Por que Lacan não é heideggeriano
Slavoj Žižek*
Tradução: Lucas Mello Carvalho Ribeiro**
Resumo: Trata-se de analisar as nuances da apropriação crítica de Lacan da filosofia de
Heidegger, considerando, sobretudo, a crítica da subjetividade ali presente. Será
enfatizado, no debate entre os dois autores, as relações entre ser e linguagem.
Palavras-chave: Lacan; Heidegger; ser; linguagem.
Why Lacan is not a Heideggerian
Abstract: The Lacanian apropriation of Heidegger’s philosophy will be analyzed,
specially regarding the critique of subjectivity present in the latter. In this context, the
relation between being and language will be emphasized.
Keywords: Lacan; Heidegger; being; language.
O principal proponente filosófico da crítica da subjetividade é Martin Heidegger,
uma das principais referências de Lacan, pelo menos na década de 1950. Por esta razão,
é crucial clarificar a referência de Lacan a Heidegger, i. e., como ele gradualmente passa
de uma aceitação da crítica de Heidegger ao cogito cartesiano – como uma outra versão
do descentramento freudiano do sujeito –, à paradoxal e contraintuitiva adesão ao cogito
como sujeito do inconsciente.
O ponto de partida de Lacan é a noção freudiana de uma Bejahung (afirmação)
primordial, enquanto oposta à Verwerfung (usualmente (mal)traduzida como forclusão):
*
Filósofo esloveno. Professor da European Graduate School (Suíça); diretor internacional da Birkbeck
Institute for Humanities em Londres; pesquisador senior do Instituto de Sociologia da Universidade da
Ljubljana (Eslovênia). Autor, dentre outros, de Bem-vindo ao deserto do real! (2003, Boitempo) e A visão
em paralaxe (2008, Boitempo); e-mail: [email protected]
**
Graduado em Psicologia pela UFMG; mestrando em Filosofia pela mesma universidade; bolsista do
CNPq.
1
ele lê Bejahung como a simbolização primordial, contra o pano de fundo da noção
heideggeriana da essência da linguagem como desvelamento do ser. Quando
confrontamos um fato que claramente vai de encontro a uma convicção profunda,
podemos reagir a ele de duas maneiras básicas: ou simplesmente rejeitamos brutalmente
aceitá-lo, ou endossamo-lo em uma forma sublimada1, como algo a ser tomado não
literalmente, mas como expressão de uma verdade mais profunda ou elevada. Quer
dizer, podemos tanto rejeitar completamente a ideia de que há um inferno (um lugar real
onde os pecadores sofrem uma dor sem fim como punição por suas ações) quanto
reivindicar que o inferno é uma metáfora para a “perturbação interna” que sofremos
quando fazemos algo errado. Que se lembre da conhecida expressão italiana se non è
vero, è bene trovato – “(mesmo) se não é verdade, é bem achado (acerta no alvo)”.
Nesse sentido, anedotas sobre pessoas famosas, mesmo quando inventadas, muitas
vezes caracterizam o núcleo de sua personalidade mais apropriadamente do que a
enumeração de suas qualidades reais – aqui também, “a verdade tem estrutura de
ficção”, como Lacan o coloca. Há uma versão servo-croata, maravilhosamente obscena,
daquela expressão, que restitui perfeitamente a rejeição protopsicótica da ficção
simbólica: se non è vero, jebem ti mater! “Jebem ti mater” (pronuncia-se “yebem ti
mater”, e significa “vou foder sua mãe”) é um dos mais populares insultos vulgares; a
piada, é claro, se apoia na rima perfeita, com os mesmos acentos e número de sílabas,
entre bene trovato e jebem ti mater. O sentido, assim, transforma-se em uma explosão
de raiva na direção incestuosa, atacando o objeto primordial mais íntimo do outro: “É
melhor que seja verdade – se não for verdade, vou foder sua mãe!”. Essas duas versões,
assim, claramente estabelecem as duas reações àquilo que, literalmente, torna-se uma
mentira: sua rejeição furiosa, ou sua sublimação2 em uma verdade “mais elevada”. Em
termos psicanalíticos, a diferença é aquela entre forclusão (Verwerfung) e
transubstanciação simbólica [symbolic transubstantiation].
Contudo, as coisas rapidamente se complicam aqui. A propósito da relação
ambígua entre Ausstossung (a expulsão do real que é constitutiva da emergência da
ordem simbólica) e Verwerfung (a “forclusão” de um significante do simbólico para o
1
(N. do T.) No original se lê: subl(im)ated. Tem-se, assim, tanto sublimated (sublimada) quanto sublated,
palavra inglesa que traduz o alemão aufheben (no contexto da dialética hegeliana, suprassumir).
Construção que infelizmente é impossível de ser mantida na língua portuguesa.
2
(N. do T.) No original se lê: “subl(im)ation”. Tem-se, ao mesmo tempo, sublimation (sublimação) e
sublation, equivalente inglês de Aufhebung (suprassunção).
2
real) em Freud e Lacan – algumas vezes elas são identificadas e outras distinguidas –,
François Balmes faz a observação apropriada:
Se a Ausstossung é aquilo que dizemos ser, ela é radicalmente diferente da Verwerfung: longe de
ser o mecanismo próprio da psicose, ela seria a abertura do campo do Outro enquanto tal. Em
certo sentido, ela não seria a rejeição do simbólico, mas, ela própria, simbolização. Não
deveríamos pensar aqui em psicose e alucinação, mas no sujeito enquanto tal. Clinicamente, isso
corresponde ao fato de que a forclusão não impede os psicóticos de habitarem na linguagem
(BALMES, 1999, p. 72).
Essa conclusão é o resultado de uma série de perguntas precisas. O fato é que
psicóticos falam, ou seja, em algum sentido, eles habitam a linguagem: a “forclusão”
não significa a exclusão deles da linguagem, mas a exclusão/suspensão da eficácia
simbólica de um significante mestre no interior de seu universo simbólico – se um
significante é excluído, já se deve estar na ordem significante. Na medida em que, para
Freud e Lacan, a Verwerfung é correlativa à Bejahung (a “afirmação”, o gesto
primordial de se assumir subjetivamente um lugar no universo simbólico), a solução de
Balmes é distinguir entre essa Bejahung e uma simbolização do Real ainda mais
originária (ou “primária”): o quase mítico grau zero do contato direto entre o simbólico
e o real, que coincide com o momento de diferenciação dos mesmos, o processo de
ascensão do simbólico, da emergência da bateria primária de significantes, cuja
expressão (negativa) é a expulsão do Real pré-simbólico. Quando o pequeno homem dos
lobos, com um ano de idade, observou o coitus a tergo de seus pais, esse evento deixou
em sua mente um traço mnêmico que foi simbolizado, mas ele foi lá mantido como um
traço libidinalmente neutro; foi apenas mais de três anos depois, quando as fantasias
sexuais do homem dos lobos despertaram e ele se intrigou pela origem das crianças que
esse traço foi bejaht3, propriamente historicizado, ativado em sua narrativa pessoal
como um modo de se localizar no universo do sentido. Psicóticos realizam esse
primeiro passo, adentram a ordem simbólica; o que eles são incapazes de fazer é se
engajar subjetivamente/performaticamente na linguagem para “historicizar” seu
processo subjetivo – em suma, são incapazes de realizar a Bejahung.
Como Balmes nota perspicuamente, é por essa razão que a falta ocorre em um
nível diferente na psicose: psicóticos continuam a habitar no denso espaço simbólico da
“completude” do grande Outro primordial (materno), eles não assumem a castração
simbólica no sentido próprio de uma perda que é em si mesma libertadora, doadora,
3
(N. do T.) Particípio passado do verbo alemão bejahen (afirmar), correspondente ao substantivo
Bejahung.
3
“produtiva”, abrindo o espaço para as coisas aparecerem em seu ser (significativo); para
eles, a perda só pode ser puramente privativa, apenas tirando deles algo.
Num movimento interpretativo arriscado, Lacan vincula essa simbolização
“primária” que é acessível aos psicóticos e precede o engajamento subjetivo ausente nos
mesmos, à distinção de Heidegger entre a dimensão originária da linguagem enquanto
desvelamento do Ser e a dimensão do discurso como portador de significações
(subjetivas) ou como meio de reconhecimento intersubjetivo: nesse nível originário do
dizer como mostrar (Sagen como Zeigen), a diferença entre significação e referência se
anula, uma palavra que nomeia uma coisa não a “significa”, ela a constitui/desvela em
seu Ser, abre o espaço de sua existência. Esse nível é aquele da aparição enquanto tal,
não da aparência enquanto oposta à realidade que lhe subjaz, mas da aparição “pura”
que “é” inteiramente em sua aparição, por detrás da qual não há nada. Em seu seminário
sobre as psicoses, Lacan fornece uma boa descrição de tal aparição pura, e da
concomitante tentação propriamente meta-física de reduzir essa aparição a seu
fundamento, às suas causas ocultas:
O arco-íris é isso (c’est cela). E este é só isso implica que vamos nos comprometer nisso até
nosso último fôlego, para saber o que há de escondido atrás, que é sua causa, à qual podemos
reduzi-lo. Observem o que desde a origem caracteriza o arco-íris e o meteoro – e todo o mundo o
sabe, pois que é por isso que o nomearam meteoro –, é que precisamente não há nada escondido
atrás. Ele está inteiramente nessa aparência. O que, contudo, o faz subsistir para nós, a ponto de
que não cessemos de nos colocar questões sobre ele, deve-se unicamente ao é isso originário, ou
seja, à nomeação como tal do arco-íris. Não há nada além desse nome” (LACAN, 19551956/1981, p. 358)4.
Para colocá-lo em termos heideggerianos, o psicótico não é welt-los, privado do
mundo: ele já habita na abertura do Ser. Essa leitura é, contudo, como frequentemente é
o caso com Lacan, acompanhada por seu (assimétrico, verdadeiro) oposto: por uma
leitura que atribui aos psicóticos o acesso a um “mais elevado” nível de simbolização e
os priva do nível básico “mais baixo”. Na medida em que Lacan lê a distinção freudiana
entre “representações-de-coisas” (Sachvorstellungen) e “representações-de-palavras”
(Wortvorstellungen) como interna à ordem simbólica, assim como a distinção entre
simbolização primordial – o estabelecimento da bateria de significantes inconsciente
originária (“traços mnêmicos”, na linguagem do jovem, pré-psicanalítico, Freud) –, e a
simbolização secundária – o sistema de linguagem consciente/pré-consciente –, isso o
4
(N. do T.) Cf. tradução de Aluísio Menezes (modificada). LACAN, J. (1955-1956/1985) O seminário,
livro III: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
4
permite uma definição paradoxal do predicado psicótico: um psicótico não é aquele que
regride a um nível mais “primitivo” de representações-de-coisas, que “trata palavras
como coisas”, como é comum dizer; ele é, pelo contrário, precisamente alguém que
dispõe de representações-de-palavras sem representações-de-coisas (BALMES, 1999, p.
91). Em outras palavras, um psicótico bem pode usar a linguagem de um modo público
comum, o que lhe falta é o pano de fundo inconsciente que dá às palavras que usamos
sua ressonância libidinal, seu peso e cor especificamente subjetivos. Sem esse pano de
fundo, a interpretação psicanalítica é sem poder, inoperante: “Na psicose, a verdade é
sem efeito, o que não impede o psicótico de dizê-la melhor do que qualquer outro”
(BALMES, DLV, p. 53). Essa é também uma das maneiras de entender a
enganosamente “excêntrica” reivindicação de Lacan de que a normalidade é uma
espécie de psicose: nossa definição do senso-comum “normal” da linguagem é que ela é
um sistema artificial secundário de signos que usamos para transferir informação préexistente, etc. – o que essa definição ignora é o nível subjacente do engajamento
subjetivo, da posição de enunciação; o paradoxo do psicótico é que ele é o único que se
adéqua completamente a essa definição, i. e., quem efetivamente pratica a linguagem
como um instrumento secundário neutro que não concerne o próprio ser do falante:
“certos significantes não passam para a escritura inconsciente, e esse é o caso com o
significante paterno na psicose. Isso não impede a presença deles no nível préconsciente – como podemos ver no caso de significantes que chamamos forcluídos na
psicose e que estão a disposição do sujeito em sua linguagem” (BALMES, 1999, p. 81).
Essa oscilação parece indicar que há algo errado com a solução de distinguir os
dois níveis, o nível da simbolização primária e o nível da Bejahung/Verwerfung.
(Soluções que se apoiam na simples distinção entre níveis diferentes são a priori
suspeitas). O que se perde nela é o paradoxo básico do simbólico que é dois ao mesmo
tempo: em última instância, a expulsão do real pelo simbólico e a rejeição de uma
alternância significante; i. e., no caso do Outro simbólico, limitação interna e externa
coincidem, a ordem simbólica só pode emergir como delimitada do Real se ela é
delimitada de si mesma, perdendo/excluindo uma parte central de si mesma, não
idêntica a si mesma. Não há, assim, Ausstossung sem uma Verwerfung – o preço que o
simbólico precisa pagar no intuito de delimitar a si mesmo do real é seu próprio sermutilado. É a isso que Lacan visa com sua fórmula de que não há grande Outro, não há
Outro do Outro – e, como o Lacan tardio sabia muito bem, isso implica que no mais
básico dos níveis somos todos psicóticos. Contudo, deve-se ser mais preciso aqui: o
5
significante que é forcluído não é simplesmente um significante perdido, faltante, mas
um significante que representa, ele mesmo, o A barrado, a falta de significante, a
incompletude-inconsistência do campo simbólico. O que isso significa é que o problema
de um psicótico não é que ele habita uma ordem simbólica (Outro) mutilada, mas, pelo
contrário, que ele habita um Outro “completo”, um Outro em que falta a inscrição de
sua falta.
Não há, assim, necessidade de postular duas fases, primeiro a simbolização, a
ascensão da bateria de significantes primária pela expulsão do Real, e depois a exclusão
de um significante: os dois processos são um mesmo, e a psicose vem depois, num
segundo estágio, quando – se – o significante que representa a própria
incompletude/inconsistência do Outro, que registra essa incompletude, é forcluído.
Em que sentido preciso, então, aquilo que é forcluído no simbólico retorna no
real? Tomemos as alucinações verbais: seu conteúdo é massivamente simbólico, e elas
são, no nível de seu sentido ordinário, completamente entendidas pelo sujeito
(psicótico); então, de novo, em que sentido elas pertencem ao real? Dois aspectos
interconectados as fazem reais: isolamento e certeza. Elas são forcluídas no sentido
preciso de que elas não “existem” para o sujeito: elas ex-sistem, perseveram e impõemse elas próprias de fora da textura simbólica. Elas são isoladas de seu contexto
simbólico, que é por definição o contexto da confiança e suposição, o contexto em que
toda presença surge contra o pano de fundo de sua possível ausência, e toda certeza é
acompanhada de uma possível dúvida, i. e., o contexto em que toda certeza, em última
instância, tem que se apoiar em uma aposta básica em confiar na ordem simbólica. Na
religião propriamente, não se conhece Deus, arrisca-se a confiar Nele, acreditar Nele.
Um psicótico, pelo contrário, é aquele que procede como o grupo punk esloveno
Laibach, que, em uma entrevista nos Estados Unidos sobre sua relação com Deus,
respondeu fazendo referência ao “In God we trust”5 de cada nota de dólar: “Como
vocês, americanos, acreditamos que Deus existe, mas diferentemente de vocês, não
confiamos Nele”. Ou, como Balmes o coloca sucintamente (1999, p. 66), não é que os
psicóticos acreditem nas vozes que ouvem, eles simplesmente as acreditam. Eis porque
os psicóticos têm a absoluta certeza das vozes que ouvem: eles não confiam nelas, é
claro, as tomam por vozes malignas, vozes que querem machucá-los; mas simplesmente
sabem que essas vozes são reais – essa certeza absoluta faz essas vozes reais.
5
(N. do T.) Em Deus confiamos.
6
O problema subjacente é, aqui, aquele da relação entre o real, o simbólico e a
falta. Quando Balmes descreve a ambiguidade radical com que o Lacan dos anos 1950
define/aproxima os termos desse triângulo (ele se alterna entre a tese de que o simbólico
introduz a falta-a-ser no real – anteriormente à ascensão do simbólico não há falta,
apenas uma positividade opaca do real –, e a tese de que o ser advém apenas com o
simbólico – previamente ao simbólico não há ser), ele sabiamente se abstém de oferecer
a demasiadamente fácil solução heideggeriana de que temos simplesmente dois sentidos
diferentes de ser: ser no sentido ontológico da abertura com a qual as coisas aparecem, e
ser no sentido ôntico de realidade, de entidades existentes no mundo (o que advém com
o simbólico é o horizonte ontológico do Ser, enquanto sua expressão é a falta-a-ser, i. e.,
o fato de que um ser humano como Ser-aí (Dasein) não tem lugar na ordem positiva da
realidade, que ele não pode ser reduzido a uma entidade dentro do mundo, porque é o
lugar da própria abertura de um mundo). Balmes busca a solução por um caminho
totalmente diferente: ele perspicuamente nota que Lacan resolve o problema, a questão,
“construindo uma resposta pela própria questão” (1999, p. 138), percebendo que a
questão tem sua própria resposta. Quer dizer, ser e falta-a-ser coincidem, são dois lados
da mesma moeda – a liberação do horizonte no qual as coisas “são” por completo só
emerge com a condição de que algo seja excluído (“sacrificado”) dele, de que algo nele
“esteja faltando em seu próprio lugar”. Mais precisamente, o que caracteriza o universo
simbólico é uma lacuna mínima entre os elementos e os lugares que eles ocupam: as
duas dimensões não coincidem diretamente, como é o caso na positividade opaca do
real, donde, na ordem diferencial dos significantes, a ausência enquanto tal poder contar
como um aspecto positivo – como Sherlock Holmes o coloca na sua imortal fala em
“The Silver Blaze”: ‘o curioso acidente com o cachorro pode ser que ele nada tenha
feito’, que ele não latiu quando se esperava que o fizesse. E a hipótese “ontológica”
básica de Lacan é a de que, para que essa lacuna entre elementos e seu lugar estrutural
ocorra, i. e., para que todo elemento preencha, em seu próprio lugar/falta, algo – algum
elemento – tem que ser radicalmente (constitutivamente) excluído; o nome de Lacan
para esse objeto que é sempre (por definição, estruturalmente) faltante em seu próprio
lugar, que coincide com sua própria falta, é, obviamente, “objeto pequeno a”, como
objeto-causa de desejo ou mais-de-gozar, um objeto paradoxal que dá corpo à própria
falta-a-ser. “Objeto pequeno a” é aquilo que deveria ser excluído da armação da
realidade, cuja exclusão constitui e sustenta a armação da realidade. O que acontece na
psicose é precisamente a inclusão desse objeto na armação da realidade: ele aparece na
7
realidade como o objeto alucinado (voz ou olhar que persegue o paranoico, etc.) – com
a consequência lógica de que essa inclusão leva à perda da realidade, de que o “senso de
realidade” do sujeito se desintegra.
Ao longo de sua obra, Lacan varia o motif heideggeriano da linguagem como
morada do ser: a linguagem não é criação nem instrumento do homem, é o homem que
“habita” na linguagem: “A psicanálise devia ser a ciência da linguagem habitada pelo
sujeito” (LACAN, 1955-1956/1981, p. 276). A torção “paranoica” de Lacan, seu
suplício6 freudiano adicional, vem de sua caracterização dessa morada como casa-detortura: “À luz da experiência freudiana, o homem é um sujeito preso e torturado pela
linguagem” (Ibid.). Não somente o homem habita a “prison-house of language”7 (título
do livro de Fredric Jameson sobre o estruturalismo), ele habita numa casa-de-tortura da
linguagem: toda a psicopatologia desdobrada por Freud, dos sintomas conversivos
inscritos no corpo até os maiores colapsos psicóticos, são cicatrizes dessa tortura
permanente, marcas dessa hiância original e irremediável entre sujeito e linguagem,
marcas de que o homem nunca está em casa em sua própria casa. É o que Heidegger
ignora: esse outro lado obscuro e torturante de nossa habitação na linguagem – e eis
porque não há lugar para o Real do gozo no edifício heideggeriano, uma vez que o
aspecto torturante da linguagem concerne primariamente às vicissitudes da libido. É
também porque, no intuito de fazer a verdade falar, não basta suspender a intervenção
ativa do sujeito e deixar a linguagem, ela mesma, falar – como Elfriede Jelinek coloca
com extraordinária clareza: “A linguagem deve ser torturada para dizer a verdade”.
Deve ser torcida, desnaturalizada, estirada, condensada, cortada e reunida, ser posta para
trabalhar contra si própria. A linguagem enquanto “grande Outro” não é um agente de
sabedoria com cuja mensagem deveríamos nos afinar, mas um lugar de cruel
indiferença e estupidez. A forma mais elementar de se torturar a linguagem é chamada
poesia – imagine o que uma forma complexa como um soneto faz com a linguagem: ela
força o livre fluxo do discurso em uma cama de Procusto8 de ritmos e rimas fixos…
6
(N. do T.) Tradução da expressão inglesa turn of the screw, literalmente “volta no parafuso”.
(N. do T.) “prisão da linguagem”.
8
(N. do T.) Na mitologia grega, Procusto (“esticador de membros”) era o apelido de Damastes ou
Polípemon, salteador que habitava as imediações da estrada de Eleusis. Costumava atrair viajantes
solitários para a sua pousada, oferecendo-lhes abrigo para passar a noite. Acreditava-se que ele tinha dois
leitos de ferro de tamanhos diferentes, que ele escolhia dependendo da altura do visitante. Depois que a
vítima adormecia, Procusto a dominava e tratava de adequar o corpo às medidas exatas de um dos leitos:
se ele era alto e os pés sobressaíam da borda, ele os amputava com um machado; se era baixo e tinha
espaço de folga, ele esticava os membros com cordas e roldanas. Teseu terminou com a obsessão
homicida de Procusto: obrigou-o a deitar-se no seu próprio leito, atravessado, e, então, cortou todas as
7
8
Mas e quanto ao procedimento de Heidegger de ouvir a palavra sem som da linguagem
ela mesma, de trazer à tona a verdade que já habita nela? Não é de se surpreender que o
pensamento do Heidegger tardio seja poético – relembremos os meios que ele usa para
fazê-lo: pode alguém imaginar uma tortura mais violenta do que aquela levada a cabo
por ele em sua famosa leitura da proposição de Parmênides “pois o mesmo é pensardizer e, portanto, ser”9? Para extrair dela a verdade pretendida, ele tem que se referir ao
sentido literal das palavras (legein10 como recolhimento), deslocar contraintuitivamente
o acento e a escansão da sentença, traduzir termos isolados de modo fortemente
interpretativo-descritivo, etc. Dessa perspectiva, a “filosofia da linguagem ordinária” do
último Wittgenstein, que se percebe como uma cura médica da linguagem, corrigindo o
uso errôneo da linguagem ordinária que dá origem a “problemas filosóficos”, quer
eliminar precisamente a “tortura” da linguagem que a força a liberar a verdade (que se
lembre da famosa crítica de Rudolph Carnap a Heidegger no final dos anos 1920, que
afirma que os raciocínios de Heidegger se baseiam num uso indevido de “nada” como
substantivo).
Essa é também a principal razão porque, contra a historicização heideggeriana
do sujeito como o agente moderno da mestria tecnológica, contra sua substituição do
“sujeito” pelo Dasein como nome para a essência do ser humano, Lacan se ateve ao
problemático termo “sujeito”: quando Lacan dá a entender que Heidegger deixa escapar
uma dimensão crucial da subjetividade, seu ponto não é um argumento tolo-humanista
de que Heidegger “passiviza” por demais o homem como instrumento da revelação do
Ser, e, assim, ignora a criatividade humana, etc. O ponto de Lacan é, pelo contrário, o
de que Heidegger deixa escapar o impacto propriamente traumático da “passividade”
mesma do ser capturado na linguagem, a tensão entre o animal humano e a linguagem:
há “sujeito” porque o animal humano não se “adéqua” à linguagem, o “sujeito”
lacaniano é torturado, mutilado, sujeito. Na medida em que o status do sujeito lacaniano
é real, i. e., na medida em que a Coisa real é, em última instância (seu núcleo
impossível), o próprio sujeito, deve-se aplicar ao sujeito a definição de Lacan da Coisa
como “aquilo [aquela parte, aspecto] que do real padece do significante” – a dimensão
mais elementar da subjetividade não é atividade, mas passividade, resistência
partes do corpo de Procusto que sobraram fora da cama. Cf. SCHWAB, G. (1994) As mais belas histórias
da antiguidade clássica – os mitos da Grécia e de Roma. São Paulo: Paz e Terra, pp. 251-252.
9
(N. do T.) Cf. PARMÊNIDES DE ELEIA. “Sobre a natureza” (DK 28 B 1-9), in Pré-Socráticos. São
Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 122.
10
(N. do T.) Verbo grego do qual se deriva lógos, tendo por sentido tanto dizer/contar quanto
reunir/escolher/recolher.
9
[enduring]. Eis como Lacan localiza o ritual de iniciação que realiza um corte violento
no corpo, mutilando-o:
(…) os ritos de iniciação tomam a forma de mudar o sentido destes desejos, de dar-lhes, a partir
dali precisamente, uma função em que se identifica, em que se designa como tal o ser do sujeito,
em que ele se torna se assim se pode dizer, homem de pleno exercício, mas também mulher. A
mutilação serve aqui para orientar o desejo, para lhe fazer tomar precisamente esta função de
índice, de alguma coisa que é realizada e que não pode se articular, exprimir-se senão em um
mais além simbólico, um mais além que é aquele que nós chamamos hoje o ser, uma realização
do ser no sujeito (LACAN, 1959, lição de 20 de maio).
A lacuna que separa Lacan de Heidegger é, aqui, claramente discernível devido
precisamente à proximidade entre eles, i. e., pelo fato de que, no intuito de designar a
função simbólica no que ela tem de mais elementar, Lacan ainda usa o termo de
Heidegger – “ser”: no ser humano os desejos perdem sua amarração na biologia, eles
são operativos somente na medida em que são inscritos no horizonte do Ser sustentado
pela linguagem; contudo, para que essa transposição da realidade biológica imediata do
corpo para o espaço simbólico tenha lugar, ela tem que deixar uma marca de tortura no
corpo à maneira de sua mutilação. Não basta, assim, dizer “o Verbo fez-se carne”: devese acrescentar que, para que o Verbo se inscreva na carne, parte da carne – a proverbial
libra de carne shylockiana11 – tem de ser sacrificada. Como não há harmonia préestabelecida entre Verbo e carne, é somente através de tal sacrifício que a carne torna-se
receptiva ao Verbo.
Isso nos traz, finalmente, ao tópico do gozo. Philippe Lacoue-Labarthe localizou
muito precisamente a lacuna que separa a interpretação lacaniana de Antígona daquela
de Heidegger (à qual Lacan, quanto ao mais, se refere abundantemente): o que está
totalmente ausente em Heidegger não é apenas a dimensão do real do gozo, mas, acima
de tudo, a dimensão do “entre-duas-mortes” (a simbólica e a real), que designa a
posição subjetiva de Antígona após ser excomungada da pólis por Creonte. Em exata
simetria com seu irmão Polinices – que está morto na realidade, mas tem negada a
morte simbólica, os rituais do enterro –, Antígona se encontra morta simbolicamente,
excluída da comunidade simbólica, enquanto biológica e subjetivamente ainda viva.
Nos termos de Agamben, Antígona se encontra reduzida à “vida nua”, a uma posição de
homo sacer, cujo caso exemplar no século XX é o dos internos dos campos de
11
(N. do T.) Referência ao personagem do Mercador de Veneza de Shakespeare – Shylock, usurário que
concorda em emprestar uma quantia a Antonio, desde que este empenhe uma libra de sua própria carne
como garantia.
10
concentração. O preço dessa omissão de Heidegger é, assim, muito alto; ele concerne ao
ponto ético-político crucial do século XX, a catástrofe “totalitária” em seu
desdobramento extremo – de modo que essa omissão é bem consistente com a
inabilidade de Heidegger de resistir à tentação nazista:
Mas o ‘entre-duas-mortes’ é o inferno que nosso século realizou, ou ainda promete realizar, e é a
isso que Lacan responde e diante do que ele quer tornar a psicanálise responsável. Não disse ele
um dia que a política é o ‘furo’ da metafísica? A cena com Heidegger – e há uma – se situa toda
ela aqui (LACOUE-LABARTHE, 1991, p. 28).
Isso também contribui para explicar a perturbadora ambiguidade da descrição de
Heidegger da morte nos campos de extermínio: essa morte não é mais morte autêntica, a
assunção, por parte dos indivíduos, da morte como possibilidade de sua maior
impossibilidade, mas apenas mais um processo industrial-tecnológico anônimo – as
pessoas não “morrem” de fato nos campos, são apenas industrialmente exterminadas…
Heidegger não só obscenamente sugere que as vítimas queimadas nos campos de
alguma maneira não morreram “autenticamente”, traduzindo desse modo seu sofrimento
extremo em “não-autenticidade” subjetiva; a questão que ele deixa de levantar é
precisamente: como ELES subjetivaram (vincularam-se à) sua condição? A morte deles
foi um processo industrial de extermínio para seus carrascos, não para eles mesmos.
Balmes faz aqui uma observação perspícua de que é como se a censura clínica
implícita de Lacan à analítica existencial do Dasein como “ser-para-morte” de
Heidegger é que ela seria apropriada somente para neuróticos e não levaria em conta os
psicóticos (1999, p. 73): um sujeito psicótico ocupa uma posição existencial para a qual
não há lugar no mapeamento heideggeriano, a posição de alguém que de alguma
maneira “sobrevive à sua própria morte”. Psicóticos não mais se adéquam à descrição
heideggeriana da existência engajada do Dasein, suas vidas não mais se movem nas
coordenadas do engajamento livre em um projeto futuro contra o pano de fundo de se
assumir o passado: suas vidas estão fora de “cuidado (Sorge)12”, o ser não mais se dirige
“para a morte”.
Esse excesso de gozo que resiste à simbolização (logos) é a razão pela qual, nas
últimas duas décadas de seu ensino, Lacan (por vezes quase pateticamente) insiste em
dizer que se considera um antifilósofo, alguém que se rebela contra a filosofia: filosofia
é onto-logia, sua premissa básica é, como já Parmênides – o primeiro filósofo – o
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(N. do T.) Palavra alemã para cuidado.
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colocou, “pensar e ser são o mesmo”, o acordo mútuo entre pensamento (logos como
razão/discurso) e ser – até Heidegger, o Ser que a filosofia tem em mente é sempre o ser
cuja casa é a linguagem, o ser sustentado pela linguagem, o ser cujo horizonte é aberto
pela linguagem, ou, como Wittgenstein o põe, os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo. Contra essa premissa onto-lógica da filosofia, Lacan foca o real
do gozo como algo que, embora esteja longe de ser simplesmente externo à linguagem
(é antes “êx-timo” em relação a ela), resiste à simbolização, permanece um caroço
estrangeiro em seu interior, aparece nela como uma ruptura, corte, hiância,
inconsistência ou impossibilidade:
(…) desafio qualquer filosofia a dar conta, no presente, da relação que há entre o surgimento do
significante e o modo pelo qual o gozo se vincula ao ser. (…) Nenhuma filosofia, digo, nos
acompanha atualmente. E esses miseráveis abortos de filosofia que arrastamos conosco, como
vestes que se despedaçam, não são nada mais, desde o início do século passado [século XIX], do
que uma maneira de galhofar ao invés de confrontar essa questão que é a única sobre a verdade e
que se chama, e que Freud nomeou, pulsão de morte, o masoquismo primordial do gozo. (…)
Todo o discurso filosófico se amedronta e se oculta aqui (LACAN, 1966, lição de 8 de junho).
É nesse sentido que Lacan designa sua posição como aquela do “realismo do
gozo” – realismo do gozo cujo inimigo “natural” não pode aparecer senão no
“panlogismo”
de
Hegel
como
ponto
culminante
da
ontologia,
da
lógica
(autodesdobramento do lógos) como explicação total para o ser, pela qual o ser perde
sua opacidade e se torna totalmente transparente… Mas Lacan não vai rápido demais
aqui? As coisas são realmente tão simples com Hegel? Não é corolário da tese básica de
Hegel de que “não há nada que não seja lógos”, seguindo as “fórmulas da sexuação” de
Lacan, a asserção de um não-Todo – “nem tudo é lógos”, i. e., lógos é não-todo, ele é
corroído e mutilado interiormente por antagonismos e rupturas, nunca completamente
ele mesmo?
Talvez, de algum modo, Lacan estava obscuramente ciente de tudo isso, como é
indicado na passagem supracitada pela curiosa e inesperada limitação de sua brutal
demissão da filosofia aos “miseráveis abortos de filosofia que arrastamos conosco desde
o início do século passado [século XIX]”, i. e., o pensamento pós-hegeliano. Quer dizer,
o óbvio seria dizer que é precisamente o pensamento pós-hegeliano que rompe com a
onto-logia, asseverando a primazia de uma Vontade, ou Vida, trans-lógica – o anti-lógos
(anti-filosofia) que vai do Shelling tardio, passando por Schopenhauer, até Nietzsche. É
como se Lacan tivesse, aqui, aprendido a lição de Heidegger: a fórmula de Marx “o ser
determina a consciência” não é radical o bastante – toda a discussão sobre a vida real da
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subjetividade engajada, enquanto oposta ao “pensamento meramente especulativo”,
permanece dentro dos confins da ontologia, porque (como Heidegger demonstrou) o ser
só pode surgir pelo lógos. A diferença em relação a Heidegger é que Lacan, ao invés de
aceitar esse acordo (mesmidade) entre Ser e lógos, tenta sair dela, para uma dimensão
do real indicada pela junção impossível entre sujeito e gozo. Não é de se admirar, então,
que, relativamente à angústia, Lacan prefere Kierkegaard a Heidegger: ele percebe
Kierkegaard como o anti-Hegel para quem o paradoxo da fé cristã assinala uma quebra
radical com a ontologia grega antiga (em contraste com a redução de Heidegger da
cristandade a um momento no processo de declínio da ontologia grega em metafísica
medieval). A fé é um salto existencial naquilo que (do ponto de vista ontológico) não
pode senão aparecer como loucura, é uma decisão louca não garantida por qualquer
razão – o Deus de Kierkegaard é, efetivamente, “além do Ser”, um Deus do Real, não o
Deus dos filósofos. Eis porque, de novo, Lacan aceitaria a famosa declaração de
Heidegger, dos anos 1920, quando ele abandonou a Igreja católica, de que a religião é
uma inimiga mortal da filosofia – mas ele veria isso como a razão para ater-se ao núcleo
do Real na experiência religiosa.
O “sujeito” lacaniano nomeia uma hiância no simbólico, seu status é real – eis
porque, como Balmes apontou, em seu seminário crucial sobre a lógica da fantasia
(1966-67), depois de mais de uma década de contenda com Heidegger, Lacan realiza o
paradoxal e (para alguém que adere à noção heideggeriana de filosofia moderna)
totalmente inesperado movimento que o leva, de Heidegger, de volta para Descartes, ao
cogito cartesiano. Há, de fato, um paradoxo aqui: Lacan primeiramente aceita o ponto
de Heidegger de que o cogito cartesiano, que fundamenta a ciência moderna e seu
universo matematizado, anuncia o mais agudo esquecimento do Ser; mas para Lacan, o
Real do gozo é precisamente externo ao Ser, de modo que o que é para Heidegger o
argumento CONTRA o cogito é, para Lacan, o argumento A FAVOR do cogito – o real
do gozo só pode ser abordado quando saímos do domínio do ser. Eis porque, para
Lacan, não apenas o cogito não pode ser reduzido à autotransparência do pensamento
puro, mas, paradoxalmente, o cogito É o sujeito do inconsciente – a lacuna/corte na
ordem do Ser na qual o real do gozo se infiltra.
Obviamente, esse cogito é o cogito “em potência” [“in becoming”], não ainda a
res cogitans, a substância pensante que participa inteiramente no Ser e no lógos. No
seminário sobre a lógica da fantasia, Lacan lê a verdade do cogito ergo sum de
Descartes mais radicalmente do que em seus seminários anteriores, nos quais ele jogava,
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interminavelmente, com as variações da “subversão” do sujeito. Ele começou
descentrando o ser em relação ao pensamento – “não sou onde penso”, o núcleo de
nosso ser (“Kern unseres Wesens”) não está em minha (auto)consciência; contudo, ele
rapidamente tornou-se ciente de que tal leitura deixa o caminho por demais aberto para
o tópico irracionalista da Lebensphilosophie, da Vida como mais profunda do que o
mero pensamento ou linguagem, que vai de encontro à tese básica de Lacan de que o
inconsciente freudiano é “estruturado como uma linguagem”, minuciosamente
“racional”/discursivo. Então ele passou a um bem mais refinado “penso onde não sou”,
que descentra o pensamento em relação a meu Ser, a ciência de minha presença
completa: o Inconsciente é um Outro Lugar (in-existente, insistente) puramente virtual
de um pensamento que escapa a meu ser. Há, então, uma pontuação diferente: “Penso:
‘logo sou’” – meu Ser reduzido a uma ilusão gerada por meu pensamento; etc. O que
todas essas versões partilham é o acento na lacuna que separa o cogito do sum, o
pensamento do ser – a visada de Lacan era minar a ilusão do recobrimento entre eles,
apontando para a fissura na aparente homogeneidade entre pensar-ser. Foi apenas perto
do final de seu ensino que ele asseverou o recobrimento entre eles – um recobrimento
negativo, com certeza. Quer dizer, Lacan finalmente apreende o grau-zero mais radical
do cogito cartesiano como o ponto da interseção negativa entre ser e pensar: o ponto
evanescente no qual não penso E não sou. NÃO SOU: não sou uma substância, uma
coisa, uma entidade, sou reduzido a um vazio na ordem do ser, a uma hiância, a uma
béance. (Que se lembre como, para Lacan, o discurso da ciência pressupõe a forclusão
do sujeito – para colocá-lo em termos ingênuos, nele, o sujeito é reduzido a zero, uma
proposição científica deve ser válida para qualquer um que repetir o mesmo
experimento. No momento em que tivermos que incluir a posição de enunciação do
sujeito, não estamos mais na ciência, mas num discurso de sabedoria ou iniciação).
NÃO PENSO: aqui, novamente, Lacan paradoxalmente aceita a tese de Heidegger de
que a ciência (moderna, matematizada) “não pensa” – mas, para ele, isso significa
precisamente que ela escapa do enquadramento da onto-logia, do pensamento como
lógos correlativo ao Ser. Como puro cogito, não penso, sou reduzido à “pura forma do
pensamento”, que coincide com seu oposto, i. e., que não tem nenhum conteúdo e é
como tal não-pensamento. A tautologia do pensamento é autocanceladora do mesmo
modo que a tautologia do ser, donde, para Lacan, o “Sou o que sou”, enunciado pela
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sarça ardente a Moisés no Monte Sinai, indicar um Deus para além do Ser, Deus como
Real13.
Referências bibliográficas
BALMES, F. (1999) Ce que Lacan dit de l’étre. Paris: PUF.
LACAN, J. (1955-1956/1981) Le seminaire , livre III: Les psychoses. Paris: Seuil.
_________. Le desir et son interpretation (seminário não publicado).
_________. L’objet de la psychanalyse (seminário não publicado).
LACOUE-LABARTHE, Ph. (1991). “De l’éthique: a propos d’Antigone”, in Lacan
avec les philosophes. Paris: Albin Michel.
MEILLASSOUX, Q. (2008) After finitude. London: Continuum Books.
Recebido em 22/01/09
Aprovado em 13/02/09
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Aqui, podemos também estabelecer o vínculo com o design do materialismo especulativo de
Meillassoux: o Real científico matematizado está fora da correlação transcendental entre lógos e ser. Ver
MEILLASSOUX, Q. (2008) After finitude. London: Continuum Books.
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Por que Lacan não é heideggeriano