CARTA PASTORAL DO CARDEALPATRIARCA
À IGREJA DE LISBOA POR OCASIÃO DA
ABERTURA DIOCESANA DO ANO DA FÉ
Introdução
1. O Santo Padre Bento XVI proclamou um
Ano da Fé, para celebrar cinquenta anos da
Abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II
e assim preparar a Igreja para a sua missão
evangelizadora, respondendo ao desafio de
uma nova evangelização. Porque é que o
Santo Padre achou que um Ano de
aprofundamento da nossa fé é o caminho
certo para o nosso reencontro com o
Concílio e podermos responder, de forma
adequada, à missão evangelizadora da
Igreja na nossa sociedade contemporânea?
É sobre isso que pretendo meditar
convosco, em Igreja, através desta Carta
Pastoral.
Há cinquenta anos o Concílio foi uma
resposta de fé às exigências da missão da
Igreja de anunciar o Evangelho no mundo contemporâneo em acelerada transformação. Ele foi,
antes de mais, uma afirmação de fé na Igreja como enviada de Jesus Cristo e sacramento de
salvação. No Concílio a Igreja olhou para si mesma com fé, meditou no seu mistério, na sua
identificação com Cristo, pois só a essa luz ela descobrirá a sua vocação à santidade, a sua
maneira de celebrar o mistério pascal, e se deixará possuir pela urgência da evangelização.
Como os Apóstolos de Jesus, ela é a enviada ao mundo, com amor, difundindo em todas as
circunstâncias da vida dos homens a luz de Cristo. É assim que começa o ensinamento do
Concílio sobre a Igreja: “Cristo é a luz dos povos”. “Ao anunciar a todas as criaturas a boa nova
do Evangelho, o Concílio deseja iluminar todos os homens com a luz de Cristo que
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resplandece no rosto da Igreja” .
O Bem-Aventurado João Paulo II, ao lançar o desafio para uma “Nova Evangelização”, disse
que ela exige, antes de tudo, “um novo ardor da fé”. Viver um Ano da Fé supõe,
necessariamente, aceitar a actualidade do Concílio como expressão da fé da Igreja e viver a
nossa fé de forma que ela tenha esse “novo ardor” que nos há-de pôr a caminho em ordem à
santidade e ao anúncio da salvação na nossa sociedade contemporânea.
A fé vista como peregrinação
2. O Santo Padre Bento XVI lembrou-nos que a fé é uma porta “que introduz na vida de
comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja (…). É possível cruzar este limiar
quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que
transforma. Atravessar aquela Porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida
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inteira” . É, pois, um longo caminho, percorrido pessoalmente e em Igreja, que dura toda a vida.
Na parábola dos trabalhadores da vinha (cf. Mt 20,1-16) é dito que se pode sempre entrar. O
Santo Padre diz que esta porta está sempre aberta; e essa porta é o próprio Cristo. Entrar por
ela é escolher uma perspectiva de vida que é a do próprio Senhor, que nos une a Ele para
vivermos como Ele viveu. É um longo caminho, comparável à experiência da peregrinação.
Durante este ano somos convidados a percorrer este caminho, em Igreja, onde nos apoiamos
uns aos outros, aprendemos uns com os outros e nos fortalecemos mutuamente, sabendo que
é o Senhor quem nos guia. O peregrino ainda não chegou ao “santuário” que o atrai; pode
perder-se no caminho, sofrer o cansaço e a tentação do desânimo. O peregrino deve manter o
coração atento Àquele que o atrai e que é o motivo da sua caminhada; deve confiar
humildemente que as agruras do caminho não impedem a chegada ao “santuário”.
3. Em Igreja diocesana, vamos continuar a nossa peregrinação da fé. Para vivermos este Ano
como uma peregrinação da fé temos de, com humildade e verdade, ver qual é o nosso ponto
de partida, quais as etapas deste caminho e qual o ponto de chegada que nos atrai.
Qual é o nosso ponto de partida, pessoalmente e como membros da Igreja? Qual é a nossa
relação com Jesus Cristo? É uma relação de amor e de fidelidade? Acreditamos que somos um
com Ele, membros do seu Corpo que é a Igreja? Como escutamos a sua Palavra? Aceitamos
que Ele muda a nossa vida? Como celebramos a Eucaristia? Damos testemunho d’Ele aos
outros homens nossos irmãos? Uma análise sincera do nosso ponto de partida, é exigida pela
sinceridade da nossa peregrinação. Precisamos de fazer este exame de consciência em Igreja.
O que Deus nos pede e nos dá é para cada um de nós, mas é prioritariamente para o seu
Corpo, a Igreja que é o seu Corpo místico. Esta peregrinação só se pode fazer em Igreja.
Só então sentimos o desejo e a coragem para percorrer as etapas desta peregrinação. Elas
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são acreditar, viver, celebrar, testemunhar . Em cada uma destas etapas aprofundamos o
desejo de alcançar o termo da nossa peregrinação, alcançar a terra prometida. A caminhada
da fé perde densidade e sentido sem a esperança da vida eterna. A Palavra do Senhor é
sempre Promessa. Viver a vida com Cristo é esperar e desejar participar um dia na sua glória
de ressuscitado, na vida definitiva em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.
Durante esta nossa peregrinação temos de purificar este desejo da vida definitiva em Deus. O
que significa, para nós, esta caminhada para a vida eterna? Estamos demasiadamente
marcados e motivados pela vida neste mundo, sem aceitar que ela é efémera e passageira,
que o Senhor nos criou para a vida eterna. A Liturgia, que é a principal expressão da fé da
Igreja, aviva-nos sempre essa esperança. É na Eucaristia que a Igreja se sente peregrina da
Jerusalém celeste e que descobre que a vida presente pode ser vivida ao ritmo da eternidade,
como primícias da vida definitiva.
Supondo que cada um de nós purifica, na humildade e na verdade, o momento presente da
sua fé, tomemos consciência das etapas que queremos percorrer nesta peregrinação.
A surpresa da salvação
4. A fé, para quem entra pela primeira vez pela “porta da fé”, e para todos os que querem
percorrer esse caminho novo, torna-se a surpresa da salvação. Em que consiste essa surpresa?
Deus criou o homem à sua Imagem, para atingir a felicidade e a plenitude da vida na
comunhão de amor com Ele e n’Ele com todos os homens seus irmãos. Para isso ser possível,
Deus criou o homem livre. A felicidade que deseja para nós, tem de ser querida e escolhida. A
essência da liberdade é a capacidade de escolher sempre a verdadeira vida e o amor. Mas foi
exactamente no exercício dessa liberdade que o homem se afastou de Deus, e isso alterou
profundamente a qualidade e o sentido da sua vida. O homem foi expulso do paraíso que já
existia neste mundo, em diálogo harmónico com toda a criação, criada para o homem. O
destino último da família humana ficou comprometido, embora todos os homens tenham
guardado no seu coração o desejo da harmonia com Deus.
Será que Deus ficou tão triste e magoado que abandonou a humanidade ao seu destino?
Mostra que não quando lhe dirige a sua Palavra, em acontecimentos que são sinais do seu
amor e na palavra dos Profetas. Deus diz aos homens que não os abandonou, que os ama,
que continua a querer para eles a felicidade eterna. Quando o homem escuta essa Palavra,
fica comovido, acredita, reacende a esperança. A fé dá-lhe segurança. No hebraico antigo a
palavra acreditar significa sentir-se seguro, firme para caminhar, concretizando uma
característica do ser humano de procurar a sua segurança no amor. Se isso é verdade no amor
humano, como é firme a segurança que experimentamos quando sentimos que Deus nos ama.
A fé é a resposta do homem a essa manifestação do amor de Deus. A fé traz consigo a
esperança de vencer o pecado que nos separa de Deus e de reconstruir a intimidade com Ele.
Ela não tem a luz da felicidade original, não nos faz experimentar ainda o esplendor da vida
eterna. É uma adesão humilde e corajosa ao amor de Deus que nos quer salvar. É uma etapa
exigente e redentora, donde brota já uma luz nova, a luz da fé, que ilumina o caminho a
percorrer, mas que tem a exigência da redenção. O caminho novo que ela nos abre exige
conversão e redenção. Deus promete-nos a plenitude da vida eterna, mas isso supõe uma
transformação da vida, já neste mundo, tornando-a digna de viver com Deus. Não se vai para o
Céu só porque Deus é bom e esquece os nossos pecados; temos de aceitar a conversão da
nossa vida, a purificação da nossa liberdade, que Deus vai fazendo em nós na caminhada da
fé. Tudo isto se radicalizou e tornou definitivo quando a Palavra eterna de Deus encarnou e se
exprimiu em Jesus Cristo. É com Ele que temos de percorrer esse caminho novo, com o seu
amor e a força criadora do seu Espírito. Ele é o nosso Bom Pastor. Mas a redenção é exigente.
A Ele exigiu-lhe o dom da própria vida; a nós que peregrinamos na fé exige que nos unamos a
Ele na sua cruz. O peregrino da fé, unido a Jesus, suporta toda a agrura da caminhada, nunca
desiste e se, por momentos falha, pode sempre contar com a bondade do seu perdão.
Escutar a Palavra de Deus
5. A Palavra de Deus é a grande protagonista da História da Salvação. Nela Deus revela-se
como Deus-amor; escutá-l’O é conhecê-l’O, não teoricamente, mas numa experiência de vida,
porque a salvação é um caminho de redenção que exige uma nova maneira de viver. Deus
revela-nos na sua Palavra o caminho dessa vida nova. A Palavra de Deus foi sempre
comunicada aos homens com três dimensões: ela é revelação, é Lei ou mandamento, porque
indica o caminho da redenção e é promessa porque anuncia o que Deus tem preparado para
aqueles que O escutam e seguem o caminho que lhes indica. Acolher a Palavra é acreditar.
Mas a escuta da Palavra contem em gérmen toda a perfeição cristã: a fé, porque a Palavra é
revelação; a esperança, porque a Palavra é promessa; o amor, porque nos desafia à intimidade
com Deus e nos convida à obediência aos mandamentos do Senhor.
Desde sempre este diálogo de Deus com o seu Povo valoriza o homem, tem em conta as
capacidades do coração humano; é um processo de encarnação, isto é, de manifestação de
Deus através do humano. No Antigo Testamento os Profetas para anunciarem, com a sua
própria palavra, a Palavra de Deus, são possuídos por ela. Deus fala-lhes com tanta força que
os leva a anunciarem como Palavra de Deus o que Deus lhes disse. Este dinamismo torna-se
pleno e definitivo em Jesus Cristo, Palavra eterna, humanizada em Jesus de Nazaré. Tudo em
Jesus é Palavra de Deus e não apenas as palavras da sua pregação. A partir desse momento
em que a Palavra eterna de Deus, o Seu Verbo, se fez Homem no seio de Maria, basta acolhêl’O, escutando o que Ele ensina, seguindo-O com a totalidade da nossa vida, amando-O,
partilhando com Ele o caminho da redenção. Ele é plenamente revelação, Lei e promessa. É
por isso que, na tradição cristã se tornou claro que o que Deus pede ao cristão é que escute
Jesus Cristo. É descobrir e sentir que quando ouvimos a Palavra de Deus no Antigo
Testamento, é escutar Jesus Cristo. “Este é o Meu Filho muito amado, que tem todo o Meu
favor. Escutai-O” (Mt. 17,5). Escutar o Senhor é acolhê-l’O na totalidade do seu mistério.
6. A nossa peregrinação da fé tem de ser marcada por esta escuta de Jesus Cristo, da sua
Palavra, da sua Pessoa, dos seus mandamentos, da sua promessa. No dia do Pentecostes
Pedro, cheio da força do Espírito, proclama solenemente o mistério de Jesus Cristo (cf. Act.
2,14-36). O texto dos Actos refere-nos a atitude dos que escutaram este anúncio de Pedro: “Ao
ouvirem isto, sentiram o coração trespassado e disseram a Pedro e aos Apóstolos: irmãos, o
que devemos fazer?” (Act. 2,37). O anúncio de Jesus Cristo, com a força da fé de quem o faz,
rasga o coração. Mais uma vez o anúncio da salvação é uma surpresa. Jesus Cristo, se O
escutarmos e O acolhermos, rasga-nos o coração, é como se a nossa vida começasse de novo.
Percebe-se a pergunta que os ouvintes fazem aos Apóstolos: e agora o que temos de fazer?
Eles vão perceber, em Igreja, que Cristo é o caminho, e que segui-l’O e imitá-l’O é o novo
caminho de vida.
Neste Ano da Fé precisamos, antes de mais, que a Palavra seja proclamada com o ardor com
que os Apóstolos o fizeram no dia de Pentecostes. A proclamação do Evangelho não é, apenas,
o anúncio de uma doutrina, mas da Pessoa de Jesus. Só essa toca no coração e o transforma.
Isto desafia todos os anunciadores da Palavra, sacerdotes, diáconos, leitores, catequistas. Que
ninguém proclame a Palavra sem antes a ter meditado e rezado sobre ela. Como nos profetas
é preciso deixar que ela penetre em nós e nos invada, para a podermos anunciar. A nova
evangelização supõe esse “novo ardor” na escuta da Palavra que, por ministério, devemos
anunciar.
Acreditar é viver uma vida nova
7. No Novo Testamento escutar a Palavra de Deus é escutar a Palavra de Jesus e a totalidade
da sua Pessoa, porque a sua Palavra, Ele próprio, é a Palavra do Pai (cf. Jo. 12,49). Esta
Palavra de Deus é criadora, realiza sempre o que anuncia, desde que seja escutada. Todo o
efeito transformador da Palavra é obra de Deus em nós, naqueles que escutam a Palavra de
Jesus e a guardam (cf. Lc. 8,15).
Os profetas chamam a esta acção transformadora da Palavra um “coração novo” (cf. Ez. 37,2728). Na linguagem cristã essa transformação chama-se conversão. A fé é um caminho
contínuo de conversão.
Deus indica àqueles que acreditaram o caminho dessa vida nova, luta de todos os dias
enquanto estivermos neste mundo. A indicação desse caminho faz parte da mensagem da
Palavra de Deus, é vontade do próprio Senhor. Já vimos que a Palavra de Deus, além de ser
revelação é Lei, isto é, mandamento, indicação do caminho da vida nova, da fidelidade a Jesus
que nos convida a segui-l’O. Não há caminhada da fé sem fidelidade aos mandamentos.
E qual é esse mandamento do Senhor, os mandamentos da Lei de Deus, como aprendemos
no catecismo? “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com
todas as tuas forças e com toda a tua mente e ao teu próximo como a ti mesmo”, respondeu o
doutor da Lei a Jesus. E este acrescentou: “faz isso e viverás” (Lc. 10, 27-28). Já no Antigo
testamento se acreditava que este mandamento resumia toda a Lei e todo o ensinamento dos
profetas. No catecismo aprendemos que os dez mandamentos da Lei de Deus se resumem a
dois: amar a Deus e amar o próximo.
Não se trata de dois amores, ambos são a expressão da caridade, participação na vida de
Deus que é amor. São João, na sua primeira Carta é claro: Se alguém disser amo a Deus, mas
odeia o seu irmão, é um mentiroso, pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode
amar a Deus que não vê” (1Jo. 4,20).
O amor dos irmãos é, para nós, o sinal de que entramos na vida nova: “nós sabemos que
passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1Jo. 3,14). Jesus tinha ensinado
os discípulos: o que fizerdes a um dos meus irmãos mais pequeninos, é a Mim que o fazeis (cf.
Mt. 25,40).
8. Na peregrinação da fé é fundamental tomar a sério os mandamentos, isto é, o caminho que
o Senhor indica àqueles que O seguem. Vivemos num tempo em que facilmente se relativizam
os mandamentos, contrapondo a nossa liberdade à Palavra de Deus, que encontra eco
actualizado na palavra da Igreja. Viver o Ano da Fé exige de nós a coragem de praticar os
mandamentos. Eles são o caminho da caridade, e não há fé viva sem caridade.
O amor do próximo é um caminho seguro e ao nosso alcance para o amor de Deus. O nosso
amor aos nossos irmãos é a encarnação do amor com que Deus os ama. Os mandamentos de
Deus convidam-nos, antes de mais, a valorizar a nossa vocação de comunhão. Na família,
Igreja doméstica, célula base da Igreja comunhão de amor. O amor dos esposos, o amor dos
pais aos seus filhos e destes aos seus pais, que encontra a sua força no sacramento do
matrimónio. O amor familiar encontra a sua principal expressão no amor casto de um coração
puro. A castidade não é a negação da sexualidade, mas a sua vivência, que não é desligável
da ternura que exprime sempre a beleza do amor generoso. A sexualidade é um dinamismo de
dom e de procura do bem dos outros. Quando é vivida como busca egoísta do prazer, não
exprime o amor e pode tornar-se em violência e desrespeito pela dignidade do outro. O
respeito pela vida, a própria e a dos outros, nada fazendo que a agrida ou prejudique. O amor à
verdade, não construindo a vida sobre mentiras ou meias verdades. Cristo é a verdade e
procurá-la é ir ao encontro do Senhor. Não ter o coração demasiadamente apegado aos bens
materiais, o que afasta o nosso coração dos bens definitivos e nos afasta da alegria do dom e
da partilha.
Tudo isto são expressões de quem ama a Deus, amando o seu próximo. A caridade fraterna,
nas circunstâncias concretas da nossa sociedade, é um chamamento exigente na nossa
peregrinação da fé.
Amar a Deus rezando
9. O primeiro mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas” encontra na oração a sua
expressão principal o que define a oração como uma expressão do amor. Aquele “novo ardor”
da fé exprime-se na oração. Este Ano da Fé tem de ser desafio de aprofundamento da oração.
A oração do cristão tem características que é bom recordar: antes de mais é sempre feita
através de Jesus Cristo pois só Ele nos leva ao Pai e nos faz mergulhar no mistério de Deus.
Em segundo lugar ela é fundamentalmente oração da Igreja. O Povo do Senhor é o verdadeiro
sujeito da oração. Mesmo quando esta é individual, busca pessoal da intimidade com Deus,
cada cristão deve ter consciência de ser membro da Igreja: na sua oração é a Igreja que reza.
É por isso que a Liturgia é a forma privilegiada de rezar, pois ela é sempre oração da Igreja e
que se deve prolongar na oração individual ou em grupo, inspirando-a. Durante este Ano da Fé
procuremos descobrir a força e a beleza da oração litúrgica, a Eucaristia, o ofício das horas, a
celebração de todos os sacramentos. Na Eucaristia a ponte entre a oração da Igreja e a oração
pessoal é garantida pela adoração eucarística. É o Senhor ressuscitado, realmente presente na
Eucaristia que reconduz a nossa oração pessoal à qualidade de ser oração da Igreja.
10. A oração tem a mesma génese da fé: a escuta da Palavra de Deus, deixando que ela
penetre, “como espada de dois gumes”, na inteligência e no coração. Acolher a Palavra gera a
fé e desabrocha na oração. Para nós cristãos escutar a Palavra é acolher a Pessoa de Cristo,
nos seus ensinamentos, na sua vida oferecida por nós, na sua ressurreição que é, para nós, a
promessa da vida eterna.
Demos lugar à Palavra nas nossas celebrações, proclamando-a bem, meditando-a com fé,
percebendo a mensagem encarnada em cada circunstância da nossa vida, do Povo a que
pertencemos, da Igreja que amamos.
Na nossa Igreja de Lisboa faremos tudo para ajudar a descobrir a oração, escutando a Palavra.
No novo Centro de Oração, em Sintra, em silêncio, tudo o que a pedagogia da oração nos
pode dar será disponibilizado. É urgente, na nossa Diocese, aprender a rezar, pois isso
significará aprender a celebrar, a deixar que o amor envolva a nossa vida, a esperar o encontro
definitivo com o Senhor, na Casa do Pai.
A Palavra de Deus é promessa
11. Toda a Palavra de Deus nos abre para a esperança da vida eterna. A verdadeira fé inclui o
desejo do encontro definitivo com Ele, de participarmos na Sua ressurreição e de contemplar o
Seu rosto. A fé só será verdadeira peregrinação se vamos a caminho do santuário definitivo, a
Jerusalém celeste.
Este é um ponto frágil da fé de muitos cristãos. Estão demasiadamente centrados na vida
deste mundo. Porque a morte é inevitável, aceitam uma vida depois da morte como solução
para o irremediável. É como se dissessem “do mal o menos”. Ora na mensagem de Jesus, dos
Apóstolos e dos Santos, a vida depois da morte é participação plena na glória de Jesus Cristo,
é a realidade perfeita e definitiva que desejamos, é a vida que nos foi dada. Somos peregrinos
desse santuário, onde veremos a Deus tal qual é, e onde conviveremos, na alegria, com Maria,
a Rainha desse Céu, os Santos a quem rezamos, os nossos irmãos que nos precederam e que
encontraremos na alegria definitiva. A Igreja só é uma comunidade, porque é um Povo a
caminho, a antecâmera da comunidade definitiva.
Nos textos da Liturgia que celebramos esta esperança na vida eterna está continuamente
presente, como prece de um Povo a caminho, como afirmação da esperança. Mas esta
abertura à glória futura deve nascer no nosso coração, aprendendo a não valorizar as
realidades presentes como definitivas, sobretudo, ao escutar a Palavra do Senhor, a desejar
conhece-l’O perfeitamente, participar totalmente da sua vida e do seu mistério.
Sereis minhas testemunhas…
12. Deus ama todos os homens e a todos quer conduzir para a plena alegria da vida. Desde a
palavra dirigida aos profetas, sempre escolheu o caminho da encarnação para atrair os
homens a Si. Foi por isso que o Filho de Deus se fez Homem e Se uniu definitivamente a todos
os homens. No desígnio de Deus o anúncio do seu amor pelos homens deve ser feito por
homens que já se deixaram conquistar por esse desejo amoroso de Deus. A plenitude deste
processo de humanização da salvação, é o Homem Jesus Cristo, Filho de Deus. Àqueles que
uniu a Si, envia-os como testemunhas. Eles tornam-se palavra e a sua vida pode ganhar a
força da própria Palavra de Cristo.
Nesta peregrinação da fé somos chamados a assumirmo-nos como testemunhas do amor
salvífico de Deus, em Jesus Cristo. A vida das outras pessoas que convivem connosco pode
depender da ousadia do nosso testemunho. Foi por isso que o Papa João Paulo II, ao lançar o
desafio da Nova Evangelização, lhe enunciou como primeira condição um “novo ardor da fé”,
que pode levar à ousadia de descobrir novos caminhos. Este “novo ardor” da fé, faz de cada
cristão um enviado a anunciar, deve reflectir-se na fé pessoal e na qualidade das estruturas
pastorais da Igreja.
Porque esta peregrinação da fé é feita em Igreja e não cada um isoladamente, as pessoas e as
estruturas pastorais devem ser repassadas deste ardor da fé. Essas estruturas só se justificam
para anunciar e fazer crescer, na fé, toda a nossa Igreja diocesana. O Santo Padre Bento XVI
em visita pastoral ao seu País de origem, lança um alerta que, embora tendo em conta as
diferentes realidades, nos deve interpelar a nós: “Na Alemanha, a Igreja está optimamente
organizada. Mas, por detrás das estruturas, porventura existe também a correlativa força
espiritual, a força da fé no Deus vivo? Sinceramente devemos afirmar que se verifica um
excedente das estruturas em relação ao Espírito. Digo mais: a verdadeira crise da Igreja no
mundo ocidental é uma crise de fé. Se não chegarmos a uma verdadeira renovação da fé,
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qualquer reforma estrutural permanecerá ineficaz” .
Desde a nossa Cúria Diocesana, às estruturas vicariais e paroquiais, toda a organização
pastoral é chamada a renovar-se, no ardor da fé e da missão, durante este Ano da Fé.
Com Maria, Mãe da Igreja
13. Nesta peregrinação da fé, somos guiados por Maria, a Estrela da Manhã e Mãe da Igreja. A
devoção a Nossa Senhora é um traço forte do catolicismo português. Devemos viver este Ano
da Fé, aprendendo a só dar a Nossa Senhora o lugar e o papel que Deus lhe deu, em união
com o Seu Filho Jesus Cristo. É como Mãe de Cristo e da Igreja que ela é nosso farol, nossa
protectora e nosso guia. Só daremos a Nossa Senhora o lugar que Deus lhe deu se fizermos
esta caminhada da fé em Igreja. Ela vai connosco porque pertence à Igreja, é membro e
modelo da Igreja, na maneira como escutou a Palavra que lhe mostra a vontade de Deus e lhe
obedeceu, na radicalidade com que assumiu a missão do seu Filho Jesus Cristo, acolhendo a
espada de dor que lhe trespassou o coração; na plenitude com que participou da ressurreição
de Jesus e foi coroada com a glória dos bem-aventurados. Cada passo da nossa caminhada,
deu-o Ela plenamente, continua a dá-lo connosco. A Ela deu-lhe Deus, misteriosamente, desde
o primeiro momento da sua vida, um coração imaculado. Oh! Como ela sabe que só podemos
percorrer este caminho com um coração puro, um coração novo, capaz de escutar a Palavra,
florir no amor e desejar a alegria definitiva em Deus.
Lisboa, 25 de Outubro de 2012, Solenidade da Dedicação da Sé Patriarcal
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
1 Lumen Gentium (LG), nº 1
2 Bento XVI, Porta Fidei (PF), nº 1
3 Bruno Forte, in Eis o Mistério da Fé, ed. Paulinas, 2012
4 Bento XVI, Encontro com o Comité Central dos Católicos Alemães (ZDK), 24 de Setembro de
2011
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CARTA PASTORAL DO CARDEAL- PATRIARCA À IGREJA DE