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ESCRITA ÍNTIMA CONTEMPORÂNEA: DO DIÁRIO VIRTUAL AO
NASCIMENTO DE UM ESCRITOR REAL
27
Penha Élida Ghiotto Tuão Ramos1
(UENF)
Analice de Oliveira Martins2
(UENF)
RESUMO: A sociedade contemporânea está inserida em um contexto híbrido, que
mescla a vida pública com vida privada, de modo que informações tradicionalmente
segredadas são, agora, colocadas ao alcance de todos: a vida pessoal ganha visibilidade
e desperta o interesse coletivo. Assim, o diário, tradicionalmente configurado em
suporte de papel, recebe uma versão eletrônica, o blog, na qual necessariamente o texto
é disponibilizado com o objetivo de ser lido – e comentado. Diante desse contexto, a
presente pesquisa almeja verificar o uso do blog como um meio de realização do autor
já sugestionado no diário convencional. Para tanto, foi feita uma revisão bibliográfica
sobre blog, escritas íntimas, comunicação e ficcionalização, bem como a análise de
blogs temáticos da escritora Ana Cristina Araújo Ayer de Oliveira, a Índigo.
PALAVRAS-CHAVE: Escrita íntima; tecnologia; autor; leitor.
ABSTRACT: Contemporary society is embedded in a hybrid context that merges
public life with private life, so that information traditionally whispered are now placed
within the reach of all: personal life gains visibility and awakens the collective interest.
So, the diary, traditionally configured on paper, receives an electronic version, the blog,
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF), Campos dos Goytacazes, RJ/BRASIL. E-mail: [email protected];
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6233081353479239.
2
Doutora em Estudos de Literatura pela PUC-RIO, Campos dos Goytacazes, RJ/BRASIL. E-mail:
[email protected]; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8966420075110672.
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in which the text is necessarily available in order to be read - and commented. Given
this context, this research aims to verify the use of the blog as a means of completing
the author has suggestible in conventional daily. Therefore, a bibliographic review
about blog, intimate written, communication and fictionalization was taken, as well as
analysis of thematic blogs of the writer Ana Cristina Araújo Aver de Oliveira, the
Indigo.
KEYWORDS: intimate writing, technology, author, reader.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A escrita recebeu diferentes suportes ao longo do tempo. Se na antiguidade,
especialmente na Idade Média, os registros foram feitos primeiro em pergaminhos, mais
tarde, se dá sobre outro suporte: o papel. Organizando os textos não mais em rolos de
pergaminhos, mas em blocos, uma alteração é feita no suporte da escrita e tem-se, então,
o códex – um antepassado do livro impresso. Com Gutenberg, o objeto denominado
livro tornou-se popular e difundiu a escrita de massa, revolucionando o modo de ler: de
uma leitura necessariamente oral a uma leitura – também necessariamente – silenciosa.
Se o suporte dado à escrita através dos rolos de pergaminhos era propício ao modo de
leitura dominante, sendo tão contínuo quanto a própria oralidade, com o livro, outro
formato é dado: agora há folhas agrupadas que fragmentam o texto. Com o livro, é
possível dar uma pausa à leitura e estabelecer controle sobre ela através da numeração
dada às páginas. O suporte livro torna o texto próximo de seu leitor, sendo tão móvel
quanto aquele que o lê.
Junto à expansão do conteúdo escrito, a implantação da imprensa eternizou
momentos históricos e contemplou personalidades com a sensação de imortalidade –
tamanho o poder da escrita. Com isso, muitos eus transitaram entre os livros, cunhando
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e moldando a sua realidade e a sua identidade. Isso também ocorre com a expansão da
internet, entretanto, de forma intensificada:
29
O eu que fala e se mostra incansavelmente na web costuma ser tríplice: é ao
mesmo tempo autor, narrador e personagem. Além disso, porém, não deixa
de ser uma ficção; pois, apesar de sua contundente auto-evidência, é sempre
frágil o estatuto do eu (SIBÍLIA, 2008, p. 31).
Então, perante as angústias, alegrias e anseios de seu tempo, o indivíduo que
domina as letras se apropria da escrita como desabafo, afirmação, autoconhecimento,
reflexão. Nesse cenário, ascendem as escritas autobiográficas, como o diário íntimo, e a
possibilidade de expressar-se, ainda que sem convocar assumidamente um leitor.
Motivando as escritas íntimas, está o desejo de realinhar as relações sociais tão
abaladas pelas multifaces da realidade contemporânea. Se, ainda assim, a desordem do
plano concreto não consegue ser superada, uma alternativa surge: o plano virtual.
Graças ao desenvolvimento tecnológico – principalmente a propagação da internet –
grande parte das pessoas tem exercitado seus sentimentos a partir da tela digital, de
modo que relações limitadas pelo espaço físico e pelas peculiaridades das situações face
a face ficam aperfeiçoadas nas redes sociais digitais, o que também ocorre nos blogs:
O blog é uma adaptação virtual de um refúgio que o indivíduo já havia criado
anteriormente para aumentar o seu espaço privado: o ‘diário íntimo’. O
interessante é que, apesar de todos os avanços técnicos, continua sendo um
diário baseado na linguagem escrita (SHITTINE, 2004, p. 60).
Enfim, aliado à vontade de exteriorizar as histórias que já não podem ser
silenciadas, há um desejo desmedido de escrever. No caso do diário, podem ser
relacionadas quatro funções, segundo Lejeune (2000, p. 275), “sem esquecer que pode
haver outras e que um diário real preenche várias funções ao mesmo tempo. Trata-se da
expressão, da reflexão, da memória e do prazer de escrever”.
Não importa o suporte – se papel ou tela eletrônica –, o que sobressai nesse
contexto é a necessidade de verbalizar o que está abstrato no pensamento – ou poderia
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se esvair na oralidade. Essa é uma atividade que requer trabalho, tempo e dedicação, por
isso, não houvesse um impulso para a escrita, não haveria também a sua produção.
Deambulando nesse contexto, emergem, de modo inquietante, algumas questões
que desfazem o consenso de que os diários íntimos são anotações pessoais de pouco
valor literário. Assim, quem mantém um diário não teria o interesse de ser lido? Sendo a
internet um meio de comunicação extremamente eficiente, não representaria também a
possibilidade de o escritor sugestionado pelo diário convencional ser realizado através
das publicações online? No diário virtual de um escritor – o blog –, haveria outra função
atrelada ao prazer de escrever, isto é, a de autenticar a condição de escritor? Qual é o
limite entre o real e o ficcional nas escritas íntimas? Como se dá o uso do blog por
aqueles que já são escritores e por quem deseja se tornar escritor? Seria a escrita dos
diários virtuais uma necessidade do escritor ou apenas um meio para seguir o fluxo das
tendências midiáticas?
Para investigar as relações entre o diário íntimo contemporâneo – o blog – e a
intenção de seu autor em ser lido, bem como o desejo de consolidar a figura de um
escritor a partir das redes digitais, será feita uma análise dos blogs temáticos mantidos
por Índigo, então escritora e, antes, conhecida como Ana Cristina Araújo Ayer de
Oliveira.
I – DIÁRIO: DO PAPEL AO VIRTUAL
O diário apresenta uma estrutura própria e tem como base a data: “um diário sem
data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos
precisa ou espaçada, mas é capital” (LEJEUNE, 200, p. 260). Com a data, o diarista
estabelece uma entrada para a escrituração do texto, recorta um determinado tempo de
sua vida e se torna refém do papel. No blog, as entradas são conservadas, contudo,
ganham mais um elemento que torna o momento da escrita ainda mais exato: é
automaticamente registrada no blog a hora de cada postagem.
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No diário convencional, o suporte de papel confere um caráter tátil aos textos
íntimos. Nele é possível colar fotos, fixar uma flor, perfumar a página, deixando para o
futuro fragrâncias, borrões, marcas de cola, enfim, vestígios que despertarão sensações e
provocarão a memória e a imaginação de seu leitor a fim de despertar sentimentos em
relação ao que lê. Tudo isso sensível ao toque e ao olfato provocados pela superfície
porosa do papel. Conforme esse ponto de vista, também ressurgem aspectos estéticos
como a organização espacial das anotações particularizadas no pequeno arquivo de
intimidades. Além disso, há o contato com a caligrafia tão pessoal e condensadora do
estado de espírito de seu escritor. Tudo isso atribui certa singularidade ao texto no
papel, especialmente quando se trata de uma escrita autorreferente. Todos os detalhes
são, pois, significativos:
Quando abrimos um diário, nossa curiosidade é saber qual código de boas
maneiras o diarista se impôs: a organização, a regularidade, o capricho na
letra e no estilo, de um lado; e principalmente variações de censura: o que ele
se permite dizer a mais ou de diferente. É mais ou menos como se vocês
deixassem a sala de visitas para entrar no quarto: a casa foi arrumada, limpa?
(LEJEUNE, 2000, p. 311).
Com a difusão dos textos eletrônicos, o papel é substituído pelo visor do
computador, do tablet ou do smartphone, entre outros meios aparelhos digitais – o que
representa uma alteração grandiosa no modo de ler, de escrever e de reproduzir um
texto: “A passagem de todo esse material para o espaço virtual acarreta uma perda de
suporte concreto para as lembranças do diarista. Em vez de estarem lá, espessas em suas
mãos como um livro, dançam num vazio que ele não consegue dominar” (SCHITTINE,
2004, p. 133).
Realizando-se na internet, o diário pessoal se modifica também no trato dado ao
eu que escreve, sendo relevante a alteração do status dado ao segredo: o que no diáriolivro era posto como privado, no diário-blog é compartilhado com um público:
Com essa pequena mudança no meio de comunicação – do papel para a tela –
, o diário deixa de fazer parte da esfera íntima e abre para a esfera pública. É
um paradoxo: o escrito que deveria, a princípio, permanecer fechado para o
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mundo e para as relações exteriores se abre para ambos, de uma nova
maneira (SCHITTINE, 2004, pp. 31-2).
Dada a acelerada reprodutividade veiculada pela web, qualquer exposição de
segredo é feita a um grupo capaz de se multiplicar, se alimentar da vida alheia e com ela
se envolver de modo que todo post abre ao leitor a possibilidade de participar das
publicações do diarista.
Assim, “uma intensa ‘fome de realidade’ tem eclodido nos últimos anos, um
apetite voraz que incita ao consumo de vidas alheias” (SIBÍLIA, 2008, p. 34). O leitor e
seu olhar voyeur apropriam-se da tela digital como uma imensa janela para a vida de
outrem.
A partir do blog, perde-se a noção de volume tão característica do diário de
papel e ganham-se recursos inimagináveis: “Com a tela substituta do códex, a
transformação é mais radical, pois são os modos de organização, de estrutura, de
consulta ao suporte do escrito que se modificaram” (CHARTIER, 1999, p. 98). Há
agora o acesso a partir de links, a inserção de fotos e vídeos, a abertura de outras janelas
enquanto se lê ou faz um registro diarista. Sob esse novo formato, o diarista expõe
realidades e ficcionalizações a respeito de si mesmo, exercitando o que se classificaria
como felicidade extravagante3.
A essa mudança de suporte, Paula Sibília faz uma observação significativa: “[...]
transforma-se também a subjetividade que se constrói nesses gêneros autobiográficos.
Muda-se precisamente aquele eu que narra, assina e protagoniza os relatos de si. Muda o
narrador, muda o autor, muda o personagem.” (SIBÍLIA, 2008, p. 50).
Com a influência tecnológica, revoluciona-se o meio de registro do texto
autorreferente, mas, surpreendentemente, a linguagem escrita permanece exatamente a
mesma: “Os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos que se tornam
objetos
3
escritos,
manuscritos,
gravados,
impressos
e,
hoje,
informatizados”
Expressão usada por Roger Chartier no livro A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na
Europa entre os séculos XIV e XVIII ao se referir ao texto na tela informática.
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(CHARTIER, 1999. p.17). Desse modo, se, em algum momento, a obra foi percebida
como um texto abstrato, cuja forma tipográfica não importava, com a expansão da
internet e a proliferação do hipertexto, a forma dada ao texto ganha papel crucial e
revolucionário: desloca-se de um texto a outro sem sair do lugar onde está, tornando o
texto ilimitado: “[...] o leitor pode escolher, através da navegação, o que quer ler”
(SCHITTINE, 2004, p. 78).
II – DE ANA CRISTINA A ÍNDIGO
Como fazer referência a uma pessoa senão pelo nome que recebeu ao nascer?
Questão simples, mas que se torna complexa quando se fala de uma escritora que
praticamente extingue seu antropônimo em razão de uma designação que oscila entre
pseudônimo e heterônimo. Trata-se da escritora Índigo – ou seria Ana Cristina Araújo
Ayer de Oliveira?
Tal escritora, sob uma estratégia ficcionalizante, torna escassas as referências ao
seu nome de registro civil – Ana Cristina –, alcunhando-se apenas como Índigo, seja em
seus blogs, em seus livros, em entrevistas ou em autobiografias. Por isso, é admissível
afirmar que um pseudônimo não é propriamente um nome falso, mas um segundo nome,
como defende Lejeune: “os pseudônimos literários não são, em geral, nem mistério,
nem mistificações: o segundo nome é tão autêntico quanto o primeiro, ele indica
simplesmente esse segundo nascimento que é a escrita publicada” (LEJEUNE, 2000, p.
24).
Índigo nasceu em Campinas, São Paulo, em 29 de agosto de 1971. Morou nos
Estados Unidos, onde se formou em Jornalismo – época em que trabalhou no Índigo
CyberCafé, onde era chamada de indigogirl, o que certamente contribuiu para a escolha
do nome que adotaria posteriormente. Iniciou sua carreira literária publicando contos na
internet, em 1997, impulsionando a uma prática que mantém até hoje: escrever blogs
temáticos. Desse constante exercício com o suporte virtual, no qual se designava
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somente como Índigo, alcançou o mercado editorial e lançou seu primeiro livro: Saga
Animal. Atualmente, a autora tem vários livros publicados, entre os quais está Cobras
em Compota – obra que lhe concedeu, em 2006, o prêmio do 1o Concurso Literatura
para Todos, do Ministério da Educação.
III – DE BLOG EM BLOG
Índigo começou a publicar contos na internet e percebendo que seu site estava
perdendo visitações, a escritora decide criar um blog, ainda que receasse manter um
diário pela internet – era uma ideia que não a atraía: “Ridículo. Eu jamais escreveria um
diário na internet. Eu não. Eu sou diferente”4. Índigo começa, então, a escrever textos
curtos que ela foi nomeando de obsessão um, obsessão dois e, enfim, a fez compreender
que, dessa forma, estaria construindo um blog e de uma forma que lhe agradava3. Assim
surgem os blogs temáticos caracterizados por 73 posts: primeiro 73 obsessões; depois
73 bichos; em seguida, 73 subempregos; e, por fim, 73 leitores – os três primeiros de
2003 a 2006. Era um post por dia, exceto nos fins de semana, até completar as dezenas
determinadas previamente, quando a diarista encerrava as postagens no blog.
Após – e simultaneamente – aos blogs da série 73, Índigo criou o Diário da
Odalisca, o qual foi mantido nos anos de 2006 a 2012. Curioso que apesar de o nome se
referir a uma odalisca, a página principal do blog apresenta o título Vida no Campo e
assim é tematizado com um cenário bem rural. Nesse blog já é possível fazer uma
identificação da autora pelas postagens que faz, as quais trazem relatos do dia a dia de
uma forma explícita e bastante diarista: há fotos da escritora e de amigos e relatos de
sua rotina. Nos blogs anteriores, as referências à escritora ficavam implícitas, pois havia
a intenção de manter um sigilo quanto a sua identidade.
4
Como é possível confirmar acessando a primeira publicação do blog Diário da Odalisca, entre 01/06 e
30/06/2012, sob o título: Explicação inicial: Síndrome de Odalisca.
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Em 2012, Índigo abre outro blog – agora para substituir Diário da Odalisca – e o
intitula livrosdaindigo.com.br. Sob uma nova formatação, mas com a imagem de fundo
com temática parecida com a do blog recém congelado, tem-se uma imagem que lembra
um jardim: com árvore, formiga e pássaro – entretanto, tudo matizado de azul. Não se
trata de uma decoração casual, mas da materialização de uma identidade: Se, por um
lado o azul reflete a cor expressa pelo nome “índigo”, por outro, a escolha do cenário
reporta a uma lembrança da escritora: “Fiz meu primeiro registro sentada no degrau da
escada, no quintal de casa e observava as formigas que passavam por ali” 5, conforme
depoimento no portal Cronópios.
Dessa forma, mistura-se ficção, escrita diarista e a comunicação via internet,
construindo, então, um importante selo nominal6, chamado Índigo.
IV - ÍNDIGO: ENTRE A FICCIONALIZAÇÃO E A REALIZAÇÃO DE UMA
ESCRITORA
Quem escreve um livro? Alguém denominado escritor, autor. Um sujeito de
existência real, detentor de registro, como o de nascimento, entre tantos outros que o
identificam como um ser social. Para localizá-lo, o leitor recorre, no mínimo, à ficha
catalográfica do livro que lê e, enfim, identifica o seu autor: “o autor é, pois, um nome
de pessoa, idêntico, que assume uma série de textos publicados diferentes.” (LEJEUNE,
2004, p. 23). Em apontamentos a respeito de o que seria a figura do autor e dos locais
onde sua função é exercida, bem como da relação de atribuição à qual está sujeito,
Foucault (2009, p. 83) afirma que “o autor é, sem dúvida, aquele a quem se pode
atribuir o que foi dito ou escrito”.
Mas, o que entender a respeito de um autor sobre o qual o próprio nome é uma
ficção? Em se tratando de um diário íntimo, seria este um autor, um narrador ou um
5
6
Segundo declaração dada por Índigo no artigo Dossiê Índigo, do portal Cronópios.
Termo utilizado por Denise Schittine, no livro Blog: comunicação e escrita íntima na internet.
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personagem? Referindo-se à identidade do nome (autor-narrador-personagem) e a sua
relação com o leitor, Lejeune defende a existência de um pacto autobiográfico, o qual “é
a afirmação, no texto, dessa identidade, remetendo, em última instância, ao nome do
autor, escrito na capa do livro” (LEJEUNE, 2004, p. 26). Cabe ao leitor, então,
estabelecer relações com o texto lido, de modo que autentique sua narrativa como real
ou ficcional. Além disso, no caso dos diários íntimos, o leitor precisa ter a perspicácia
de identificar no diarista um autor capaz de enxergar a vida de forma diferente, podendo
até mesmo misturá-la com a ficção, tornando-se, assim, um personagem.
É nessa perspectiva que a escritora Ana Cristina Araújo Ayer de Oliveira publica
seus livros: em vez do nome do registro de nascimento, outro: Índigo – nome que
adotou para a vida de escritora. Em seus livros, Índigo não faz nenhuma remissão à
figura do autor enquanto pessoa física, isto é, enquanto “uma pessoa cuja existência é
atestada pelo registro em cartório e verificável” (LEJEUNE, 2004, p.23). Há apenas um
nome – Índigo – que se aproxima de um pseudônimo, “simplesmente uma
diferenciação, um desdobramento do nome, que não muda absolutamente nada no que
tange à identidade.” (LEJEUNE, id. ib.). Curioso que a sugestão de falsificação oriunda
do termo pseudônimo, sob a direção de Ana Cristina, parece imprópria: haveria antes
uma ficcionalização da realidade, o que não a converteria propriamente em uma
mentira.
Índigo seria, inicialmente, um nome adotado por uma escritora na criação de um
blog, no qual decide não revelar seu nome real. Em entrevista para o portal Cronópios,
em janeiro de 2006, a escritora fala sobre suas publicações na internet:
Eu podia mostrar o texto sem mostrar a cara
Era o ano de 1997 e eu trabalhava com internet. Escrevia alguns contos, mas
morria de vergonha. Mostrava só para amigos. Sou muito tímida para fazer
fanzine e sair distribuindo. Mas a internet permite uma exibição controlada.
Eu podia mostrar o texto sem mostrar a cara. Era a solução perfeita.
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Essa atitude confirma um apontamento de Denise Schittine, segundo o qual, por
meio do computador, uma pessoa pode desdobrar a sua realidade em duas: “aquela na
qual está inserido e a que irá criar para além da tela. [...] O computador permite ao autor
do escrito íntimo realizar um desejo que jamais poderia ter sido realizado através de
outro meio de comunicação: o de se expor sem se identificar” (SCHITTINE, 2004, pp.
34-35).
Assim, torna-se compreensível o porquê de não estar sinalizada nenhuma
identificação da autora nos primeiros blogs: só tem figuras que tematizam o nome do
blog, o que, no caso de 73 subempregos, está representado por uma imagem de Santo
Expedito, o protetor das causas justas e urgentes – como é o caso dos subempregos. Não
aparece foto da escritora, o que indica a intenção de ocultar o próprio nome por meio de
um pseudônimo. Contudo, pode-se dizer ainda que o pseudônimo acabou sobrepondo o
nome registrado em cartório e sua função não é mais ocultar a identidade da escritora –
na verdade, ele se torna a sua própria identidade, pois, em 2001, Índigo já tem um livro
publicado e assinado pelo segundo nome, tornando-se, por isso, uma identidade pública,
não mais privada, segredada – o que subtrai do pseudônimo qualquer intensão de
esconder-se.
Em Diário da Odalisca, a escritora corporifica a construção da sua nova
identidade: se, nos anos iniciais do diário virtual Índigo era apenas um nome
responsável pelos posts de pequenos contos recheados de realidades, com esse blog ela
ganha rosto e vida social. Nele, ela publica, como de costume, uma explicação inicial,
deixando implícita a ficção que faz de si no decorrer das escritas da série 73: “Diário da
Odalisca é uma tentativa de normalidade. Sem regras, sem formatos, sem estrepolias.
Um diário normal. Enfim, algo que nunca fiz na vida”. Então, se Diário da Odalisca não
tem regras ou formatos, sendo, por isso, diários normais na opinião da autora, o que
seria os blogs da 73? Ficcionalizações?
É como se uma personalidade nascesse dessa relação permanente com a escrita
confessional e ficcionalizada pela escritora, de modo que Índigo é tão – ou mais – real
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que Ana Cristina Araújo Ayer de Oliveira. Assim, pelo diário virtual, apresenta-se um
rosto que se autodenomina Índigo. O mesmo ocorre na capa e na ficha catalográfica dos
livros da escritora. No final do livro Saga Animal, por exemplo, há o subtítulo Ígor
apresenta seus criadores e, ao aludir à escritora que o criou, novamente emerge Índigo.
Ora, se Ígor é um personagem do livro, é também o porta-voz da escritora, a qual o
utiliza para se apresentar, não como Ana Cristina, mas como Índigo: “Índigo é uma
escritora que há quatro anos publica contos na internet. Ela me criou, e o resto meu
mundo, em 1999.” (ÍNDIGO, 2007, p. 191). Tem-se mais um resquício de um eu que se
escreve a partir da encenação de si: não há mais lugar para uma pessoa, mas para a
personagem-escritora; é como se uma fosse diferente da outra, ou, ainda, como se a
pessoa-pessoa, por si mesma, não fosse tão interessante quanto a pessoa-escritora.
Entre os motivos apontados por Schittine para o uso de um pseudônimo, está “o
desejo de desenvolver uma nova faceta da personalidade” (SCHITTINE, 2004, p. 105),
o qual certamente torna verificável a postura de Ana Cristina. O uso de um pseudônimo
pode ser motivado pela possibilidade de o autor “escrever com outros discursos, sem o
‘selo nominal’ que tanto o personaliza”, como assinala Schittine (id. ib.). Contudo, com
Índigo seria mais apropriado acreditar que esse segundo nome é o próprio selo nominal
que a autora alcunha à escritora que ela representa.
Em 2013, com o blog livrosdaindigo.com.br, no item eu do menu, o que antes
parecia um pseudônimo ganha traços que o aproximam de um heterônimo: Índigo teria
um corpo e uma personalidade, inclusive, de cor azul:
[..] Depois, com a invenção da internet, eu me transformei numa cor. Sob o
disfarce de Índigo, passei a publicar contos na rede. Gostei da brincadeira. Os
leitores também. Quando vi, Índigo havia se transformado numa pessoa de
carne e osso, que por coincidência era eu mesma.
Essa nova identidade criada e assumida por Ana Cristina torna-se tão singular
que, ao encaminhar uma biografia resumida para o portal Bigorna.net, em 2008, ela
nem sequer mencionou seu nome de registro:
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Índigo é autora de O colapso dos bibelôs (Moderna, 2008), A maldição da
moleira (Girafinha, 2007), Um dálmata descontrolado (Hedra 2007), Saga
Animal(Hedra 2001), entre outros. Nasceu em Campinas e atualmente vive
em São Paulo. Vencedora do Primeiro Prêmio Literatura para Todos do
MEC com o livroCobras em compota. Adaptou para Quadrinhos o
livro Memórias de um Sargento de Milícias (Escala Educacional, 2007), com
arte
de Bira
Dantas.
Mantém
o blog Diário
da
Odalisca.
Biografia encaminhada ao Bigorna.net pela escritora [...]
Na gênese em que está inserida a escritora Índigo, fica tênue a fronteira entre o
real e o ficcional, entretanto, bem delimitado o seu desejo de escrever e de ser
reconhecida pela própria escrita. Assim, da esfera privada configurada pelo
pseudônimo, Índigo transmuta-se para uma figuração pública: a de escritora.
V - DO DIÁRIO À CONSOLIDAÇÃO DA ESCRITORA
Além da necessidade de comunicar-se, o que impulsiona uma pessoa a escrever?
Não se cogita sobre uma escrita direcionada, com finalidade prática; pensa-se a respeito
da escrita descomprometida com os fins objetivos – algo além das expressões
meramente comunicativas. Examinam-se os motivos que fazem com que uma pessoa
simplesmente escreva e isso a faça sentir-se bem.
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais importantes da literatura alemã, ao
responder à carta de um jovem poeta que se indaga a respeito da qualidade dos versos
que escreve, aconselha-o a avaliar a sua escrita voltando-se para dentro de si e, com
isso, define o que faz de um indivíduo um escritor:
Volte para dentro de si. Investigue o motivo que o impele a escrever;
comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração,
confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever.
Sobre tudo isso pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua
madrugada: preciso escrever? Desenterre de si uma resposta profunda. E, se
ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com
forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal
necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e
irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso (RILKE, 2009, p. 25).
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Assim, é possível afirmar que da vontade irresistível de escrever nasce um
escritor, não importa o suporte ou o gênero textual: escreve-se por escrever – mantémse, primeiro, um pacto com a escrita. O impulso de escrever é subjacente ao
reconhecimento da figura de um escritor e, muitas vezes, se concretiza através dos
escritos íntimos, entre os quais está o diário.
Ter e manter um diário são deleites de quem realmente aprecia a relação com as
palavras, daqueles que projetam e recriam suas vidas em páginas, sendo “raras as
pessoas que se obrigam durante um período longo a escrever diariamente, anotando o
máximo possível de coisas” (LEJEUNE, 2000, p.257).
A escrita íntima faz parte não só da vida da escritora Índigo, mas também da
história de Ana Cristina Araújo Ayer de Oliveira, a qual ganhou um diário de presente
quando ainda era bem jovem e, dessa época em diante, não parou mais seus escritos. A
própria escritora, por várias vezes, faz referência a esse gosto pela escrita ainda que a
memória a traia em algumas datas. Em uma entrevista, no final de seu livro Cobras em
Compotas, para a pergunta sobre quando começou a escrever, Índigo afirma: “Aos 13
anos, com um diário que mantenho até hoje.” Já para o portal Cronópios, Índigo diz:
“Comecei a escrever num domingo. Aos onze anos de idade ganhei um diário cor de
rosa com um cadeado. Comecei com ‘meu querido diário’. [...] Nunca mais parei de
escrever. Mantenho um diário até hoje”. Situação que comprova o quanto a memória
pode ser falha.
Com essas declarações, Índigo confirma seu compromisso com a escrita e
possibilita remissões às colocações de Lejeune:
Mantém-se enfim um diário porque se gosta de escrever. É fascinante
transformar-se em palavras e frases e inverter a relação que se tem com a
vida ao se auto-engendrar. [...] O diarista não tem a vaidade de se acreditar
escritor, mas encontra em seus escritos a doçura de existir nas palavras e a
esperança de deixar um vestígio (LEJEUNE, 2000, pp. 264-265).
Ora, não seria muito categórico excluir do autor de um diário a vaidade de se
acreditar escritor? Escreve-se para alguém ler, o que requer a atuação de um leitor e,
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portanto, acarreta a intenção de ser concebido como escritor – o que fica confirmado
nos blogs, principalmente pela relação que os leitores podem manter com o escritor
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através dos comentários.
Com o blog, a escrita diarista deixa de ser solitária e abre ao leitor a
oportunidade de participar dela. Por isso, “na rede, vários leitores podem se manifestar a
respeito das angústias e dúvidas do diarista escrevendo e-mails, mandando cartas ou
fazendo comentários” (SCHITTNE, 2004, p. 77). Essa possibilidade fica clara no blog
Diário da Odalisca, post de 20/06/2012, no qual sua autora, Índigo, faz uma postagemresposta a um leitor: “Ontem recebi um comentário dizendo que meu blog já foi melhor.
Concordo. Antes, na série 73, eu tinha foco. Agora não. Agora faço um diário virtual
normal. Na série 73 era literatura, nesse aqui é só rabisco”. Walter Benjamin, ao se
referir à imprensa soviética, também aponta o desaparecimento da distinção
convencional entre o autor e o público: “Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a
escrever, descrever e prescrever. Como especialista – se não numa área de saber, pelo
menos no cargo em que exerce suas funções –, ele tem acesso à condição de autor”
(BENJAMIN, 1987, p. 124).
Mesmo depois de já ter publicado alguns livros, Índigo não se desfaz dos diários
online e, na última postagem do blog 73 subempregos, intitulada Subemprego 73:
Escritora neurótica, ela expõe o quanto se sente realizada por ser lida – não nos livros,
mas nos blogs: “Escrever a Série 73 teve um efeito muito importante na minha vida.
Passei a ser lida, e esta é a maior realização que uma escritora, mesmo neurótica, pode
ter. Agradeço a excelente companhia”. Interessante observar que só para o último post,
Subemprego 73: Escritora neurótica, foram recebidos 75 comentários, o que sanciona a
formação de um público leitor. Tendo em vista o número de comentários e a declaração
da escritora, fica visível o quanto a interação direta entre o autor e o leitor particulariza
a escrita íntima dos blogs, despertando no autor a sensação de escritor: se alguém
escreve, é lido e comentado, não seria um escritor? Quem tem um livro publicado, mas
não tem tal correspondência dos leitores, seria escritor? São, enfim, inquietações que
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tornam rarefeitos alguns conceitos já cristalizados em torno de o que seria a figura do
autor.
O diário íntimo não tem propriamente um emprego, nem uma função exata,
sendo, portanto, possível compreendê-lo também como uma alternativa para a
consolidação de um escritor. Índigo inicia sua carreira literária publicando contos na
internet, em 1997, e escrevendo em blogs a partir de 2003, só depois lança seu primeiro
livro. Contudo, é no espaço virtual que a escritora de fato se consolida como tal.
Utilizando os blogs, une-se, então, a possibilidade de atrair um público leitor ao desejo
de ser lido:
[...] todos os aspectos da atividade humana podem dar margem a manter um
diário. A forma, por fim, é livre. Asserção, narrativa, lirismo, tudo é possível,
assim como todos os níveis da linguagem e de estilo, dependendo se o
diarista escreve apenas para ajudar a memória, ou com a intenção de seduzir
outra pessoa (LEJEUNE, 2000, p. 261).
Afinal, há uma importância grande atribuída ao leitor, pois é ele que, de fato,
torna possível a existência do escritor e perpetua a vontade de escrever, o que fica
evidenciado com a postagem denominada Primeiramente..., com a qual Índigo introduz
o blog 73 leitores:
Se eu escrevo é porque vocês existem. Se não fosse por vocês eu nem estaria
aqui. É por isso que hoje começo a série 73 leitores. Porque vocês merecem.
A regra é a mesma do 73 Obsessões, 73 Bichos e 73 Subempregos. Um post
por dia, sendo que em dias inúteis eu não escrevo. Quando completar 73,
encerro o blog. Então vamos ao que interessa.
São grandes as possibilidades geradas pela entrada do sujeito contemporâneo no
espaço virtual da informática e no excesso de comunicação, o que vai certamente
“engendrar novas condutas no campo do diário íntimo e transformá-lo” (LEJEUNE,
2000, p. 304). Entre essas transformações, pode ser elencada a modificação do diário
íntimo virtual para um espaço também de autopromoção e divulgação, no qual se
somam questões relativas à literatura e à comunicação.
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Nessa perspectiva, um autor deixa disponível, em rede, um escrito íntimo e tem
leitores que participam da construção do texto. Trata-se de uma questão singular dos
blogs: “uma escrita que tem por finalidade a reserva começa a funcionar como uma
mensagem entre um emissor e um receptor, reproduzindo o esquema clássico da
comunicação” (SCHITTINE, 2004, p. 12). Isso permite compreender que a escrita do
eu7 nos blogs pode subtender uma divulgação e, consequentemente, uma
comercialização da leitura: às margens dessa escrita íntima há a intensão de que o leitor
adquira a escrita postada na tela digital – se não há um livro publicado pelo autor do
diário, há, no mínimo, a ideia de constituir-se escritor fornecendo a escrita como
produto.
Na página principal do blog de Índigo, estão, entre as opções de navegação, os
arquivos com as postagens da sua vida particular e, claro, uma relação com obras
também de sua autoria. Tal interesse publicitário se torna até curioso: em blogs antigos
foram postadas capas de livros publicados após o encerramento do blog. Assim, o blog
73 obsessões parou de receber postagens da autora em 2006, mas, atualmente, apresenta
a capa do livro Perdendo Perninhas, que foi publicado em 2012 – tudo isso sob o rótulo
“COMPRE MEUS LIVROS!!!”. Esse retorno ao passado para alteração de informações
muda o valor do diário: “Um diário mais tarde modificado ou podado talvez ganhe
algum valor literário, mas terá perdido o essencial: a autenticidade do momento.
Quando soa a meia-noite, não posso mais fazer modificações. Se o fizer, abandono o
diário para cair na autobiografia” (Lejeune, 2000, p. 260). Nesse caso, não se trataria do
acréscimo de valor literário, nem da criação de uma autobiografia propriamente, mas do
uso do blog como apelo publicitário.
A proposta publicitária evolui na medida em que outros blogs são abertos por
Índigo: se nos blogs da série 73 e no Diário da Odalisca ao clicar na capa do livro o
leitor é remetido ao site da editora, no blog atual, livrosdaindigo.com.br, além do link de
editoras e livrarias, o leitor tem o acesso a um resumo e ao primeiro capítulo dos livros
da escritora.
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O blog enquanto uma representação eletrônica do diário íntimo constitui também
a imaterialidade do texto, o qual pode ser acessado por qualquer público, em qualquer
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lugar:
Sem materialidade, sem localização, o texto em sua representação eletrônica
pode atingir qualquer leitor dotado do material necessário para recebe-lo.
[...]Todo leitor, onde estiver, sob a condição de estar diante de um visor de
leitura conectado à rede que assegura a distribuição de documentos
informatizados, poderá consultar, ler, estudar qualquer texto, independente de
sua localização original (CHARTIER, 1999, p. 104).
Aproveitando essa acessibilidade atribuída ao texto através da internet, percebese que Índigo cria em torno de si o que Sibília chama de espetacularização do eu:
“espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar nossas personalidades e
vidas (já nem tão) privadas em realidades ficcionalizadas com recursos midiáticos”
(SIBÍLIA, 2008, p. 197).
Pode-se dizer, então, que aquela, cujo antropônimo equivale à Ana Cristina, cria
a sua própria história, através do diário íntimo virtual (o blog), ficcionalizando-se, e,
assim, se torna Índigo – uma escritora real.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo delineou as relações entre as escritas do diário íntimo virtual, o blog,
e o interesse de seu autor em consolidar-se como um escritor. Nessa perspectiva, foi
observado que algumas estratégias ficcionalizantes foram utilizadas na intenção de
formar um público leitor. Notou-se, ainda, que a escrita constante e atualizada dos blogs
arrebata leitores e autentica em quem a produz a condição de escritor.
Tomando como referência a escritora Índigo e sua estrita relação com as escritas
íntimas, foi possível verificar que, a partir das suas publicações diaristas em uma série
de blogs tematizados, ocorreu uma aproximação de internautas interessados por seus
textos e, desse modo, formou-se um público online de leitores. Tal verificação permitiu
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a compreensão da internet não só como um novo suporte para o texto, mas também
como um meio de comunicação que revoluciona os escritos íntimos: escreve-se
certamente para alguém ler e participar dessa produção, tornando público o que
teoricamente deveria ser privado.
Enfim, com as pesquisas realizadas, confirmou-se que, enquanto a escrita
diarista canônica é memorialista, introspectiva e tem como fim passar a vida a limpo
para o próprio escritor, a escrita diarista do blog é produzida para outros lerem,
provocando interlocuções e formando não só um público leitor, mas também um
escritor.
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SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:
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SIBÍLIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
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