Abril | 2012
Portugal e as dificuldades estruturais da Europa, para além do LTRO
As notícias vindas da Europa nos últimos meses trouxeram, de um modo geral, uma percepção de que o risco de uma ruptura iminente havia sido atenuado.
Visto em retrospecto, o anúncio de operações agressivas de provisão de liquidez pelo Banco Central Europeu parece ter desempenhado um papel importante. Tais
operações, denominadas LTRO na sigla em inglês, ofertaram recursos em prazos longos (3 anos) a custo muito baixo(1% a.a.) e sem restrição de volume, com a
possibilidade de que os bancos utilizassem uma ampla gama de ativos como colaterais para acessá-las. Em adição ao LTRO, a Grécia teve relativo êxito em encaminhar
uma reestruturação ordenada de sua dívida, ao mesmo tempo em que chegou-se a um entendimento para mais um pacote de ajuda ao país, com envolvimento do FMI
e da União Europeia. Dessa forma, foi possível evitar um calote desordenado da dívida no mês de março.
A despeito do alívio trazido por essas notícias, porém, acreditamos que a crise europeia esteja ainda longe do seu final. De um modo geral, as dificuldades
estruturais permanecem presentes em países como Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália, todos com combinações, em intensidades diversas, de desequilíbrios
fiscais e sobrevalorização da taxa de câmbio real. Neste comentário, vamos nos concentrar na situação de Portugal, que nos parece ser um fator de risco importante
para a estabilidade da Zona do Euro.
Como foi, em geral, o caso nos países periféricos da união monetária, Portugal experimentou uma acentuada queda das taxas de juros nos anos 90 e nos
primeiros anos do século XXI, à medida que se avançou no processo de criação da moeda única. Isto provavelmente ocorreu pela percepção de que a união monetária,
além de trazer redução do risco inflacionário, conduziria ao desenvolvimento de instituições fiscais mais sólidas.
A súbita redução de juros significou, do ponto de vista das famílias, uma diminuição da taxa à qual se trocava consumo presente por consumo futuro. Dada a
mudança dessa taxa, era natural que o nível de endividamento percebido como desejável pela média das famílias se tornasse mais elevado. Para que se chegasse a
esse novo nível de endividamento ótimo, as famílias deveriam, como de fato fizeram, reduzir durante algum tempo sua taxa de poupança.
Diante da queda de poupança doméstica, a economia portuguesa passou a absorver poupança externa, significando que a demanda doméstica de bens e
serviços excedia aquilo que era produzido domesticamente. No mercado de bens comercializáveis internacionalmente, o aumento do consumo foi neutralizado por um
aumento das importações. Contudo, no segmento de não-comercializáveis o consumo mais elevado levou a uma elevação dos preços. De fato, os preços ao
consumidor em Portugal acumulam alta de 40% desde 1999, enquanto que na Alemanha a variação foi de 24%. Como as duas economias estão sob a mesma moeda, o
diferencial de inflação representa uma valorização do câmbio real da economia portuguesa.
Para evitar essa valorização do câmbio real, a queda da poupança privada ensejada pela queda dos juros deveria ter sido compensada por uma elevação da
poupança do setor público. Contudo, a política fiscal portuguesa foi bastante expansionista na primeira década do século XXI. A despeito do bônus trazido pela redução
dos juros, a dívida pública passou de 48,5% do PIB em 2000 para 68,3% do PIB em 2007, antes da eclosão da grande crise. Essa dinâmica desfavorável se deu pelo mau
desempenho das contas primárias, que na média tiveram déficits de 1% do PIB no período. Ao mesmo tempo, a economia portuguesa teve um desempenho muito
pobre em termos de crescimento. Tome-se, por exemplo, o quinquênio 2003-2007, período em que a economia mundial teve a expansão mais forte desde o início dos
anos 70. Portugal cresceu apenas 1% ao ano, em média, nesse período.
Como dissemos antes, a combinação de forte redução de juros e política fiscal expansionista fez com que o câmbio real tivesse forte valorização. Como
consequência, Portugal tinha, já em 2007, um déficit em conta corrente de 10,1% do PIB. Deve ficar claro, portanto, que a crise de 2008, que deflagrou a maior
recessão mundial em 80 anos, encontrou Portugal em condições vulneráveis.
O frágil quadro fiscal se deteriorou acentuadamente com a recessão de 2008 e 2009, pelos efeitos combinados de elevação de gastos e queda da
arrecadação. Com isto, a dívida pública como proporção do PIB saltou de 68,3% em 2007 para cerca de 110% em 2011. Ao mesmo tempo, a valorização do câmbio real
nos anos que se seguiram magnificam as dificuldades de se restaurar o crescimento em uma economia em que, por razões estruturais, a expansão potencial já parece
ser muito pobre.
Abril| 2012
Estivesse Portugal sob um regime de câmbio flutuante, os enormes déficits em conta corrente deveriam levar a uma depreciação do câmbio nominal. Sob a
união monetária, porém, todo o ajuste do câmbio real tem que se dar através de deflação ou, pelo menos, taxas de inflação persistentemente mais baixas que seus
parceiros comerciais, com destaque para a Alemanha. Contudo, como os preços em geral são rígidos para baixo, ajustes desse tipo em geral são penosos e somente
podem ser alcançados em um ambiente recessivo. No caso português, a dificuldade do ajuste é ampliada pela falta de flexibilidade do mercado de trabalho, que
dificulta a necessária redução dos salários reais.
Deve ficar claro, portanto, que Portugal tem pela frente dificuldades formidáveis. Para se recolocar o setor público em uma trajetória de solvência, é preciso
fazer um ajuste de grandes proporções, ainda mais penoso porque deve se dar em paralelo a um ajuste do câmbio real que torna mais distante a restauração do
crescimento.
A superação da crise requer reformas ambiciosas em pelo menos duas frentes. Em primeiro lugar, é preciso abrir espaço para o ajuste fiscal através de
redução do gasto. De um modo geral, países que tiveram êxito em restaurar o crescimento após crises fiscais privilegiaram a diminuição dos gastos correntes e
procuraram mitigar o corte do investimento público ou o aumento de impostos. Em segundo lugar, seria necessário implementar reformas no mercado de trabalho, que
tornassem os salários mais flexíveis e pavimentassem o caminho para a aceleração do crescimento.
O ponto que queremos ressaltar é que, por mais exitoso que tenha sido o LTRO, ele certamente não tem capacidade de neutralizar os enormes desequilíbrios
estruturais da região. Em diferentes intensidades, diversos países da Zona do Euro tem que implementar amplos programas de ajuste fiscal, em paralelo a reformas
muito ambiciosas, para recolocar suas economias em uma trajetória sustentável nas contas púbicas e no balanço de pagamentos. Mesmo que se evitem eventos que
caracterizem ruptura, parece bastante provável que a superação da crise de endividamento atual consuma vários anos, ao longo dos quais o crescimento econômico
na região deve ser muito baixo.
Alexandre Bassoli
Economista-chefe do Opportunity e Mestre em Economia pela USP.
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