É preciso partir da fé, da
experiência com Deus. Sem essa expe­
riência é difícil aceitar
este desafio”.
Mecanhelas
Aos amigos, a decisão “faz-lhes confusão. Acham engraçado, mas “não
é normal um jovem da minha idade,
acabar o curso de enfermagem, com
um futuro promissor em mãos”. Ainda
que se manifeste “optimista” quanto
aos jovens, sabe bem que eles “vivem
a hora, buscam o prazer, o bem-estar
e não o sacrifício”.
Sobre o futuro que espera, o jovem
enfermeiro quer estudar e descarta a
ignorância. Abre-se a um vasto leque
de possibilidades. “Não quero trabalhar 50 anos numa missão como
enfermeiro. Quero fazer mais, ter a
possibilidade de trabalhar com os
jovens, em áreas diferentes da saúde”.
Não escolhe o local onde pode vir a
fazer missão. Pelas fotografias que
uma religiosa da Consolata lhe mostrou, nutre um certo carinho pela
Etiópia.
De Allamano admira a “santidade e
o desejo de perfeição”, assim como a
forma como entregou a fundação da
Consolata a Nossa Senhora. O espírito de família é outra admiração deste
jovem, que o experimentou e aprecia
no Instituto da Consolata.
Daniel Pinto, 23 anos, de Ermesinde, troca a profissão de enfermeiro pelo seminário
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