SEPARAÇÃO DE PAIS
Por Maria Livia Marchon
Não precisamos ser psicanalistas para compreender a importância de a criança se sentir amada por ambos
os pais, em especial quando esses se separam.
Falo isso porque sou PHD no assunto, tendo vivido a separação de meus pais em uma época em que isso
era raro e até vergonhoso. Penso, hoje, que, provavelmente, aos dez anos de idade, eu era a única, na minha
turma de cinquenta alunos, que vivia essa difícil experiência. Separar-se, naqueles tempos, implicava visão
pejorativa da mulher e...até dos filhos.Mulher separada era vista como “desfrutável”, candidata a amante,
jamais a esposa.Por esse motivo, minha mãe levou muitos anos para dar o desquite a meu pai; ela temia por
ela e por mim, já que, infelizmente, havia homens que se uniam a mulheres separadas e mantinham relações
com mãe e filha. E a fama dos filhos não era muito melhor. Lembro que, aos vinte e poucos anos de idade,
ouvi de um rapaz uma frase pitoresca: “Como é que você, sendo filha de pais separados, é tão bem
educada?” A resposta que eu lhe dei nos remete ao que enunciei anteriormente: “ Porque meus pais, apesar
de seus problemas de relacionamento, sempre cuidaram de mim, sempre deixaram muito claro, por seu
modo de agir, que me amavam.”
Isso foi fundamental, me permitiu superar mágoas e conseguir construir uma relação duradoura com um
homem, não repetindo os erros paternos. Certa vez, ouvi uma mocinha dizer: “Meus pais se separaram e eu
não acredito em casamento.” E eu retruquei: “ Meus pais também se separaram , mas eu acredito no
casamento.” Agradeço a Deus por meu marido, filhos e neto. Já essa garota, não a encontrei mais; soube
apenas que passara a viver maritalmente com um homem velho, fato cuja interpretação eu deixo para os
psicanalistas...
Meu pai era uma pessoa boa, inteligente e trabalhadora. Professor de Direito, encantado com suas aulas e
alunos, começou como promotor no interior do estado e foi galgando, com brilho, as várias etapas da
carreira jurídica, só não chegando a Ministro do Supremo porque, na ocasião em que lhe apareceu uma vaga,
o presidente em exercício lhe pediu para não aceitar o posto e continuar a ajudá-lo como Procurador Geral
da República.Ele ocupou importantes funções públicas, estaduais e federais, e também foi, por alguns anos,
político e, avis rara,político honesto que soube resistir às tentações do poder: não se deixou corromper, só
viajou para a Europa com o próprio dinheiro, quando, já fora da função pública, advogava por conta própria
e,ao morrer, só possuía a casa em que morava! Minha mãe, embora separada e eternamente magoada por
isso, era a primeira a lhe reconhecer tais qualidades, diferentemente de muitas mulheres de hoje que passam
para os filhos uma visão demoníaca do ex companheiro. Quando, após muitos anos, ela concordou com o
divórcio, não titubeou em aceitar, para resolver esse assunto, o advogado...escolhido pelo ex-marido; ela
confiava nele e podia confiar.
O que levou à separação, se meu pai tinha tantas qualidades? O ser mulherengo. Apaixonado por uma
atriz de rádio novela, bem mais moça do que ele, saiu de casa quando eu tinha dez anos de idade e minha
mãe, com quarenta anos,ainda era tão bonita que causava admiração nos colegas universitários de meu
irmão.E ela nunca conseguiu separar-se dele emocionalmente, fato que eu nem percebia. Foi meu marido
psicanalista que, após a primeira conversa com minha mãe, comentou: “Céus! Como tua mãe, após tantos
anos( dezenove!) ainda está ligada ao teu pai!” Eu apenas me acostumara, a contragosto, a ouvi-la falar
contra ele com a primeira pessoa que encontrasse no ponto do ônibus: “Aquele mulherengo me largou
quando eu ainda era bem nova e bonita!”E, vendo minha cara meio sem graça, acrescentava:”Ela não gosta
que falem do pai dela.” Realmente, para mim, “roupa suja se lava em casa”, mas hoje compreendo que foi o
modo que a coitada encontrou para desabafar sua mágoa e não criar uma úlcera...
Muitos homens, quando terminam um casamento,rompem relações não apenas com a ex-mulher, mas
também com os filhos da ou das uniões anteriores, como se uma separação de pais acabasse com o vínculo
paterno.Tal abandono se revela péssimo para a psique da criança. Felizmente, basta acompanharmos filhos
ou netos em seu ambiente escolar e seus aniversários para percebermos que muita gente, hoje, consegue
viver uma relação bem civilizada com as diversas famílias. Como dizia um sobrinho que casou três vezes:
“Não é fácil “administrar” mais de uma família, mas, com jeitinho, a gente consegue”.
Meu pai, embora separado, era tão ligado aos filhos que, penso hoje, isso até atrapalhou um pouco minha
mãe: como ela ia esquecê-lo se ele estava a toda hora lá em casa? Houve anos em que ele almoçava
diariamente conosco para levar-me à escola! Eu era a única filha mulher e a caçulinha...Não posso me
queixar de desinteresse paterno.Eu brilhava nas línguas, português, francês, inglês, latim, mas era um
desastre em matemática. Meu pai olhava meu boletim escolar e, ao perceber uma nota destoante do
conjunto, arranjava tempo, apesar de suas múltiplas atividades de Procurador Geral do Estado e professor de
Direito em três cidades gaúchas, para me dar muitas aulinhas particulares de juros e porcentagens, ou o que
fosse.
Recordo também de uma vez em que, chegando de viagem, ele telefonou para saber notícias e, ao me
ouvir soluçar, resolveu prontamente o problema. Eu estava com dezesseis anos, no segundo grau, e minha
turma acabava de partir para uma excursão ao famoso Itaimbezinho, na serra gaúcha. Todas as colegas
haviam ficado na escola para tomar o ônibus da excursão e eu voltara tristemente para casa no ônibus
escolar.Quando meu pai ligou, eu desatei a chorar e ele, ao saber o motivo, logo falou: “Não tem problema.
Hoje à noite eu dou aula em Caxias do Sul, te levo junto e, depois da aula, pegamos o carro, e eu te levo até
a tua turma”. E assim se fez. Assisti a uma aula brilhante de Direito, cujo assunto até hoje recordo: nomes
estranhos com que fomos batizados e o que fazer com eles. Como esquecer o famoso
“Prodamormarilumarichá”, produto do amor de Maria Lúcia e Manuel Carlos? Após a aula, na madrugada
gelada que dava às árvores enevoadas da estrada um aspecto feérico, meu pai viajou comigo até
encontrarmos o ônibus da excursão parado no caminho. Havia estragado há muitas horas. Pouco tempo
depois, chegou o ônibus substituto, entrei nele e lá me fui para minha excursão inesquecível. Com o frio
intenso, meus pés não aqueceram e não consegui dormir, o barro acumulado com a chuva tornou perigoso o
acesso ao Itaimbezinho e não pudemos vê-lo( só o conheci muitos anos depois), mas a companhia de minhas
colegas me proporcionou ótimas recordações. E tudo isso, graças a meu pai, atento, presente, apesar de
separado de minha mãe.
Eu mentiria se dissesse que não sofri com a separação de meus pais. Sofri. E fiz sofrer. Enquanto
empaquei como um burro na estrada e não aceitei a nova família de meu pai, eu o fiz sofrer. Fui durona
demais. Apesar de toda a sua mágoa e ciúme, era minha mãe que me dizia, anualmente: “hoje é aniversário
do teu irmãozinho, liga para teu pai, ele vai ficar contente.” E eu não ligava. Quando eu era bem pequenina,
minha mãe contava que ela se queixava ao meu pai, porque, devido às atividades políticas de deputado, ele
não tinha tempo para ver minhas gracinhas. Pois bem, eu me vinguei: meu pai enviava fotos de meu irmão
temporão e eu nem comentava, só o fui conhecer quando já estava com três anos de idade, e muito
rapidamente. “Tu estás perdendo as gracinhas de teu irmão!”, se queixava meu pai em carta e eu,
implacável, pensava: “ Tu perdeste as minhas...” (Um dia desses, já aqui no Ceará, encontrei essa carta e as
lágrimas rolaram).Sim, eu me vinguei.Com a desculpa de ser filho da “outra”, que nada tivera a ver com a
separação de meus pais, mas acabara destruindo meu sonho de ver minha família completa novamente, eu
deixei correr à solta meu ciúme do caçulinha( só percebi isso há poucos anos atrás) e fiz meu pai sofrer. E
me puni por isso. Até equilibrar minha visão da figura paterna, até começar a aceitar a nova família de meu
pai, tive dificuldades em me relacionar com o sexo oposto, busquei, sem perceber, sofrimentos. Só quando
deixei o passado triste no passado, libertei o coração das velhas mágoas, pude partir para um relacionamento
adulto e feliz.
Só poderia, então, terminar essas reflexões , lembrando a famosa frase da psicanalista Melanie Klein:
“Se no mais fundo do nosso inconsciente conseguimos superar os rancores contra nossos pais e lhes perdoar
as frustrações que tivemos que sofrer, poderemos então viver em paz com nós mesmos e amar a outros no
verdadeiro sentido da palavra.”
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