Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis
"El legado de Freud a 150 años de su nacimiento"
Lima, Perú - Octubre 2006
NOSSO AMOR DE ONTEM... E QUE SE FEZ PERMANENTE1
NUESTRO AMOR DE AYER... QUE SE HIZO PERMANENTE
OUR LOVE IN THE PAST... THAT BECAME PERMANENT
ÂNGELA MARIA LÔBO SOLLBERGER 2
Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso
do Sul (Provisória) — SPMS
Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro — SPRJ
1
Este trabalho foi publicado originalmente, com algumas modificações, na Revista Brasileira de
Psicanálise, v. 40, n. 1, 2006, pp. 83-91.
2
Rua Eduardo Santos Pereira, 934/802
79010030 - Campo Grande, MS.
Fone: 67 3321 4778 (R), 67 3349 1683 (C)
E-mail: [email protected]
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NOSSO AMOR DE ONTEM...E QUE SE FEZ PERMANENTE
Resumo: a autora faz uma homenagem aos 150 anos de Sigmund Freud —
nosso amor de ontem que se fez permanente —, através da leitura crítica do texto
O mal-estar na civilização (1929[1930]). Discute a questão do amor e do ódio na
contemporaneidade, das identificações e de suas formas de estruturação. E
levanta um questionamento sobre a responsabilidade dos psicanalistas frente às
demandas sociais. Para suas reflexões utiliza-se das idéias freudianas, de alguns
psicanalistas contemporâneos — particularmente Florence Guignard —, do
sociólogo Zygmundt Bauman, do cientista político Paulo Sérgio Rouanet e do
historiador Peter Gay, numa tentativa de compreensão do homem e sua cultura
nos dias atuais.
Summary: The author renders homage to Sigmund Freud for his 150 years, our
love of in the past that became permanent, through the critical reading of the article
Civilization and its Discontents (1929[1930]). It discusses the question of love and
hate in the contemporary times, the identifications and their ways of structuration,
stating the questioning of the responsability of the psychoanalysts before social
demands. The author bases her reflections on Freudian ideas, and on the
contributions of some contemporary psychoanalysts — particularly Florence
Guignard —, the sociologist Zygmundt Bauman, the political scientist Paulo Sérgio
Rouanet, and the historian Peter Gay, in an attempt to comprehend the human
being and the culture of our days.
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Resumen: la autora hace un homenaje a los 150 años de Sigmund Freud nuestro amor de ayer que se hizo permanente — con base en la lectura crítica del
articulo El malestar en la Civilización (1929 [1930]). Discute la cuestión del amor y
del odio en la contemporaneidad, de las idenficaciones y sus formas de
estructuración. Levanta el cuestionamiento sobre la responsabilidad de los
psicoanalistas frente a las demandas sociales. Para sus reflexiones se utiliza de
las ideas freudianas, de algunos psicoanalistas contemporáneos — en particular
de Florence Guignard —, del sociólogo Zygmundt Bauman, del cientista político
Paulo Sérgio Rouanet y del historiador Peter Gay, visando la comprensión del
hombre y su cultura en la actualidad.
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NOSSO AMOR DE ONTEM ... E QUE SE FEZ PERMANENTE
Ângela Maria Lôbo Sollberger
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto,
seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida
comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição...Os homens
adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não
teriam dificuldades de se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem
disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade
e ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o
eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos
imortal adversário. Mas quem pode prever com sucesso e com que resultado?
Sigmund Freud (1930[1929])
O mal-estar é inerente a qualquer tipo de civilização, em qualquer estágio evolutivo.
Mas podemos presumir que ele se revista de formas específicas conforme o período
histórico. Ele foi um no início da vida social, outro nas cidades antigas, outro nos
grandes impérios, outro no feudalismo, outro na monarquia absoluta...Em nossos
dias, podemos falar de um mal-estar moderno, ou mal-estar da modernidade. Como
todas as outras forma de Unbehagen., ele se manifesta sob a forma de um
ressentimento contra a civilização...[agora] ele se dirige contra o Iluminismo. É
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contra essa construção que se dirige a cruzada anti ou pós-moderna, não somente
no plano das idéias como no das atitudes e práticas sociais.
Sérgio Paulo Rouanet (1997)
Ulrich, o herói de grande romance de Robert Musil, era — como anunciava o título
da obra — Der Mann ohne Eigenschaften: o homem sem qualidades. Não tendo
qualidades próprias, herdadas ou adquiridas e incorporadas, Ulrich teve que
produzir por conta própria quaisquer qualidades que desejasse possuir, usando a
perspicácia e a sagacidade de que era dotado; mas nenhuma delas tinha a garantia
de perdurar indefinidamente num mundo repleto de sinais confusos, propensos a
mudar com rapidez de forma imprevisível.
Zygmunt Bauman (2004)
Introdução
Até os dias de hoje Freud, e sua obra, nos é máxima referência e dele trazemos
inspirações para tantos desenvolvimentos que foram surgindo ao longo das
décadas. A genialidade de Freud foi justamente escrever uma obra terminada para
sua época, mas, ao mesmo tempo, aberta o suficiente para que os psicanalistas
de outros tempos pudessem dele se nutrir e desenvolver uma psicanálise cada
vez mais robusta em suas teorias e propostas clínicas.
O que faz da Psicanálise uma ciência insubstituível e com coerência interna é sua
permanência no tempo. O filósofo Friedrich Nietzche (1844-1900) já nos dizia que
não deveríamos confiar em uma idéia que não tivesse surgido de uma longa
caminhada. E a Psicanálise vem caminhando, ultrapassou o século XIX e XX, e
nos traz, agora no século XXI, novos desafios, novos obstáculos epistemológicos.
Sabemos que a Psicanálise, como nenhuma outra disciplina, influenciou e
continua influenciando várias outras áreas do saber humano, e delas tem
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procurado (reconheçamos que recentemente) novas fontes de inspiração para seu
debate científico.
Nessa procura de perguntas e respostas sobre o conhecimento humano e do
mundo em que vivemos, escolhi destacar neste artigo/homenagem um texto de
Freud que muitos consideram um texto sobre a cultura, mas que os psicanalistas o
sabem como um texto metapsicológico da maior importância, e que nesta época
de tantas incertezas, pode nos ajudar a refletir sobre questões tão atuais, que nos
trazem e por vezes nos paralisam: pensar sobre o amor, os laços amorosos, a
violência e a agressividade, humana e dos grupos humanos, em sua dimensão
interna e externa. O texto O mal-estar na civilização, escrito por Freud em 1929 e
publicado em 1930, com um adendo, feito no ano seguinte, mais pessimista, e eu
diria, profético. Lembremos que o artigo foi escrito numa época, também, de
grande turbulência internacional: com a quebra da bolsa em Nova Iorque e o início
da consolidação das idéias nazistas, para citar apenas algumas.
A partir de três recortes, citados acima como epígrafes — de um psicanalista, de
um cientista social e de um sociólogo — pretendo abordar questões que considero
fundamentais para a psicanálise contemporânea e sua prática, no enfrentamento
deste “novíssimo admirável mundo”, assim como nossa responsabilidade
enquanto psicanalistas.
O mal-estar na civilização
O mal-estar na civilização (Freud,1930[1929]/ 1974) é um texto dos últimos anos
da vida de Freud, e oferece uma síntese de suas teorias da cultura. Reflete sobre
o irreparável conflito entre o indivíduo e as instituições. Freud pretende estender à
cultura em geral o exame que fez da religião em O futuro de uma ilusão
(Freud,1927).
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O ensaio argumenta que o estudo das instituições deve partir do estudo da
natureza humana, e Freud nos oferece, para tal compreensão, a perspectiva
psicanalítica. O tema principal do livro é o antagonismo irremediável entre as
exigências pulsionais (sexuais e agressivas) e as restrições da civilização.
Podemos, necessariamente cometendo erros pela brevidade do espaço que
dispomos, resumir o artigo em alguns postulados básicos que interessam para as
nossas reflexões: uma síntese sobre a “tragédia da condição humana” (Lacan,
1959-1960, citado por Roudinesco, 1997/1998, p.490).
Freud inicia seu artigo respondendo a uma crítica de Romain Rolland, escritor da
época (ganhador do prêmio Nobel e pacifista militante), sobre a essência da
religiosidade, que teria sua origem, segundo esse escritor, no sentimento
oceânico, numa sensação de “eternidade”. Freud não concorda com a idéia de
Rolland e afirma sua tese de que a necessidade de religião do homem nasce do
sentimento de desamparo, e a essência da religiosidade é uma repetição do
sentimento de plenitude que o bebê experimenta antes da separação psíquica
com a mãe, sentimento este que é característico de um ego inicial que se mantém
nas fases posteriores do desenvolvimento.
Freud, nesta passagem, nos faz refletir sobre o permanente desamparo tão
característico da vida contemporânea, em que as incertezas e as instituições não
mais dão conta de compensar o desamparo da pré-maturidade do bebê humano,
e que se instalam no psiquismo como marcas traumáticas, muitas vezes
insuperáveis. Lembremos de Winnicott (1960/1988) quando aborda a imposição
do outro e a criação do falso self.
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Assim como o princípio do prazer que, ao se confrontar com o mundo externo, se
submete ao princípio da realidade, frente aos obstáculos, o homem renuncia a um
pouco de felicidade, por segurança, e procura meios de atenuar ou eliminar o
sofrimento. O homem, em sua busca da felicidade, enfrenta a infelicidade pela
neurose, pelas adições e pela psicose, cujas formas são próprias de cada um.
Para Freud (1927), a religião procuraria eliminar esta especificidade propondo
uma uniformidade de adaptação à realidade, substituindo o mundo real por um
mundo delirante.
Freud destaca que as três fontes de nosso sofrimento são: o poder da natureza, a
fragilidade de nossos corpos e a inadequação das regras sociais que procuram
ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos. Dentre as três origens do
sofrimento humano, Freud opta por estudar, neste ensaio, a que nasce do caráter
insatisfatório das relações humanas e o papel da cultura — materializada na
família, no Estado e na Sociedade —, na busca de menos sofrimento. Por
civilização (tomada aqui como sinônimo de cultura), Freud entende:
“a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas
vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a
saber, o de proteger os seres humanos contra a natureza e o de ajustar os
seus relacionamentos mútuos (p.109)... A cultura é construída sobre uma
renúncia ao instinto... [Mas] não se faz isso impunemente. Se a perda não for
economicamente compensada..., sérios distúrbios decorrerão disso” (p.118).
Como “os remédios” propostos pela cultura são coercitivos e, portanto limitam de
várias maneiras a busca do prazer, ela logo se evidencia como uma nova causa
de sofrimento. E, nessa condição, a cultura é objeto de recusas, freqüentemente
acompanhadas de apelos a um retorno ao natural e tentativas de volta ao estilo de
vida dos primitivos. Freud afirma que, embora possível justificar essa rejeição, se
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recusa a justificá-la, porque ela se fundamenta no esquecimento do caráter
protetor da cultura. Aqui, Freud se associa ao pensamento de Hobbes que três
séculos antes havia falado que “na falta de coerções irresistíveis a humanidade
estaria fadada a mergulhar em uma guerra civil perpétua”. Na tradição hobbesiana
o passo importante para a cultura foi dado “quando a comunidade assumiu o
poder, quando os indivíduos renunciaram a fazer justiça com as próprias mãos”.
Freud já tinha observado que o primeiro homem a lançar um insulto ao inimigo, ao
invés da lança, foi o verdadeiro fundador da cultura (citado por P.Gay, 1988/1989,
p.495).
Mas se o homem não pode viver plenamente feliz na cultura, não consegue
sobreviver sem ela. O homem e a mulher vivem uma luta: precisam dos outros,
mas sonham viver afastados dessa sociedade que lhes impõe limites às pulsões.
Para tentar aplacar os sofrimento desse antagonismo, a cultura se esforça por
criar vínculos substitutos: laços amorosos, laços libidinais desviados de seus
objetivos sexuais e uma negação da crueldade inerente ao gênero humano.
Freud aborda, amplamente, as questões da segurança às custas da restrição da
sexualidade e da agressão, da pulsão de morte e do desenvolvimento do
superego e sua severidade. Nesse ponto, a meta do ensaio torna-se explícita:
trata-se de analisar o “mal-estar” com a ajuda da dualidade pulsional desenvolvida
em Mais além do princípio do prazer (Freud,1920), um conflito que opera na vida
do indivíduo e em sua vida social. O homem é pressionado por necessidades
instintivas, ambivalente em seus amores e seus ódios, mal contido por coerções
externas e sentimentos de culpa. A agressividade também é fonte de prazer e,
como os outros prazeres, os seres humanos relutam em renunciá-la. Como
complemento do amor, que une os homens em agrupamentos por laços libidinais,
a agressividade manterá o grupo mais unido se tiver a quem possa odiar fora do
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grupo. O desenvolvimento cultural deve nos mostrar o combate entre a pulsão de
vida e a pulsão de morte, é a luta vital da espécie humana (Gay, 1988/1989, p.499).
O mal-estar é o desconforto sentido pelo indivíduo em conseqüência dos
sacrifícios pulsionais exigidos pelo social e, como vimos, não é fundamentalmente
do recalque das pulsões associadas a Eros que deriva o mal-estar, e sim do
recalque das pulsões agressivas.
Mas como a cultura controla a agressividade, expressão da pulsão de morte?
“Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe
impõe, torná-la inócua ou, talvez, livra-se dela?”, pergunta-se Freud (p.146). E ele
nos oferece uma resposta: a agressividade é voltada contra o ego, introjetada
nele, para então ser retomada pelo superego, que se coloca em oposição à parte
restante do ego. A agressividade que o ego desejaria exprimir contra o outro e a
tensão que se instala entre o ego e o superego dão margem a um sentimento
consciente de culpa, frente à ansiedade sentida pela criança diante da autoridade
paterna (origem externa), que temendo não mais ser amada, renuncia às suas
pulsões. Mas, sendo a autoridade internalizada (introjetada) no superego, a
origem do sentimento de culpa passa, também, a ser interna. O sentimento de
culpa, gerado pela cultura (representada pelo superego) permanece, então,
predominantemente, inconsciente, e, na maioria das vezes, é vivido sob a forma
de um mal-estar ao qual se atribuem outras causas (Roudinesco, 1997/1998,
p.491).
Essa série de atos constituiria a fundação do que Freud chamou de superego
cultural. A constituição inata desempenhará seu papel, inclusive a filogenética e, a
partir daí, esta “polícia interna” acompanhará o homem e sua cultura. A análise de
um superego cultural, protetor e policialesco, permitirá a Freud falar de uma
cultura neurótica e oferecer para ela recomendações terapêuticas, mas ele mesmo
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nos adverte que a analogia entre o individual e sua cultura deve ser tratada com a
máxima delicadeza, ela pode ser instrutiva, mas continua sendo uma analogia, ele
não se pretendia um reformador da cultura.
Freud não dá uma resposta à questão se as sociedades civilizadas serão capazes
de dominar a pulsão destrutiva ou de morte. Deixa a questão em aberto. E conclui
seu ensaio com as seguintes palavras: “Agora só nos resta esperar que o outro
dos dois ‘Poderes Celestes’, o Eros eterno, desdobre suas forças para se firmar
na luta com seu não menos imortal adversário”. E acrescenta (em 1931, na
segunda edição): “Mas quem pode prever com que sucesso e com que
resultado?” (pp. 170-171).
Sobre a capacidade de amar, identificações, transmissão geracional e
sentimento de pertença
Mas devemos analisar também, que vivemos em um mundo de rápidas e
imprevisíveis transformações, fatais para nossa capacidade de amar, seja este
amor dirigido a nós mesmo ou ao outro. Ataques terroristas suicidas, a violência
nas grandes cidades, atestam nossa enorme intolerância para com o outro e,
conseqüentemente, para com nós mesmos. A criança polimorfa perversa se
perpetua no adulto, a volta do racismo, o vibrante nacionalismo, os radicalismos
religiosos são sinais desta estrutura que poderíamos chamar de patológica.
Bauman (2003/2004), em seu livro Amor Líquido, investiga como “as relações
humanas se tornam cada vez mais flexíveis, gerando níveis de insegurança
insuportáveis”. Relações amorosas e vínculos familiares são afetados de tal forma
que a capacidade de tratar o outro com humanidade parece estar gravemente
prejudicada.
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Voltemos a Bauman, em sua análise do Der Mann ohne Eigenschaften (grifo
meu), o homem sem qualidades de Musil, destacado na epígrafe: o herói Ulrich
poderia ser agora definido como Der Mann ohne Verwandtschaften (o grifo é meu)
— o homem sem vínculos, e particularmente vínculos imutáveis como os de
parentesco no tempo de Ulrich:
“Não tendo ligações indissolúveis e definidas, o herói de seu livro — o cidadão de
nossa líquida sociedade moderna — e seus atuais sucessores são obrigados a
amarrar um ao outro, por iniciativa, habilidade e dedicação próprias, os laços que
porventura pretendam usar com o restante da humanidade. Desligados, precisam
conectar-se... Nenhuma das conexões que venham a preencher a lacuna deixada
pelos vínculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia de permanência. De
qualquer modo, eles só precisam ser frouxamente atados, para que possam ser
desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenários mudarem — o que, na
modernidade líquida, decerto ocorrerá repetidas vezes” (Z. Bauman, 2004, p.7).
Sobre essa capacidade de amar (aqui tomado no sentido genital do termo, como a
capacidade de consideração pelo outro), que mantém vínculos duradouros,
sabemos que ela é desenvolvida a partir de uma diferenciação entre o eu e o
mundo externo, entre o eu e o não-eu, após longo percurso no desenvolvimento
humano, uma aquisição que poderíamos dizer tardia.
A multiplicidade de identificações as quais nossas crianças e adolescentes estão
expostos dificulta a integração e discriminação desses personagens, povoando
seus mundos internos de forma caótica e saturada. Os processos de identificação
sofrem inúmeras alterações. Conseqüentemente, os processos desidentificatórios
podem ficar prejudicados, impossibilitando a aquisição de uma identidade própria.
A formação de nossa identidade está ligada não só à família, mas também, como
o sabemos, à comunidade lingüística e cultural e, particularmente a um sentimento
de pertença a um grupo. “Por serem os humanos seres com, imersos na cultura,
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as
identificações
trazem
o
colorido
da
trama
familiar
e
do
contexto
social...[Portanto], as circunstâncias históricas, sociais e familiares participam das
condições de realização das identificações estruturantes e/ou patológicas, bem
como das não-identificações” (A. Saad, 2000, p.519).
Maria Fernanda Marques Soares (2004), em seu artigo Anotações sobre a
transmissão em psicanálise, faz referências sobre a transmissão intergeracional e
a transmissão transgeracional, recorrendo ao conceito de transmissão retirado de
autores que trabalham com grupos e famílias, que me parecem adequados citar,
para incrementar nossas reflexões sobre a complexidade das identificações e
desidentificações.
A transmissão intergeracional se constitui pelo transmitido conhecido, passível a
ligações e provoca transformações naquele que o recebe. Corresponde aos
conteúdos metabolizáveis, pensáveis (na acepção de Bion). A transmissão
transgeracional — consiste nos conteúdos indizíveis, inomináveis, impensáveis,
porque não foram elaborados, assimilados e transformados —, trazendo em seu
bojo a marca do trauma, a perpetuação do conflito. Sob a égide do silêncio,
“mantida em segredo”, são os “restos insensatos”, dificultando a simbolização: “um
buraco ou uma trama congelada que se investe de uma qualidade ameaçadora no
espaço vincular. O evento compartilhado produz uma… não-história vincular e fixa
a história em um determinado evento” (M. Soares, citando Puget, 2001, p.80). Mas
como foram ‘transmitidos’, é na geração seguinte que se exacerbam os conflitos
que os mais velhos não souberam articular corretamente e ainda menos resolver
entre eles. E espera-se que a nova geração, herdeira narcísica, possa realizar
este trabalho fracassado.
O
que
observamos
em
nossos
consultórios
são
homens
e
mulheres
“desesperados por relacionar-se”, sentindo-se facilmente descartáveis e ansiando
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pela segurança do convívio. No entanto, observamos, também, a desconfiança de
estarem ligados, especialmente “para sempre”, pois não se sentem capazes de
tolerar a tensão adicional, inevitável, de um relacionamento estável, “permanente”.
A “modernidade líquida” que vivemos traz uma fragilidade dos laços humanos
(Bauman, 2003/2004). Sabemos que a busca de uma parceria ideal amorosa
deixa o sujeito numa dependência em relação ao outro. Amar e ser amado ao
sofrer um curto circuito lança o sujeito novamente ao desamparo, e quando o
social também falha, a desesperança se instala, por vezes de forma irremediável.
Observamos também que a inibição e transformação das pulsões não
representam mais valores reconhecidos e transmitidos pela família ou pela
sociedade. O período de latência, descrito por Freud (1905), parece estar “abolido”
nas crianças de distintas classes sociais e, em função disso, “ocorrem
modificações no próprio eixo da neurose infantil”, com comprometimento da
formação do superego e, conseqüentemente, do ideal do ego, como constata
Florence Guignard (2005), em seu sensível artigo Psicanálise e sexualidade hoje.
Alguns psicanalistas de crianças e adolescentes, com que tenho contato, falam de
uma latência reduzida ou limitada. Hoje teríamos uma adolescência antecipada
pela necessidade de se tornarem independentes, os estímulos da mídia, a
diversidade de identificações que lhes são oferecidas pelos adultos que as
cuidam, e a falta de contato íntimo significativo, geralmente, levam a uma
precocidade, “bombardeando” nossas crianças com situações com as quais não
podem elaborar, por uma insuficiência egóica para abarcar tudo isto.
Perguntamos-nos se a evolução da sociedade não modificou os parâmetros de
base do tratamento analítico. Toda a questão do destino do desejo, do recalque e
das identificações está contida nesta reflexão, nos diz Guignard (p.242).
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Como lidar com as patologias do vazio que trazem uma ausência de demanda
pulsional, uma incapacidade de representação e o fracasso da simbolização? (F.
Guignard e P. Favalli, 2005, p.252). Podemos continuar falando de uma “cultura
neurótica”? Não estaríamos frente a um “vazio de si mesmos”, saturados de uma
cultura inebriante, polimorfa, inconstante, descartável?
Porém, como assinala André Green, quando nos indaga se “a sexualidade tem
algo a ver com a psicanálise”: “Nossos pacientes ainda se queixam de distúrbios
de sua vida sexual, com impotência mais ou menos completa, frigidez, falta de
satisfação na vida sexual, conflitos relacionados à bissexualidade ou à fusão e
defusão da sexualidade e agressão, para dizer o mínimo”. (A. Green,1995, p.218).
Portanto, voltemos mais uma vez a Freud, pela análise do cientista político Paulo
Sérgio Rouanet.
O mal-estar na modernidade
Rouanet (1997), em Mal-estar na modernidade, que aceita na íntegra as teses
freudianas defendidas no Mal-estar na civilização, afirma que “o mal-estar é
inerente a qualquer tipo de civilização, em qualquer estágio evolutivo” e que agora
é analisado em sua especificidade. Podemos, então, falar num mal-estar na
modernidade que se manifesta contra o modelo civilizatório que deu contornos à
época em que se originou: o modelo do Iluminismo.
O projeto Iluminista visava a auto-emancipação da humanidade, que se daria
através de um conjunto de valores e ideais racionalista, individualista e universal.
O que vemos e, principalmente, ouvimos na contemporaneidade é uma
contestação de cada elemento do projeto iluminista: a ciência é vista como agente
de dominação sobre a natureza e o homem. O indivíduo é pressionado pelo
conformismo de uma sociedade de massa e impossibilitado de a ela reagir. Cada
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vez mais o mundo mergulha no coletivo. O universalismo sucumbe ao
particularismo (S. Rouanet, 1997, pp.9-10).
Sendo a psicanálise parte do Iluminismo e da modernidade, possui categorias e
instrumentos privilegiados de análise para compreender o mal-estar moderno. E,
nos adverte Rouanet: “a psicanálise tem, nesta matéria, uma competência
específica e uma responsabilidade intransferível...Ela é responsável porque não
pode ficar neutra na luta entre a barbárie e a civilização” (pp.12-13), assim como o
fez Freud em seu combate a todo o tipo de obscurantismos.
Rouanet destaca as categorias psicanalíticas em que podemos utilizar e “divulgar”
para uma compreensão mais ampla do mundo em que vivemos: a dualidade das
pulsões em sua busca de prazer, o recalque e a regressão. Freud profetizou essa
regressão, o indivíduo é para ele sempre um inimigo da civilização, mas também
não há dúvidas de que Freud considera o advento da individualidade como um
acontecimento axial da história. Mas o preço da segurança não pode ser a
desindividualização. Como afirma o autor em suas reflexões: “Por mais que se
tente, não conseguiremos converter os homens em cupins: eles defenderão
sempre seus direitos contra as exigências do coletivo”.
Conclusão
A psicanálise, portanto, está em uma posição estratégica nesta revolta teórica e
prática contra a modernidade. A questão fatídica consiste em encontrar um
equilíbrio entre a felicidade individual e o interesse comum. Mas ao repetirmos a
questão freudiana sobre a possibilidade da felicidade, novamente intervém o
implacável realismo da psicanálise: a natureza pulsional sempre irrompe.
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“Então o que pode fazer a psicanálise para lidar com as disfunções da
modernidade? Ela pode atuar sobre as manifestações externas do mal-estar
moderno?”, nos indaga Rouanet. Cito Freud (1930): “O programa que o princípio
do prazer nos impõe — ser feliz — não é realizável, mas não podemos abrir mão
dos esforços para sua realização”.
Não estamos propondo um projeto messiânico, que possa vencer as forças
tanáticas, nem a “liquefação” dos vínculos amorosos. Mas, não podemos ignorar a
dimensão catastrófica do psiquismo e sua dimensão social nos dias atuais. Penso
que o futuro da psicanálise está na responsabilidade do psicanalista de manter
seu trabalho individual e se voltar para a dinâmica do sujeito coletivo, dirigindo,
também, o seu conhecimento para uma psicanálise nas instituições sociais.
Concluo este trabalho parafraseando Florence Guinard: desde o seu início a
psicanálise foi um método terapêutico, “e seria insensato desviá-la deste
objetivo”... Mas, os psicanalistas de hoje poderiam ajudar os indivíduos afligidos
pela mentalidade destrutiva do grupo que constitui um traumatismo silencioso,
[como o é a pulsão de morte], destruidor da identidade de base do ser humano e
da sociedade da qual faz parte (Guignard, 2005, p. 244). Acredito que essa
reflexão se impõe, inexoravelmente.
Referências
Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Zahar.
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Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard
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Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis
"El legado de Freud a 150 años de su nacimiento"
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