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UM AGRONEGÓCIO PARA A CAATINGA
Clovis Guimarães Filho (*)
Dois mil e três foi mais um ano difícil para a maior parte da região semi-árida. Mesmo assim,
pequenos produtores organizados da região sul do Piauí, produziram 80 toneladas de mel de
abelha, vendidas a mais de cinco reais por litro. Na região de Canudos e Uauá, sertão da Bahia,
foram 30 toneladas de umbu transformados em doces, sucos e geléias vendidos para Feira de
Santana e Salvador. No Cariri paraibano, a mais seca das áreas secas, uma cooperativa de
curtidores produziu e vendeu mensalmente três mil peças de produtos artesanais em couro. No
sertão norteriograndense do Cabugí, foram cerca de oito mil litros de leite de cabra processados
diariamente. Em plena caatinga baiana pulsa uma indústria de transformação da fibra do sisal, com
mais de 500 empregos diretos, responsável pela exportação anual de dezenas de toneladas em
tapetes e outros produtos artesanais para a Europa e Estados Unidos. Esses são apenas alguns
exemplos, entre dezenas de outros, indicativos do imenso potencial que a região semi-árida oferece,
com a exploração racional, pura ou associada, dos recursos do bioma caatinga. Tudo isso, registrese, ainda é fruto maior da iniciativa e do esforço local do que propriamente resultados de políticas
públicas de apoio. Apenas para os 38 milhões de hectares (40% do semi-árido) mais indicados para
a atividade capri-ovinícola, a região teria condições de produzir anualmente mais de 200 mil
toneladas de carne e quase 20 milhões de peles, de qualidade superior, sem agressão ao ambiente.
Um “agronegócio” estimado em 65 milhões de dólares anuais, considerando apenas o valor bruto
das matérias-primas, sem qualquer valor agregado. É um valor superior ao das exportações
nacionais de manga e praticamente o dobro da de uva-de-mesa registradas em 2002. A apicultura
como atividade geradora de renda, ocupadora de mão-de-obra e não degradante, já que não
desmata a caatinga, constitui uma outra grande alternativa. No Piauí já são cerca de 300 mil
colméias instaladas e produção anual superior a cinco mil toneladas apenas de mel. Como esses,
existe uma infinidade de outros produtos com potencial de ocupar um espaço no mercado e de
proporcionar aos seus produtores um padrão de vida condigno e sustentável. Entre eles, podem ser
citadas as frutas nativas (umbu, maracujá do mato), as melipônidas (uruçu, mandaçaia), as aves
caipiras (galinha, guiné), a criação de animais silvestres (ema, cotia, mocó, tatu), o extrativismo
racional de espécies nativas para madeira, energia e artesanato (angico, aroeira, sabiá, imburana),
sem esquecer o maravilhoso potencial que oferece o bioma para exploração do lazer e recreação
(ecoturismo). O maior filão do bioma caatinga, contudo, ainda está por ser conhecido e explorado.
Ele é representado pela sua extraordinária biodiversidade, na qual se inserem espécies vegetais de
uso medicinal, produtoras de óleos essenciais, agentes praguicidas e outras provedoras de matérias
primas para indústria química, alimentar e farmacêutica; espécies animais, especialmente insetos,
inimigos naturais de pragas, provedoras de substancias de uso medicinal (soros, enzimas,
hormônios); bactérias, fungos e líquens com propriedades de antagonismo a agentes de pragas e
doenças, bioinseticidas, biolixiviadoras, antibióticas, além de gens indutores de tolerância a
estresses hídrico, salino, a acidez do solo e a doenças. São 2.500 espécies de plantas e mais de
1.000 de animais, não incluídos nesse número os insetos, implorando para serem estudadas. Na
identificação e expressão prática desse potencial, cabe à pesquisa um papel decisivo, ainda não
assumido efetivamente. O caminho que se vem buscando para expressar todo esse potencial da
caatinga é claramente equivocado. Tome-se o exemplo na caprinocultura, em que a ênfase dada em
seu desenvolvimento consiste na introdução de material genético altamente especializado, exigindo
a adaptação do ecossistema ao material introduzido e não o contrário, como seria o natural. Não há
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espaço para valorizar os atributos de qualidade dos nossos autóctones, como se faz no mundo
inteiro. A valorização dos produtos locais é, no contexto da globalização, o grande instrumento
estratégico para alcançar os objetivos principais de preservar os recursos da caatinga e assegurar,
ao mesmo tempo, o bem estar das populações que nela vivem e dela dependem. Produtos
diferenciados, a partir da incorporação de uma identidade territorial e cultural, constituem uma
alternativa de grande potencial no semi-árido. É simplesmente uma questão de um pouco mais de
esforço em conhecer melhor o que temos e do que dispomos, de conhecer e reconhecer os
conhecimentos locais, associando-os, a partir daí, ao conhecimento científico necessário a plena
expressão do potencial do bioma. A complementação do processo deve se dar com a
implementação de normas que definam e orientem o processo de certificação de indicação
geográfica desses produtos, nas formas de Denominação de Origem (DO) e Indicação de
Procedência (IP), concedidas via INPI, requisito básico para o reconhecimento e proteção de
produtos cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio
geográfico, incluídos fatores naturais (solo, clima) e humanos (tradição, cultura). Embora os
primeiros passos já estejam sendo dados nessa direção com o projeto do “cabrito ecológico do Vale
do São Francisco” (iniciativa da Embrapa com associações de produtores), estamos ainda muito
atrasados nesse processo. Quem duvidaria, após a fixação e certificação de um padrão de
qualidade, do sucesso de um “cabrito de Uauá”, de um “queijo de leite de cabra do Cabugí”, de um
“mel da Serra da Capivara” ou de um “suco de umbu do São Francisco”?. Em suma, não temos por
que continuar alterando o ecossistema para adaptar pseudo soluções exógenas. As verdadeiras
soluções estão aí, bem a nossa frente. Só precisamos aprender a enxergá-las. Seria um
agronegócio diferente dos convencionais, na medida em que elegeria como premissas básicas a
preservação do ecossistema e a equidade social na distribuição dos benefícios gerados, não
esquecendo ainda uma dimensão política representada no empoderamento das populações locais.
As linhas de ação para o sucesso de um programa regional com esse enfoque abrangeriam,
naturalmente, o fortalecimento das associações de produtores, a estruturação de redes locais de
apoio técnico, uma linha de crédito específica, adequada a capacidade remuneratória de capital
dessas atividades, e a estruturação de um programa de pesquisa que inclua, como ação inicial, um
zoneamento de toda área ocupada pelo bioma caatinga identificando, para cada produto, as zonas
diferenciadas ou territórios potenciais para obtenção de certificações dos tipos DO e IP.
_________________
(*) Ex-pesquisador e chefe adjunto de P&D da Embrapa Semi-Árido, o autor atualmente é consultor de diversas
instituições públicas e privadas na área de caprino-ovinocultura – Fones: (87) 3861 3115 / 9921 0596; E-mail:
clovisgf@uol,com.br
Artigo publicado no site www.caprilvirtual.com.br em 28 de agosto de 2007.
Texto de responsabilidade dos Autores.
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