contraditório
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
O negócio da saúde
Bernardino Soares
Deputado do Partido Comunista
Português
A questão é mesmo esta: a de saber se a saúde
a limitação de propriedade a quatro estabelecimentos
deve ser tratada como um negócio e o medicamento
prevista na lei.
como uma mercadoria – concepção que vai ganhando
Talvez por não querer sujeitar-se aos fortes argu-
terreno ao nível da União Europeia e dos governos do
mentos contra a decisão de liberalização, o governo
nosso país – ou se deve ser um direito dos cidadãos,
esquivou-se a um debate pleno da sua proposta, desig-
conforme determina a nossa Constituição.
nadamente no parlamento, legislando por autorização
Esta opção é a que está na base da análise da questão da liberalização da propriedade das farmácias, cujo
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legislativa e decreto-lei. Mas cedo se verificou que isso
não iria estancar o debate.
pretexto foi dado pela sempre liberalizadora autoridade
De forma sibilina ou com a jactância arrogante do pri-
da concorrência. Não se trata de eliminar uma singu-
meiro-ministro, foi sendo dito que esta proposta visava
laridade jurídica ou um arcaísmo legislativo, porque a
quebrar o poder de uma associação empresarial do sec-
propriedade exclusiva de um determinado grupo pro-
tor. Mas os interesses económicos têm o poder que os
fissional existe noutras áreas da sociedade, por razões
governos permitem que tenham e foi a acção de sucessi-
igualmente válidas, sem que isso seja posto em causa.
vos governos que criou a situação de que agora os parti-
A propriedade exclusiva de farmacêuticos (o que sujeita
dos que os conduziram hipocritamente se queixam.
os proprietários ao controle deontológico da respectiva
Maior é a hipocrisia quando sabemos que foram am-
Ordem) é, aliás, a situação maioritária nos países da
plas as compensações dadas, criando em geral outras
União Europeia, o que certamente não é alheio à con-
situações contrárias ao interesse público, como sejam a
sideração de que o lucro não pode ser a razão superior
possibilidade de concorrer à privatização de farmácias
e única da gestão de uma farmácia.
nos hospitais públicos, a penalização das farmácias do
Perante este quadro, é forçoso concluir que a altera-
sector social, a abertura da possibilidade de se dispen-
ção proposta pelo governo, e em relação à qual o PCP
sarem medicamentos até aqui reservados aos hospitais
foi o único partido a votar contra, não visa resolver um
nas farmácias de oficina ou a autorização para se ofere-
problema, mas sim criar condições para o domínio da
cerem diversos actos de saúde nas farmácias.
rede da venda de medicamentos por grupos económi-
Entretanto, estas decisões enquadram-se numa po-
cos e financeiros e até pelas multinacionais dos medi-
lítica geral altamente lesiva dos interesses da gene-
camentos, que têm tudo a beneficiar com o controle
ralidade da população e que, no campo da política do
vertical do sector. Lembre-se que em regra é isso que
medicamento, se traduz, por exemplo: na progressiva
acontece em países que recentemente alteraram a re-
transferência de custos para os utentes, que se traduz,
gra da propriedade exclusiva de farmacêuticos.
de 2005 para 2006, num aumento de 5,8% dos medica-
O sector do medicamento é já um sector de muito
mentos, enquanto os custos do Estado diminuíram 1,6%;
difícil gestão, no quadro de forte dependência dos Es-
na escandalosa privatização das farmácias hospitalares,
tados perante a indústria farmacêutica multinacional.
em detrimento do desenvolvimento da função de far-
Mas mais difícil será a condução de uma política do
mácia hospitalar pública; na cedência a grandes grupos
medicamento ao serviço do interesse público quando,
económicos da distribuição, com a venda dos medica-
para além da produção e de parte significativa da dis-
mentos sem receita médica (50% nas mãos de um só
tribuição, as multinacionais puderem dominar o sector
grupo económico), sem benefício para os utentes e des-
da venda ao público, ou quando os grupos financeiros
valorizando os perigos da crescente automedicação.
tiverem uma forte posição neste sector. E tal como ago-
Também neste campo é indispensável uma ruptura
ra a limitação legal não obsta a que, como aliás reco-
com esta política e a sua substituição por uma outra
nhece o governo, haja proprietários de facto de mais do
que defenda o interesse público e o direito à saúde dos
que uma farmácia, também no futuro não será garantia
portugueses.
oirótidartnoc
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
“Da Livre Escolha
À Compra Compulsiva”
Carlos Andrade Miranda
Deputado do Partido Social Democrata
Os utentes têm o direito à livre escolha da farmácia.
de farmácias de oficina… mas permite que um único
Os estabelecimentos de saúde, tal como os hospi-
operador económico possa ser concessionário de 50
tais, bem como os médicos, não podem interferir na es-
farmácias de venda ao público à porta do hospital a
colha dos utentes, sendo-lhes vedado, nomeadamente,
funcionar 24 horas por dia 365 dias por ano.
canalizar ou angariar clientes para qualquer farmácia.
O cenário do prescritor clínico em sede de consulta
Trata-se de um direito e de um princípio basilares
externa de especialidade no hospital público a prescre-
que resultam do cruzamento de aquisições civilizacio-
ver electrónica e directamente para a farmácia à porta
nais no domínio da segurança do utente, da leal concor-
do hospital é certamente muito cómodo para aquele
rência e da qualidade do acto farmacêutico.
grupo restrito de utentes que até podem estar dispos-
Não constituiu, pois, surpresa, que este direito à livre escolha tenha sido consagrado, mais uma vez, na
tos a trocar o seu direito de livre escolha pela facilidade
de aviamento.
lei que estabelece o regime jurídico das farmácias de
Mas o utente ou consumidor geral – todos nós – aca-
oficina (artº 4º). O Estado português, porém, conduzido
ba por ser vítima daquela prática por via do prejuízo
pelo governo Sócrates/Campos, não se coibiu de violen-
trazido ao sistema regular da distribuição farmacêutica
tar estes elementares direitos.
e da especificidade do seu regime concorrencial.
Num primeiro momento, em Dezembro de 2006,
sem que estivesse ainda habilitado pela indispensável
autorização legislativa (só concedida em Abril de 2007),
o governo viola a restrição vigente tocante à propriedade da farmácia e cria, em seu próprio beneficio, a farmácia de venda ao público dentro do próprio hospital
público que é propriedade do Estado.
Temos pela primeira vez em Portugal o Estado-Distribuidor-de-Medicamentos-ao-Público.
“Os estabelecimentos de saúde, tal como os
hospitais, bem como os médicos, não podem
interferir na escolha dos utentes, sendo-lhes
vedado, nomeadamente, canalizar ou angariar
clientes para qualquer farmácia.”
Num segundo fôlego, em Agosto de 2007, o Governo
determinou que apenas podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais…
Sendo por todos sabido que a regulação em saúde,
o que imediatamente lança por terra e inviabiliza a pe-
e pois também a regulação da farmácia, são garantia
regrina ideia de o próprio Estado (que não é sociedade
sobretudo da eficiência técnica, da acessibilidade, da
comercial) ser proprietário de farmácias de oficina.
qualidade e da segurança, não acham estranho que o
Num terceiro golpe de asa, o governo, em matéria
de incompatibilidades, qual juiz em causa própria, ape-
professor Abel Mateus (AdC) se mantenha tão silencioso perante tudo isto?
nas interdita às empresas privadas prestadoras de cui-
E agora que já podemos ver com amplitude todo o
dados de saúde a detenção de farmácias, reservando
quadro, não é legítimo concluir que a liberalização da
essa faculdade para as empresas públicas prestadoras
propriedade da farmácia só serviu para engordar o Es-
de cuidados de saúde. Desigualdade flagrante, despro-
tado, permitindo-lhe, através de manifesta concorrên-
porcionada e inconstitucional.
cia desleal, financiar os deficitários hospitais públicos à
Em quarto lugar e já sem qualquer pudor, o governo
fixa um limite de quatro farmácias para os proprietários
custa de uma quota bem generosa do mercado farmacêutico de ambulatório?
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contraditório
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
A receita do PS: uma política sem remédio
O fim desta excepção sempre foi considerada pelo
Bloco de Esquerda uma boa decisão. Certos disso, dizemos também que o PS e o seu governo fizeram o mais
difícil: transformaram uma boa ideia numa má lei, desenvolveram toda uma má política a partir de uma boa
João Semedo
Deputado do Bloco de Esquerda
ideia. Tudo poderia ser diferente, se outra tivesse sido
a política do PS para as farmácias, para o medicamento
e para a actividade farmacêutica.
Aliás, muito havia a mudar antes mesmo de mexer no
Em três anos, o governo de José Sócrates provo-
regime de propriedade: prescrição por substância activa,
cou uma profunda e preocupante desregulação da
receita electrónica, distribuição em unidose, alargamen-
acti­vidade farmacêutica. Nunca qualquer outro go-
to dos genéricos a novos grupos terapêuticos, revisão do
verno tinha ido tão longe na liberalização e na mer-
sistema de comparticipações, reforma da farmácia hos-
cantilização: o medicamento é tratado como qualquer
pitalar, formulário para ambulatório. Tudo medidas do
­outra mercadoria e as farmácias como qualquer outro
programa do governo, que continuam sem ser aplicadas.
comércio.
e desarmadilhar a contestação entre os farmacêuticos
dança do regime jurídico das farmácias. Ou, dito de ou-
empurraram o governo para o sempre perigoso caminho
tra forma, teria sido possível mudar aquele regime sem
da distribuição de rebuçados, cujos resultados estão a
provocar tamanha desregulação.
revelar-se rapidamente desastrosos: a instalação de far-
Continuo a pensar que não se justificava prolongar
mácias particulares de venda ao público nos hospitais
por mais tempo o monopólio detido pelos farmacêuti-
do SNS – um verdadeiro euromilhões para alguns, mas
cos quanto à propriedade das farmácias. Não apenas
comprometendo a viabilidade das farmácias de zona; a
pela sua longevidade mas, sobretudo, por não ter qual-
transferência dentro do mesmo município e fora de con-
quer racionalidade nem razoabilidade. Aliás, o facto de
cursos e licenciamentos – podendo criar dificuldades de
o mesmo privilégio não se ter alargado a outras activi-
acesso até agora inexistentes; a transformação das far-
dades organizadas demonstra a sua natureza de excep-
mácias numa espécie de supermercados da saúde, inau-
ção. As sociedades modernas e democráticas rejeitam,
gurando de facto a verticalização do sector e alargando
por regra, regimes de excepção.
o “negócio”, sem respeito pelas competências próprias
Até hoje não ouvi nem conheço nenhum argumento
e exclusivas de outras profissões de saúde; a introdu-
que me convença da bondade daquele regime de mo-
ção de cartões de crédito, desconto e ou de pontos/pré-
nopólio superblindado e protegido.
mio típica do moderno comércio mas que, no caso das
Por um lado, considero que a liberalização da pro-
farmácias, pode incentivar o consumo desnecessário de
priedade não é sinónimo de concentração monopolis-
medicamentos e a automedicação, já superfacilitada por
ta. Basta para isso que a legislação previna e impeça
outra peregrina decisão do governo: a descompartici-
efectivamente essa possibilidade, como acontece (ou
pação de muitas centenas de medicamentos, condição
devia acontecer) noutras actividades de mercado. Não
necessária a viabilizar e alimentar o negócio das lojas de
pode deixar de recordar-se que, paradoxalmente, o fru-
venda de medicamentos sem receita médica, outra cria-
to mais visível do actual regime de exclusivo e protec-
ção destes “socialistas” que nos (des)governam.
ção da propriedade – a ANF – em tudo se comporta
Por último, ainda uma má lei porque impõe uma
como um verdadeiro monopólio, cujo poder económico
nova arquitectura para o sector farmacêutico sem es-
e financeiro permanece intocável e lhe permite explorar
tabelecer, em simultâneo, uma nova regulação do exer-
outros negócios que nada têm a ver com a actividade
cício da profissão de farmacêutico, o que, no contexto
farmacêutica propriamente dita.
de uma tão profunda mudança, pode comprometer a
Por outro lado, recuso que resida na concentração
propriedade/direcção técnica a chave da independên-
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A má consciência do PS e a necessidade de dividir
Não creio que isto se deva fundamentalmente à mu-
qualidade do serviço prestado e desproteger a sua actividade da voracidade dos interesses económicos.
cia, autonomia, isenção, ética e deontologia no exercí-
Recordo a fanfarronice do primeiro-ministro na sua
cio da actividade dos farmacêuticos. Aceitar o interesse
tomada de posse. Contra as corporações, contra os in-
económico próprio como garante das boas práticas pro-
teresses, contra os farmacêuticos. Tudo começou nes-
fissionais seria questionar e ferir a dignidade pessoal e
se dia. É caso para dizer: o que nasce torto, tarde ou
profissional dos farmacêuticos portugueses.
nunca se endireita…
oirótidartnoc
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
A Propriedade das
Farmácias
Paulo Mendo
Médico e ex­‑ministro da Saúde
Seguindo a tradicional mediocridade portugue-
rio é total, numa rede que dota o país de uma farmácia
sa de não suportar nada que funcione bem e tenha su-
para quatro mil portugueses?
cesso, não descansando enquanto tal anómala situação
Que princípio gestionário ou ideológico terá levado
não desapareça, o governo orgulha-se de ter destruído
os políticos do governo e da maioria que o apoia a que-
o “inaceitável” monopólio dos farmacêuticos, tornan-
rer modificar, sem nenhuma razão aparente, sabendo
do a propriedade das farmácias livre, podendo quem
dos resultados perniciosos que medidas semelhantes
assim o quiser e puder adquirir e explorar até quatro
causaram nos países que as tomaram (aparecimento
farmácias.
de oligopólios, passagem dos farmacêuticos a empre-
Bati-me com o pobre instrumento da escrita contra
gados, desaparecimento das PME que eram as farmá-
essa medida, com argumentos que agora repito, embo-
cias familiares), conhecendo a boa qualidade dos ser-
ra mais não sejam que argumentos vencidos!
viços prestados pela actual forma de organização do
Mas vale a pena reafirmá-los.
sector em Portugal, que princípios políticos e gestioná-
Que se pode dizer desta vontade dos políticos de
rios, repito, tornavam necessárias, úteis e tempestivas
retirarem aos farmacêuticos a propriedade do seu lugar de trabalho, do seu “consultório”, do “seu escritório”, como sucede com médicos, advogados e tantos
outros?
as medidas impostas?
Nenhuns, salvo a satisfação ridícula de verem desaparecer o que acusaram de privilégios.
Ainda se poderia admitir que o governo facilitasse o
Primeiro que tudo, que foi uma medida de ignoran-
mercado a mais farmacêuticos, diminuindo o rácio de
tes ou mal-intencionados, uma pura afirmação provo-
4000 habitantes por farmácia para valores mais baixos
catória de poder, porque não existia nenhum problema
e abrindo concursos a novos proprietários farmacêuti-
funcional, o universo das farmácias funcionava bem,
cos ou que, como sugeriu o Prof. Aranda da Silva, obri-
era constituído por cerca de três mil empresas familia-
gasse a que pelo menos 50% do capital das farmácias
res, sem possibilidade de criação de oligopólios ou mo-
pertencesse a farmacêuticos, mas não.
nopólios e baseado, apenas, no “monopólio” da compe-
Mas não, o que quiseram foi acabar com o que a sua
tência, tal como a medicina é monopólio dos médicos, a
falsa cultura de esquerda lhes dizia ser um privilégio
justiça dos magistrados e advogados ou a enfermagem
inaceitável de uma elite.
dos enfermeiros.
Evidentemente que este sector pode estar, como o
governo impôs, aberto a quem quiser investir, abrindo-se ao mercado, com concorrência, saldos, descontos e tudo o que o mercado permite com um qualquer
produto.
Mas que vantagens encontraram os socialistas na
destruição de um universo em que proprietário e técnico se reuniam na mesma pessoa, numa tradição de gerações, com óptimos resultados, em que a aquisição de
qualquer medicamento é fácil, a sua boa armazenagem
“...o universo das farmácias
funcionava bem, era constituído
por cerca de três mil empresas familiares,
sem possibilidade de criação de oligopólios
ou monopólios e baseado, apenas,
no ‘monopólio’ da competência...”
é garantida, onde a informação e o aconselhamento é
permanente e em que a distribuição espacial no territó ROF
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contraditório
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
Miguel Gouveia
A Propriedade das Farmácias
e a Defesa da Concorrência:
Uma Opinião
Professor na Faculdade de Ciências
Económicas e Empresariais da
Universidade Católica
O ponto de partida da minha opinião, que prova-
haja problemas que só engenheiros informáticos este-
velmente será comum a muitos economistas, é que as
jam qualificados para resolver, mas tal necessidade é
legislação que regula a actividade económica deve ser
independente da questão da propriedade. Da mesma
avaliada pelos resultados a que conduz, e que estes
forma, não me parece que a propriedade de unidades
resultados decorrem em grande medida dos incentivos
de saúde tenha de ser reserva exclusiva de profissio-
proporcionados por tais regras. O resultado principal
nais de saúde, sejam eles os médicos, os enfermeiros
desejado é maximizar o bem-estar da população, uma
ou os farmacêuticos.
finalidade que inclui consumidores, trabalhadores, pro-
A este argumento contrapõe-se que a liberalização
prietários, contribuintes, etc. Para isso pede-se que a
da propriedade (tanto na reserva aos farmacêuticos
actividade económica seja eficiente, e em geral, sa-
como no número de unidades de que uma mesma en-
bemos que as regras do jogo económico que mais fa-
tidade pode ser proprietário), pode ser negativa para a
cilitam a eficiência são as da concorrência. Entraves
própria concorrência, já que a liberalização da proprie-
ou barreiras à concorrência tendem a ser negativos na
dade seria seguida de aquisições, num processo que
medida em que criam ineficiências.
terminaria com a dominação do mercado por uma ou
Se só licenciados em engenharia informática pudes-
duas cadeias de farmácias.
sem ser proprietários de lojas de computadores, isso
Pessoalmente tenho dúvidas sobre tal cenário, já
seria uma barreira à entrada no mercado da distribui-
que uma boa parte das economias de escala e de
ção de computadores e outros bens electrónicos, le-
rede que as cadeias de farmácia podem ter se deve
vando a menor concorrência e a menor eficiência. Os
aos sistemas de informação e logística. Ora, esta é
preços seriam mais altos para os consumidores, e al-
precisamente uma área em que as farmácias em Por-
gum eventual aumento de lucros que ocorresse seria
tugal estão já em rede e bem equipadas, graças à
muito inferior ao valor monetário que quantificasse as
iniciativa e à capacidade da Associação Nacional das
perdas dos consumidores. Isso não quer dizer que não
Farmácias.
Uma grande parte das farmácias em Portugal são
unidades eficientes e de alto valor. Tal como noutras
áreas, é muito difícil a uma entidade externa adquirir
“...a liberalização da propriedade,
pode ser negativa para a própria
concorrência, já que a liberalização
da propriedade seria seguida de aquisições,
num processo que terminaria
com a dominação do mercado por uma
ou duas cadeias de farmácias.”
unidades bem geridas e conseguir melhores resultados. Só seria viável haver uma aquisição em série de
farmácias se estas fossem muito ineficientes e tivessem muitas deseconomias de escala. Não me parece
que essa seja uma situação generalizada.
De qualquer forma, se a formação de cadeias ocorresse e tal conduzisse à cartelização do mercado (e
uma coisa não decorre necessariamente da outra), a
sede própria para lidar com tal problema seria na área
de defesa da concorrência e não na legislação da propriedade. Em última análise, parece-me que argumentos de defesa da concorrência são inequivocamente argumentos a favor da liberalização.
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oirótidartnoc
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
A reforma inacabada
Vital Moreira
Professor na Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra
1. Desde há muitos anos que defendo a chama-
mácias isso deixou de ser assim há muito tempo, desde
da “liberalização das farmácias”, tendo sido um dos pri-
que os medicamentos preparados em farmácia (“far-
meiros a contestar publicamente o regime herdado do
mácia de oficina”) deixaram de ter expressão relevante
Estado Novo. Numa economia de mercado não existe
no comércio de medicamentos.
nenhuma razão convincente para que o comércio reta-
Por isso, o fim do monopólio profissional da proprie-
lhista de medicamentos funcione à margem dos princí-
dade farmacêutica – com salvaguarda das necessá-
pios constitucionais, nacionais e europeus, da liberdade
rias incompatibilidades e da imprescindível obrigação
de estabelecimento e da concorrência.
de assistência técnica independente por farmacêutico
A recente liberalização da propriedade das farmá-
– põe termo a uma anomalia jurídico-económica que
cias foi um passo em frente nessa direcção, aliás em
já nada justificava, salvo a defesa de interesses cor-
consonância com um movimento que se observa em
porativos.
outros países europeus. Infelizmente, a reforma ficou
muito aquém do devido, ao deixar de fora a liberaliza-
3. No entanto, a liberalização das farmácias ficou a
ção do direito de estabelecimento, mantendo a contin-
meio caminho, pois não incluiu a liberalização do seu
gentação quantitativa das farmácias.
estabelecimento, mantendo-se os limites geográficos e
populacionais à criação de novas farmácias.
2. A reserva subjectiva da propriedade das farmá-
A contingentação administrativa das farmácias é
cias constituía um caso insólito na nossa ordem jurídi-
ainda mais infundada e prejudicial do que o exclusivo
ca. Não somente pela falta de justificação para restrin-
corporativo da sua propriedade, na medida em que se
gir aos farmacêuticos a liberdade de estabelecimento
traduz numa “barreira à entrada” na actividade. De fac-
e de investimento nesse sector, mas também por esse
to, a única racionalidade da restrição ao estabelecimen-
regime gerar numerosas situações de propriedade fic-
to de novas farmácias é assegurar a rentabilidade eco-
tícia, em especial por motivo de herança.
nómica das farmácias existentes, impedindo a criação
Uma farmácia é essencialmente um estabelecimen-
de novos estabelecimentos e limitando a concorrência
to de venda ao público de medicamentos. Embora haja
entre eles. Ora, esse objectivo não constitui um interes-
incorporação de uma componente de serviço profissio-
se público, e só o benefício dos consumidores deveria
nal, o que se adquire numa farmácia não é um serviço
ser protegido por lei. Pelo contrário, a contingentação
mas sim um produto, em que o valor acrescentado do
só protege interesses privados, incluindo o elevado va-
serviço profissional é em geral despiciendo no côm-
lor especulativo de transmissão dos estabelecimentos
puto do preço final do produto. Por isso, uma coisa é
existentes. Todo o bem artificialmente raro passa a “va-
a actividade profissional do farmacêutico, outra coisa
ler” mais do que o devido, gerando situações de “enri-
é a propriedade e a gestão empresarial do estabele-
quecimento sem justa causa”.
cimento.
Além disso, é incoerente que a nova lei tenha vindo
Ao contrário do que sucede num escritório de advo-
admitir a acumulação de farmácias pelo mesmo pro-
gados ou num consultório de médicos e em situações
prietário, até ao limite de quatro, sem a liberalização do
semelhantes, em que está em causa essencialmente o
estabelecimento de novas farmácias. A possibilidade
fornecimento de serviços – podendo justificar a reserva
de concentração, que limita a concorrência, só deve-
legal de propriedade desses estabelecimentos a favor
ria ser admitida no quadro da liberdade de estabeleci-
dos respectivos profissionais (o que aliás nem sempre
mento. Mantendo-se a contingentação, deveria ter-se
sucede, como acontece com as clínicas médicas e com
mantido a proibição de concentração. Assim, foi “pior
os laboratórios de análises clínicas) –, no caso das far-
a emenda do que o soneto”...
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contraditório
novo regime jurídico para as farmácias comunitárias
Sem qualquer mais-valia
para os utentes
Henrique Reguengo
Presidente do Sindicato Nacional
dos Farmacêuticos
Assistimos hoje a uma completa mudança de pa-
ao invés de fomentar a entrega de espaços de saúde
radigma no que se refere ao exercício da actividade far-
– as farmácias – a quem deles entende, prefere esque-
macêutica no nosso País. Até agora a evolução histórica
cer essa mais-valia equiparando o farmacêutico a qual-
da ciência e da própria profissão tiveram um ritmo que
quer outro concorrente.
permitiu uma adaptação evolutiva e eficaz destes profis-
A utilização da Internet para venda de medicamen-
sionais às novas realidades. Actualmente as alterações
tos parece-nos inevitável nos dias que correm. Todos
impostas no sector derivam unicamente de interesses
sabemos, no entanto, que o excesso de acessibilidade
políticos ou económicos, que, sendo naturalmente im-
aos medicamentos em casos não urgentes pode levar a
portantes, assumiram no entanto um distanciamento tal
automedicação descontrolada e não supervisionada e,
da componente científica que retira espaço de valoriza-
por consequência, a um uso inadequado de fármacos,
ção a estes profissionais de farmácia de oficina.
com os comprovados e nefastos prejuízos da saúde pú-
De facto, parece haver uma dicotomia entre a for-
blica. Será também de esperar um aumento da procura
ma como os farmacêuticos são vistos pelos utentes e
(e de despesas) de medicamentos como consequência
o modo como são tratados pelo Estado. O Sindicato
do estímulo ao seu consumo por esta via. Um factor
Nacional dos Farmacêuticos, representando os farma-
mais preocupante a ter em conta prende-se com a fa-
cêuticos trabalhadores por conta de outrem, não pode
cilidade de acesso a medicamentos sem garantias de
deixar de manifestar o seu profundo desagrado pela
qualidade ou da proveniência dos mesmos.
forma como o actual governo patrocina a desagregação
Até agora um importante factor de garantia da quali-
de um sector altamente idóneo e responsável perante
dade e segurança do medicamento provinha do conhe-
a população que serve, com índices de qualidade ím-
cimento do canal que o medicamento segue até chegar
pares no nosso sistema de saúde.
à farmácia e ser dispensado ao utente. Há que garantir que essa cadeia de custódia se mantém, de modo
A opção de liberalizar a propriedade da
Farmácia não nos parece trazer qualquer
mais-valia para os utentes.
falsificados. O alargamento dos serviços prestados pelos farmacêuticos, sempre tido numa perspectiva de
respeito das competências próprias de cada profissão,
poderá ser uma nova oportunidade profissional. O acto
A opção de liberalizar a propriedade da Farmácia não
farmacêutico na promoção da saúde e do bem-estar da
nos parece trazer qualquer mais-valia para os utentes.
população deve ser cada vez mais valorizado, já que
Mas o que para nós é verdadeiramente incompreensível é
existe uma alta predisposição e competência para tal. A
a absoluta falta de valorização do farmacêutico no que é o
proximidade com a comunidade é uma mais-valia para
acesso ao seu exercício profissional na altura de conside-
campanhas de rastreio e acompanhamento de doenças
rar os candidatos à atribuição de um alvará de farmácia.
crónicas, bem como de interacção positiva no uso ra-
Num país com quase uma dezena de Faculdades de
52 ROF 80
a evitar problemas de distribuição de medicamentos
cional do medicamento.
Farmácia, onde o estado investe anualmente verdadei-
A possibilidade de os serviços farmacêuticos pode-
ras fortunas e onde existem actualmente cerca de 10
rem sair do espaço farmácia através das entregas ao
000 farmacêuticos, não haveria certamente qualquer
domicílio, sempre com o mesmo tipo de acompanha-
dificuldade em encontrar entre os mesmos quem asse-
mento que se pratica na venda normal, só vem com-
gurasse a cobertura farmacêutica a nível nacional em
provar a alta flexibilidade e vontade que o farmacêutico
horários alargados. Não compreendemos, assim, a von-
de farmácia comunitária tem de intervir na dinâmica da
tade governamental de implementar um sistema que,
saúde pública.
reticências...
Rainhas e reis
do disparate
Salvador Massano Cardoso
Professor de Epidemiologia
e Medicina Preventiva
De médico e de louco todos temos um pouco. Pro-
a relacionar a ingestão de leite com a obesidade, ao
vérbio bem conhecido que pode apresentar outras ver-
passo que Juliet Stevenson afirmou ter medo da vaci-
sões como a seguinte: de médico, de sábio e de louco
na tríplice porque “se injectam três doenças de uma
todos temos um pouco. Uma verdade que ninguém põe
só vez nas crianças”. Jo Wood, mulher do guitarrista
em causa. Se for pouco, nada de especial, à excepção
dos Rolling Stones Ron Wood e dona de uma marca de
de sábio. É mau ser-se pouco sábio.
produtos de beleza orgânicos, “decretou” que “o que
Esta observação prende-se com o facto de muitas
se coloca na pele vai direitinho para a corrente san-
individualidades e figuras públicas transmitirem ideias,
guínea.” Outras chegaram a afirmar que “as mulhe-
conceitos ou opiniões que cientificamente não são cor-
res devem limpar o seu sistema linfático para evitar o
rectos. Atendendo ao facto de serem ouvidas e respei-
cancro da mama”.
tadas por uma fatia nada pequena do público, este, ao
Entre nós, é habitual, nalguns programas de en-
aceitar a informação que lhe é transmitida, corre o risco
tretenimento, ouvir várias personalidades a disserta-
de ser mal informado, condicionando negativamente os
rem sobre certos assuntos sem qualquer fundamento
seus comportamentos e atitudes.
científico, inculcando conceitos errados nas cabeci-
“...ao aceitar a informação que lhe é transmitida, [o público] corre o risco
de ser mal informado, condicionando negativamente os seus comportamentos
e atitudes.”
Vários exemplos foram seleccionados pela organi-
nhas dos ouvintes, para não falar da utilização publi-
zação Sense about Science, que editou recentemente
citária de várias figuras públicas que se prestam a es-
um pequeno folheto denunciando o comportamento de
ses fins.
muita gente famosa.
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A organização Sense About Science tem denuncia-
Nesse texto estão descritas algumas frases de vá-
do estas situações no Reino Unido, sugerindo que as
rias artistas tais como: “Estou a combater os genes
celebridades, antes de abrirem as suas “reais” boqui-
perigosos através de métodos naturais, por isso estou
nhas, deviam inteirar-se junto da comunidade cientí-
convicta de que, se comer alimentos biológicos, é pos-
fica sobre o valor e a correcção das suas afirmações.
sível evitar os tumores”; ou então: “A pele é o órgão
Para o efeito disponibilizam uma linha telefónica e ou-
mais extenso do corpo. É preciso ter cuidado porque
tros meios.
muitos produtos para a pele utilizam os mesmos pro-
Ah, já me esquecia. Apesar de ter sido feita uma
dutos petroquímicos existentes nos anticongelantes
distribuição maciça de folhetos nos lugares mais fre-
dos automóveis”. A própria Madona afirmou a neces-
quentados pelo jet set, até agora nenhum dos visados
sidade de “neutralizar a radioactividade” (o que não
tentou redimir-se das suas afirmações ou feito qualquer
é possível) e a ex-mulher de Paul McCartney chega
inscrição em aulas de ciências…
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Contraditório e Reticências