III SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2014
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E se as plantas não tivessem nome?
A importância do Código de Nomenclatura Botânica
Elton John de Lírio1,* & Valderes Bento Sarnaglia Júnior1
1
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
*
Email para correspondência: [email protected]
Desde tempos remotos os seres humanos nomeiam tudo que é possível para facilitar o uso
no dia-a-dia, desde objetos, a pessoas, animais e plantas. Se você vai à feira, na tarefa de
comprar uma dúzia de ovos, um quilo de bananas ou de feijão é necessário o uso dos nomes
que cada produto possui. Já imaginou como seria muito mais difícil ter que descrever para o
vendedor cada desejado de lista? Ou ainda podemos imaginar, se cada pessoa utilizasse um
nome diferente para cada produto. Sem dúvida, pedir por um item e o vendedor lhe trazer
outro seria um tanto embaraçante. Mas se analisar um pouco, é possível perceber que várias
plantas tem nomes diferentes ao redor do mundo; seja de um país para outro, de região para
região ou até no mesmo local. Tais nomes são chamados “nome popular” ou “nome
vernáculo”. A exemplo, podemos citar o “aipim” (Manihot esculenta Crantz), espécie da
família Euphorbiaceae, de origem sulamericana, largamente utilizada na alimentação,
especialmente suas raízes, que também pode ser conhecida em algumas regiões do Brasil
como “macaxeira” ou “mandioca”, ou “cassava” no inglês (EMBRAPA 2014). Outro
exemplo é o “gengibre” (Zingiber officinale Roscoe, Zingiberaceae), utilizado na medicina e
na alimentação, é conhecido como “mangarataia” na região Norte do Brasil, e em inglês
como “ginger” (Mahady et al. 2003).
Por outro lado, diferentes espécies podem compartilhar o mesmo nome, inclusive espécies
de famílias distintas. O “boldo” pode se referir a
Plectranthus barbatus Andrews, da
família Lamiaceae, Gymnanthemum amygdalinum (Delile) Sch. Bip. ex Walp., Asteraceae e
Peumus boldus Molina, Monimiaceae; é necessário notar que neste caso as espécies são de
diferentes famílias, mas tem uma finalidade semelhante na medicina popular; possuem o
mesmo nome numa mesma região e duas delas apresentam efeitos colaterais (Agra et al.
2008). Outro caso de diferentes espécies que compartilham o mesmo nome popular são as
espécies do gênero Piper, família Piperaceae e Pilocarpus microphyllus Stapf. ex
Wardleworth, Rutaceae, popularmente conhecidas como “jaborandi” (Guimarães &
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Monteiro 2006, Taveira et al. 2003), mas que possuem aplicações bastante diferentes, P.
microphyllus é utilizado no combate à calvície e as espécies do gênero Piper são utilizadas
como ansiolítico, indutor de sono, relaxamento (Barbosa et al. 2013), antiinflamatório e
antimicrobiano (Morandim-Giannetti et al. 2011). Deste modo, o emprego de nomes
científicos possibilita que por meio de um binômio (acompanhado por seu autor), seja
reconhecida a identidade de uma espécie em qualquer canto do mundo, pois cada espécie é
portadora de um único binômio. Isso te assegura que quando comprar um xampú antiqueda,
estará adquirindo um produto com extrato de P. microphyllus e não de Piper umbellatum L.,
por exemplo. Mas é importante salientar que os nomes vernáculos também tem importância
para a sociedade, especialmente num contexto regional.
O binômio é composto pelo gênero, epíteto específico e autor da espécie. Além de fornecer a
identidade da espécie, o binômio também fornece pistas acerca do relacionamento
filogenético, uma vez que o epíteto genérico fornece o gênero a que a espécie em questão
pertence, ou seja, o grupo de plantas com quem esta espécie mais compartilha
características, enquanto o epíteto específico informa qual é a identidade da espécie dentro
do gênero. Obviamente é importante utilizar binômio e não somente o epíteto específico,
pois os mesmos epítetos específicos podem se repetir em diferentes gêneros. É também
importante o uso do autor que descreveu a espécie, uma vez que o mesmo binômio pode ter
sido utilizado por outro autor, já que os epítetos muitas das vezes se referem a características
das espécies ou ao coletor, e nesse caso é possível estar tratando de um nome para dois
diferentes táxons (mas neste caso, obviamente, somente um dos nomes é válido, tem
prioridade o mais antigo validamente publicado). O nome dos autores possui abreviações
padrões, a relação de autores e suas respectivas abreviações padronizadas podem ser
consultadas no IPNI (Índice Internacional de Nomes de Plantas, disponível em
www.ipni.org).
Os nomes científicos de plantas são elaborados à luz da nomenclatura botânica, que é regida
por um código com princípios, artigos, regras e recomendações, o Código Internacional para
Plantas, Fungos e Algas (CIPFA). O CIPFA auxilia na padronização desses nomes, previne
para que não haja duplicidade de nomes, permite que ele seja aceito pela comunidade
científica mundial e facilita a divulgação de informações atreladas às espécies. Os princípios
presentes no CIPFA servem de base para a nomenclatura botânica, são estes seis
relacionados a seguir: (1) “a nomenclatura botânica é independente da nomenclatura
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zoológica e bacteriológica. É aplicado a todos os grupos taxonômicos tratados como plantas,
mesmo que originalmente não tenham sido tratados como tal”; fungos e cianobactérias são
tratados no CIPFA; (2) “a aplicação de nomes de grupos taxonômicos é determinada de
acordo com tipos nomenclaturais”. Os tipos nomenclaturais são geralmente amostras
biológicas de plantas, denominadas exsicatas, que são depositadas em herbários. Cada nome
tem um tipo nomenclatural ao qual ele está fixado, este tipo também serve como referência
para determinar se outro espécime pertence àquela espécie, por meio de comparação. O tipo
nomenclatural também pode ser em alguns casos, uma imagem, como uma ilustração ou
fotografia; (3) “cada grupo taxonômico com posição e nível pode ter apenas um nome
correto, que é o primeiro que tenha sido publicado de acordo com CIPFA, exceto em casos
específicos previstos pelo Código”; (4) “os nomes científicos são tratados como nomes
latinos, independente da palavra (s) de que seja (m) derivado (s)”, quando derivados de
outros idiomas, devem ser latinizados; (5) “as regras de nomenclatura são retroativas, exceto
nos pontos em que tal retroatividade seja limitada pelo Código”. Neste caso, para a
generalidade, a retroatividade vai até 1 de maio de 1753, que se refere à publicação da obra
Species Plantarum de Linnaeus, foi também nesta obra que o sistema binomial foi proposto.
Anteriormente, no sistema polinomial, as espécies eram nomeadas de acordo com um
conjunto de características que as distinguia das outras, por exemplo, Rosa sylvestris alba
cum rubore folio glabro (Rosa silvestre branca com folhas avermelhadas sem pelos). Ao
contrário do anterior, o sistema binomial não necessariamente precisa descrever uma planta,
mas somente servir como identificação para aquele táxon.
Atrelado aos binômios há fonte de informação inestimável. Seja na literatura disponível para
as espécies, ou pelas coleções biológicas que desempenham um importante papel. Os
espécimes depositados em herbários podem fornecer informações de habitat, distribuição
geográfica, interações, variação morfológica, usos etnobotânicos, etc. As avaliações de risco
de extinção das espécies são majoritariamente baseadas nas informações disponíveis nos
herbários, principalmente, as informações de distribuição geográfica. Por isso, a aplicação
adequada de um binômio é essencialmente para a conservação da espécie. Se um ou mais
nomes não são bem aplicados, é possível que se esteja ampliando ou diminuindo a
distribuição geográfica de uma ou mais espécies.
Além de serem fonte da informação disponível por meio dos espécimes, as coleções
biológicas também são o repositário dos espécimes tipo. O CIPFA prevê seis categorias de
tipo, aqui vamos brevemente cada uma delas. Holótipo: o holótipo é o elemento principal
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escolhido pelo autor para representar a espécie, ele é geralmente um espécime, mas pode ser
também uma ilustração. Quando o autor não designa um holótipo, mas o material tipo é
composto por um único espécime, este deve ser considerado holótipo. Isótipo: o isótipo é a
duplicata do holótipo, ou seja, uma porção da coleta escolhida como holótipo depositada
geralmente em um herbário diferente. O isótipo também pode ser um fragmento do holótipo,
desde que o fragmento esteja depositado em um herbário. Parátipo: o parátipo é um material
examinado pelo autor, e citado na obra de descrição da espécie, mas que se constitui de uma
coleta diferente do holótipo. Síntipos: os síntipos são espécimes analisados pelo autor na
descrição da espécie, quando há mais de um material tipo e o autor não designou um
holótipo. Lectótipo: o léctótipo deve ser designado após a descrição da espécie, no caso de o
material tipo ser composto por síntipos ou quando o holótipo foi destruído ou está perdido.
O lectótipo deve ser escolhido prioritariamente na seguinte ordem: dos isótipos ou sintipos,
quando existir, dos parátipos, quando existir, dos materiais originais não citados, quando
existir, de ilustração original. Epítipo: um epítipo deve ser designado quando o material tipo
disponível é dúbio ou impossibilita o reconhecimento do táxon. Ele serve como um
complemento para o lectótipo ou holótipo. Neótipo: um neótipo deve ser designado quando
nenhum espécime tipo ou ilustrações originais estão disponíveis, ele deve preferencialmente
ser da mesma localidade em que o tipo da espécie foi coletado (localidade tipo). Se o
holótipo for reencontrado, o lectótipo ou neótipo perdem sua validade.
As provisões detalhadas estão divididas em regras, organizadas em artigos e recomendações.
Exemplos são acrescidos às regras para ilustrá-las. As regras organizam a nomenclatura no
passado e proveem para o futuro, para que um nome seja válido, este precisa estar de acordo
com as regras. As recomendações buscam a padronização, mas não são obrigatórias para que
o nome seja considerado válido. Mas o Código não é estático, alterações podem ser
propostas continuamente por meio da submissão da proposta na Revista Táxon (IAPT,
Associação Internacional para Taxonomia de Plantas), é posteriormente votada durante a
sessão de nomenclatura do Congresso Internacional de Botânica. Dentre as principais
novidades da última edição do Código (McNeil et al. 2012), estão as possibilidades de
publicação de táxons com diagnose em inglês, ou seja, a descrição das características que
diferenciam o táxon novo dos demais (anteriormente a diagnose deveria ser em latim), e a
publicação de táxons em revistas online.
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Literatura citada
Agra M. F., Silva K. N., Basílio I. J. L. D., França P. F., Barbosa-Filho J. M. 2008. Survey
of medicinal plants used in the region Northeast of Brazil. Revista Brasileira de
Farmacognosia 18: 472-508.
Barbosa D. R., Lenardon L, Partata K. 2013. Kava-kava (Piper methysticum): uma revisão
geral. Revista Científica do ITPAC, Araguaína, 6 (3): 30-49.
Embrapa
2014.
Mandioca.
Disponível
em
https://www.embrapa.br/mandioca-e-
fruticultura/cultivos/mandioca., acessado 01/08/2014.
Guimarães, E. F. & Monteiro D. 2006. Piperaceae na Reserva Biológica de Poço das
Antas, Silva Jardim, Rio de Janeiro, Brasil. Rodriguésia 57 (3): 569-589.
Mahady G. B., Pendland S. L., Yun G. S., Lu Z. Z., Stoia A. 2003. Ginger (Zingiber
officinale Roscoe) and the gingerols inhibit the growth of Cag A+ strains of
Helicobacter pylori. Anticancer Research 2003 23 (5A): 699-702.
McNeill J., Barrie F. R., Buck W. R., et al., eds. 2012. International Code of Nomenclature
for algae, fungi, and plants (Melbourne Code), Adopted by the Eighteenth
International Botanical Congress Melbourne, Australia, July 2011 (electronic ed.).
Bratislava: International Association for Plant Taxonomy.
Morandim-Giannetti A. A., Cotinguiba F., Regasini L. O., Frigieri M. C., Varanda E. A.,
Coqueiro A, Kato M. J., Bolzani V. S. & Furlan M. 2011. Study of Salmonella
typhimurium mutagenicity assay of (E)-piplartine by the Ames test. African Journal
of Biotechnology 10 (27): 5398-5401.
Taveira F. S. N., Andrade E. H. A., Lima W. N. & Maia J. G. S. Seasonal variation in the
essencial oil of Pilocarpus microphyllus Stapf. Anais da Academia Brasileira de
Ciências 75 (1): 27-31
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