Capítulo XLII A apresentação Ao se encontrar a sós com Monte Cristo, Albert disse-lhe: Senhor conde, permita iniciar a minha função de cicerone mostrando-lhe os aposentos de um homem solteiro em Paris. Habituado aos palácios da Itália, esta é uma oportunidade para o senhor verificar em quantos metros quadrados vive um jovem desta cidade, um dos que moram bastante bem. Na medida em que passarmos por cada aposento, abrirei as janelas, para que o senhor possa ver melhor, e também para respirarmos ar fresco. O conde já conhecia a sala de jantar, e o salão do térreo. Assim, Albert o conduziu até o seu ateliê. Tratava-se, como devem se lembrar, do aposento de sua predileção. Monte Cristo era um digno apreciador de todos os objetos que Albert enfiara neste enorme salão: velhos abajures, porcelanas do Japão, tapetes do Oriente, cristais de Veneza, armas de quase todos os países do mundo, tudo isto lhe era familiar: num primeiro golpe de vista ele reconhecia a origem, o país, até mesmo a idade das peças. Morcef acreditara que seria ele o guia, mas, ao contrário, era o conde quem lhe dava um curso resumido de arqueologia, de mineralogia, e até de história natural. Desceram ao primeiro andar. Albert convidou seu hóspede para entrar no salão defronte ao quarto de dormir. Este aposento tinha as paredes forradas de pinturas modernas; havia paisagens de Dupré, havia cavalhadas de Delacroix, com homens vestidos em armaduras brilhantes, espadas de Damasco, animais bufando, havia ainda aquarelas de Boulanger, representando vários aspectos da igreja de Notre Dame, com este vigor que faz do pintor um êmulo do poeta; havia telas do pintor Diaz, perfeito artista quando representava flores e mais flores; havia desenhos de Decamps, tão coloridos quanto os de Salvator Rosa, e finalmente, desenhos e croquis de um álbum de viagem ao Oriente, mostrando pessoas montadas em camelos, próximas de pirâmides; enfim, tudo o que a arte moderna pode mostrar de novo, em contraposição à arte desaparecida com os séculos precedentes. Ao menos nisto Albert esperava mostrar alguma coisa de novo ao estranho homem diante de si; contudo, para seu grande espanto, este, sem procurar as assinaturas nos quadros, nos quais, de qualquer maneira muitos apenas tinham as iniciais de seus autores, deu, de imediato, o nome de cada pintor em cada obra, de tal sorte que era evidente que todos os artistas lhe eram conhecidos, mais ainda, alguns deles tinham sido estudados a fundo. Do salão, ambos passaram para o quarto de dormir. Era ao mesmo tempo um modelo de elegância e de gosto severo: sobre a cabeceira da cama havia um único retrato, assinado pelo pintor Leopold Robert, resplandecente em sua moldura dourada. Retratava uma jovem mulher, de vinte e cinco ou vinte e seis anos, tez morena, olhar ardente, velados sob pálpebras lânguidas: ela usava a roupa pitoresca das mulheres de pescadores catalães, com seu corpete vermelho e negro, além de enfeites de ouro no cabelo; fitava o mar, e sua silhueta elegante se destacava sobre o azul das ondas e do céu. O quarto estava na penumbra, sem o que Albert poderia ter percebido uma lívida palidez estendendo-se sobre o rosto do conde, e teria surpreendido o estremecimento nervoso surgido em suas espáduas e seu peito. Houve um instante de silêncio, durante o qual Monte Cristo permaneceu com os olhos obstinadamente fixos neste retrato. O senhor tem uma bela amante, visconde, disse Monte Cristo, num tom de voz perfeitamente calmo; estas roupas, sem dúvida alguma fantasia de baile, assentam-lhe maravilhosamente. Ah! respondeu Albert, eis um engano perfeitamente desculpável. O senhor não conhece minha mãe; é ela quem foi retratada neste quadro; pediu para ser pintada assim, há uns seis, oito anos atrás. Estas roupas são efetivamente uma fantasia, ao que parece, e a semelhança é tão grande que ainda tenho a impressão de ver minha mãe como era em 1830. A condessa mandou fazer este retrato durante uma das viagens do conde. Sem dúvida ela acreditava lhe fazer, em seu retorno, uma graciosa surpresa; porém, coisa bizarra, este quadro desagradou ao meu pai; nem mesmo o valor da pintura em si, que é, como pode bem ver, uma das mais belas telas de Leopold Robert, conseguiu superar a antipatia dele pelo quadro. Aqui entre nós, meu caro conde, o senhor de Morcef é um dos pares mais assíduos no palácio de Luxemburgo, porém é um amante medíocre de arte; não acontece o mesmo com minha mãe, pintora notável, e que, apreciando demais uma obra tão maravilhosa, deu-a para mim, a fim de escapar dos olhares irados do senhor de Morcef; por sua vez, meu pai foi retratado por Gros. Desculpe-me se falo tão familiarmente de meus parentes, mas como vou apresenta-lo a eles, na mansão, digo isto para o senhor não deixar de elogiar o retrato dele na sua frente. Por sua vez, este retrato aqui tem uma funesta influência: é bem raro que minha mãe, quando vem ao meu quarto, deixe de ficar olhando para o quadro, e mais raro ainda que ela o olhe sem chorar muito. A nuvem negra que surgiu com este quadro na mansão foi a única entre o conde e a condessa, os quais, apesar de casados há mais de vinte anos, ainda são unidos como no primeiro dia. Monte Cristo lançou um rápido olhar sobre Albert, como que procurando uma segunda intenção nesta última frase; todavia, era evidente que o jovem aristocrata as havia dito em toda a simplicidade de sua alma. Agora, continuou Albert, o senhor já viu todas as minhas posses, e eu as ofereço, por mais humildes que lhe pareçam; aceite esta casa como sua, a qualquer momento; e eu lhe peço o favor de me acompanhar até a mansão de meus pais, a quem eu escrevi, ainda em Roma, contando o serviço que o senhor me prestou; avisei-os de sua visita, e posso lhe garantir que o conde e a condessa o aguardam com impaciência, estão ansiosos para lhe agradecer. Sei que o senhor tem um pouco de desdém por assuntos familiares, conde, e tais cenas não atingem Simbad o marujo com a mesma intensidade; imagino que cenas o senhor já deve ter visto! Porém, aceite o meu convite, como uma iniciação à vida social parisiense, vida de polidez, de visitas e de apresentações. Monte Cristo inclinou-se, sem responder; ele aceitou o convite sem entusiasmo, e sem remorso, como sendo uma das conveniências sociais, que todo homem elegante aceita como um dever. Albert chamou seu criado de quarto e ordenou-lhe que fosse avisar o senhor e a senhora de Morcef da visita do conde de Monte Cristo. Albert e o conde foram até a mansão. Chegando na ante sala do conde, Monte Cristo viu, encimando a porta de entrada do salão principal, um escudo que, pela riqueza de detalhes, e pela harmonia com o restante da ornamentação do aposento, indicava a importância que o proprietário da mansão dava a este brasão. O conde deteve-se diante do brasão, examinando-o atentamente. Campo azul com sete melros fêmeas pintadas em ouro, de lado. Sem dúvida é o escudo de sua família, senhor? Indagou o conde, acrescentando: além de reconhecer os elementos existentes no brasão, nada mais consigo distinguir, pois sou muito ignorante em questões de heráldica, eu, um conde de araque, fabricado na região da Toscana, com a ajuda de uma comenda adquirida em Saint-Etienne; isto apenas me serve como uma espécie de passaporte, pois viajo muito, e é coisa absolutamente necessária ter um brasão pintado na porta da minha carruagem, afinal, impressiona os agentes da alfândega, sou liberado com maior facilidade. Assim, desculpe-me se lhe faço uma tal pergunta. Não é uma pergunta indiscreta, senhor, disse Morcef, com a simplicidade da convicção aristocrática; sim, o senhor percebeu logo: são nossas armas, como vê, junto a um outro escudo, com torres de prata, que é da linhagem da minha mãe; pelo lado materno, sou espanhol, mas a casa Morcef é francesa, e, segundo dizem, uma das mais antigas da região do Midi francês. Sim, respondeu Monte Cristo, é o que indicam os melros fêmeas. Quase todos os peregrinos armados que tentaram, ou conseguiram conquistar a Terra Santa, tomaram como armas a cruz, símbolo de sua missão, à qual devotaram suas vidas, ou então pássaros viajantes, símbolo das longas peregrinações que iriam empreender, missão que esperavam cumprir nas inúmeras cruzadas do passado. Um de seus tataravôs paternos deve ter participado destas cruzadas, e supondo que tenha sido a empreendida por São Luiz, isto nos transporta ao século XIII, um belo passado, não é mesmo? É possível, disse Morcef, em algum lugar no escritório de meu pai existe uma árvore genealógica que poderá esclarecer o assunto. Mas agora, senhor conde, não penso nestas coisas, e, para lhe falar a verdade, fazendo o meu papel de cicerone, creio que começamos a nos ocupar demasiadamente da aristocracia, neste nosso governo popular. Ora! O seu atual governo deveria buscar no passado alguma coisa de melhor além dos dois cartazes que vi pendurados em alguns monumentos na cidade, e que não possuem qualquer conotação heráldica. Quanto ao senhor, visconde, continuou Monte Cristo, o senhor é mais feliz do que o seu governo, porque as suas armas e os seus brasões são muito bonitos, falam à nossa imaginação. Sim, muito belo isto, o senhor é, ao mesmo tempo da Provença e da Espanha; sim, é isto o que explica o retrato em seu quarto, o belo tom moreno que notei no retrato da nobre catalã. Teria sido necessário ser o próprio Édipo ou um feiticeiro para adivinhar a ironia insinuada pelo conde nestas palavras, com a aparência da maior gentileza; assim, Morcef agradeceu com um sorriso, e, indo na frente, para lhe mostrar o caminho, empurrou a porta com seus brasões, que, como dissemos, dava para o salão. No ponto mais em evidência deste salão se via também um retrato: era o de um homem de trinta e cinco a trinta e oito anos, vestindo um uniforme de oficial general, com duplas dragonas douradas nos ombros, sinal de grau superior, e, em seu peito, à direita, a placa de grande oficial da Ordem do Salvador, e à esquerda, a grande cruz de Charles III, o que indicava que a pessoa representada neste retrato devia ter feito as guerras da Grécia e da Espanha, ou, significando exatamente a mesma coisa em matéria de condecorações, cumprira alguma missão diplomática nestes dois países. Monte Cristo estava ocupado em examinar este retrato com não menos cuidado do que fizera com o outro, quando uma porta lateral se abriu, e ele se encontrou diante do próprio conde de Morcef. Era um homem de quarenta a quarenta e cinco anos, mas que parecia ter no mínimo cinqüenta; seu bigode e sobrancelhas negras destoavam estranhamente de seus cabelos quase brancos, cortados em estilo militar; estava em trajes civis, e usava em sua lapela uma fita cujas cores lembravam as diferentes condecorações recebidas no passado. Este homem entrou no salão com passadas elegantes, e um tanto apressadas. Monte Cristo viu-o se aproximar, e permaneceu estático; dir-seia que seus pés grudaram no assoalho, assim como seus olhos, fixos no conde de Morcef. Meu pai, disse o jovem homem, tenho a honra de lhe apresentar o senhor conde de Monte Cristo, este generoso amigo que tive a felicidade de encontrar nas difíceis circunstâncias conhecidas do senhor. Seja bem vindo entre nós, disse o conde de Morcef, sorrindo e saudando Monte Cristo, o senhor prestou à nossa casa, salvando a vida de seu único herdeiro, um serviço pelo qual ela lhe será eternamente devedora. Dizendo estas palavras, o conde de Morcef indicou um sofá a Monte Cristo, e, ao mesmo tempo, sentou-se numa poltrona, à sua frente. Quanto a Monte Cristo, aceitando o sofá oferecido por Morcef, arranjou-se de maneira a permanecer meio escondido pela sombra das cortinas de veludo, lendo nos traços de fadiga e de preocupação do conde toda uma história de secretas dores, escritas em cada uma das rugas surgidas antes do tempo. A senhora condessa, disse Morcef pai, estava se arrumando quando o visconde mandou preveni-la da visita que teria a honra de receber; ela vai descer, e em dez minutos estará conosco. Para mim é uma honra inesperada, disse Monte Cristo, logo no dia de minha chegada em Paris, estar em contato com um homem cujo mérito iguala a reputação, e cuja fortuna, ao menos uma vez na vida, não errou o alvo; mas, será que não existe ainda, seja nas planícies da Ásia, seja no deserto do Saara, um bastão de marechal a lhe ser oferecido? Oh! Replicou Morcef, enrubescendo um pouco, já deixei o serviço militar, senhor. Nomeado par de França sob a Restauração, fui da primeira campanha, e servi sob as ordens do marechal de Bourmont; poderia, portanto, aspirar a um comando superior, o qual, sem dúvida eu teria conseguido, se a verdadeira realeza tivesse se mantido no trono! Todavia, a revolução de Julho era, ao que parece, muito gloriosa para se permitir ser ingrata, e somente se preocupou com o servidor do período imperial; pedi minha baixa, porque quando a pessoa ganha suas dragonas nos campos de batalha, não sabe manobrar no terreno traiçoeiro dos salões elegantes; deixei a espada, meti-me na política, entrei na indústria, estudo as artes úteis. Durante os vinte anos em que prestei serviço, sempre tive esta vontade, mas não consegui ter tempo. São idéias semelhantes que sustentam a superioridade de sua nação sobre os outros países, senhor, respondeu Monte Cristo; um nobre, um cavalheiro saído de uma grande casa, possuindo uma bela fortuna, consentiu em ganhar os primeiros postos, como obscuro soldado, isto é muito raro; depois, ao se tornar general, par de França, comendador da Legião de Honra, o senhor consentiu em recomeçar um segundo aprendizado, sem outra esperança, sem outra recompensa senão a de um dia ser útil aos seus semelhantes...Ah!, senhor, eis aí algo verdadeiramente belo; mais, eu diria: é algo sublime! Albert escutava e fitava Monte Cristo com grande espanto; não estava habituado a ver o homem se elevar em tamanho entusiasmo para com alguém. Uma pena! Continuou Monte Cristo, sem dúvida para tentar fazer desaparecer a imperceptível nuvem que viu surgir no rosto do visconde, não fazemos tais sacrifícios na Itália, agimos conforme nossa raça e nossa espécie, mantemos a mesma pelagem, e, muitas vezes a mesma inutilidade, durante toda nossa vida! Com certeza, senhor, respondeu o conde de Morcef, para um homem do seu mérito, a Itália não é uma pátria, e a França lhe estende os braços; responda ao seu apelo, e a França talvez não lhe seja ingrata; algumas vezes ela trata mal os seus próprios filhos, mas acolhe generosamente os estrangeiros. Ora, meu pai, disse Albert, com um largo sorriso, vejo bem que o senhor não conhece o conde de Monte Cristo. Suas satisfações estão fora deste mundo; não aspira honrarias, somente aprecia suas viagens pelo mundo afora. Eis, garanto, a mais perfeita descrição do que sou, respondeu Monte Cristo. O senhor é o mestre de seu futuro, disse o conde de Morcef, com um suspiro, escolheu o caminho das flores. Justamente, senhor, replicou Monte Cristo, com um destes sorrisos que pintor algum jamais conseguirá reproduzir, e que um estudioso de fisionomias ficaria desesperado ao estudar. Se eu não tivesse receio de fatigar o senhor conde, disse o general, evidentemente encantado com as maneiras de Monte Cristo, eu o levaria até a Câmara, hoje haverá uma sessão curiosa e interessante para quem não conhece nossos modernos senadores. Fico imensamente grato, senhor, se quiser renovar o convite uma outra vez; hoje, porém, deram-me a honra de ter a esperança de ser apresentado à senhora condessa, eu a aguardo. Ah! Eis minha mãe! Exclamou o visconde. Com efeito, Monte Cristo, voltando-se vivamente, notou a senhora de Morcef junto da entrada do salão, na soleira da porta oposta àquela pela qual entrara o seu marido: imóvel e pálida, ela deixou, quando Monte Cristo se voltou, cair seu braço que, não se sabe porque, tinha se apoiado no umbral dourado; ela permanecera ali alguns segundos, e ouvira as últimas palavras pronunciadas pelo visitante ultramarino. Este se levantou e saudou profundamente a condessa, que, por sua vez, inclinou-se, muda e cerimoniosa. Eh! Meu Deus, senhora! Exclamou o conde, o que a senhora tem? Por acaso será o calor deste salão que lhe fez mal? Está passando mal, minha mãe? Indagou o visconde, avançando na direção de Mercedes. Ela agradeceu a atenção dos dois com um sorriso. Não, tranqüilizou, é que senti uma súbita emoção vendo pela primeira vez a pessoa sem cuja intervenção estaríamos chorando e enlutados. Senhor, continuou a condessa, chegando perto do conde com a majestade de uma rainha, devo-lhe a vida de meu filho, e seja bendito por isto. E agora eu agradeço pelo prazer que me dá na oportunidade de lhe dizer em pessoa: seja bendito, do fundo do meu coração! O conde inclinou-se mais uma vez, mais profundamente do que da vez anterior; ele estava mais pálido do que Mercedes. Senhora, disse ele, senhor conde, ambos me recompensam generosamente demais por uma ação tão simples. Salvar um homem, evitar um tormento a um pai, tranqüilizar a sensibilidade de uma mulher, não se trata de uma boa ação, é um ato de humanidade. Ouvindo estas palavras, ditas com uma doçura e polidez extremas, a senhora de Morcef respondeu com um cumprimento profundo: Foi muito oportuno o meu filho ter uma pessoa como o senhor como amigo, e dou graças a Deus a quem fez as coisas andarem assim. E Mercedes ergueu os olhos para o céu com uma gratidão tão infinita que o conde teve a impressão de ver duas lágrimas em seus olhos. O senhor de Morcef aproximou-se da esposa. Senhora, disse ele, eu já pedi desculpas ao conde por ser obrigado a deixa-lo. A sessão da Câmara abre às duas horas, já são três, pronunciarei um discurso, estou atrasado, até breve. Vá, senhor, tentarei fazer com que nosso convidado esqueça sua presença, respondeu a condessa, com voz maviosa. Senhor conde, continuou ela, voltandose para Monte Cristo, o senhor nos dará a honra de passar o restante da tarde conosco? Muito obrigado, senhora, pode crer, estou profundamente agradecido pelo convite, mas acabei de chegar hoje de manhã, desci diretamente da minha carruagem para o almoço com o visconde. Nem sei onde estou instalado em Paris: só tenho o endereço. É uma situação pouco comum, e, apesar de ter pequena importância, preciso saber onde vou morar. Então teremos o prazer de outra visita, no futuro? O senhor promete? Indagou a condessa. Monte Cristo inclinou-se, sem responder; o gesto, porém, passou por um assentimento a todos. Então eu não o retenho mais, senhor, disse a condessa, porque não quero que a minha gratidão se torne uma indiscrição ou uma atitude inoportuna. Meu caro conde, interveio Albert, se o senhor quiser, posso retribuir a sua maravilhosa oferta de Roma, empresto-lhe a minha melhor carruagem, até que tenha tempo de mandar preparar suas equipagens. Outra vez mil vezes obrigado pela sua gentileza, visconde, respondeu Monte Cristo, mas suponho que o meu Bertuccio já empregou convenientemente as quatro horas e meia desde que me deixou, tenho certeza de encontrar diante da porta uma viatura qualquer, totalmente equipada. Albert já se acostumara com as maneiras do conde; sabia que, como Nero à procura do impossível, não devia se espantar com mais nada; somente ficou curioso para verificar como o secretário do conde se arranjara neste particular, e o acompanhou até a porta da entrada. Monte Cristo não se enganara: assim que apareceu na ante sala do conde de Morcef, um criado, o mesmo que em Roma viera lhe trazer as cartas, saltou do canto onde se encontrava, de maneira que quando chegaram na frente da casa, efetivamente o ilustre viajante encontrou sua carruagem esperando. Era um cupê saído das oficinas de Keller, e uma muda de cavalos pela qual Drake tinha, diante de todos os jovens elegantes de Paris, recusado, na véspera, mais de dezoito mil francos. Senhor, disse o conde a Albert, não o convido para me acompanhar até em casa, porque certamente tudo ainda estará desarrumado, improvisado, e o senhor sabe como detesto improvisações. Conceda-me apenas um dia, e permita convidalo então. Tenho certeza de que não faltarei com as leis da hospitalidade. Se o senhor me pede um dia, fico tranqüilo: não será mais uma mansão que o senhor me mostrará, será um palácio. Decididamente, o senhor tem algum gênio da lâmpada a seu serviço. Por Deus, deixe-me acreditar nisso! Exclamou o conde, colocando o pé no estribo recoberto de veludo de sua esplendida carruagem, isto me deixará muito bem com as damas da cidade! Assim falando, entrou de vez na viatura, fechou a porta e partiu a galope, mas não tão rapidamente que não visse o movimento imperceptível tremulando a cortina do salão onde encontrara a senhora de Morcef. Ao voltar para a mansão, Albert encontrou sua mãe no boudoir, mergulhada num grande sofá de veludo; todo o aposento estava envolto na penumbra, deixando ver apenas o reflexo de um ou outro cristal sobre a penteadeira, apenas o brilho dourado de uma ou outra moldura. Albert não conseguiu ver o rosto da condessa, perdido numa nuvem de gaze, que ela enrolara em torno de seus cabelos, como uma auréola de vapor; o jovem percebeu, por entre o perfume das rosas e de cravos nas floreiras e nos vasos, o cheiro acre dos sais de vinagre; sobre a prateleira de mármore encimando a lareira, o frasco da condessa, saído de sua caixa de remédios, atraiu a atenção do jovem homem. A senhor está sofrendo, minha mãe? Exclamou ele, começou a passar mal depois que eu sai? Eu? Não, Albert; mas, sabe, estas flores todas soltam um perfume forte, e neste calor, se a pessoa não está acostumada... Então, minha mãe, disse Morcef filho, puxando o cordão da campainha, é preciso levar as floreiras e vasos para fora, pois acho que está bem indisposta; quando entrou no salão notei que a senhora estava muito pálida. Eu estava pálida, Albert? Com uma palidez que a deixa ainda mais bonita, minha mãe, mas mesmo assim preocupou a nós dois. Seu pai lhe falou qualquer coisa? Perguntou rapidamente a condessa. Não, senhora, mas, se está bem lembrada, foi para a senhora mesma a quem ele perguntou isto. Não estou lembrada, disse a condessa. Um criado entrou, atendendo ao chamado da campainha. Leve estas flores para a ante sala, ou ao escritório lá embaixo, pediu o visconde, o perfume está fazendo mal para a condessa. O criado obedeceu. Houve um longo silêncio, durou todo o tempo do transporte dos vasos e das floreiras. Que nome de Monte Cristo é este? Indagou a condessa, quando o criado saiu, carregando o último vaso de flores; é um nome de família, um nome ligado a uma região, ou um simples título? Creio ser apenas um título, minha mãe, eis tudo. O conde comprou uma ilha no arquipélago toscano, e, pelo que me explicou esta manhã, comprou também uma comenda. A senhora sabe que isto é comum em Saint-Etienne, em Florença, em Saint-George-Constantinien, em Parma, e mesmo pela Ordem de Malta. De qualquer maneira, ele não tem nenhuma pretensão à nobreza, chama a si mesmo de conde de araque, muito embora seja voz corrente em Roma ser o conde um grande senhor. Suas maneiras são excelentes, disse a condessa, ao menos reparei nisso no curto tempo em que permaneceu conosco. Oh! Maneiras perfeitas, minha mãe, tão perfeitas que sobrepujam em muito tudo o que eu conheço de mais aristocrático nas três nobrezas mais orgulhosas da Europa, a nobreza inglesa, a espanhola e a da Alemanha. A condessa refletiu um instante, em seguida a esta breve hesitação, retomou: Você viu tudo, meu caro Albert...é uma pergunta de mãe que eu lhe faço, compreenda...você viu o senhor de Monte Cristo bem de perto, deve ter examinado o seu interior mais íntimo; sei que você é um jovem perspicaz, tem os hábitos do mundo, e muito amadurecimento para um jovem da sua idade: você acredita que o conde seja quem ele parece realmente ser? E o que ele parece? Você mesmo acabou de dizer: um grande senhor. Eu lhe disse que é voz corrente esta sua condição. Mas...o que você pensa, Albert? Não sei, não tenho opinião formada sobre o homem; aliás, eu penso que ele é de Malta. Não estou perguntando sobre sua origem; indago sobre a pessoa! Ah! Sobre a pessoa, isto é bem outra coisa, e vi tantas coisas estranhas em relação a ele, que se a senhora insiste, digo que eu o considero um personagem de Byron, cuja infelicidade o marcou com um selo fatal; algum Manfred, algum Lara, algum Werner, como se fosse um destroço de uma velha família que, deserdado de sua fortuna paterna, encontrou-a de novo, graças ao seu gênio aventureiro, colocando-o acima das leis da sociedade. Você está afirmando...? Digo que Monte Cristo é uma ilha no meio do Mediterrâneo, sem habitantes, sem guarnição armada, reduto de contrabandistas de todas e nenhuma nação, de piratas de todas as origens. Quem sabe estes dignos e industriosos cidadãos não pagam ao seu senhor um direito de asilo qualquer? É possível, respondeu a condessa, refletindo. Todavia, não importa, insistiu o jovem homem, contrabandista ou não, convenha, minha mãe, pois a senhora o conheceu, o conde de Monte Cristo é um homem notável, fará o maior sucesso nos salões de Paris. E veja, hoje de manhã mesmo, em minha casa, começou sua entrada triunfal em sociedade causando estupefação ao próprio Chateau-Renaud. Qual a idade do conde? Indagou Mercedes, visivelmente dando grande importância à pergunta. Uns trinta e cinco, trinta e seis anos, minha mãe. Tão jovem! É impossível, exclamou Mercedes, respondendo ao mesmo tempo ao que lhe dizia Albert, e ao seu próprio e íntimo pensamento. Contudo, é a verdade. Em três ou quatro oportunidades, em conversas sem nenhuma premeditação, ele dizia: em tal época eu tinha cinco anos, em tal outra dez, enfim, juntando tudo, aproximando as datas, notei que não caia em contradição. A idade deste homem singular, que não parece ter idade, tenho quase certeza, é trinta e cinco anos. Além disso, deve ter notado, minha mãe, como o seu olhar é vivo, como são negros os seus cabelos, e como o seu rosto, apesar de pálido, não tem rugas; é de compleição não apenas vigorosa, mas jovem. A condessa abaixou a cabeça, como se sentisse o peso de amargos pensamentos. E este homem se tornou seu amigo, Albert? Perguntou ela, com um estremecimento nervoso. Creio que sim, senhora. E você também o aprecia? Ele me agrada, senhora, apesar do que disse o Franz d'Epinay, que insistiu em dizer que o homem voltou do outro mundo. No rosto da condessa surgiu repentina expressão de terror. Albert, pediu ela, com a voz alterada, eu sempre o preveni sobre novas amizades, em sua infância. Agora que você já é homem, poderia por sua vez darme alguns conselhos; no entanto, peço-lhe: seja prudente, Albert! Querida mãe, para que o conselho fosse proveitoso, eu precisaria saber antecipadamente do que desconfiar. O conde não joga, não bebe nada além de água, batizada com uma gota de vinho espanhol; o conde demonstrou ser tão rico que seria ele a me emprestar dinheiro, se precisasse: o que a senhora acha que devo recear por parte do conde? Você tem razão, respondeu a condessa, e meu medo é meio bobo, em especial em relação a um homem que salvou sua vida. A propósito, o seu pai o recebeu bem? É muito importante sermos sempre gentis com o conde. Algumas vezes o senhor de Morcef está apressado, seus negócios o tornam irritadiço, ele poderia... Meu pai foi perfeito, senhora, interrompeu Albert; diria mais: pareceu infinitamente envaidecido pelos dois ou três elogios que o conde deixou escapar com tanta felicidade, a propósito de fatos de sua vida, como se o conhecesse há mais de trinta anos. Cada uma de suas pequenas flechadas elogiosas devem ter amolecido o coração de meu pai, acrescentou Albert, rindo, de tal maneira que os dois se separaram como os melhores amigos do mundo; imagine, ele queria levar o conde para ouvir o seu discurso na Câmara! A condessa não respondeu; permaneceu absorta em pensamentos tão profundos que seus olhos pouco a pouco se fecharam. O jovem homem, de pé diante dela, olhava-a com este amor filial, doce e afetuoso nos jovens cujas mães são ainda belas e jovens também. Depois, escutou-a respirar por um instante, em sua doce imobilidade, e, acreditando-a adormecida, afastou-se pé ante pé, fechando a porta do quarto atrás de si com a maior precaução. Este diabo de homem, murmurou, sacudindo a cabeça, eu bem predisse lá em Roma que causaria a maior sensação em Paris; meu termômetro mais infalível é a minha mãe. Ela notou sua presença, portanto deve ser notável mesmo. Desceu até a estrebaria da mansão, sentindo, apesar de si mesmo, um pouco de ciúme, pois o conde de Monte Cristo colocara as mãos sobre a equipagem que deixava a sua própria em segundo lugar perante o espírito dos conhecedores. Decididamente, refletiu ele, os homens não nascem iguais; vou pedir ao meu pai para desenvolver este teorema na Câmara alta.