Evangelho segundo S. Lucas 12,1-7. – cf.par. Mt 10,26-33
Entretanto, a multidão tinha-se reunido; eram milhares, a ponto de se pisarem uns aos outros.
Jesus começou a dizer primeiramente aos seus discípulos: «Acautelai-vos do fermento dos
fariseus, que é a hipocrisia. Nada há encoberto que não venha a descobrir-se, nem oculto que
não venha a conhecer-se. Porque tudo quanto tiverdes dito nas trevas há-de ouvir-se em plena
luz, e o que tiverdes dito ao ouvido, em lugares retirados, será proclamado sobre os terraços.
Digo-vos a vós, meus amigos: Não temais os que matam o corpo e, depois, nada mais podem
fazer. Vou mostrar-vos a quem deveis temer: temei aquele que, depois de matar, tem o poder
de lançar na Geena. Sim, Eu vo-lo digo, a esse é que deveis temer. Não se vendem cinco
pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de
Deus. Mais ainda, até os cabelos da vossa cabeça estão contados. Não temais: valeis mais do
que muitos pássaros.
Santo Isaac o Sírio (séc. VII), monge em Nínive, perto de Mossoul no actual Iraque
Discursos Espirituais, 1ª série, nº 36
"Não temais: valeis mais do que todos os pássaros do mundo"
É preciso não desejar nem procurar estouvadamente sinais visíveis, uma vez que o Senhor
está sempre pronto a socorrer os seus santos. Ele não manifesta sem necessidade o seu poder
numa obra ou num sinal sensível, para não esbater a ajuda que dele recebemos nem nos
prejudicar. É desta forma que Ele providencia junto dos seus santos. Quer mostrar-lhes que a
atenção secreta que lhes presta não os abandona um instante mas que, em tudo, os deixa travar
o combate segundo a medida das suas forças e esforçar-se por rezar.
Mas, se uma dificuldade os abate, quando estão doentes ou desencorajados porque a sua
natureza é fraca, então Ele próprio faz, como é preciso e como ele sabe, tudo o que está no seu
poder para que sejam socorridos. Confirma-os secretamente tanto quanto pode, para que
tenham a força de suportar as suas dificuldades. Porque, na confiança que lhes dá, Ele frustra
as suas dificuldades e, pela visão desta fé, desperta-os para o louvor... Contudo, se for preciso
que esta ajuda secreta seja explicitada, Ele o faz, mas por necessidade. Os seus caminhos são
de grande sabedoria; prolongam-se quando é preciso e necessário, mas nunca de qualquer
maneira.
Santo Inácio de Loyola (1491-1556), fundador dos Jesuítas
Carta de 17/11/1555
«Não receeis»
Parece-me que deveríeis decidir-vos a fazer calmamente o que podeis. Não vos inquieteis com
tudo o resto, mas deixai nas mãos da divina Providência o que não podeis cumprir por vós
mesmos. São agradáveis a Deus a solicitude e o cuidado que, com razoabilidade, pomos nas
tarefas que nos cumprem, para conseguirmos concretizá-las da melhor maneira. Não lhe são
agradáveis a ansiedade e a inquietação do espírito: o Senhor quer que os nossos limites e
fraquezas encontrem apoio na sua fortaleza e omnipotência, quer que tenhamos confiança em
que a sua bondade suprirá à imperfeição dos nossos meios.
Os que se ocupam com muitos assuntos, mesmo se com boas intenções o fazem, devem
resolver-se a fazer apenas o que está ao seu alcance. Se tivermos de deixar de lado certas
coisas, há que ter paciência, e não pensar que Deus espera de nós o que não podemos fazer.
Ele não quer que o homem se atormente com as próprias limitações humanas; não é preciso
cansarmo-nos excessivamente. Quando de facto nos esforçámos por dar o melhor de nós,
podemos deixar o resto nas mãos d’Aquele que tem o poder de realizar tudo o que quer.
Que a bondade divina nos comunique sempre a luz da sabedoria, para que possamos ver com
clareza e realizar os seus bons desejos com profunda convicção, em nós e nos outros […],
para que das suas mãos aceitemos o que nos envia, considerando o que é de maior
importância: a paciência, a humildade, a obediência e a caridade.
Santa Catarina de Sena, (1347-1380), terceira dominicana, doutora da Igreja, co-patrona da
Europa
O diálogo
«Até os vossos cabelos estão contados»
Deus dizia-me: “Ninguém pode escapar das minhas mãos. Porque eu sou O que sou (Ex 3,14)
e vós não sois por vós mesmos; vós existis apenas porque fostes feitos por mim. Eu sou o
criador de todas as coisas que participam do ser, mas não do pecado, que não é e que,
portanto, não foi criado por mim. E, porque não está em mim, não é digno de ser amado. A
criatura só me ofende na medida em que ama o que não devia amar, isto é, o pecado… É
impossível aos homens sair de mim; ou permanecem em mim sob o jugo da justiça que
sanciona as suas faltas, ou permanecem em mim guardados pela minha misericórdia. Abre
bem os olhos da tua inteligência e olha para a minha mão; verás que o que te digo é verdade.”
Então, abrindo os olhos do espírito para obedecer ao Pai que é tão grande, vi o universo
inteiro fechado naquela mão divina. E Deus dizia-me: “Minha filha, vê agora e compreende
que ninguém me pode escapar. Todos aqui estão presos ou pela justiça ou pela misericórdia,
porque são meus, criado s por mim e eu amo-os infinitamente. Seja qual for a sua malícia, farlhes-ei misericórdia por causa dos meus servos; atenderei o pedido que me apresentaste com
tanto amor e tanta dor.”
Então a minha alma, como que embriagada e fora de si mesma, no ardor cada vez maior do
seu desejo, sentia-se ao mesmo tempo feliz e dorida. Feliz pela união que tinha tido com
Deus, saboreando a sua alegria e a sua bondade. Dorida por ver ofendida uma tão grande
bondade.
São João Eudes (1601-1680), sacerdote, pregador, fundador de institutos religiosos
O Reino de Jesus, Obras Completas
«Não temais. Até os cabelos da vossa cabeça estão contados»
O nosso amabilíssimo Salvador assegura-nos, em várias passagens da Sagrada Escritura, o seu
cuidado e vigilância contínuos no que nos diz respeito; e Ele próprio nos leva e nos levará
sempre em seus braços, no seu coração e nas suas entranhas…
Tenhamos cuidado em não nos apoiarmos no poder ou na benevolência dos nossos amigos,
nem nos nossos bens ou no nosso espírito, ciência, forças, bons desejos, orações, nem mesmo
na confiança que pensamos ter em Deus, nem nas mediações humanas, nem em coisa alguma
criada, mas unicamente na misericórdia de Deus. Não quer dizer que não seja preciso valernos das coisas a que acabamos de aludir, e que não tenhamos que pôr da nossa parte tudo o
que pudermos a fim de vencer o vício, praticar a virtude e orientar e levar a bom termo os
assuntos que Deus nos confiou, e assim cumprir com as obrigações que são inerentes ao nosso
estado. Mas devemos renunciar a todo o apoio e a toda a a confiança que poderíamos
encontrar nessas coisas, e apoiar-nos na pura bondade de nosso Senhor. De tal maneira que,
da nossa parte, devemos velar e trabalhar como se nada esperássemos da parte de Deus: e no
entanto não nos devemos apoiar no nosso cuidado e trabalho, como se fizéssemos alguma
coisa, mas esperar tudo unicamente da misericórdia de Deus
Papa Bento XVI
Encíclica «Spe Salvi», 27 (trad © copyright Libreria Editrice Vatican)
"Digo-o a vós, meus amigos: Não temais os que matam o corpo"
Neste sentido, é verdade que quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças,
no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida (cf. Ef 2,12). A
verdadeira e grande esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, só pode
ser Deus – o Deus que nos amou, e ama ainda agora «até ao fim», «até à plena consumação»
(cf. Jo 13,1 e 19,30). Quem é atingido pelo amor começa a intuir em que consistiria
propriamente a «vida». Começa a intuir o significado da palavra de esperança que
encontramos no rito do Baptismo: da fé espero a «vida eterna» – a vida verdadeira que,
inteiramente e sem ameaças, em toda a sua plenitude é simplesmente vida. Jesus, que disse de
Si mesmo ter vindo ao mundo para que tenhamos a vida e a tenhamos em plenitude, em
abundância (cf. Jo 10,10), também nos explicou o que significa «vida»: «A vida eterna
consiste nisto: Que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem
enviaste» (Jo 17,3). A vida, no verdadeiro sentido, não a possui cada um em si próprio
sozinho, nem mesmo por si só: aquela é uma relação. E a vida na sua totalidade é relação com
Aquele que é a fonte da vida. Se estivermos em relação com Aquele que não morre, que é a
própria Vida e o próprio Amor, então estamos na vida. Então «vivemos».
Evangelho segundo S. Lucas 12,8-12.
Digo-vos ainda: Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, também o Filho do
Homem se declarará por ele diante dos anjos de Deus. Aquele, porém, que me tiver negado
diante dos homens, será negado diante dos anjos de Deus. E a todo aquele que disser uma
palavra contra o Filho do Homem, há-de perdoar-se; mas, a quem tiver blasfemado contra o
Espírito Santo, jamais se perdoará. Quando vos levarem às sinagogas, aos magistrados e às
autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em vossa defesa, pois o Espírito
Santo vos ensinará, no momento próprio, o que deveis dizer.»
Actas do martírio de S. Justino e companheiros (ano de 163)
« O Espírito Santo vos ensinará nessa hora o que haveis de dizer”
Prenderam os santos todos juntos e conduziram-nos ao prefeito de Roma, Rusticus. Quando
compareceram diante do tribunal, o prefeito Rusticus disse a Justino...:
- A que ciência te consagras?
- Tenho estudado sucessivamente todas as ciências. Acabei por me dedicar à doutrina
verdadeira dos cristãos...
- Que doutrina é essa?
- Nós adoramos o Deus dos cristãos; esse Deus, nós acreditamos que é único, que desde a
origem é o criador de todo o universo, das coisas visíveis e das invisíveis. Acreditamos que
Jesus Cristo, o servo de Deus, é o Senhor, anunciado pelos profetas como o que havia de
proteger a raça humana, mensageiro da salvação e senhor de toda a sabedoria. Eu, que sou
apenas um homem, sou demasiado pequeno para falar dignamente da sua divindade infinita;
reconheço que é precisa uma capacidade de profeta... Ora os profetas eram inspirados pelo
céu, quando anunciaram a sua vinda ao mundo.
O prefeito Rusticus perguntou:
- Onde vos reunis?... Onde reúnes os teus discípulos?
- Eu moro por cima de um tal Martinho, junto dos banhos de Timóteo. A todos os que
quiseram ir lá ter comigo, comuniquei-lhes a doutrina da verdade.
- Então tu es cristão?
- Sim, sou cristão.
O prefeito Rusticus disse a Chariton:
- E tu, Chariton, também es cristão?
- Sou cristão pela vontade de Deus
- E tu, que és tu, Evelpisto?
- Também eu sou cristão. Era escravo mas fui libertado por Cristo e partilho a mesma
esperança, pela graça de Cristo.
- Foi Justino que te fez cristão?
- Fui sempre cristão e sê-lo-ei sempre... Sem dúvida que ouvia com prazer as lições de
Justino; mas devo aos meus pais o ser cristão...
Peon levantou-se e disse espontaneamente:
- Eu também sou cristão.
O prefeito disse a Lliberiano:
- E tu, que tens tu a dizer? És cristão’ És também um ímpio?
- Também sou cristão. Mas não sou um ímpio porque adoro o único verdadeiro Deus.
O prefeito voltou a Justino:
- Escuta-me, tu que dizer seres eloquente e julgas possuir a doutrina verdadeira. Se fores
chicoteado, e depois decapitado, estás convencido que, depois, subirás ao céu? Imagina que lá
receberás a tua recompensa?
- Espero ter lá a minha morada se suportar tudo isso. E sei que a recompensa divina está
reservada, até à consumação de todo o universo, a todos os que viverem desta forma... Não
imagino, estou convencido, tenho disso a certeza.
Actas do mártires Carpo, Pailo e Agatónica (séc. III)
Ichtus, vol. 2
"Quem se pronunciar por mim diante dos homens, o Filho do homem pronunciar-se-á
também por ele"
############ Martírio de Carpo ############
No tempo do imperador Décio, Óptimus era procônsul em Pérgamo; o bem-aventurado
Carpo, bispo de Gados, e o diácono Papilo de Tiatira, ambos confessores de Cristo,
compareceram diante dele. O procônsul disse a Carpo:
- Qual é o teu nome?
- O meu primeiro nome, o mais belo, é Cristão. O meu nome no mundo é Carpo.
- Conheces os éditos de César que vos obrigam a sacrificar aos deuses, senhores do mundo,
não é verdade? Ordeno-te que te aproximes e que ofereças um sacrifício.
- Eu sou cristão. Adoro Cristo, filho de Deus, que veio à terra nestes últimos tempos para nos
salvar e nos livrar das armadilhas do demónio. Não vou por isso sacrificar a esses ídolos.
- Sacrifica aos deuses, como ordena o imperador.
- Morram os deuses que não criaram o céu nem a terra.
- Sacrifica como quer o imperador.
- Os vivos não sacrificam aos mortos.
- Então tu crês que os deuses estão mortos?
- Certamente. E vê como: eles assemelham-se a homens mas estão imóveis. Deixa de os
cobrir de honras; como eles não se mexem, os cães e os corvos virão cobri-los de esterco.
- Basta sacrificar. Tem piedade de ti mesmo!
- É mesmo por isso que eu escolho a melhor parte.
A estas palavras, o procônsul mandou que o pendurassem... e lhe rasgassem o corpo com
unhas de ferro...
############ Martírio de Papilo ############
Então o procônsul voltou-se para Papilo, para o interrogar:
- És tu da classe dos notáveis?
- Não.
- Então quem és?
- Sou um cidadão.
- Tens filhos?
- Muitos, graças a Deus.
Uma voz na multidão gritou:
- É aos cristãos que ele chama filhos!
- Porque me estás a mentir, dizendo que tens filhos?
- Repara que eu não minto mas antes falo verdade: em todas as cidades da província, eu tenho
filhos que me foram dados por Deus.
- Oferece um sacrifício ou então explica-te.
- Desde a minha juventude que sirvo a Deus e nunca sacrifiquei aos ídolos; ofereço-me a mim
mesmo em sacrifício ao Deus vivo e verdadeiro que tem poder sobre toda a criatura. E agora
acabei, não tenho mais nada a acrescentar.
Amarraram-no também ao cavalete onde foi rasgado com unhas de ferro. Três equipas de
carrascos se sucederam sem que escapasse uma só queixa a Papilo. Tal como um valoroso
atleta, encarava em profundo silêncio a fúria dos seus inimigos...
O procônsul condenou os dois a serem queimados vivos... No anfiteatro, os espectadores mais
próximos viram que Carpo sorria. Surpreendidos, interrogaram-no:
- Porque sorris?
O bem-aventurado Carpo respondeu:
- Vi a glória do Senhor e rejubilo. Eis-me agora liberto; não conhecerei mais as vossas
misérias.
############ Martírio de Agatónica ############
Uma mulher que assistia ao martírio, Agatónica, viu a glória do Senhor que Carpo dizia ter
contemplado. Compreendeu que era um sinal do céu e imediatamente exclamou:
- Esse festim está praparado para mim também... Eu sou cristã. Nunca sacrifiquei aos
demónios, mas somente a Deus. De boa vontade, se for digna disso, seguirei as pisadas dos
meus mestres, os santos. É esse o meu maior desejo...
O procônsul disse-lhe:
- Sacrifica e não me forces a condenar-te ao mesmo suplício.
- Faz o que te parecer melhor. Quanto a mim, vim para sofrer em nome de Cristo. Estou
pronta.
Chegada ao lugar do suplício, Agatónica tirou as suas vestes e, alegre, subiu ao patíbulo. Os
espectadores ficaram tocados pela sua beleza; lamentavam-na:
- Que julgamento iníquo e que decretos injustos!
Quando ela sentiu as chamas tocarem o seu corpo, gritou três ezes:
- Senhor, Senhor, Senhor, vem em meu auxílio. É a ti que eu recorro.
Foram as suas últimas palavras.
Concílio Vaticano II
Decreto sobre a Actividade Missionária da Igreja (Ad Gentes), § 23-24
Pronunciar-se por Cristo ao longo de toda a vida
Embora a todo o discípulo de Cristo incumba a obrigação de difundir a fé conforme as suas
possibilidades, Cristo Senhor chama sempre dentre os discípulos os que Ele quer para estarem
com Ele e os enviar a evangelizar os povos (Mc 3,13-14)...
Porém, ao chamamento de Deus, o homem deve responder de forma tal que, sem se deixar
guiar pela carne e sangue (Ga 1,16), todo ele se entregue à obra do Evangelho. Mas esta
resposta não pode ser dada senão por impulso e virtude do Espírito Santo. O enviado entra,
portanto, na vida e missão d'Aquele que «a si mesmo se aniquilou tomando a forma de servo»
(Fil 2,7). Por conseguinte, deve estar pronto a perseverar toda a vida na vocação, a renunciar a
si e a todas as suas coisas (Lc 14,26.33), e a fazer-se tudo para todos (1Co 9,22).
Anunciando o Evangelho aos povos, dê a conhecer confiadamente o mistério de Cristo, do
qual é legado, de maneira que ouse falar d'Ele como convém (Ef 6,19), não se envergonhando
do escândalo da cruz. Seguindo os passos do seu mestre, manso e humilde de coração, mostre
que o Seu jugo é suave e leve a Sua carga (Mt 11,29). Mediante uma vida verdadeiramente
evangélica, com muita paciência, longanimidade, suavidade, caridade sincera, dê testemunho
do seu Senhor até à efusão do sangue, se for necessário. Alcançará de Deus virtude e força
para descobrir a abundância de gozo que se encerra na grande prova da tribulação e da
pobreza absoluta.
Evangelho segundo S. Lucas 12,13-21.
Dentre a multidão, alguém lhe disse: «Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança
comigo.» Ele respondeu-lhe: «Homem, quem me nomeou juiz ou encarregado das vossas
partilhas?» E prosseguiu: «Olhai, guardai-vos de toda a ganância, porque, mesmo que um
homem viva na abundância, a sua vida não depende dos seus bens.» Disse-lhes, então, esta
parábola: «Havia um homem rico, a quem as terras deram uma grande colheita. E pôs-se a
discorrer, dizendo consigo: 'Que hei-de fazer, uma vez que não tenho onde guardar a minha
colheita?' Depois continuou: 'Já sei o que vou fazer: deito abaixo os meus celeiros, construo
uns maiores e guardarei lá o meu trigo e todos os meus bens. Depois, direi a mim mesmo:
Tens muitos bens em depósito para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te.' Deus,
porém, disse-lhe: 'Insensato! Nesta mesma noite, vai ser reclamada a tua vida; e o que
acumulaste para quem será?' Assim acontecerá ao que amontoa para si, e não é rico em
relação a Deus.»
S. Basílio (cerca 330-379), monge e bispo em Capadócia, doutor da Igreja
Catequese 31
Amontoar para si próprio ou ser rico com os olhos postos em Deus?
«Que hei-de fazer? Vou aumentar os meus celeiros!» Porque eram as terras deste homem tão
produtivas, se ele fazia tão mau uso da sua riqueza? É para mais intensamente se ver a
manifestação da imensa bondade de um Deus que estende a sua graça a todos, «pois Ele faz
que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores»
(Mt 5,45) ... Eram estes os benefícios de Deus para com este rico: uma terra fecunda, um
clima temperado, abundantes colheitas, bois para o trabalho, e tudo que assegurasse a
prosperidade. E ele, que dava em troca? Mau humor, taciturnidade e egoísmo. Era assim que
agradecia ao seu benfeitor.
Esquecia que pertencemos todos à mesma natureza humana; não pensou que devia distribuir o
que lhe sobrava aos pobres; não fez nenhum caso destes mandamentos divinos: «não negues
um benefício a quem precisa dele, se estiver nas tuas mãos concedê-lo» (Prov 3,27), «não se
afastem de ti a bondade e a fidelidade» (3,3), «partilha o teu pão com quem tem fome» (Is
58,7). Todos os profetas, todos os sábios lhe gritavam estes preceitos, mas ele fazia ouvidos
de mercador. Os seus celeiros rachavam, muito pequenos para o trigo que lá se acumulava,
mas o seu coração não estava satisfeito... Ele não queria desfazer-se de nada, mesmo não
chegando a armazená-lo todo. Este problema incomodava-o: «Que hei-de fazer?» perguntava
constantemente. Quem não teria piedade de um homem assim obcecado? A abundância
tornava-o infeliz...; ele lamentava-se tal e qual como os indigentes: «Que hei-de fazer? Como
alimentar-me, vestir-me?»...
Observa, homem, quem foi que te cumulou de dons. Reflecte um pouco sobre ti próprio:
Quem és tu? O que é que te foi confiado? De quem recebeste esse encargo? Porque fostes tu o
escolhido? Tu és servo do Deus bom; tu estás encarregado dos teus companheiros de serviço...
«Que hei-de fazer?» A resposta é simples: «Saciarei os famintos, convidarei os pobres... Vós
todos a quem falta o pão, vinde possuir os dons concedidos por Deus, que jorram como de
uma fonte».
Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (norte de África) e doutor da Igreja
Sermão 32: sobre o Salmo 149
“Ser rico aos olhos de Deus”
Irmãos, examinai pois com atenção a vossa morada interior, abri os olhos e apreciai o vosso
capital de amor, e depois aumentai a soma que tiverdes descoberto em vós. E guardai esse
tesouro, a fim de serdes ricos interiormente. Chamam-se caros os bens que têm um preço
elevado, e com razão. […] Mas que coisa há mais cara do que o amor, meus irmãos? Em
vossa opinião, que preço tem ele? E como pagá-lo? O preço de uma terra, o preço do trigo, é a
prata; o preço de uma pérola é o ouro; mas o preço do amor és tu mesmo. Se queres comprar
um campo, uma jóia, um animal, procuras em teu redor os fundos necessários para isso. Mas,
se desejas possuir o amor, procura apenas em ti mesmo, pois é a ti mesmo que tens de
encontrar.
Que receias ao dar-te? Receias perder-te? Pelo contrário, é recusando-te a dar-te que te
perdes. O próprio Amor exprime-se pela boca da Sabedoria e apazigua com uma palavra a
desordem que em ti lançava a expressão: “Dá-te a ti mesmo!” Se alguém quisesse vender-te
um terreno, dir-te-ia: “Dá-me prata”; ou, se quisesse vender-te outra coisa qualquer: “Dá-me
dinheiro”. Pois escuta o que diz o Amor, pela boca da Sabedoria: “Meu filho, dá-me o teu
coração” (Prov 23, 26). O teu coração sofria quando estava em ti; eras presa de futilidades, ou
mesmo de más paixões. Afasta-te delas! Para onde hás-de levá-lo? A quem o hás-de oferecer?
“Meu filho, dá-me o teu coração”, diz a Sabedoria. Se ele for Meu, já não te perderás. […]
“Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu
entendimento” (Mt 22, 37). […] Quem te criou quer-te todo para Si.
S. Basílio (c. 330-379), monge e bispo de Cesareia em Capadócia, doutor da Igreja
Homilia 31
Construir outros celeiros
"Insensato, nesta mesma noite pedir-te-ão contas da tua vida e o que acumulaste para quem
será?" A conduta do rico do Evangelho é tanto mais patética quanto o castigo eterno é
rigoroso. Com efeito, que projectos congemina em seu espírito este homem que vai ser
arrebatado do mundo dentro de tão pouco tempo? "Vou demolir os meus celeiros e construirei
uns maiores". Quanto a mim, dir-lhe-ia de bom grado: Fazes bem porque eles merecem
mesmo ser destruidos, os celeiros da tua injustiça. Com as tuas próprias mãos, destrói de uma
ponta à outra tudo o que edificaste injustamente. Deixa que se desbaratem as tuas reservas de
trigo que nunca saciaram ninguém. Faz deaparecer todo o edifício em que protegeste a tua
avareza, tira-lhe o telhado, derruba as paredes, expõe ao sol o trigo que apodrece, tira da
prisão as riquezas que aí estavam cativas...
"Vou demolir os meus celeiros e construir uns maiores". Quando acabares de encher esses,
que decisão tomarás? Vais demoli-los para construir outros ainda maiores? Haverá maior
loucura do que atormentar-se sem fim, construir com afinco e afincar-se em destruir? Se
quiseres, terás por celeiro as moradas dos indigentes. "Acumula tesouros no céu". O que aí for
guardado "os vermes não o comem, a ferrugem não o estraga, os ladrões não o roubam" (Mt
6,20).
Santo Isaac, o Sírio (séc. VII), monge em Ninive, perto de Mossul, no actual Iraque
Discursos ascéticos, 1ª série, nº 38
“Esta mesma noite virão pedir-te a vida”
Senhor, torna-me digno de desprezar a minha vida pela vida que se encontra em Ti. A vida
neste mundo é semelhante àqueles que formam palavras com letras, acrescentando-as,
retirando-as e alterando-as a seu bel prazer. Mas a vida do mundo futuro é semelhante ao que
está escrito sem o menor erro nos livros selados com o selo real, a que nada falta e a que nada
há a acrescentar. Assim, pois, enquanto nos encontramos no seio da mudança, estejamos
atentos a nós próprios. Enquanto temos poder sobre o manuscrito da nossa vida, sobre aquilo
que escrevemos com as nossas próprias mãos, esforcemo-nos por lhe acrescentar o bem que
fazemos e por apagar os erros da nossa primeira conduta. Enquanto estamos neste mundo,
Deus não põe o selo, nem sobre o bem, nem sobre o mal. Apenas o faz no momento do nosso
êxodo, quando termina a nossa obra, no momento em que partimos.
Como diz Santo Efrém, temos de considerar que a nossa alma é semelhante a um navio
preparado para o mar, que não sabe quando se levantará o vento; ou é semelhante a uma
armada que não sabe quando soará a trombeta a anunciar o combate. Se isto diz do navio e da
armada, que esperam algo que poderá não se realizar, quanto mais deveremos preparar-nos
para a chegada brusca desse dia em que será lançada a ponte e aberta a porta para o mundo
novo? Que Cristo, o Mediador da nossa vida, nos conceda estar preparados.
Fénelon (l65l-l7l5), Arcebispo de Cambrai
Sermão para a festa da Assunção
Acumular para si mesmo ou ser rico aos olhos de Deus?
Em qualquer idade, meus irmãos, em qualquer estado em que a morte nos apanhe, ela nos
surpreende, ela nos encontra sempre em projectos que imaginam uma longa vida. A vida dada
unicamente como preparação para ela, passa-se num profundo esquecimento do termo a que
vai desembocar. Vive-se como se para sempre se vivesse. Não se pensa senão em deliciar-se a
si próprio através de toda a espécie de prazeres, até que a morte pare subitamente o curso
destas loucas alegrias. O homem sábio a seus próprios olhos, mas insensato aos olhos de
Deus, inquieta-se de mil maneiras para acumular bens, dos quais a morte o vai despojar…
Tudo nos devia advertir e tudo nos diverte….Depois do nosso nascimento , como que se
edificaram l00 mundos novos sobre as ruínas daquele que nos viu nascer…
Mas esperar a morte como realização das nossas esperanças é o que o cristianismo, mais
claramente e fortemente nos ensina e, contudo, é o que ignoramos como se nunca tivéssemos
sido cristãos… «Ó amável Salvador, que depois de nos terdes ensinado a viver, Vos dignastes
ensinar-nos também a morrer, nós Vos suplicamos, pelas dores da Vossa morte, que nos
façais suportar a nossa, com uma humilde paciência e a mudar esta dor que é imposta a todo o
género humano, num sacrifício cheio de alegria e zelo. Sim, bom Jesus, quer vivamos, quer
morramos, nós vos pertencemos (Rom l4, 8). Vivendo, ai de nós! Não estamos cá senão com
o triste temor de não estarmos nem mais um momento depois. Mas morrendo, nós estaremos
Convosco para sempre e Vós sereis também todo nosso, contanto que o último suspiro da
nossa vida seja um suspiro de amor por Vós.»
Bem-aventurada Teresa de Calcutá (1910-1997), fundadora das Irmãs Missionárias da
Caridade
"Um caminho fácil"
“Que devo fazer?”
Todos nós desejamos ser felizes e termos paz. Fomos criados para isso e só podemos
encontrar a felicidade e a paz amando a Deus; o amor traz-nos a alegria e a felicidade. Muitas
pessoas pensam, sobretudo no Ocidente, que viver fazendo o que lhes apetece os torna felizes.
Eu penso que é mais difícil ser feliz na riqueza, porque as preocupações para ganhar o
dinheiro e conservá-lo nos dissimulam Deus. De qualquer modo, se Deus vos confiou
riquezas, fazei-as servir as suas obras: ajudai os outros, ajudai os pobres, criai empregos, dai
trabalho aos outros. Não desperdiceis em vão a vossa fortuna; ter uma casa, honras, liberdade,
saúde, tudo isso nos é confiado por Deus para o pormos ao serviço dos que são menos
afortunados do que nós.
Jesus disse: “O que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos, é a mim que o fazeis” (Mt
25,40). Por consequência, a única coisa que pode entristecer-me é ofender Nosso Senhor por
egoísmo ou por falta de caridade para com os outros, ou fazer mal a alguém. Ferindo os
pobres, ferindo-nos uns aos outros, ferimos a Deus.
É a Deus que pertence dar e retirar (Job 1,21); partilhai pois o que recebestes, incluindo a
vossa própria vida.
Evangelho segundo S. Lucas 12,32-48.
Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino.» «Vendei os
vossos bens e dai os de esmola. Arranjai bolsas que não envelheçam, um tesouro inesgotável
no Céu, onde o ladrão não chega e a traça não rói. Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí
estará também o vosso coração.» «Estejam apertados os vossos cintos e acesas as vossas
lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor ao voltar da boda, para lhe
abrirem a porta quando ele chegar e bater. Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando
vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à
mesa e há-de servi-los. E, se vier pela meia-noite ou de madrugada, e assim os encontrar,
felizes serão eles. Ficai a sabê-lo bem: se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão,
não teria deixado arrombar a sua casa. Estai preparados, vós também, porque o Filho do
Homem chegará na hora em que menos pensais.» Pedro disse-lhe: «Senhor, é para nós que
dizes essa parábola, ou é para todos igualmente?» O Senhor respondeu: «Quem será, pois, o
administrador fiel e prudente a quem o senhor pôs à frente do seu pessoal para lhe dar, a seu
tempo, a ração de trigo? Feliz o servo a quem o senhor, quando vier, encontrar procedendo
assim. Em verdade vos digo que o porá à frente de todos os seus bens. Mas, se aquele
administrador disser consigo mesmo: 'O meu senhor tarda em vir' e começar a espancar servos
e servas, a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele servo chegará no dia em que ele
menos espera e a uma hora que ele não sabe; então, pô-lo-á de parte, fazendo o partilhar da
sorte dos infiéis. O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor, não se preparou e não
agiu conforme os seus desejos, será castigado com muitos açoites. Aquele, porém, que, sem a
conhecer, fez coisas dignas de açoites, apenas receberá alguns. A quem muito foi dado, muito
será exigido; e a quem muito foi confiado, muito será pedido.»
S. Cipriano (c. 200-258), bispo de Cartago emártir
Da unidade, 26-27
"Estai preparados"
O Senhor pensava no nossso tempo ao dizer: "O Filho do homem, quando voltar, encontrará
fé sobre a terra?" (Lc 18,8) Vemos que esta profecia se está a realizar. O temor de Deus, a lei
da justiça, a caridade, as boas obras, já ninguém acredita nisso... Tudo o que a nossa
consciência havia de temer, se em tal acreditasse, não o teme, porque não acredita. Porque, se
acreditasse, estaria vigilante; e, se estivesse vigilante, salvar-se-ia.
Despertemos pois, irmãos, enquanto somos capazes. Sacudamos o sono da nossa inércia.
Vigiemos observando e praticando os preceitos do Senhor. Sejamos tal qual Ele nos
prescreveu que fôssemos quando disse: "Estejam apertados os vossos cintos e acesas as
vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor ao voltar da boda,
para lhe abrirem a porta quando ele chegar e bater. Felizes aqueles servos a quem o senhor,
quando vier, encontrar vigilantes!"
Sim, permaneçamos em traje de serviço com receio de que, quando vier o dia da partida, ele
não nos encontre embaraçados e imobilizados. Que a nossa luz brilhe e irradie de boas obras,
que ela nos encaminhe da noite deste mundo para a luz e para a caridade eternas. Esperemos
com cuidado e prudência a chegada súbita do Senhor a fim de que, quando Ele bater à porta, a
nossa fé esteja desperta para receber do Senhor a recompensa pela sua vigilância. Se
observarmos estes mandamentos, se guardarmos estas advertências e estes preceitos, as
manhas enganadoras do Acusador não poderão destruir-nos durante o sono. Mas,
reconhecidos como servos vigilantes, reinaremos com Cristo triunfante.
Santo Efrém (cerca de 306-373), diácono na Síria, doutor da Igreja
Comentário do Evangelho ou Diatessaron
«O Filho do Homem virá na hora em que não o esperareis»
Para impedir qualquer questão indiscreta acerca do momento da sua segunda vinda, Jesus
declarou: “Essa hora, ninguém a conhece, nem mesmo o Filho” (Mt 24,36) e, noutro
momento, “Não vos pertence conhecer conhecer os dias e os tempos” (Act 1,7). Escondeu-nos
isso para que vigiemos e que cada um possa pensar que tal vinda se produzirá durante a sua
vida. Se o tempo da sua vinda tivesse sido revelado, tudo seria em vão: as nações e os séculos
em que se produzisse não o desejariam. Ele bem disse que viria, mas não precisou em que
momento; dessa forma, todas as gerações e todos os séculos têm sede dele.
É certo que fez conhecer os sinais da segunda vinda; mas não revelou o seu termo. Na
mudança constante em que vivemos, alguns desses sinais já tiveram lugar, outros já passaram,
outros duram sempre. Com efeito, a sua última vinda será semelhante à primeira; os justos e
os profetas desejavam-na; pensavam que teria lugar no tempo deles. Também hoje, cada um
dos fiéis de Cristo deseja acolhê-lo no seu próprio tempo, tanto mais que Jesus não disse
claramente o dia em que Ele apareceria. Assim, ninguém poderá imaginar que Cristo seja
submetido a uma lei do tempo, a uma hora qualquer, Ele que domina os números e o tempo.
S. Gregório de Nissa (cerca de 335-385), monge e bispo
Homilia sobre o Cântico dos Cânticos
«Com os cintos cingidos e as lâmpadas acesas»
É para que o nosso espírito se liberte de todas as miragens que o Verbo nos convida a
afastarmos dos olhos das nossas almas este sono pesado, para que não escorreguemos para
fora das verdadeiras realidades nem nos agarremos ao que não tem consistência. Por isso Ele
nos sugere uma atitude de vigilância, dizendo-nos: "Tendo os vossos rins cingidos e as vossas
lâmpadas acesas"... O significado destes símbolos é bem claro. Quem está cingido pela
temperança vive na luz de uma consciência pura, porque a confiança filial ilumina a sua vida
como uma lâmpada. Iluminada pela verdade, a sua alma mantém-se livre do sono da ilusão,
uma vez que nenhum sonho vão a pode enganar. Se cumprirmos isso, segundo as indicações
do Verbo, entraremos numa vida semelhante à dos anjos...
São eles, na verdade, que esperam o Senhor no regresso das núpcias e que se sentam às portas
do céu com os olhos bem abertos, a fim de que o Rei da Glória (Sl 23,7) possa aí passar de
novo, quando voltar das núpcias e regressar à beatitude que está acima dos céus. "Saindo de lá
como um Esposo sai da câmara nupcial", de acordo com o texto do saltério (19,6), Ele uniu a
si, como uma virgem, pela regeneração sacramental, a nossa natureza que se tinha prostituido
com os ídolos, restituindo-lhe a sua incorruptibilidade virginal. Tendo já acabado as núpcias,
uma vez que a Igreja foi desposada pelo Verbo... e introduzida na câmara dos mistérios, os
anjos esperavam o regresso do Rei da Glória à beatitude que é própria da sua natureza.
É por isso que o texto diz que a nossa vida deve ser semelhante à dos anjos, para que, tal
como eles, vivamos longe do vício e da ilusão, para estarmos prontos para acolher a parusia
do Senhor e, vigiando também nós às portas das nossas moradas, estejamos prontos a
abedecer quando Ele voltar e bater à porta.
Bem-aventurado Gerrico d’Igny (c. 1080-1157), abade cisterciense
3º Sermão para o Advento
“Vós não estais nas trevas para que aquele dia vos surpreenda como um ladrão” (1 Ts 5,
4)
“Prepara-te, Israel, para te encontrares com o teu Deus, porque Ele vai vir” (cf. Am 4, 12). E
vós, também, irmãos, “estai preparados, porque à hora que menos pensais virá o Filho do
Homem”. Nada mais certo do que a sua vinda, mas nada mais incerto do que o momento
dessa vinda. De fato, pertence-nos tão pouco conhecer o tempo ou os momentos que o Pai, no
seu poder, tem fixados, que nem sequer aos anjos que O rodeiam lhes é dado saber o dia ou a
hora (Act 1, 7; Mt 24, 36).
O nosso último dia virá também: é um fato muito certo. Mas quando, onde e
como, isso é-nos muito incerto; sabemos unicamente, como já se disse antes
de nós, que “para aos anciãos, ele já se encontra no limiar, enquanto para
os jovens está à espreita” (S. Bernardo) … Esse dia não deveria apanhar-nos
de surpresa, não acautelados, como um ladrão durante a noite… Que o temor,
permanecendo em vela, nos tenha sempre preparados, até que a segurança se
sobreponha ao temor, e não o temor à segurança. “Estarei atento, diz o
Sábio, para não cometer pecado” (Sl 17, 24), já que não posso preservar-me
da morte. Ele sabe, de fato, que “o justo, surpreendido pela morte,
encontrará descanso” (Sb 4, 7; mais ainda, triunfam da morte os que não
foram escravos do pecado durante a vida. Como é belo, meus irmãos, são só
sentir-se em segurança perante a morte, mas também triunfar dela com glória,
acompanhados do testemunho da própria consciência.
Evangelho segundo S. Lucas 12,35-38. – cf.par. Mt 24,42-50
«Estejam apertados os vossos cintos e acesas as vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos
homens que esperam o seu senhor ao voltar da boda, para lhe abrirem a porta quando ele
chegar e bater. Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em
verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há-de servi-los. E, se vier
pela meia-noite ou de madrugada, e assim os encontrar, felizes serão eles.
Santo Isaac o Sírio (séc. VII), monge em Nínive, perto de Mossul no actual Iraque
Discursos ascéticos
"Mantenham as lâmpadas acesas"
A oração que se oferece durante a noite tem um grande poder, mais do que a que se oferece
durante o dia. É por isso que todos os santos tiveram o hábito de rezar de noite, combatendo a
moleza do corpo e a doçura do sono e ultrapassando a sua própria natureza corporal. Também
o profeta dizia: "Estou cansado de tanto gemer; todas as noites banho o meu leito com as
minhas lágrimas" (Sl 6,7), enquanto suspirava no fundo de si mesmo numa oração
apaixonada. E, noutro passo: "Levanto-me a meio da noite para te louvar por causa das tuas
sentenças, tu que és o Justo" (Sl 118,62). Para cada um dos pedidos que os santos queriam
dirigir a Deus com todas as suas forças, eles armavam-se com a oração nocturna e
imediatamente recebiam o que pediam.
O próprio Satanás nada receia tanto como a oração que se oferece durante as vigílias. Mesmo
se são acompanhadas de distracções, não ficam sem fruto, a menos que se peça o que não
convém. É por isso que ele trava sérios combates contra os que velam, a fim de os afastar
quanto possível dessa prática, sobretudo se se mostram perseverantes. Mas os que se
fortaleceram um pouco que seja contra as suas manhas perniciosas e saborearam os dons que
Deus concede durante as vigílias e experimentaram pessoalmente a grandeza da ajuda que
Deus lhes dá, desprezam-no completamente, a ele e a todos os seus estratagemas.
São Bernardo (1091-1153), monge cisterciense e doutor da Igreja
Sermão sobre o Cântico dos Cânticos, nº 17, 2
Vigiar no Espírito Santo
Temos de estar vigilantes e atentos à obra da salvação que se realiza em nós, porque é com
admirável subtileza e com a delicadeza de uma arte divina que o Espírito Santo realiza
continuamente esta obra no mais íntimo do nosso ser. Que esta unção que tudo nos ensina não
nos seja retirada sem que tenhamos consciência disso, e que a sua vinda não nos apanhe
desprevenidos. Pelo contrário, convém-nos estar permanentemente atentos, com o coração
totalmente aberto, para recebermos esta bênção generosa do Senhor. Em que disposições quer
o Espírito encontrar-nos? “Sede como os servos que esperam o seu senhor, quando ele
regressa das núpcias”. Ele nunca regressa de mãos vazias da mesa celeste, com todas as
alegrias que esta prodigaliza.
Temos, pois, de velar, e de velar em todo o momento, porque nunca sabemos a que horas virá
o Espírito, nem a que horas voltará a partir. O Espírito vai e vem (Jo 3, 8); se, graças à Sua
presença, nos mantemos de pé, quando Ele Se retira caímos inevitavelmente, mas sem nos
magoarmos, porque o Senhor nos sustenta com a Sua mão. E o Espírito não cessa de
comunicar esta alternância de presença e ausência aos que são espirituais, ou antes, àqueles
que tem a intenção de tornar espirituais. É por isso que os visita de madrugada, pondo-os em
seguida subitamente à prova.
São Serafim de Sarov (l759-l833), monge russo
Conversação com Motovilov
«Velai orando continuamente» (Luc 21,36)
Oh! Como eu gostaria, amigo de Deus, que nesta vida estivésseis sempre no Espírito Santo.
«Eu venho em breve e trarei a recompensa para retribuir a cada um conforme as suas obras»,
diz o Senhor (cf Ap 22, l2). Que desgraça, que grande desgraça se Ele nos encontra
sobrecarregados com os cuidados e penas deste mundo, pois quem pode suportar a sua
indignação e quem pode resistir-lhe? Foi por isso que Ele disse: «Vigiai e orai para não
cairdes em tentação» (Mat 26,41), ou dito de outro modo, para não serdes privados do
Espírito de Deus, porque as vigílias e a oração dão-nos a sua graça.
É certo que toda a boa acção feita em nome de Cristo confere a graça do Espírito Santo, mas a
oração mais que qualquer outra coisa, estando sempre à nossa disposição. Vós teríeis, por
exemplo, vontade de ir à igreja, mas a igreja está longe, ou o ofício terminou; teríeis desejo de
dar esmola, mas não vedes o pobre, ou não tendes dinheiro; vós quereríeis permanecer
virgem, mas não tendes força suficiente para isso, devido à vossa constituição ou aos
embustes do inimigo, aos quais a fraqueza da vossa natureza humana não vos permite resistir;
quereríeis,
S. Maximiliano Kolbe (1894-1941), franciscano, mártir
Conferência de 13/2/1941
«Conservai as vossas lâmpadas acesas»
O que é preciso fazer para vencer a fraqueza da alma? Há dois meios para isso: o primeiro é o
distanciamento de si próprio. O Senhor Jesus recomenda-nos que vigiemos. É preciso
vigiarmos se quisermos que o nosso coração seja puro, mas é preciso vigiarmos em paz, para
que o nosso coração seja tocado, pois ele pode ser tocado por coisas boas ou por coisas más,
interiormente, ou exteriormente... portanto é preciso vigiar.
Habitualmente, a inspiração de Deus é uma graça discreta: é preciso não a rejeitarmos...; se o
nosso coração não estiver atento, a graça retira-se. A inspiração divina é muito precisa; tal
como o escritor dirige o seu aparo, assim a graça de Deus dirige a alma. Tentemos pois
alcançar um maior recolhimento interior.
O Senhor quer que tenhamos o desejo de O amar. A alma que se mantém vigilante apercebese de que cai, e de que, só por si, não consegue lá chegar; por isso, sente a necessidade da
oração. A súplica funda-se na certeza de que nada podemos fazer por nós mesmos, mas que
Deus tudo pode. A oração faz falta para obter a luz e a força.
Bem-aventurada Teresa de Calcutá (1910-1997), fundadora das Irmãs Missionárias da
Caridade
Something beautiful for God
«Feliz do servo que o seu senhor , no regresso, encontra a trabalhar»
Senhor muito amado, permite que eu possa ver-Te hoje e em cada dia, na pessoa dos teus
doentes, e tratando-os, possa servir-Te. Se Te escondes debaixo da figura desagradável do
colérico, do descontente, do arrogante, faz com que eu possa mesmo assim reconhecer-Te e
dizer: «Jesus, a Ti, meu paciente, como é bom servir-Te.» Senhor, dá-me essa fé que vê claro
e, então, a minha tarefa nunca será monótona, a alegria brotará sempre que eu atenda aos
caprichos e responda aos desejos de todos os pobre em sofrimento.
Ó Deus, pois que Tu és Jesus, o meu paciente, digna-Te ser também para mim um Jesus de
paciência, indulgente para com as minhas faltas, levando em conta a intenção, pois que ela é
amar-Te e servir-Te na pessoa de cada um dos teus doentes. Senhor, aumenta a minha fé,
abençoa os meus esforços e a minha missão agora e para sempre.
Evangelho segundo S. Lucas 12,39-48.
Ficai a sabê-lo bem: se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão, não teria deixado
arrombar a sua casa. Estai preparados, vós também, porque o Filho do Homem chegará na
hora em que menos pensais.» Pedro disse-lhe: «Senhor, é para nós que dizes essa parábola, ou
é para todos igualmente?» O Senhor respondeu: «Quem será, pois, o administrador fiel e
prudente a quem o senhor pôs à frente do seu pessoal para lhe dar, a seu tempo, a ração de
trigo? Feliz o servo a quem o senhor, quando vier, encontrar procedendo assim. Em verdade
vos digo que o porá à frente de todos os seus bens. Mas, se aquele administrador disser
consigo mesmo: 'O meu senhor tarda em vir' e começar a espancar servos e servas, a comer, a
beber e a embriagar-se, o senhor daquele servo chegará no dia em que ele menos espera e a
uma hora que ele não sabe; então, pô-lo-á de parte, fazendo o partilhar da sorte dos infiéis. O
servo que, conhecendo a vontade do seu senhor, não se preparou e não agiu conforme os seus
desejos, será castigado com muitos açoites. Aquele, porém, que, sem a conhecer, fez coisas
dignas de açoites, apenas receberá alguns. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a
quem muito foi confiado, muito será pedido.»
S. João Crisóstomo (c.345-407), bispo de Antioquia e posteriormente de Constantinopla,
doutor da Igreja
Homilia 77 sobre S. Mateus
«Estai preparados»
«O Filho do Homem virá numa hora em que não pensais». Jesus diz-lhes isto para que os
discípulos fiquem de vigília, para que estejam sempre preparados. Se lhes diz que virá quando
menos O esperam, é porque quer levá-los a praticar a virtude com zelo e sem descanso. È
como se lhes dissesse: «Se as pessoas soubessem quando vão morrer, estariam perfeitamente
preparadas para esse dia». Mas o momento final da nossa vida é um segredo que escapa a
cada homem.
Eis por que o Senhor exige duas qualidades ao seu servo: que seja fiel, para que não atribua a
si mesmo nada do que pertence ao seu Mestre, e que seja avisado, para convenientemente
administrar tudo o que lhe foi confiado. São-nos pois necessárias duas qualidades para
ficarmos preparados para a chegada do Mestre. Porque é isto o que acontece pelo facto de não
sabermos qual o dia do nosso encontro com Ele: dizemos para connosco: «O meu Senhor
tarda em chegar». O servo fiel e avisado não tem tal pensamento. Ó infeliz, por pensares que
o teu Mestre se demora, imaginas então que ele não há-de vir? A sua vinda é certa. Porque
não estás vigilante à sua espera? Não, o Senhor não está demorado: esse atraso só existe na
imaginação do mau servo.
S. Fulgêncio (476-532), bispo
Sermão I, 2-3
"Servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus" (1Co 4,1)
Para definir o papel dos servos que colocou à cabeça do seu povo, o Senhor diz esta palavra
que o Evangelho nos transmite: "Qual é o administrador prudente e fiel que o senhor
estabelecerá sobre o seu pessoal para lhe dar a seu tempo a ração de trigo? Feliz o servo a
quem o senhor, quando voltar, encontrar procedendo assim"... Se nos perguntarmos que
medida de trigo é esta, S. Paulo no-lo indica; é "a medida de fé que Deus vos repartiu" (Rm
12,3). Aquilo a que Cristo chama medida de trigo, Paulo chama medida de fé para nos ensinar
que não há outra medida de trigo espiritual senão o mistério da fé cristã. Essa medida de trigo,
damo-vo-la nós em nome do Senhor toda a vez que, iluminados pelo dom espiritual da graça,
vos falamos segundo a regra da verdadeira fé. Essa medida, recebei-la vós dos
administradores do Senhor todo o dia em que ouvis da boca dos servos de Deus a palavra da
verdade.
Que ela seja o nosso alimento, essa medida de trigo que Deus nos faz partilhar. Colhamos
nela o sustento para a forma como nos conduzimos, a fim de obtermos a recompensa da vida
eterna. Acreditemos naquele que se dá a si mesmo a cada um de nós para que não
desfaleçamos no caminho (Mt 15,32) e que se reserva como nossa recompensa para que
encontremos a alegria na pátria eterna. Acreditemos e esperemos nele; amemo-lo acima de
tudo e em tudo. Porque Cristo é o nosso alimento e será a nossa recompensa. Cristo é o
sustento e o reconforto dos viajantes que caminham; é a satisfação e a exaltação dos bemaventurados que chegam ao seu repouso.
Evangelho segundo S. Lucas 12,49-53.
«Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado! Tenho de
receber um baptismo, e que angústias as minhas até que ele se realize! Julgais que Eu vim
estabelecer a paz na Terra? Não, Eu vo-lo digo, mas antes a divisão. Porque, daqui por diante,
estarão cinco divididos numa só casa: três contra dois e dois contra três; vão dividir-se: o pai
contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra
a nora e a nora contra a sogra.»
Santo Ambrósio (c.340-397), bispo de Milão e doutor da Igreja
Tratado sobre S. Lucas 7, 131-132
«Vim trazer um fogo à terra»
«Vim trazer o fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso». O Senhor quer-nos
vigilantes, esperando a todo o momento a vinda do Salvador. […] Mas porque o ganho é
magro e fraco o mérito quando é por temor do suplício que não nos deixamos cair na
perdição, e porque o amor é o valor superior, o próprio Senhor inflama-nos no desejo de
chegar a Deus, ao dizer-nos: «Vim trazer o fogo à terra». Certamente não é este o fogo que
destrói, mas o fogo que produz a vontade boa, que torna mais valiosos os vasos de ouro da
casa do Senhor ao queimar o feno e a palha (1 Co 3, 12ss), ao devorar as podres entranhas do
mundo, amassadas pelo gosto do prazer terrestre, obras da carne que devem ser destruídas.
Era o fogo divino que queimava os ossos dos profetas, como declara Jeremias: «Tornou-se um
fogo devorador, encerrado em meus ossos» (Jr 20,9). Porque há um fogo que vem do Senhor,
sobre o qual se diz: «à frente d’Ele avançará o fogo» (Sl 96, 3). O próprio Senhor é um fogo,
diz ele, «que arde sem se consumir» (Ex 3,2). O fogo do Senhor é a luz eterna; neste fogo
acendem-se as lâmpadas dos crentes: «Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas» (Lc 12,
35). É porque os dias desta vida são noite ainda que são necessárias as lâmpadas. É este o
fogo que, segundo o testemunho dos discípulos de Emaús, o próprio Senhor pusera neles:
“Não sentíamos o coração a arder, durante o caminho, enquanto Ele nos explicava as
Escrituras?» (Lc 24,32). Eles ensinam-nos pela evidência qual é acção deste fogo, que ilumina
o fundo do coração do homem. É por isso que o Senhor virá no fogo (Is 66, 15), para
consumir os vícios no momento da ressurreição, para com a sua presença realizar os desejos
de cada um de nós, e projectar a sua luz sobre as glórias e os mistérios.
Dionísio o Cartuxo (1402-1471), monge
Comentário ao Evangelho de Lucas, 12, 72
«Deixo-vos a paz, a Minha paz vos dou» (Jo 14, 27)
«Pensais que vim trazer a paz ao mundo?» É como se Cristo dissesse: «Não penseis que vim
dar aos homens a paz segundo a carne e segundo este mundo, uma paz sem regras, que lhes
permitisse viver em harmonia no mal, e lhes garantisse a prosperidade neste mundo. Não,
digo-vos, não vim trazer uma paz deste género, mas a divisão, uma boa e salutar separação
entre os espíritos e mesmo entre os corpos. Assim, porque amam a Deus e procuram a paz
interior, aqueles que acreditam em Mim estarão naturalmente em desacordo com os maus;
separar-se-ão daqueles que tentam desviá-los do progresso espiritual e da pureza do amor
divino, ou que se esforçam por lhes criar dificuldades.»
Assim, pois, a paz espiritual, a paz interior, a paz boa é a tranquilidade da alma em Deus, e a
boa harmonia segundo a justiça. Foi esta paz que Cristo veio trazer. [...] A paz interior, que
tem origem no amor, consiste numa alegria inalterável da alma que se encontra em Deus.
Chamamos-lhe paz do coração. É ela o começo e um certo antegosto da paz dos santos que se
encontram na pátria, da paz da eternidade.
Paz de Cristo, segundo Bento XVI
Intervenção por ocasião da oração mariana do Ângelus
CASTEL GANDOLFO, domingo, 19 de agosto de 2007 (ZENIT.org).- Publicamos a
intervenção que Bento XVI pronunciou neste domingo, ao rezar a oração mariana do Ângelus,
junto a milhares de peregrinos congregados no pátio da residência pontifícia de Castel
Gandolfo.
***
Queridos irmãos e irmãs:
Existe uma expressão de Jesus no Evangelho deste domingo, que cada vez chama nossa
atenção e exige ser compreendida adequadamente. Enquanto se dirige a Jerusalém, onde lhe
espera a morte na cruz, Cristo diz aos seus discípulos: «Pensais que eu vim trazer a paz à
terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer a divisão. Pois daqui em diante, numa família de
cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: pai
contra filho e filho contra pai; mãe contra filha e filha contra mãe; sogra contra nora e nora
contra sogra» (Lc 12, 51-53).
Quem conhece, ainda que somente um pouco, o Evangelho de Cristo, sabe que é uma
mensagem de paz por excelência; o próprio Jesus, como escreve São Paulo, «é nossa paz»
(Efésios 2, 14), morto e ressuscitado para destruir o muro da inimizade e inaugurar o Reino de
Deus que é amor, alegria e paz. Como se explicam, então, suas palavras? A que se refere o
Senhor quando diz que veio para trazer – segundo a redação de São Lucas – a «divisão», ou
segundo a de São Mateus, a «espada»? (Mateus 10, 34)
Esta expressão de Cristo significa que a paz que Ele veio trazer não é sinônimo de simples
ausência de conflitos. Pelo contrário, a paz de Jesus é fruto de uma constante luta contra o
mal. A luta que Jesus está decidido a enfrentar não é contra homens ou poderes humanos, mas
contra o inimigo de Deus e do homem, Satanás.
Quem quer resistir contra esse inimigo sendo fiel a Deus e ao bem, tem que enfrentar
necessariamente incompreensões e, algumas vezes, autênticas perseguições. Por isso, aqueles
que querem seguir Jesus e comprometer-se sem compromissos a favor da verdade, têm de
saber que encontrarão oposições e se converterão, ainda que não o queiram, em sinal de
divisão entre as pessoas, e inclusive dentro de suas próprias famílias.
O amor aos pais é um mandamento sagrado, mas para ser vivido autenticamente, não pode ser
anteposto nunca ao amor de Deus e de Cristo. Dessa forma, seguindo os passos do Senhor
Jesus, os cristãos se convertem em «instrumentos de paz», segundo a famosa expressão de
São Francisco de Assis. Não de uma paz inconsistente e aparente, mas real, buscada com
valentia e tenacidade no compromisso cotidiano por vencer o mal com o bem (cf. Romanos
12, 21) e pagando o preço que isso implica.
A Virgem Maria, Rainha da Paz, compartilhou, até o martírio da alma, a luta do seu Filho
Jesus contra o Maligno e continua compartilhando-a até o final dos tempos. Invoquemos sua
intercessão materna para que nos ajude a ser sempre testemunhas da paz de Cristo, sem
rebaixar-nos a compromissos com o mal.
[Tradução realizada por Zenit.
© Copyright 2007 - Libreria Editrice Vaticana]
Pregador do Papa: nova e autêntica paz que Jesus traz aos homens
XX Domingo do tempo comum
Jeremias 38, 4-6.8-10; Hebreus 12, 1-4; Lucas 12, 49-57
Eu vim trazer a divisão à terra
A passagem do Evangelho desse domingo contém algumas das palavras mais provocadoras
pronunciadas por Jesus: «Pensais que eu vim trazer a paz à terra? Pelo contrário, eu vos digo,
vim trazer a divisão. Pois daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão
divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: pai contra filho e filho contra pai;
mãe contra filha e filha contra mãe; sogra contra nora e nora contra sogra».
E pensar que quem diz essas palavras é a mesma pessoa cujo nascimento foi saudado com as
palavras: «Paz na terra aos homens» , e que durante sua vida havia proclamado: «Bem-
aventurados os que trabalham pela paz»! A mesma pessoa que, no momento de sua prisão,
ordenou a Pedro: «Coloque a espada na bainha!» (Mt 26, 52)! Como se explica esta
contradição?
É muito simples. Trata-se de ver qual é a paz e a unidade que Jesus veio trazer e qual é a paz e
a unidade que veio suprimir. Ele veio trazer a paz e a unidade no bem, a que conduz à vida
eterna, e veio tirar essa falsa paz e unidade que só serve para adormecer as consciências e
levar à ruína.
Não é que Jesus tenha vindo propositalmente para trazer a divisão e a guerra, mas de sua
vinda resultará inevitavelmente divisão e contraste, porque Ele situa as pessoas ante a
disjuntiva. E ante a necessidade de decidir-se, sabe-se que a liberdade humana reagirá de
forma variada. Sua palavra e sua própria pessoa trarão à luz o que está mais oculto no
profundo do coração humano. O ancião Simeão o havia predito ao tomar Jesus Menino nos
braços: «Este está colocado para queda e elevação de muitos em Israel, e para ser sinal de
contradição, a fim de que fiquem ao descoberto as intenções de muitos corações» (Lucas 2,
35).
A primeira vítima dessa contradição, o primeiro em sofrer a «espada» que veio trazer à terra,
será precisamente Ele, que neste choque perderá a vida. Depois d’Ele, a pessoa mais
diretamente envolvida neste drama é Maria, sua Mãe, a quem, de fato, Simeão, naquela
ocasião, disse: «Uma espada te transpassará a alma».
Jesus mesmo distingue os dois tipos de paz. Diz aos apóstolos: «Deixo-vos a paz, dou-vos a
minha paz. Não é à maneira do mundo que eu a dou. Não se perturbe, nem se atemorize o
vosso coração» (João 14, 27). Depois de ter destruído, com sua morte, a falsa paz e
solidariedade do gênero humano no mal e no pecado, inaugura a nova paz e unidade que é
fruto do Espírito. Esta é a paz que oferece aos apóstolos na tarde da Páscoa, dizendo: «Paz a
vós!».
Jesus diz que esta «divisão» pode ocorrer também dentro da família: entre pai e filho, mãe e
filha, irmão e irmã, nora e sogra. E lamentavelmente sabemos que isso às vezes é certo e
doloroso. A pessoa que descobriu o Senhor e quer segui-lo seriamente se encontra com
freqüência na difícil situação de ter de escolher: ou contentar aos de casa e descuidar Deus e
as práticas religiosas, ou seguir estas e estar em contraste com os seus, que lhe jogam na cara
cada minuto que dedica a Deus e às práticas de piedade.
Mas o choque chega também mais profundamente, dentro da própria pessoa, e se configura
como luta entre a carne e o espírito, entre o clamor do egoísmo e dos sentidos e o da
consciência. A divisão e o conflito começam dentro de nós. Paulo o explicou de forma
maravilhosa: «A carne de fato tem desejos contrários ao Espírito e o Espírito tem desejos
contrários à carne; estas coisas se opõem reciprocamente, de maneira que não fazeis o que
gostaríeis».
O homem está apegado à sua pequena paz e tranqüilidade, ainda que seja precária e ilusória, e
esta imagem de Jesus que vem trazer o desconcerto poderia indispô-lo e levá-lo a considerar
Cristo como um inimigo de sua quietude. É necessário tentar superar esta impressão e
perceber que também isso é amor por parte de Jesus, talvez o mais puro e genuíno.
[Tradução realizada por Zenit]
S. João-Pedro de Caussade (1675-1751), jesuíta
O abandono à Providência divina
“Porque não sabeis julgar o tempo presente?”
Como é possível que estando continuamente a ser avisados de que tudo o que se passa neste
mundo não é mais do que uma sombra, uma figuração, um mistério de fé, nos conduzamos
sempre humanamente e pelo sentido natural das coisas, que é apenas um enigma? Caímos
sempre na armadilha, como os insensatos, em vez de levantar os olhos e voltar ao principio, à
fonte, à origem das coisas onde tudo é sobrenatural, divino, santificante, onde tudo é parte da
plenitude de Jesus Cristo, onde tudo é pedra da Jerusalém celeste, onde tudo entra e faz entrar
nesse edifício maravilhoso...
A fé é a luz do tempo...; ela levanta o véu e descobre a verdade eterna (2Cor 3,16). Quando
uma alma recebeu esta inteligência da fé, Deus fala-lhe através de todas as criaturas; o
universo é para ela uma escrita viva que o dedo de Deus escreve incessantemente em frente
dos seus olhos. A história de todos os momentos que passam é uma história santa; os Livros
sagrados que o Espírito de Deus ditou são para ela ap enas o começo das instruções divinas.
Tudo o que acontece e que não está escrito é para ela a continuação da escritura. O que está
escrito é o comentário do que não está lá. A fé julga um pelo outro.
Concílio Vaticano II
Decreto sobre o Ecumenismo, 4
Discernir os sinais dos tempos
Hoje, em muitas partes do mundo, mediante o sopro da graça do Espírito Santo, empreendemse, pela oração, pela palavra e pela acção, muitas tentativas de aproximação daquela plenitude
de unidade que Jesus Cristo quis. Este sagrado Concilio, portanto, exorta todos os fiéis a que,
reconhecendo os sinais dos tempos, solicitamente participem do trabalho ecuménico.
Por «movimento ecuménico» entendem-se as actividades e iniciativas, que são suscitadas e
ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido
de favorecer a unidade dos cristãos. Tais são: primeiro, todos os esforços para eliminar
palavras, juízos e acções que, segundo a equidade e a verdade, não correspondem à condição
dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles; depois, o
«diálogo» estabelecido entre peritos competentes, em reuniões de cristãos das diversas Igrejas
em Comunidades, organizadas em espírito religioso, em que cada qual explica mais
profundamente a doutrina da sua Comunhão e apresenta com clareza as suas características.
Com este diálogo, todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um apreço mais justo
da doutrina e da vida de cada Comunhão. Então estas Comunhões conseguem também uma
mais ampla colaboração em certas obrigações que a consciência cristã exige em vista do bem
comum. E onde for possível, reúnem-se em oração unânime. Enfim, todos examinam a sua
fidelidade à vontade de Cristo acerca da Igreja e, na medida da necessidade, levam
vigorosamente por diante o trabalho de renovação e de reforma.
Desde que os fiéis da Igreja Católica prudente e pacientemente trabalhem sob a vigilância dos
pastores, tudo isto contribuirá para promover a equidade e a verdade, a concórdia e a
colaboração, o espírito fraterno e a união. Assim, palmilhando este caminho, superando pouco
a pouco os obstáculos que impedem a perfeita comunhão eclesiástica, todos os cristãos se
congreguem numa única celebração da Eucaristia e na unidade de uma única Igreja.
João Paulo II
Carta Apostólica Novo millenio ineunte, 6/01/2001, § 55-56 (trad. © copyright Libreria
Editrice Vaticana)
Saber julgar os sinais dos tempos
O diálogo interreligioso deve continuar. Na condição de um pluralismo cultural e religioso
mais acentuado, como se prevê na sociedade do novo milénio, isso é importante até para criar
uma segura premissa de paz e afastar o espectro funesto das guerras de religião que já
cobriram de sangue muitos períodos na história da humanidade. O nome do único Deus deve
tornar-se cada vez mais aquilo que é: um nome de paz, um imperativo de paz.
Mas, o diálogo não pode ser fundado sobre o indiferentismo religioso, e nós, cristãos, temos a
obrigação de realizá-lo, dando testemunho completo da esperança que há em nós (cf. 1 Ped
3,15)... Por outro lado, o dever missionário não nos impede de entrar no diálogo intimamente
dispostos a ouvir. Com efeito, sabemos que a própria Igreja, diante do mistério de graça
infinitamente rico de dimensões e consequências para a vida e a história do homem, jamais
cessará de indagar, podendo contar com a ajuda do Paráclito, o Espírito da Verdade (cf. Jo
14,17), ao Qual compete precisamente a missão de guiá-la para a «verdade total» (Jo 16,13).
Este princípio está na base quer do inexaurível aprofundamento teológico da verdade cristã,
quer do diálogo cristão com as filosofias, as culturas, as religiões. Não é raro o Espírito de
Deus, que «sopra onde quer» (Jo 3,8), suscitar na experiência humana universal, não obstante
as suas múltiplas contradições, sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de
Cristo a compreenderem mais profundamente a mensagem de que são portadores. Não foi
porventura com esta abertura humilde e confiante que o Concílio Vaticano II se empenhou a
ler «os sinais dos tempos» (Gaudium et spes, §4)? Apesar de ter efectuado um discernimento
diligente e cuidadoso para identificar os «verdadeiros sinais da presença ou da vontade de
Deus» (§11), a Igreja reconhece que não se limitou a dar, mas também «recebeu da história e
evolução do género humano» (§44). Esta atitude feita simultaneamente de abertura e de atento
discernimento, iniciou-a o Concílio também com as outras religiões. Compete-nos a nós
seguir fielmente o seu ensinamento pelo sulco aberto.
S. Isaac o Sírio (sec. 7), monge em Ninive, perto de Mossoul no actual Iraque
Discursos ascéticos, 1ª série, nº 2
“Vim trazer um fogo à terra”
Violenta-te (cf. Mt 11,12), esforça-te por imitar a humildade de Cristo, a fim de que se
inflame sempre mais o fogo que ele lançou sobre ti, esse fogo pelo qual são consumidos todos
os apelos deste mundo que destroem o homem novo e que desonram as moradas do Senhor
santo e poderoso. Porque eu afirmo com S. Paulo que “nós somos templos de Deus” (2Cor
6,16). Purifiquemos pois o seu templo, “como ele próprio é puro” (1Jo 3,3), a fim de que ele
deseje aí permanecer; santifiquemo-lo, como ele próprio é santo (1Ped 1,16); ornemo-lo de
todas as obras boas e dignas.
Enchamos o templo com o descanso da sua vontade, como com um perfume, pela oração
pura, a oração do coração, a qual é impossível de se adquirir entregando-se aos apelos
contínuos deste mundo. Assim, a nuvem da sua glória cobrirá a tua alma, e a luz da sua
grandeza brilhará em teu coração (Rom 8,10). Todos os que habitam na casa de Deus serão
repletos de alegria e regozijar-se-ão. Mas os insolentes e os ignóbeis desaparecer ão sob a
chama do Espírito Santo.
Dionísio o Cartuxo (1402-1471), monge
Comentário ao Evangelho de Lucas, 12, 72-74
Acender no coração dos homens o fogo do amor de Deus
“Vim trazer fogo à terra”: desci do alto dos céus e, pelo mistério da Minha encarnação,
manifestei-Me aos homens para acender no coração humano o fogo do amor divino. “E que
quero se não que arda” – isto é, que pegue e se torne uma chama activada pelo Espírito Santo,
que faça brilhar actos de bondade!
Cristo anuncia a seguir que terá de morrer na cruz para que o fogo deste amor incendeie a
humanidade. Foi, efectivamente, a santíssima Paixão de Cristo que valeu à humanidade dom
tão grande, e é sobretudo a memória da Sua Paixão que acende uma chama nos corações fiéis.
“Tenho de receber um baptismo”; ou seja: compete-Me e está-Me reservado, por especial
disposição de Deus, receber um baptismo de sangue, banhar-me e como que mergulhar nas
águas do Meu sangue derramado na cruz, a fim de resgatar o mundo inteiro. “E que angústia é
a Minha até que tal se cumpra” – por outras palavras, até que Minha Paixão seja completa, e
que Eu possa dizer: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30).
São Siluane (1886-1938), monge ortodoxo
Escritos
«Vim trazer um fogo à terra»
Ó humildade de Cristo, eu conheci-te sim, mas não te posso atingir. Os teus frutos são
saborosos e doces porque não são deste mundo. O Senhor veio à terra para nos dar o fogo da
sua graça no Espírito Santo. O humilde possui esse fogo e o Senhor concede-lhe essa graça.
Mas numa alma desencorajada e aviltada, esse fogo não pode acender-se.
Todos os céus se maravilham com o mistério da Encarnação: a forma como Ele, o Criador de
tudo, desceu à terra para resgatar os pecadores!
O orgulho e a vaidade impedem muitas vezes a alma de encontrar o caminho da fé. Eis um
conselho para quem duvida e não crê: que ele reze assim: “Senhor Deus, se Tu existes,
ilumina-me!” Por causa do seu humilde desejo e da prontidão em servi-lo, o Senhor iluminálo-á e ele sentirá na sua alma a presença de Deus; a sua alma saberá que Deus lhe perdoou e
que a ama. Aquele que permanecer fiel à oração será iluminado pelo Senhor.
Santa Faustina Kowalska (1905-1938), religiosa
Diário
«Lançar um fogo sobre a terra»: o dom do Espírito Santo (Act 2,3)
Ó Espírito de Deus, Espírito de Amor e de Misericórdia,
Que derramas no meu coração o bálsamo da confiança,
A tua graça confirma a minha alma no bem,
Dando-lhe uma força invencível; a constância!
Ó Espírito de Deus, Espírito de Paz e de Alegria,
Que reconfortas meu coração sequioso,
Derrama nele a fonte viva do amor divino
E torna-o intrépido na luta.
Ó Espírito de Deus, o mais amável hóspede da minha alma,
Desejo no mais íntimo ser-te fiel,
Tanto nos dias de alegria como nas horas de sofrimento;
Desejo, Espírito de Deus, viver sempre na tua presença.
Ó Espírito de Deus, que inundas o meu ser
E me fazes conhecer a tua vida divina e trinitária,
Tu me inicias em teu Ser divino;
Unida assim a Ti, tenho a vida eterna.
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Evangelho segundo S. Lucas 12,1-7.