Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 26
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Profª. Drª. Helena Elias Pinto
Prof. Dr. Manoel Messias Peixinho
DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS II
2014
2014
Curitiba
Curitiba
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D597
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Direitos sociais e políticas públicas II
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Helena Elias Pinto/Manoel Messias
Peixinho.
Título independente - Curitiba - PR . : vol.26 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
494p. :
ISBN 978-85-8433-014-0
1. Saúde. 2. Educação. 3. Previdência - trabalho.
I. Título.
CDD 341.2722
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
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Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
14
A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O PLANEJAMENTO
URBANÍSTICO PARTICIPATIVO PLURAL (Frederico Garcia Guimarães) ...................................................
19
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
21
A DIVERSIDADE .........................................................................................................................................
22
O PLANEJAMENTO ....................................................................................................................................
29
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
33
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
36
A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO
FUNDAMENTAL SOCIAL (Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin) ................................................
38
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
39
A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO .........................................................................................................
40
O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR ......................................................................................
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
59
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
61
A TEORIA GERAL DO GARANTISMO E A ESTRITA LEGALIDADE APLICADA A DIREITOS SOCIAIS: O
EXEMPLO DA LEI 12.010/2009 (Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto) .............................................
63
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
64
A TEORIA GERAL DO GARANTISMO .........................................................................................................
65
AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO JURÍDICO EM UM MODELO
DE POSITIVISMO CLÁSSICO ......................................................................................................................
70
A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA
ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL .................................
78
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
85
A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE (Marcos
de Oliveira Vasconcelos Júnior) ...................................................................................................................
86
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
86
TERCEIRIZAÇÃO ........................................................................................................................................
87
TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ...............................................................
88
TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE ..............................................................................
91
TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS ....................................
96
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
99
REFERÊNCIA ..............................................................................................................................................
100
CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS FATORES QUE
COMPROMETEM A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS E BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS (Raul Lopes de
Araújo Neto) ...............................................................................................................................................
102
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
103
MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO REGULADOR ...................................
103
A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ...........................................................................
109
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
115
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
116
DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: A ESCASSEZ DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS E A VIOLAÇÃO DO
DIREITO À EDUCAÇÃO (Ivan Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto) ...............................................................
119
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
120
ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL ...................................................................
121
A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO TEXTO CONSTITUCIONAL DE
1988 ............................................................................................................................................................
122
O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ...............................
125
O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL ...............................
126
O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL ..........................................................................................
126
DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS? ...............................
127
DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM FACE DO
PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL .....................................................................................................
128
DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À OBRIGATORIEDADE DE
VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................
132
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
135
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
135
DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NO CASO BRASILEIRO (Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara Guasque) .....................................................
137
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
138
AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................................
139
OS DIREITOS SOCIAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................................................
141
OS DIREITOS SOCIAIS ................................................................................................................................
144
O DIREITO SOCIAL À SAÚDE .....................................................................................................................
147
COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS QUANTO À SAÚDE .................................................................
151
O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL FRENTE À EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO
ESTATAL ......................................................................................................................................................
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
160
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
161
EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO DO MEIO
AMBIENTE (Andreza de Souza Toledo) ......................................................................................................
164
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
165
EDUCAÇÃO AMBIENTAL ...........................................................................................................................
166
OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL DE 1988 ...................................................................................................................................
171
EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999 ............................................................................................................
173
EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996 .......................................
175
O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL, INSTRUMENTO DE DEFESA
E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL ...................................................................................................................
178
POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ......................................................................................
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
183
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
185
EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: CONSEQUÊNCIAS
(Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck) .............................................................................
188
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
189
OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL POR OFENSA À DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA .....................................................................................................................................
190
EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS ....................................................................................
197
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ...................................................................................................
199
QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO ...............................................
203
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
204
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
205
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA
LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS NO TEMPO (Hertha Urquiza Baracho e
Sulamita Escorião da Nobrega) ...................................................................................................................
208
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
209
CONSTITUIÇÃO, PROPRIEDADE, FUNÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO ...........................................
209
CONTORNOS CONCEITUAIS DAS FUNÇÕES DOS TRIBUTOS ..................................................................
212
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO IPTU NO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL ..........................................
214
DEFINIÇÃO DE PROGRESSIVIDADE ..........................................................................................................
216
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
222
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
222
O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO (João Emilio de Assis Reis) .....................................................................................................
225
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
225
DIREITO À MORADIA: NOTAS HISTÓRICAS ..............................................................................................
226
OS DIREITOS SOCIAIS NO TEXTO CONSTITUCIONAL ..............................................................................
232
A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO E A OBRIGAÇÃO
DO ESTADO BRASILEIRO CONCERNENTES AO DIREITO DE MORADIA ..................................................
235
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
239
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
240
O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS: A (IN)EFETIVIDADE
DA PARTICIPAÇÃO PREVISTA PELA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE 2014 (Alex
Feitosa de Oliveira) .....................................................................................................................................
242
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
243
LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR .........................................................
244
OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA ........................................................
249
A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL .
252
O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ...................
255
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
257
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
259
O DIREITO À SAÚDE: EQUIDADE VERSUS ALTA COMPLEXIDADE (Sandra Maciel-Lima e Miguel Kfouri
Neto) ..........................................................................................................................................................
261
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
262
DESIGUALDADE VERSUS EQUIDADE .......................................................................................................
264
SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE .....................................................................
267
A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE .................................................
277
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
284
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
285
O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE E A RESPONSABILIDADE DO CIDADÃO (Rogério Gesta
Leal e Daniela Menengoti Ribeiro) ..............................................................................................................
287
OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE NO BRASIL ..........................
288
O DIREITO À SAÚDE NA DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO ...................
298
A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DE UM CASO CONCRETO ....
300
REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO .............................................................................................
304
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
309
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
310
O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL (Rogério
Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo) ..............................................................................................
313
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
315
EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA ....................................................................................................
316
POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL .................................................................................
319
VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA ................................................................................................................
325
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
330
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
332
O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL É COMPATÍVEL COM A GLOBALIZAÇÃO?! (José Vagner de Farias)
336
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
337
LIBERALISMO, SOCIALISMO E AS ORIGENS DO “ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL” ...............................
338
NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO ......................................................................................................
345
A CRISE CAPITALISTA DO “ESTADO DO BEM ESTAR SOCIAL”, GLOBALIZAÇÃO E REFORMAS ..................
349
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
352
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
353
O SISTEMA JUDICIAL DE PROTEÇÃO À CULTURA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO, POLÍTICAS
PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO PARA A CULTURA: ASPECTOS GERAIS DE UM SISTEMA JURÍDICO
CULTURAL (Gustavo Rosa Fontes) ..............................................................................................................
356
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
358
O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA JUDICIAL ................................
359
POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS .........................................................................................
371
A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO, PROMOÇÃO E INCENTIVO À
CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 71/2012 ..........................................................................
374
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
378
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
380
O TRABALHO PENOSO DOS BANCÁRIOS: ADOECIMENTO, GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS
RELAÇÕES LABORAIS (José Ricardo Ceatano Costa e Liane Francisca Hüning Birnfeld) ...............................
383
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
384
O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM TODO ......................................
385
GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL .................................................................................................
387
LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE TRABALHO PENOSO ..............................
391
A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO .......................................................
394
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
398
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
399
OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E O PROCESSO DE INCLUSÃO
ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA (Érica
Fernandes Teixeira) .....................................................................................................................................
402
OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E A INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL ......
403
O PAPEL DAS POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA .......................................................................
409
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO .......................................................
421
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
426
REFERENCIAS ............................................................................................................................................
428
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL: UMA VERTENTE PARA
NOVAS PERSPECTIVAS (Marco Antonio Lorga e Co-autoria Prof. Dr. Paulo Ricardo Opuszka) .....................
432
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
433
A MICRO E PEQUENA EMPRESA NA ORDEM ECONOMICA BRASILEIRA ...............................................
434
A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL 2008-2009 ............................................................................................
451
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
454
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
457
POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO EM BUSCA DA EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE
À SOCIEDADE DO RISCO (Lucas Antônio Bueno) ....................................................................................
458
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
461
A SOCIEDADE DE RISCO E A EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ....................................................
462
A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A NOVA INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONAL:
EM BUSCA DOS OBJETIVOS SUSTENTÁVEIS DA REPÚBLICA ..................................................................
470
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
480
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
481
REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIA: A IMPLEMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS
CAMPANHAS ELEITORAIS COMO GARANTIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA
(Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle Santos Sousa) ..................................................................
483
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
484
BREVE PANORAMA DAS TENTATIVAS DE REFORMA POLÍTICA NO BRASIL ...........................................
485
FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS E SUAS IMPLICAÇÕES ...............................
488
PRINCÍPIO DA ISONOMIA COMO PILASTRA DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DOS PLEITOS
ELEITORAIS ...............................................................................................................................................
495
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
499
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
501
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direitos Sociais e Políticas Públicas II, do
XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito
(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias
29 de maio e 1º de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente,
o
INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Apresentação
O XXII Encontro Nacional do CONPEDI teve como tema “Os 25 Anos da Constituição
Cidadã: os atores sociais e concretização sustentável dos objetivos da República”. O tema
invoca grandes debates e relevantes questões para o universo acadêmico. O Grupo de Trabalho
“Direitos Sociais e políticas públicas II” trouxe sua contribuição, abordando uma gama de
questões interessantes e de grande atualidade, que podem ser apresentados em três eixos
temáticos: (1) Saúde, educação, cultura, trabalho e previdência social; (2) Função social da
propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente e (3) Democracia,
participação popular e políticas públicas.
Participaram desses debates, apresentando trabalhos e defendendo seus pontos de vista,
pesquisadores de importantes e renomadas instituições, das mais diversas localidades do
Brasil: PUC/MG,
PUC/SP,
UFPI,
UNICURITIBA,
UNIBRASIL,
UNIVALI,
UFSC,
CESUMAR, UNISC, PUC/PR, UCS, UNOESC, UNIPÊ, FUIT, UNIC, FURG, UEA,
UNIFOR e UFC.
No primeiro eixo temático, abrangendo questões relativas à saúde, educação, cultura,
trabalho e previdência social, foram apresentados diversos estudos que enfocam aspectos
relevantes desses temas. O direito saúde, analisado a partir da perspectiva dos direitos
fundamentais no direito brasileiro, é objeto de estudo de Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara
Guasque. Miguel Kfouri Neto e Sandra Maciel-Lima abordam a equidade no contexto da
gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade.
“O direito fundamental social à saúde e a responsabilidade do cidadão”, de Rogério
Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro questiona sobre a parcela de responsabilidade que “o
cidadão tem em face do direito à saúde, buscando defender, a partir da análise de caso
concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse exame o próprio indivíduo, a
família e as instituições privadas”.
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O debate sobre a terceirização na Administração Pública e os serviços públicos de
saúde, com ênfase na delegação por intermédio de organizações sociais, aparece como foco de
atenção do texto apresentado por Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior.
Outro tema que mereceu destaque no contexto desse primeiro eixo temático é a questão
da educação. Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin abordam a questão da educação
como direito fundamental social da pessoa em condição especial de desenvolvimento. Ivan
Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto tratam do direito à educação infantil e sua violação em
decorrência da escassez de creches e pré-escolas.
Gustavo Rosa Fontes lança luzes sobre o fato de ter sido acrescentado, pela Emenda
Constitucional nº 71/2012, o artigo 216-A à Constituição Federal, introduzindo em nível
constitucional o Sistema Nacional de Cultura. Partindo da premissa de que o direito à cultura
exige a elaboração de políticas culturais voltadas à proteção, promoção e universalização do
acesso aos bens e serviços culturais, aborda os diversos mecanismos e programas próprios
desenvolvidos com esse objetivo.
Na vertente trabalho e previdência social, são apresentados estudos sobre inclusão
social e a importância das políticas públicas de valorização do salário mínimo e de
transferência de renda”, de autoria de Érica Fernandes Teixeira, e sobre o trabalho penoso dos
bancários, resultando em adoecimento, gravosidade e desequilíbrio nas relações laborais, por
José Ricardo Ceatano Costa1 e Liane Francisca Hüning Birnfeld.
Raul Lopes de Araújo Neto enfrenta o desafiador tema da crise da previdência social
brasileira e dos fatores que comprometem a prestação
dos serviços e benefícios
previdenciários.
O bloco de textos deste primeiro eixo temático se completa com o estudo feito por
Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck, que abordam os embaraços
administrativos arbitrários da previdência social e suas consequências.
No segundo eixo temático, foram debatidos temas relativos à Função social da
propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente.
15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
No trabalho intitulado “O direito à moradia como obrigação estatal no contexto
constitucional brasileiro”, João Emilio de Assis compartilha suas reflexões sobre a evolução
dos direitos fundamentais sociais, tendo como foco especial o direito constitucional à moradia.
A questão é, ainda, abordada por Rogério Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo, que
destacam a atualidade dessa temática, cada vez mais mencionada nas discussões jurídicas e
sociais no país.
Da moradia o debate se amplia para a cidade, e o foco passa a ser o estudo das questões
que envolvem o planejamento urbanístico participativo plural, no trabalho apresentado por
Frederico Garcia Guimarães. Reportando-se aos mecanismos definidos no Estatuto da Cidade,
defende a importância de o planejamento urbanístico ser elaborado de forma democrática, com
a participação social na sua construção.
Dentre os diversos mecanismos que o Estatuto da Cidade prevê para exigir o
cumprimento da função da propriedade urbana, está a progressividade das alíquotas do IPTU,
cujos requisitos para implementação são objeto de estudo elaborado por Hertha Urquiza
Baracho e Sulamita Escorião da Nobrega.
Andreza de Souza Toledo completa o bloco de textos desse segundo eixo temático,
apresentando um estudo que relaciona o tema da preservação do meio ambiente com a
educação, destacando que a educação ambiental é um instrumento que pode e deve ser
utilizado como instrumento de política pública para se alcançar o máximo de efetividade dos
preceitos legais e constitucionais que disciplinam a tutela do meio ambiente.
No terceiro eixo temático, os trabalhos versaram em torno das questões sobre
Democracia, participação popular e políticas públicas.
Enfrentando debates atuais e de máxima relevância nesses tempos de fortes demandas
por mudanças no cenário das velhas estruturas políticas, o tema da reforma política e sua
relação com a democracia é abordado por Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle
Santos Sousa, que defendem a implementação do financiamento público das campanhas
eleitorais como garantia do princípio constitucional da isonomia.
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A participação popular é tema escolhido por Alex Feitosa de Oliveira, com foco na
questão da (in)efetividade da participação prevista pela Lei de Responsabilidade Fiscal na
implementação de políticas públicas de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol de
2014.
Com foco nas políticas públicas para as Micro e Pequenas Empresas, Marco Antonio
Lorga e Paulo Ricardo Opuszka destacam que tais entes “possuem no contexto econômico e
social brasileiro uma posição de destaque justificado pela participação do número de pessoas e
empreendimentos envolvidos”. Apresentam, assim, um estudo que tem por objetivo demonstrar
uma visão ampla desse segmento no Brasil, por intermédio de dados econômicos e da
abordagem das políticas públicas para o setor, com vistas ao pleno desenvolvimento
econômico e social brasileiro.
Partindo da realidade brasileira para um contexto mais amplo, merecem atenta leitura os
estudos feitos por José Vagner de Farias (“O Estado de bem estar social é compatível com a
globalização?!”) e Lucas Antônio Bueno (“Por uma nova interpretação em busca da
efetividade das políticas públicas frente à sociedade de risco”), que enfrentam o debate sobre
esses grandes dilemas da contemporaneidade.
Por fim, o interessante trabalho de Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto, sobre a
teoria geral do garantismo e a estrita legalidade aplicada a direitos sociais, com foco nas
inovações trazidas pela Lei 12.010/2009, fecha o conjunto de textos que compõem o terceiro
eixo.
Os trabalhos apresentados demonstram que o CONPEDI é um espaço importante para o
debate acadêmico que envolve pesquisadores de todas as idades e de todas as formações:
graduação, mestrandos, mestres, doutorando e doutores. A diversificação dos Grupos de
Trabalho permite o compartilhamento do conhecimento por meio da exposição do que os
pesquisadores estão fazendo em suas diversas áreas, mas, também, há a oportunidade de
debates ricos em que correm a disseminação de teses jurídicas, políticas, sociais, econômicas
que produzem convergências e divergências essenciais a um debate científico em que o
pensamento dialético se monstra imprescindível.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Podemos constar nos trabalhos apresentados e nos debates que se seguiam
preocupações que transcendiam as meras especulações positivistas, simplistas e racionalistas.
Antes, os trabalhos de pesquisa foram apresentados com espírito crítico e com a preocupação
de ofertar proposições transformadoras não somente do direito, mas do Estado e da sociedade.
É verdade que O Grupo de Trabalho “Direitos Sociais e políticas públicas II” favorece, de
plano, a efervescência das ideias porque reúne num mesmo eixo metodológico os direitos
sociais previstos constitucionalmente como cláusulas pétreas de todos os Estados Sociais de
Direito, disso se extraindo o dever de concretização destes direitos sociais por meio de políticas
públicas em que a máquina estatal é a principal protagonista, além, é claro de outros sujeitos
institucionais,
a exemplo
do
Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública,
Advocacia, dentre outros, sem deixar de mencionar um dado importante, que é controle social
feito pela mídia e pela própria população.
Acreditamos que os trabalhos que ora são publicados contribuirão para o fomento do
saber científico e para o aprimoramento dos debates na academia.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professor Doutor Manoel Messias Peixinho – UCAM
Professora Doutora Helena Elias Pinto – UFF
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO:
Uma contribuição para o Planejamento Urbanístico Participativo Plural
THE DIVERSITY E THE PLANNING:
A contribution to the Participatory Urban Planning Plural
Frederico Garcia Guimarães1
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Diversidade: 2.1 A diversidade de
Gilles Deleuze; 2.2 O diverso e a heterogeneidade do Novo
Constitucionalismo Latino Americano; 2.3 A pluralidade e
participação. 3 O planejamento: 3.1 O planejamento como função
do Estado e da Administração Pública; 3.2 O planejamento
urbanístico participativo e plural. 4 Conclusão.
Resumo: A diversidade é pontuada por Gilles Deleuze ao apresentar a ideia de Lucrécio que
sustenta como ponto central do Naturalismo. A partir dessa visão filosófica, debruça-se sobre
a convivência do diferente no Estado Democrático de Direito, que com a nova visão do Novo
Constitucionalismo Latino Americano apresenta-se a ideia da heterogeneidade. A
Constituição pátria assegura essa diversidade a partir do momento que consagra como uma
das bases do Estado o seu caráter plural. Este mesmo Estado ao instituir normas de conduta o
deve fazer a partir de um planejamento, no qual se constrói conceitos e diretrizes que irão
afirmar acerca de uma determinada política pública. No âmbito urbano, garantido está a
participação popular, que se assenta em norma constitucional e no Estatuto da Cidade. Este
instrumento – o planejamento – construído a partir dos próprios atores sociais diversos visa
concretizar direitos fundamentais.
Palavras-chaves:
diversidade; planejamento;
urbanístico;
democracia;
participativo;
pluralidade
1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; Pesquisador extensionista do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC/Minas.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Abstract: Diversity is punctuated by Gilles Deleuze to present the idea of Lucretius argues
that as the centerpiece of Naturalism. From this philosophical view, focuses on the
coexistence of different in a democratic state, that with the new vision of the New Latin
American Constitutionalism presents the idea of heterogeneity. The Constitution ensures that
diversity homeland as soon as it enshrines one of the foundations of your State plural
character. This same rule to establish standards of conduct should do it from a planning, in
which to build concepts and guidelines that will assert about a specific public policy. In urban
areas, people's participation is guaranteed, which is based on constitutional law and the City
Statute. This instrument - planning - built from the various social actors themselves intended
to embody fundamental rights.
Keywords: diversity; planning; urban; democracy; participatory; plurality
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
1. INTRODUÇÃO
A discussão sobre o diverso ou o diferente, diante do reconhecimento de direitos do
denominados excluídos, toma hoje contorno em diversas discussões doutrinárias e
jurisprudenciais.
A ideia do diferente já estava presente em Lucrécio quando este define o Naturalismo
– um dos vieses da filosofia – o que foi retomada pelo na segunda metade do Século XX em
diversos dos seus trabalhos. Aqui, o texto se debruça sobre um Apenso apresentado por este
filósofo francês em que ele reafirma a ideia do diverso a partir do que Lucrécio já havia
afirmando.
A partir da leitura deste Apenso, reporta-se a afirmação do diferente tendo como
perspectiva a constatação de uma sociedade heterogênea, diferente daquela definida como una
quando surgiu o Estado Moderno Europeu no final do Século XVIII (um único povo, uma
única língua, um único exército, um único direito). O Novo Constitucionalismo Latino
Americano veio então apresentar um novo modelo de Estado Constitucional que se
fundamenta justamente na concepção que não á essa unidade em uma determinada sociedade,
que é constituída de diversas camadas e extratos, ao qual são dirigidas as normas legais.
Assim, existentes as novas subjetividades.
No âmbito constitucional brasileiro um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito que o define é a pluralidade política (art. 1º, inciso V, da Constituição da República de
1988). Esse pluralismo visa justamente garantir que este mesmo Estado deva atender a
diversidade de uma sociedade e que deve este mesmo Estado construir todo o seu sistema
jurídico partindo-se dessa perspectiva na afirmação dos direitos fundamentais que também
estão garantidos no âmbito da Constituição brasileira.
Com isso, na segunda metade o trabalho, traz-se o instituto do Planejamento que é
uma das funções da Administração Pública que o meio dos meios de exercício do próprio
Estado. O planejamento que define políticas, diretrizes e objetivos, é consubstanciado em uma
norma legal que vem então reger determinada política pública direcionada justamente para a
garantia de concretização de direitos fundamentais.
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Na construção da normatização urbana, o planejamento se tornou condição
indispensável (art. 2º, II, da Lei 10.257/01) para a formatação de uma política pública da
cidade que se expressa seja através do próprio Plano Diretor (art. 182, parágrafo único da
Constituição da República de 1988 e art. 40 e seguintes da Lei 10.257/01), seja para outras
formas de programa ou planos de natureza urbanística (art. 2º, inciso II, da Lei 10.257/01,
última parte).
O planejamento urbanístico deve ser elaborado de forma democrática o que se impõe
a participação social na sua construção, que se revela através de mecanismos definidos pelo
Estatuto da Cidade. Sendo, então, esta participação popular uma condição para a que se
garanta um conteúdo democrático do planejamento urbanístico, ela deva o ser de forma plural,
o que se dá pelo respeito às concepções histórico, culturais, econômicas dos atores sociais que
se apresentam de forma diversa, diferente. Garantindo que a cidade, bem público, bem de
todos, res publica, deva atender a sua função o bem estar de seus viventes (art. 182, da
Constituição da República de 1988) e garantindo o concretização de direitos fundamentais.
2
A DIVERSIDADE
2.1. A diversidade de Gilless Deleuze.
Gilles Deleuze, na obra Lógica do Sentido, apresenta a visão do simulacro tanto na
perspectiva de Platão quanto de Lucrécio, em dois apêndices diferentes, sendo que aqui se
tratará do segundo.
O pensamento de Lucrécio é trazido por Deleuze a partir da definição do que seja
simulacro, de como ele se manifesta e quais as suas formas, tudo para identificar o falso
infinito e o verdadeiro infinito. Assim, Lucrécio, depois de Epicuro, “soube determinar o
objeto especulativo e prático da filosofia como ‘naturalismo’” (DELEUZE, 1998, p. 272).
As perspectivas de Lucrécio e Epicuro, mais aquele do que este, acerca do que seja o
Naturalismo, parte de uma análise do movimento dos átomos (clinamem) desenvolvido por
aquele primeiro filósofo. A partir daí, identificam o que seria as formas de simulacros - falsos
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
infinitos - presentes na vida do homem, que ao mesmo tempo em que lhe trás prazer pode lhe
trazer dor. (DELEUZE, 1998, p. 280).
Os simulacros apresentados são três, sendo o primeiro e o segundo se revelam pelos
próprios sentidos. Já o terceiro é que merece destaque, denominado fantasma, pois, sendo
independe do próprio objeto, possuem extrema mobilidade, tomando, inclusive, o próprio
lugar do objeto. Este simulacro têm três variáveis: teológica, onírica e erótica (DELEUZE,
1998, p.280/282).
Partindo-se do reconhecimento deste terceiro simulacro, o autor, referindo-se a
Lucrécio apresenta o Naturalismo como sendo aquele que “irá denunciar a ilusão, o falso
infinito, o infinito da religião e todos os mitos teológicos-eróticos-oníricos em que se
exprime” (DELEUZE, 1998, p. 285).
Traz, portanto, a concepção de que o Naturalismo poderá identificar o verdadeiro
infinito, pois:
A Natureza não se opõe ao costume, pois há costumes naturais. A Natureza não se
opõe à convenção: que o direito dependa de convenções não exclui a existência de
um direito natural, isto é, de uma função natural do direito que mede a ilegitimidade
dos desejos à perturbação de alma de que se fazem acompanhar. A Natureza não se
opõe à invenção, mas sendo as invenções senão descobertas da própria Natureza.
Mas a Natureza se opõe ao mito. Ao descrever a história da humanidade, Lucrécio
nos apresenta uma espécie de lei de compensação: a infelicidade do homem nos
provém de seus costumes, de suas convenções, de suas invenções, nem de sua
indústria, mas da parte de mito que ai se mistura e do falto infinito que introduz em
seus sentimentos como em suas obras. Às origens da linguagem, à descoberta do
fogo e dos primeiros metais se juntam a realeza, a riqueza e a propriedade, míticas
em seu princípio; às convenções do direito e da justiça, a crença dos deuses: ao uso
do bronze e do ferro, o desenvolvimento da guerra; às invenções da arte e da
indústria, o luxo e o frenesi. Os acontecimentos que fazem a infelicidade da
humanidade não são separáveis dos mitos que os tornam possíveis. Distinguir do
homem o que provém do mito e o que provém da Natureza, e, na própria Natureza,
distinguir o que é verdadeiramente infinito e o que não o é: tal é objeto prático e
especulativo do Naturismo. (DELEUZE, 1998, p. 285)
A partir disso, apresenta-se o Naturalismo, por meio da Natureza, que traz a
concepção do que é individual, do que é múltiplo, do que é diferente.
O Naturalismo para Deleuze, em referência a Lucrécio, seria a possibilidade de que
na Natureza os seus signos estariam desprovidos dos simulacros/fantasmas do mito, que
cunham nas coisas/comportamentos um viés que pode levar a desvirtualização do que seria a
própria coisa/comportamento.
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Seria, então, o Naturalismo aquele que libertaria do homem das falsas ilusões, isto a
considerar que esta filosofia Natural possui em seu valor o reconhecimento do indivíduo, da
multiplicidade e principalmente do diferente:
Em nosso mundo a diversidade natural aparece sob três aspectos que se recortam: a
diversidade natural das espécies, a diversidade dos indivíduos que são membros de
uma mesma espécie, a diversidade das partes que compõe um indivíduo.
(DEULEZE, 1998, p. 273)
Cunha-se o reconhecimento do valor do Naturalismo no reconhecimento do
indivíduo e de sua diferença, reconhecendo-se a heterogeneidade.
Deleuze na maioria das suas obras baseou-se na identificação do que seja o
indivíduo, na diferença contida no próprio homem, na diferença deste com o seu entorno,
assim como deste entorno em relação ao próprio homem. Pautou ainda em diversos trabalhos
sobre o que seria a diversidade, a multiplicidade, mas repita-se sob a perspectiva do que da
diferença.2
Considera-se, assim, para este trabalho que o Naturalismo de Lucrécio afirmado por
Deleuze trás em si a concepção da diferença, sob o enfoque do indivíduo em seu contexto
social, afirmando a multiplicidade, a heterogeneidade, a pluralidade.
2.2. O diverso e o heterogêneo no Novo Constitucionalismo Latino Americano.
Ao se construir e afirmar os primeiros Estados Nacionais na Europa na era moderna,
a linearidade de uma sociedade se impunha para afirmação desde próprio Estado e para
afirmação e concretização do próprio capitalismo. Criou-se um Estado em que se reconhecia
um povo homogêneo, uma única língua, em um único território, uma única soberania. Tem-se
o Estado Nação, seguindo um padrão hegemônico e uniformizador. (MAGALHÃES, 2012).
O Estado de Direito foi construído com fundamento em uma Constituição de
concepção uníssona de um povo igual, sem qualquer distinção, firmando-se em um povo
homogêneo.
2
Destaca-se a obra Diferença e Repetição de 1968, como um marco neste reconhecimento da diferença: Rio de
Janeiro: Graal, 1988,
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Sampaio (2004, p. 45), citando Cícero3, apresenta:
(...) O povo, por seu turno, era um todo homogêneo em cultura, língua, história e
tradições, unido por interesses comuns, que, seguindo às distantes lições de Cícero,
compunha um coetum iuris consensu ET utilitatis communione sociatum, não
somente omnem coetum multdidudinis.
Contudo, um direito linear e plano sob a perspectiva a de uma homogeneidade do
próprio povo não mais corresponde ao que hoje se apresenta. A complexidade social é fato
inconteste no mundo pós-moderno ou contemporâneo, sendo que este variado composto de
povos, etnias, culturas, condições sociais, concepções de vida, caracterizam um mundo
heterogêneo.
A monocultural teoria política importada garantiu a intensa disparidade entre
constituição e realidade, garantindo direitos a uma ínfima parcela da população e
anulando a outra. O que se vislumbra no que é denominado de ‘velho
constitucionalismo’ era uma retórica ideológica. (NOVAIS, 2012)
Reconhecida esta diversidade ou mesmo heterogeneidade de um povo, necessário o
reconhecimento pela Constituição deste fato, o que importa, portanto, no reconhecimento
também pelo Estado do povo que o constitui.
O novo constitucionalismo impõe-se nos dias atuais. Este movimento constitucional,
de uma forma, geral, é fenômeno reconhecido, baseando-se em um novo reconhecimento.
As transformações sofridas pela teoria política e constitucional nos últimos vinte
anos têm levado á reflexão necessária sobre a concepção adequada de Constituição
de nosso tempo. O desgaste da ‘soberania’ e a ‘complexidade social’ crescente,
aliados, em países periféricos e semiperiféricos, à submissão a uma ordem
internacional orienta pela lógica econômica, remetem, em lugar de particularismos
ou de retorno às figuras pré-modernas de comunidades, á ideia de uma ‘sociedade
multicultural’ que pode aspirar a ser cosmopolita. (SAMPAIO, 2004, p. 50)
Há que ser reconhecer a existência de o diferente no meio social caracteriza a
diversidade.
El primer paso en esa dirección es estar muy atentos a la diversidad del mundo que
es inagotable. Y esa diversidad es cultural. Pero, lo que es nuevo en nuestro tiempo,
a inicios del siglo XXI, es que lo cultural también es económico y también es
político. Por eso nos pode cuestiones como la una refundación del Estado y una
refundción de la democracia. (BOAVENTURA, 2007, p. 14)
3
Citação contida na obra: CÍCERO, Marco Túlio. La Republica. In: CICERÓN. La República y lãs leyes.
Edición de Juam Ma. Nuñes Gonzáles. Madrid: Akal, 1989, I, p. 39)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Desta forma, a diversidade, em sendo um dos nortes do Novo Constitucionalismo
Latino Americano, deve ser incluída na pauta dos fundamentos constitucionais e na
construção normativa, já que a este a norma também é direcionada.
Este constitucionalismo se distingue del constitucionalismo moderno en varias
características. Primero, en la equivalencia entre lo simultáneo y lo contemporáneo.
Una de las grandes características de la modernidad fue separa simultaneidad de
contemporaneidad. ¿Por qué? Porque puso una fecha de progreso; los que van
delante están en el progreso, son avanzados, mientras todos los otros son atrasados.
Es por eso que los países menos desarrollados no pueden ser nunca en nada más
desarrollados que los desarrollados, porque la lógica de la flecha del tiempo impide
esa posibilidad. Sin embargo, la idea de simultaneidad sin contemporaneidad
expresa situaciones cotidianas. Cuando un campesino se encuentra con un ejecutivo
del Banco Mundial el encuentro es simultáneo, pero no ocurre entre
contemporáneos. El campesino es un residual, es un atrasado; el ejecutivo del Banco
o el ingeniero de la agroindustria es el progreso, es el avanzado. Tenemos
simultaneidad, pero no contemporaneidad. El constitucionalismo intercultural e
plurinacional, está haciendo, de diferentes maneras, una equivalencia entre lo que es
simultáneo e lo que es contemporáneo; cada uno a su manera, pero contemporáneos
al fin. (BOAVENTURA, 2007, p. 23)
E é justamente neste sentido que Gilles Deleuze se expressa, como acima exposto:
A especificidade, a individualidade e heterogeneidade. Não há no mundo que não se
manifeste na variedade de suas partes, de seus lugares, de suas margens e das
espécies que os povoa Não há individuo que seja absolutamente idêntico ao outro
indivíduo; (...) Infere-se daí a diversidade dos próprios mundos sobe estes três
pontos de vista: os mundos são inumeráveis, frequentemente de espécies diferentes,
às vezes semelhantes, sempre compostos de elementos heterogêneos. (1998, p. 273)
Portanto, fundado está o Novo Constitucionalismo Latino Americano que se finca na
noção de uma nova concepção de um povo e da sua pluralidade:
O novo constitucionalismo encontra respaldo no reconhecimento da condição
humana da ação que compreende a sua imprevisibilidade e pluralidade e que permite
compreender os semelhantes como tais. Tal concepção funda-se na admissão dos
conflitos e incongruências ínsitos na natureza, sem a intolerância ao distinto, pois
nesse sentido que o outro quando não visto pela dimensão desestrutura a
compreensão que se tem de si mesmo. Se pensada a existência num único plano de
vivência, será excluída a existência do outro, concebendo-o como causador do caos.
Ou se vislumbrada a pluralidade da capacidade individual de transmutar-se dentro
de uma natureza multíplice, ou perde-se na tentativa de encontrar a universalidade o
que não é admissível em uma realidade que se pretenda solidária e emancipatória.
Vê-se assim, a convergência entre teorias democráticas e solidárias e o novo
constitucionalismo que se estabelece.” (NOVAIS, 2012)
2.3. A pluralidade e participação.
26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Dessa perspectiva do Novo Constitucionalismo Latino Americano, de onde se extrai
a ideia de uma sociedade heterogênea, pode-se destacar que garante esse novo pensamento
constitucional de que um Estado Democrático de Direito é plural.
A Constituição da República de 1988 impõe como um de seus fundamentos a
pluralidade:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: (...) V - o pluralismo político. (BRASIL, 2012)
A definição constitucional não deixa dúvida quanto à afirmativa lançada no
parágrafo acima. Havendo o reconhecimento pela Ordem Constitucional de tal aspecto, o
Direito não é pode ser construído a partir de uma democracia baseada numa homogeneidade,
visto que não se estaria atendendo ao pluralismo, a existência de níveis diferentes de cidadãos.
A partir disso: que o diferente é também cidadão, de que a multiplicidade individual
e de grupos; o direito regulamentador, o direito principiológico e garantidor, como posto na
Constituição, deve ser construído a partir da identificação destes indivíduos, destas diferenças,
destas multiplicidades (individuais ou de grupos). Não se pode mais impor um ordenamento
que não lhes reconheça esta diferença. E a pontuação desta diferença somente poderá ser
trazida por eles, por todos.
Portanto, neste ponto, para a afirmação do individuo, do diferente, do múltiplo, do
plural, necessário que todos participem de uma forma dialógica e consensual.
O artigo único do artigo constitucional transcrito acima traz outro aspecto: o poder
emana do povo e pode ser exercido de forma direta. Tem-se, assim, a democracia
participativa.
Decorrente disso, a construção normativa passa não ser unicamente representativa,
mas sim participativa, justamente para o atendimento a esta diversidade e complexidade
social.
A participação social na construção do Estado e na formulação dos instrumentos
legislativos que por sua vez irão regrar suas relações interpessoais. O direito e seu regramento
não são construídos a partir de uma homogeneidade daqueles sobre os quais recai a
27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
ordenação, como houvesse uma pré-determinação, mas da participação dos próprios cidadãos,
agentes de direito, que são reconhecidamente diversos individualmente e plural na sua
coletividade. Estes agentes de direito, portanto, de forma livre e igualitária, se colocam frente
a frente, e participam do processo normativo.
O projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento de
nossa sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas
circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal. Todavia, divergindo do
paradigma liberal e do Estado social, este paradigma do direito não antecipa mais
um determinado ideal de sociedade, nem uma determinada visão de vida boa ou de
uma determinada opção política. Pois ele é formal no sentido de que apenas formula
as condições necessárias segundo as quais os sujeitos de direito podem, enquanto
cidadãos, entender-se entre si para descobrir os seus problemas e o modo de
solucioná-los. (HABERMAS, 2003, p. 189/190)
Com isso, a norma extraída deste contexto dialógico pode refletir toda a pluralidade
social.
No entanto, esta participação não exclui o papel do Estado como normatizador,
apenas acresce a este tendo em vista os anseios da própria sociedade construtora do Direito.
Este procedimento é bem disposto por José Nilo de Castro quando se refere a tal participação
no processo legiferante em matéria de natureza urbanística, que é o ponto central do trabalho
apresentado:
Por conseguinte, a injunção participativa não se opõe, à evidência, à democracia
representativa, ela é um complemento desta, um plus, em enriquecimento que se
realiza pelos diálogos civis e sociais, pela deliberação reflexiva e coletiva, e, por
fim, pela interação e negociação permanentes, sustentados esses diálogos nas
cidades, espaço privilegiado para os aconchegos da cidadania e da democracia.
(CASTRO, 2010, p. 425)
Logo, a Teoria Discursiva assegura o exercício do Estado Democrático de Direito
Participativo:
Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de
um princípio de democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo
de normalização. A ideia básica é a seguinte: o principio da democracia resulta a
interligação que existe entre o principio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse
entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída
passo a passo. Ela começa com a aplicação do principio do discurso ao direito a
liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto
tal- e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um
exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a
autonomia privada, inicialmente abstrata, com forma jurídica. Por isso o principio de
democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direito. (HABERMAS,
2003, p. 158, vol. I.)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
E neste ponto, a Teoria Discursiva se fundamente no procedimentalismo que se torna
uma forma de garantir que o discurso e o consenso sempre se renovem:
O paradigma procedimental do direito nutre a expectativa de poder influenciar, não
somente a autocompreensão das elites que operam o direito na qualidade de
especialistas, mas também a de todos os atingidos. E ta expectativa da teoria do
discurso, ao contrário do que se afirma muitas vezes, não visa doutrinação, nem é
totalitária. Pois, o novo paradigma submete-se às condições da discussão contínua,
cuja formulação é o seguinte: na medida em que ele conseguisse cunhar o horizonte
da precompreensão de todos os que participam de algum modo e à sua maneira na
interpretação de constituição, toda transformação histórica do contexto social
poderia ser entendida como um desafio para um reexame da compreensão
paradigmática do direito (HABERMAS, 203, P. 190).
E é justamente neste sentido que se fundamenta o Novo Constitucionalismo Latino
Americano:
(...) compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos
não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de
compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma
nova perspectiva para os direitos fundamentais.” (MAGALHÃES, 2012).
Portanto, entende-se que reconhecido o diferente, como meio de se afastar os
simulacros, para uma melhor vida, estes integram uma determinada sociedade, que é então
adjetivada de heterogênea. Neste ponto, o Novo Constitucionalismo Latino Americano
apresenta-se como um novo paradigma de novas subjetividades. No contexto constitucional
atual brasileiro, há o reconhecimento do diferente e da heterogeneidade, já que o fundamento
do Estado de Democrático de direito está assegurado no artigo 1º, da Constituição da
República de 1988. Nesta também há mecanismos para o exercício da pluralidade, na medida
em que o poder, o poder do Estado, deve ser exercido pelo povo, afirmando-se a democracia
participativa, que se apresenta de forma dialógica.
3
O PLANEJAMENTO
3.1 O planejamento como função do Estado e da Administração Pública
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A atuação do Estado no contexto social se apresenta de várias maneiras, seja
legislando, seja executando, seja dirimindo conflitos.
No âmbito da função reguladora, cabe a ele dispor sobre normas que em a finalidade
de regrar seja a auto-conduta, seja da sua conduta para com os cidadãos.
Este exercício regulamentador do Estado se dá através de implementação de políticas
públicas que são expressas por meio da atuação do braço executivo do estado: a
Administração Pública. Esta tem por sua vez então que se basear naquela regulamento que se
constrói, hoje, a partir do planejamento.
Portanto, o planejamento é hoje uma função do Estado e por consequência uma
função da própria Administração Pública.
O planejamento, portanto, tomando contorno jurídico, se faz presente nos
instrumentos legais, sendo que ainda começa a se despregar de um caráter puramente formal.
É o planejamento que confere consistência racional à atuação do Estado (previsão de
comportamento, formulação de objetivos, disposição de meios), instrumentando o
desenvolvimento de políticas públicas, no horizonte do longo prazo, voltadas à
conclusão da sociedade a um determinado destino. (GRAU, 2007, p. 347)
Esta forma de estratégia de administração já o era executada no âmbito privado, sendo
incorporada da Ciência da Administração para o âmbito da Administração Pública. Mas ao
agregar tal procedimento, a Administração Pública apenas reconhecia o aspecto que se pode
denominar formal, pois o planejamento dependia apenas do administrador, podendo utilizá-lo
ou não, não sendo juridicamente imposto (SILVA, 2008, p 89).
Mas com o tempo, o planejamento se destacou apenas da noção de um modo de
administração e tornou-se um mecanismo jurídico-constitucional, visto que tem ele finalidade
de se atingir uma realidade social.
O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos
governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se
imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são instrumentos
consubstanciadores do respectivo processo. (SILVA, 2008, p. 90)
A título de exemplo pode-se extrair alguns dispositivos constitucionais que fazem
menção explicita ou implícita ao planejamento, se destacando ao final o art. 183, sobre os
quais nos deteremos com maior atenção no presente trabalho: agrícola (Artigo 187);
30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
previdenciária (Artigo 202); educação (Artigo 208; 212, §3o; 214; 30, VI);cultura (215, §3o;
216, §6o); juventude (Artigo 227) habitação e saneamento básico (23, IX); reforma agrária
(184, §4o); assistência social (204, I e parágrafo único); transporte (Artigo 208, VII);
alimentação (Artigo 208, VII); saúde (Artigo 227, §1o); assistência ao deficiente (Artigo 227,
§1o, II); prevenção do uso de entorpecentes (Artigo 227, §3o, VII); idoso (230, §1o) e fundo
de erradicação a pobreza (Artigo 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –
ADCT), art. 183 (Plano Diretor).
Robertônio Santos destaca ainda que o planejamento se tornou um instrumento
jurídico justamente porque o Estado, através da Administração Pública, tomou uma dimensão
mais social, o que se traduz como sendo o planejar o instrumento indissociável para que o
Estado atenda as necessidades de seus cidadão através da implementação de políticas
públicas:
Uma das características da Administração Pública atual é seu caráter
preponderantemente coletivo. Mais do que a prática de atos administrativos isolados
(que não deixaram de existir), Administração Pública se caracteriza pela sua
dimensão social. Importa cada vez mais os efeitos ou resultados que a atuação
administrativa produz relativamente à sociedade em seu conjunto, nos mais diversos
setores da vida, de tal forma a garantir satisfatória ‘qualidade de vida’ tanto a
sociedade presente como a sociedade futura (futuras gerações). A atividade deve ser
necessariamente eficiente (princípio da eficiência), produzindo resultados concretos
para o conjunto da sociedade.
Exigência desta envergadura demandam, forçosamente, a necessidade do
planejamento. Proliferam em todos os níveis da atividade administrativa (federal,
estadual e municipal) práticas de programação ou de planejamento (pleno de
desenvolvimento, planejamento financeiro, planejamento urbanístico, planejamento
educacional, plano isso, plano daquilo etc.) Fala-se cada vez mais em ‘políticas
públicas’, associando-se à necessidade de planejamento. (2003, p 40)
Voltando-se o Estado e Administração pública para o atendimento ao que a
sociedade almeja, e utilizando-se do planejamento para tanto, ao construir esse instrumento,
deve ele estar atento à pluralidade.
Enquanto o planejamento praticado nos anos 1970 tinha um caráter eminentemente
impositivo, em razão do regime político vigente, o de hoje não pode ignorar a
pluralidade da representação política e a intensa mobilização que ocorre na
sociedade brasileira com vista à promoção e à defesa de seus particulares interesses.
(REZENDE, 2011, 201)
3.2 O planejamento urbanístico participativo e plural.
31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A participação popular como detentor do poder conferido ao Estado é imperativo
fundamental do Estado Democrático de Direito, conforme previsto no caput do art. 1º, da
Constituição da República de 1988.
No âmbito das normas urbanísticas a participação popular na construção do
planejamento urbanístico se extrai do próprio art. 182, quando que determina que a política
urbana, que é uma política pública, deve objetivar o pleno desenvolvimento das funções
sócias da cidade e garantia do bem estar de seus habitantes. Já no art. 183, apresenta o
instrumento que irá ser o substrato deste planejamento: plano diretor.
Seguindo estes princípios constitucionais, o Estatuto das Cidades (Lei 10.274/2001)
impõe diretrizes, políticas, instrumentos que asseguram a participação social no planejamento
urbanístico (arts. 2, inciso II; art. 4º, inciso III, alínea a); art. 41; art. 42, alínea III; art. 43; art.
44; art. 45).
Para se planejar, dentro do contexto da Administração pública moderna, e para se
executar o que se previu no planejamento urbano, impõe-se hoje se faça uma
extraordinária aliança entre a cidade e o cidadão. Por que aliança? A aliança entre
o cidadão e a cidade decorrerá do diálogo que deve existir entre o cidadão e o
próprio Estado. E como se operará este diálogo? Pela participação da sociedade
junto aos projetos estatais e comunitários. Participar é fazer com. Fazer em
conjunto com os segmentos da sociedade e com o Estado. É ter afinidade. E ter
afinidade é sentir com. O papel do cidadão é o de gestor do espaço urbano.
Gestor é agente, e hoje é agente de transformação, que põe em marcha e em
execução os seguintes passos: o aprendizado (cívico, político e social), a
convicção (acredita-se e tem-se fé e compromisso), a determinação (a vontade), a
ação (atitude positiva afirmativa) e o esforço (busca-se empenho e desempenho
de qualidade). (CASTRO, 2010, p. 434).
Este planejamento se consubstancia no próprio Plano Diretor que tem como fim dar
transparência e democracia à política urbana (BLANC apud Braga, 2006, p. 108)4.
O planejamento urbanístico tem duas características que lhe são essenciais: dimensão
territorial e dimensão instrumental. Com isso, a participação popular visa, por meio do devido
diagnóstico e da própria construção normativa procedimental e dialógica, construir uma
cidade que atenda aos fins sociais dela e o bem estar dos seus próprios habitantes (art. 182,
caput).
(...) (i) a vinculação da política urbana a instrumentos de planejamento,
especialmente ao plano diretor, que adquire o status de instrumento básico de
política de desenvolvimento urbano (art. 182, parágrafo 1º); (ii) a descentralização
4
BRAGA, Roberto. In: Plano Diretor Municipal: três questões para discussão. Disponível em:
<www.rc.unesp.Br/igce/planejamento/publicações.> Acesso em setembro de 2003.
32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
do planejamento urbano que passa explicitamente a valorizar a cidade, lócus de
manifestação do poder local (art. 182 e art. 30 I e VII); e (iii) a inclusão da redução
das desigualdades sociais entre os princípios da ordem econômica brasileira (art.
170, III e art. 182). (ARAÚJO, 2008, p. 170)
A participação popular no planejamento urbanístico se impõe justamente para
confirmar a pluralidade, que se aceita a linguagem de todos os interessados, as vivências
populares, a ciências, tudo de uma forma integrada e respeitando a ecologia dos saberes5. O
cidadão é aquele que mais vivencia e usufrui da cidade, sendo o seu agente mais ativo. A
partir disso, a participação social no planejamento urbanístico é uma imposição constitucional
e legal que é condição de validade do próprio Plano Diretor. Este reconhecimento da
pluralidade que é assegurada pela participação social pode ser destacado em alguns incisos do
art. 2º, do Estatuto da Cidade, dos quais podem ser citadas algumas locuções: (...)
atendimento ao interesse local (inciso III); (...) evitar e corrigir as distorções do crescimento
urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (inciso IV); (...) adequados aos
interesses e necessidades da população e às características locais (inciso V); integração e
complementariedade entre as atividades urbanas e rurais (inciso VII); (...) privilegiar os
investimentos geradores de bem-estar geral e fruição dos bens pelos diferentes segmentos
sociais (inciso X).
A partir, então, dessa participação popular plural de forma dialógica, na construção
de um planejamento, legitima-se o próprio papel do Poder Público “permite que a cidade seja
realmente construída à luz seus moradores e, especialmente, garante os grupos excluídos
possam ter voz ativa (MELO, 2010, p.81).
O planejamento urbanístico deve, por imposição constitucional e legal, ser
participativo e plural. Este planejamento deve ser consubstanciado em lei respectiva, como o
Plano Diretor, devendo, portanto, ser executado pelo administrador na implementação da
política pública urbana.
4. CONCLUSÃO
5
Ler mais sobre o tema em: SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria
Paula (coord.) SP: 2010. Ed. Cortez. 31-67.
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O presente trabalho pretende, como exposto do subtítulo, contribuir para a discussão
acerca do planejamento urbanístico participativo, acrescendo-se a esta locução o adjetivo
plural.
Assim, para justificar a pluralidade, deve-se primeiro reconhecer a existência do
diferente, que se revela, na visão filosófica apresentada a partir do momento em que o
Naturismo, como uma de suas vertentes, é invocado para afastar as falsas impressões –
simulacros – sobre tudo o que nos cerca. Com isso, o diverso ou o diferente é desta forma
reconhecido, dando-se o devido valor a quem se encontra nesta condição, já que ele estaria
despedido de qualquer falseamento – repita-se simulacro – acerca de si mesmo.
A partir dessa visão que é defendida na contemporaneidade, que se invocou do
filósofo Gilles, apresentou-se a perspectiva coletiva do diferente quando se vislumbra que a
sociedade é no seu conteúdo heterogênea. Com isso, a conceito do Estado Constitucional
Moderno não mais reflete o contexto real de um povo, não lhe sendo, o reflexo. Num segundo
momento, expõe-se acerca da nova concepção constitucional que se apresenta com o Novo
Constitucionalismo Latino Americano, sendo formulado, que parte, como um de seus vetores,
justamente a existência das novas subjetividades que se reflete nas diversas culturas, histórias
e economias de um povo.
Considerado tal ponto, no âmbito constitucional brasileiro, esta diversidade e
heterogeneidade se revela no próprio fundamento do Estado Democrático do Direito que tem
como uma de suas bases o pluralismo. Aliado a isso, tem-se a concepção da democracia
participativa, visto que reconhecido também pela Constituição da República de 1988 que o
poder emana do povo, de forma direta. Esta participação, diante do contexto diverso social,
deve ter como procedimento o diálogo de todos aqueles que compõe essa sociedade, na
construção do seu próprio ordenamento.
Portanto, somente com o reconhecimento do diverso, da heterogeneidade social e da
pluralidade é que se pode afirmar que o Estado seja de fato democrático, pois este ente se
sustenta a partir do reconhecimento real da sociedade que o mantém. E a legitimidade desse
mesmo Estado somente se firma quando então essa mesma sociedade é que irá, no exercício
do poder que ela mesmo criou e se outorgou, participar da composição do seu próprio
regramento.
34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Num outro ponto, parte-se para a exposição da função de planejar do Estado e da
própria Administração Pública. Esta função tem hoje um novo conceito no mundo jurídico,
visto que, sendo ela devidamente constitucionalizada, é instrumento que visa a implementação
de políticas públicas que se pretende estabelecer.
Especificamente, o planejamento urbanístico, também com status constitucional e de
norma geral, foi firmado como sendo ele participativo, justamente, porque ele deve ter como
finalidade a implementação da função social da cidade e do bem estar de quem vive nela.
Assim, figura o próprio cidadão como o agente de construção do direito, por meio o
planejamento, que irá dispor sobre a sua vida no âmbito do lócus onde mora. A participação,
então, irá garantir a presença do diverso, do diferente, de todos que se encontram em seus
determinados patrões, que foram uma todo social heterogêneo. À participação se alia então a
pluralidade na formação do planejamento urbano.
Tudo isso revela o pluralismo – reconhecimento do diverso - como fundamento real
do Estado Democrático de Direito se manifesta por meio da participação social na construção
de planejamento urbanístico, que expressa uma política pública. A participação, por sua vez,
assegura a expressão do próprio pluralismo, revelado no conteúdo do planejamento
urbanístico, visando a concretização de direitos fundamentais aos atores sociais
35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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SAMPAIO, José Adércio Leite. Teorias Constitucionais em Perspectiva – Em busca de
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2008.
37
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A
EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL
THE PEOPLE IN SPECIAL DEVELOPMENT CONDITION AND THE EDUCATION
AS A SOCIAL FUNDAMENTAL RIGHT
Maria da Glória Colucci
Marta Marília Tonin**
Resumo: Educar é formar e transformar para a vida. A deterioração dos valores morais,
acrescida de outros fatores desencadeantes do individualismo, materialismo e falta de
solidariedade, só podem ser suplantados pela educação, a começar do ambiente familiar. Por
outro lado, preparo para o exercício da cidadania pressupõe a superação de vários obstáculos,
a partir do combate – mediante iniciativas oficiais e particulares – da evasão escolar, que leva
ao abandono dos bancos escolares e ainda no ensino fundamental. Também, a exclusão social
dos evadidos, acrescida da violência intrafamiliar e urbana, estimula o ingresso na
marginalidade. A educação para o trabalho (profissionalização) é regulada no Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990) e na Constituição Federal (1988), além de outras normas
presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Inúmeros danos podem ser creditados
à falta de acesso à educação profissionalizante, como se examinou no texto, o mesmo
ocorrendo em relação à evasão escolar e ao abandono afetivo e material de crianças e
adolescentes. Políticas Públicas voltadas à superação destes desafios têm sido implementadas,
mas ainda são insuficientes os investimentos na educação em geral.
Palavras-Chave: Educação; Estatuto da Criança e do Adolescente; Exclusão Social;
Profissionalização. Políticas Públicas.

Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de
Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme
título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética –
Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade
Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná.
** Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais (UFPR). Coordenadora Geral do Curso de Direito das
Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL). Professora do Direito de Família e Direito da Criança e do
Adolescente. Advogada. Membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (2013-2015).
Conselheira do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná (CONPEN - 2011-2014). Membro do CONPEDI –
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do
Paraná. Coordenadora do Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) de 2002 a
2005. Coordenadora do Curso de Direito das Faculdades Santa Cruz (INOVE) de 2009 a 2012. Conselheira do
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2004-2007). Presidente, da
Comissão Nacional da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB (2005-2006). Presidente da
Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (1997-2002; 2010-2012). Vice-presidente (2007-2009) e
membro da Comissão Especial Criança, Adolescente e Idoso (CECAI) do Conselho Federal da OAB (20102012).
38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
ABSTRACT
To educate is to form and transform lives. The deterioration of moral values, plus other
triggering factors of individualism, materialism and lack of solidarity, can only be overcome
by affection, starting with the family environment. The preparation for the exercise of
citizenship presupposes the overcoming of many obstacles, from combat - through official
and private initiatives - truancy that leads to the abandonment of banks still in school and
elementary school; social exclusion of evaded and family violence and urban. Education for
work (professionalism) is regulated by the Statute of the Child and Adolescent in the Federal
Constitution, beyond the norms present in the Consolidation of Labor Laws. Many injuries
can be credited to the lack of access to vocational education, as examined in the text, the same
being true for truancy and dropout affective and material for children and adolescents. Public
policies aimed at overcoming these challenges have been implemented, but the improvements
on education in general are still insufficient.
Keywords:. Education; Statute of the Child and Adolescent; Social Exclusion; Education for
work; Public Policies.
1 INTRODUÇÃO
As tentativas de respostas à problemática educacional no País, notadamente, de
crianças, adolescentes e jovens, têm sido esboçadas em diversos modelos teóricos, mas, ainda,
incipientes, ou até mesmo contraditórios.
Na análise a ser construída pretende-se estabelecer nexos entre as diretivas do art.
205 da Constituição da República (1988) e os princípios da “proteção integral” e “prioridade
absoluta” presentes tanto na Lei Maior (art. 227 e seguintes), quanto no Estatuto da Criança e
do Adolescente (1990), nos arts. 1º a 6º, como diretrizes hermenêuticas e processuais.
O pleno desenvolvimento da pessoa e a natural vulnerabilidade infanto-juvenil serão
a chave mestra das reflexões a serem encetadas, considerando-se o processo educacional
como instrumento transformador do ser humano desde a mais tenra idade até à velhice.
O atraso crônico de medidas, por intermédio de políticas públicas, que promovam e
incentivem a educação no País, contribuem para o agravamento do cenário ainda desanimador
da evasão escolar ou mesmo da precariedade de condições do ensino no Brasil, como se
examinará no texto.
Desinformação, exclusão social e econômica, constituem no seu conjunto intrincado
contexto cujos meandros se encontram abertos às novas teorias pedagógicas.
Serão estudados os princípios basilares que fixam diretrizes para a construção
estatutária dos direitos da criança e do adolescente na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,
seguidos de breve síntese do texto regulador dos precitados direitos.
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
No decorrer da exposição diferentes fontes bibliográficas serão utilizadas, levando-se
em consideração a crescente necessidade de interlocução com outras áreas do saber.
A Carta da República deverá receber relevância acentuada por ser a raiz vital à qual
se ligam todas as questões jurídicas, não só em matéria de educação, mas sempre que se
procure ressaltar a força vinculante do texto da Lei Maior com a realidade social brasileira.
O pacto social representativo da vontade soberana popular se evidencia no teor das
palavras das disposições constitucionais, como ocorre em educação, na proteção da criança e
do adolescente como se verificará.
2 A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO
2.1 Diretrizes do art. 205 da Constituição (1988)
Dentre os seres viventes, a pessoa humana ao nascer possui tamanha vulnerabilidade,
que não consegue sobreviver sem cuidados especiais por um longo espaço de tempo.
Sua infância se prolonga por doze anos, durante os quais necessita receber não só
alimentos, mas atenção, educação e afeto que são essenciais à formação de sua futura
personalidade.
No entanto, o reconhecimento da vulnerabilidade infantil e o respeito às suas
peculiaridades, bem como das contradições que acompanham a adolescência, não ocorreu sem
grandes divergências entre pais, educadores, psicólogos e todos os que se dedicam ao mister
de desvendar os meandros destas importantes fases da vida humana.
Psicologia e Pedagogia têm desenvolvido pesquisas, teorias, relatórios e profusas
análises sobre a temática, explorando-a sob diferentes ângulos, visando encontrar possíveis
respostas.
Educar é, desde cedo, moldar o comportamento da criança e do adolescente,
preservando os valores da família, da sociedade e da cultura às quais pertence. Educação é
direito fundamental, reconhecido no texto constitucional no art. 205 da Lei Maior,
objetivando o desenvolvimento das potencialidades da pessoa que ao nascer traz consigo
habilidades inatas, que afloram com o processo educacional. Respeitar as características
pessoais, propiciar o aprendizado de um ofício, profissão ou trabalho; além de incentivar a
dedicação às artes, são objetivos da educação profissionalizante.
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Os obstáculos enfrentados pela criança, cuja personalidade se encontra em formação,
são múltiplos, a começar pela socialização, pelo desenvolvimento da afetividade e da
solidariedade.
No adolescente, as mudanças causadas pela transição que caracteriza a puberdade,
respondem pelos conflitos que são frequentes nesta fase. Se bem trabalhada, a adolescência
pode permitir aos educadores prepararem pessoas, cidadãos éticos, com um sentido de
participação social e política, respeitando as instituições democráticas.
No entanto, a desinformação e a exclusão social, somadas à violência intrafamiliar e
urbana, causam sérios danos à vida da pessoa em desenvolvimento.
Em consonância com a Lei Maior, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu
art. 19 preceitua que a criança e o adolescente têm o direito a ser criado e educado no seio da
família.
A família biológica ou substituta há de assegurar aos seus filhos uma convivência
salutar, em “ambiente livre” da presença de pessoas que sejam viciadas em substâncias
entorpecentes; sendo que a mesma exigência se impõe à comunidade à qual pertence a criança
ou adolescente. 1
O texto constitucional, no Art. 205, deixa evidente a corresponsabilidade do Estado,
da família e da sociedade na educação, “[...] visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 2
Comparando os princípios presentes no supramencionado artigo da Lei Maior e o
disposto no art. 53 do Estatuto, verifica-se que há coincidência entre os dois preceitos,
estabelecendo-se uma hierarquia entre os três campos que a educação deve atender em ambos
os diplomas legais precitados:
a) o pleno desenvolvimento da pessoa (sobretudo se estiver na infância e
adolescência);
b) o preparo para o exercício da cidadania, visando o conhecimento dos direitos
fundamentais e seu efetivo exercício; e
1
Idem, art. 19: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio e sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da
presença e pessoas dependentes e substancias entorpecentes.
2
BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 205: “A
educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno conhecimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
c) a qualificação para o trabalho, diante da crescente exigência de formação
profissional que o mercado impõe aos ingressantes.
Assim, ao considerar a educação como direito fundamental (art. 205), a Lei Maior
traçou três diretrizes, válidas como princípios, que devem nortear ações públicas, privadas ou
particulares em educação, quais sejam: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo para o
exercício da cidadania e c) qualificação para o trabalho.
2.2 Pleno Desenvolvimento da Pessoa
O desenvolvimento físico do ser humano leva à mudança da aparência, o que se nota
desde os primeiros dias, em que o recém-nascido modifica seu rosto e demais características
corporais, com impressionante rapidez e grande vitalidade.
Simultaneamente, do ponto de vista emocional, a criança vai se construindo,
desenvolvendo uma crescente percepção da realidade que a rodeia, e vai, gradativamente
respondendo aos estímulos com maior facilidade. Ao ampliar seu leque de respostas, sua
sensibilidade e consciência dos fatos e da vida se estruturam.
Neste contexto, a educação tem papel decisivo, representando a base da formação da
individualidade, a começar dos primeiros hábitos de higiene pessoal, de respeito, de gentilezas
etc, até alçar à futura construção de vigorosa intelectualidade, que redundará em sucesso
profissional.
De sorte que educar não só consiste no oferecimento de informações, visando à
profissionalização do adolescente ou ao despertar de vocações na criança, mas reside, antes de
mais nada, desde tenra idade, na formação moral da pessoa em desenvolvimento.
Nas práticas diárias, pais e professores devem ensinar pelo exemplo, pelas próprias
atitudes, quais são os atos corretos (que devem ser elogiados) e os incorretos (que devem ser
corrigidos).
O processo de transformação do pequenino ser, a criança, se inicia logo após os
primeiros momentos de vida, com a educação para a afetividade. Sendo criada com amor, a
criança irá incorporar gestos de afeto (abraços, beijos, acenos, sorrisos etc.) à sua prática
diária, tornando-se mais feliz e comunicativa, porque o amor alegra o coração.
A educação é, por natureza, um processo, envolvendo uma cadeia de atos e fatos que,
juntos, quando bem direcionados, tanto pelos pais, quanto pelos professores, podem levar o
educando ao esperado resultado final – a transformação do caráter, quando este for o caso
42
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
(adolescentes infratores) ou à formação (no caso de adolescentes e crianças em processo
regular de educação).
Educar é formar e transformar para a vida em grupo, tanto na família, quanto na
sociedade.
A transformação pretendida pela educação secular, religiosa, familiar etc, deve ser
embasada nos valores, princípios e tradições próprios de uma determinada sociedade, de
modo que o ambiente em que vive o educando é marcante para a estruturação de sua
personalidade.
Considerando que a família é o primeiro ambiente com o qual a criança tem contato,
caber-lhe-á prover abrigo, proteção, cuidado e um sentimento de aconchego, para que sua
personalidade se desenvolva equilibradamente.
Por isso, é prudente lembrar, conforme acentua João Malheiro, doutor em Educação
pela UFRJ, que:
Quando a criança aprende antes as lições que também são vivenciadas pelos pais e
professores, ela aceitará depois com maior facilidade toda a ação educativa, que na
prática é quase sempre ensinar a amar os outros, por meio do caminho árduo das
virtudes éticas. Aceitará, por exemplo, as correções, as exigências escolares, os
castigos, as broncas, enxergando-os como formas corretivas para amar mais os pais,
professores, e os próprios colegas de classe. 3
Um fator importante na construção de uma personalidade equilibrada é a dedicação à
missão de ensinar, somada à paciência, uma vez que os pais devem esperar os frutos da
transformação gerada pela educação, gradativamente, surgirem, em razão da criança e do
adolescente estarem, ainda, em processo de lenta assimilação dos valores do meio em que
vivem.
Os valores assimilados no lar são válidos para a vida inteira, modelando a
personalidade do futuro cidadão para que exerça seu papel com responsabilidade.
Ted Ward, em exaustiva análise sob o papel da família na construção da
personalidade acentua:
A criança humana é quase que totalmente dependente. Comparados com outras
criaturas, chegamos, a este mundo, totalmente dependentes. Nascemos precisando
de ajuda. Nascemos carecendo de amor e o calor do afeto. Em virtude de sermos tão
insuficientes, começamos logo a agir como criaturas sociais, precisando nos
relacionar com outros seres humanos. 4
3
MALHEIRO, João. Educar no amor: um desafio. Jornal Gazeta do Povo, Paraná, p. 2, 5 dez. 2010.
WARD. Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP,
1981, p. 16.
4
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Em razão das diversas necessidades que se apresentam à pessoa em
desenvolvimento, além da família, a sociedade tem papel de destaque na formação da
personalidade, contribuindo com os valores, entendidos como bens culturais, lapidados pelo
grupo, com o passar dos séculos, variando de época para época, mas, preservando uma
essência universal.
Os valores é que dão sentido, significado aos bens culturais, possuindo, eles mesmos
uma natureza histórica, resultantes do processo de evolução da sociedade, vinculados às
necessidades humanas:
Como todo conceito-limite, o valor não comporta uma definição lógica ou real.
Pode-se dizer, contudo, que a ideia de valor se compreende na noção que temos
entre o bem e o mal, entre as coisas que promovem o homem e as que o destroem. O
valor não existe no ar, desvinculado do objeto. Vem impregnado na realidade, na
existência. 5
A decadência dos valores morais, somada a outros aspectos da sociedade pósmoderna, que pendem para o individualismo, em menosprezo para a vida em sociedade, têm
contribuído, em muito, para a desagregação da família e a deseducação do ser humano.
O art. 28 § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente ressalta os laços de
afetividade, afinidade e, preferentemente, o grau de parentesco entre a criança e a família
substituta, visando a preservação dos vínculos familiares originários, tanto quanto possível. 6
Assim, como se pode observar, no dizer de Rafael Becco Rossot:
O afeto deve ser provido por quem exerça o papel de pai e mãe. Deve-se adotar
sentido amplo de família na intenção de acolher também os parentes (tios, primos e
avós, por exemplo), e inclusive terceiros que não possuam qualquer vínculo
sanguíneo (como os que detêm a guarda provisória da criança quando de sua
colocação em família substituta). 7
Portanto, à família biológica ou socioafetiva cabe a importante missão de educar com
afeto a criança e o adolescente, incutindo-lhes os valores morais que lhes fornecerão a base
para a formação de sua personalidade.
5
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 66.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). Art. 28: “A colocação
em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independente da situação jurídica da criança ou
adolescente, nos termos desta lei”. § 2°: “Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a
relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida”.
7
ROSSOT, Rafael Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do principio da convivência
familiar. Anais da VIII Jornada de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da UFPR/ centro acadêmico
Hugo Simas e PET/direito – UFPR (organizadores) – n°. 01 (2006). Curitiba: Mulgraphic, p. 21.
6
44
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
2.3 Preparo (Despreparo) para a Cidadania
A par da educação familiar, carente de bases morais de natureza firme, o País vive
grave crise na educação formal, em razão das ineficientes políticas públicas.
O Ministério da Educação, após pesquisa desenvolvida pelos órgãos destinados à
aferição dos resultados em educação no País, assinalou que dos “[...] 10,3 milhões de jovens
entre 15 e 17 anos, apenas 50,9% estavam no ensino médio”. 8
O abandono do ensino médio, segundo dados do Sistema de Avaliação do
Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), está relacionado ao desempenho
escolar no ensino fundamental, de modo que os alunos que foram aprovados ou estão em
idade escolar apropriada, no ensino fundamental, é que prosseguem o ensino médio. A taxa de
abandono dos bancos escolares é alarmante, em razão do desestímulo ou desinteresse que os
alunos têm em relação à frequência à escola. Múltiplas razões são apresentadas para tentar
explicar a evasão escolar, dentre estas, a baixa escolaridade dos pais e a situação econômica
da família que precisa dos eventuais recursos obtidos com o trabalho de crianças e
adolescentes.
A formação da cidadania está diretamente vinculada à frequência à escola, visto que
o despertar para o exercício dos direitos se dá pelo seu conhecimento. Ao tomar conhecimento
dos seus direitos e deveres, a criança e o jovem vão construindo uma personalidade firme,
adquirindo consciência do seu papel e presença na sociedade.
O preceito constitucional da “dignidade da pessoa humana” somente será plenamente
respeitado quando a sociedade e o Estado, ao lado da família, promovê-la como bem último,
expressão máxima da cidadania no País.
À educação incumbe a complexa tarefa de transformar crianças, adolescentes e
jovens em cidadãos.
João Evangelista, educador e pedagogo, após análise detalhada dos erros e acertos
das escolhas educacionais brasileiras, conclui que:
[...] a qualidade na educação básica depende, exclusivamente, da participação, do
comprometimento, do compartilhamento e da persistência indômita da escola e da
comunidade para o estreitamento da relação educando-educador. Talvez a evasão
8
DUARTE, Tatiana. Nota baixa afasta aluno do ensino médio. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 9, 5 dez.
2010.
45
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
escolar se constitua na pior chaga da comunidade, incluindo-se como uma de suas
causas a responsabilidade dos poderes públicos constituídos. 9
O atraso crônico de medidas que visam garantir a permanência do educando na
escola tem sido um dos grandes vetores do exercício de uma cidadania pela metade. O
contingente de analfabetos amplia o grau de ignorância que tem marcado a formação dos
futuros cidadãos, marginalizados pela pobreza, pelo analfabetismo e pela doença.
Diante desse fato, medidas precisam ser adotadas, motivadoras de continuidade dos
estudantes no ensino médio, única forma de formar cidadãos para o exercício dos seus
direitos. A conscientização da importância da educação para o pleno exercício da cidadania
depende de políticas públicas voltadas para este fim, valendo-se das mídias sociais, tão
atraentes aos adolescentes e jovens na atualidade.
Podem ser apontados, dentre outros, os seguintes reflexos do despreparo para o
exercício da cidadania, causados pelo abandono da escola (evasão) ou mesmo falta de acesso
à educação no País:
a) Desinformação quanto aos Direitos e Deveres
O fato de mal saber ler e escrever impede grande contingente de brasileiros de
conhecer os seus direitos, sendo facilmente, enganados, por exemplo, quando da aquisição de
bens ou a receber a prestação de serviços.
Pode-se constatar tal situação nos inúmeros casos de prejuízos sofridos pelos
consumidores de baixa renda, quando, atraídos pela publicidade, não conseguem se aperceber
das ciladas armadas por comerciantes e pessoas inescrupulosas. Ao se endividarem em
empréstimos consignados, por exemplo, não conseguem calcular a real taxa de juros e o
montante final da dívida, durante os meses (e até anos) em que se comprometem a pagá-la.
Ao assinar contratos cuja linguagem não compreendem, fazem-no louvando-se na
confiança e na boa-fé do prestador de serviços ou da mercadoria, o que nem sempre ocorre.
Este e outros exemplos são evidências rotineiras dos males que a desinformação,
causada pela ignorância, analfabetismo e abandono dos bancos escolares, pode causar ao
cidadão brasileiro.
9
EVANGELISTA, João. Um país que clama por educação. Os acertos e erros das escolas educacionais
brasileiras. Revista Resol, ano 2, set/Nov. 2005. p. 14. Maiores informações disponíveis em:
<www.resol.org.br>
46
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
No exercício do sagrado direito de votar e ser votado, o cidadão analfabeto ou
semianalfabeto, é levado pela lábia de candidatos populistas, que lhes prometem o que não
podem fazer, angariando grande número de votos, sem que seus eleitores tenham noção dos
verdadeiros danos acarretados à democracia quando escolhem candidatos que trocam, por
exemplo, votos por mantimentos, cadeiras de rodas, próteses etc. Prejudicam-se diretamente e
a sociedade brasileira como um todo é agredida no que possui de mais valioso – os valores
democráticos.
b) Exclusão Social e Econômica
Vivendo-se na “era da informação”, da “sociedade de consumo” e da “liberdade de
valores”, a exclusão social se apresenta sob os mais diferentes matizes, fortemente sentidos
pelos adolescentes e jovens quando em contato com a dura realidade social.
Marginalizados economicamente, os adolescentes e jovens tornam-se frustrados pelo
fato de não poderem ter acesso a bens e serviços de sua faixa etária (a exemplo dos tão
festejados “objetos de marca”). Ao serem excluídos pela sua condição social e financeira da
participação de eventos desportivos, shows musicais etc, tornam-se agressivos, violentos etc,
reagindo a seu modo às limitações de sua condição.
O Estatuto da Criança e do Adolescente atento à importância do acesso à cultura, ao
esporte, ao lazer e, sobretudo, à educação, nos arts. 53 a 59 estabelecem regras quanto à sua
utilização pelas crianças e adolescentes. Encontram-se dispostos nos incisos I a V do art. 53
(direitos dos educandos); art. 54, incisos de I a VII (deveres do Estado) e parágrafos; art. 55 e
56 (deveres dos pais ou responsável, dos dirigentes de estabelecimentos de ensino
fundamental); art. 57, 58 e 59 (deveres do Poder Público, dos professores e entes federados no
tocante à destinação de “recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer
voltadas à infância e juventude”).
Muitos são os efeitos perversos da exclusão social, de sorte que o Poder Público tem
procurado, pelos mais diferentes meios, a inclusão de adolescentes e crianças, resguardandoos do abandono e da discriminação. Referida proteção se inicia com o nascimento, ou mesmo
antes de sua ocorrência (na gestação), conforme prevêem os arts. 7º e 8 º do Estatuto.
Os danos provocados pela evasão escolar não se limitam apenas à vida intelectual,
mas se refletem sobre todos os aspectos da condição humana, repercutindo sobre as futuras
famílias que serão constituídas pelos que hoje abandonam os bancos escolares.
47
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Dentre os prejuízos advindos da exclusão social, ao lado de outros componentes do
meio, da família e da personalidade da criança e do adolescente, aparece a violência
intrafamiliar, além da urbana, ambas vivenciadas intensamente pela sociedade globalizada.
c) Violência Intrafamiliar e Urbana
A segurança pública no Brasil está enfrentando grave crise, sem que se procure
identificar as reais causas de sua ocorrência, cujas raízes são, sem dúvida, a violência
doméstica.
Algumas iniciativas legais foram tomadas para combater os conflitos intrafamiliares,
a exemplo, da denominada Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 7/8/2006); todavia, as políticas
públicas voltadas para a reestruturação da família, da educação infantil e da instrução dos pais
para o bom trato com os filhos ainda são incipientes. 10
A violência urbana nada mais é do que uma extensão dos conflitos familiares, uma
vez que os filhos tendo modelos domésticos de agressão, em que a violência e os maus tratos
são banalizados, reproduzem na escola, na rua e nos ambientes externos o que aprendem nos
lares.
O uso da força física na correção dos filhos, nem sempre se enquadra nos castigos
considerados “moderados” (...), como “palmadinhas”, mas chegam ao absurdo de provocarem
fraturas, feridas, queimaduras e outros graves danos físicos, gerando, como é de esperar,
revolta em crianças e adolescentes, sendo que muitos chegam a abandonar a família,
aumentando as estatísticas de “desaparecidos”...
A Constituição Federal, nos arts. 226 a 230, regula a família, estabelecendo-lhe os
fundamentos, a começar pela afirmação de que “a família é a base da sociedade” (art. 226),
ampliando o conceito tradicional de “família civil”, para o que identifica como “união
estável” (entidade familiar), como aparece no parágrafo 3º do precitado artigo. 11
O parágrafo 4º do art. 227, ao reconhecer como entidade familiar a “família
monoparental”, constituída por “qualquer dos pais e seus descendentes”, alarga os horizontes
legais da família no Direito brasileiro.
Além do reconhecimento da família como “base da sociedade”, podem ser invocados
os princípios da “dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”, atribuindo a Lei
Maior a “liberdade de decisão no planejamento familiar” ao casal (art. 226 § 7º).
10
11
Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006.
BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988.
48
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Ao invocar o princípio da “absoluta prioridade” no trato da criança e do adolescente,
o art. 227 conferiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar-lhes o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Prevê ainda, a Lei Maior que à família, à sociedade e ao Estado cumpre colocar a
salvo crianças e adolescentes de “toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão” (art. 227, in fine).
Igualmente no mesmo dispositivo constitucional, em seu § 4º, expressamente o
abuso, a violência e a exploração sexual de criança ou adolescente são previstos como
passíveis de punição severa, consistindo no Estatuto crimes contra a criança e o adolescente
(arts. 225 e seguintes).
Descrevendo o cenário perturbador que envolve a violência familiar, Ana Maria
Iencarelli, psicóloga e psicanalista da criança e adolescente, afirma que:
A violência é um recurso eficaz, mas ilusório, para dar o alívio imediato de uma
“solução”. Enquanto distorção, a violência faz aquele que está sofrendo por uma
falta afetiva, assumir uma onerada autoria passível de punição, de rejeição,
deixando, por vezes, como saldo a culpa. Além disso, como praticamos,
inexoravelmente, a repetição de modelos pelos processos de imitação e
identificação, negligenciado hoje, negligente amanhã, agredido hoje, violento
amanhã, fica muito reduzida a chave de mudança desta engrenagem. 12
O espancamento dos filhos fere muito mais a sua formação moral e afetiva do que
apenas o seu corpo físico. Os abusos físicos, sexuais e psicológicos sofridos por crianças e
adolescentes nem sempre são computados pelos pesquisadores, embora as estatísticas
existentes já sejam alarmantes. 13
O medo do abandono, da separação da família, dos irmãos, dos pais, leva a criança e
o adolescente a se calarem quando indagados pelas autoridades, vizinhos, parentes etc.
Também a habitualidade dos maus tratos torna fragilizados os agredidos, de tal sorte que
perdem a noção da gravidade das ofensas sofridas.
Com o passar dos anos, tornando-se jovens, adultos e idosos conservam as marcas
dos sofrimentos recebidos na infância e na adolescência, sendo que muitos explodem em atos
de violência urbana, como se vê noticiado com bastante frequência.
12
IENCARELLI, Ana Maria. Quem cuida ama – sobra a importância do cuidado e do afeto no
desenvolvimento na saúde da criança. In Cuidado e vulnerabilidade/ coordenadores Tânia da Silva Pereira,
Guilherme de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2009, p. 168.
13
FREIRE, Albino de Brito. Palmadas racionais. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 2, 7 ago. 2010: o autor
procura defender o que denomina de palmadas de advertência; como simples sinalização de que o filho está
fazendo algo errado.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Apesar da Constituição da República, no art. 144, considerar a segurança pública
como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a violência urbana tem tomado
alarmantes proporções. A impotência das autoridades no controle dos atos de violência urbana
transparece da Cartilha Comunitária de Segurança, editada pela Polícia Militar do Paraná,
com normas visando a colaboração das comunidades na promoção da segurança:
Além de cuidar da sua segurança e da de sua família, conforme ensinado neste
manual, ajude a cuidar da segurança de seus vizinhos. Inicie desenvolvendo e
compartilhando uma lista telefônica com o seu nome e de seus vizinhos, das
organizações locais que são encarregadas de prover segurança, assistência social,
emergência médica, aconselhamento, trabalho, treinamento, orientação e outros
tipos de serviços que vocês possam necessitar. 14
E ainda prossegue a mesma Cartilha:
Esforce-se para retirar os que já são criminosos de seu edifício ou de seu bairro. Isto
inclui solicitar rigorosa fiscalização às autoridades federais, estaduais e municipais
quanto às leis de silêncio, códigos de postura municipal, códigos de saúde, normas
contra-fogo do corpo de bombeiro, vigilância sanitária e qualquer outra obrigação
legal. 15
Inúmeros relatos, comentários, sugestões etc. podem ser adicionados à questão em
análise, mas o objetivo do texto é analisar a educação como instrumento transformador e
formador da cidadania, de modo que as observações já aduzidas são suficientes.
Os danos decorrentes da desinformação, da exclusão social e da violência
intrafamiliar e urbana são exemplos dos perversos efeitos da falta de acesso à educação ou
mesmo da evasão escolar.
2.4 Qualificação para o Trabalho
Dentre os princípios fundamentais presentes no art. 1º, IV da Constituição aparecem
“os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, além do previsto nos arts. 6º a 11 da Lei
Maior que regulam os denominados “direitos sociais”.
14
15
Paraná, Cartilha Comunitária de Segurança: Projeto povo, 2005. p. 15.
Idem, p. 16.
50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O trabalho, ofício ou profissão são “livres” no tocante ao seu exercício (art. 5º, XIII),
desde que “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
As expressões sinônimas que, usualmente, se utilizam, como enumera De Plácido e
Silva, são, por exemplo: “... obra, ocupação, tarefa, função, ofício, serviço, mister, emprego,
missão, cargo, encargo, faina etc.” 16
No sentido econômico toda atividade que possua valoração pecuniária, que produza
riqueza, utilidade, bens e serviços apreciáveis monetariamente, é considerada “trabalho”. Para
o Direito, o trabalho é uma espécie de contrato que se caracteriza pela existência de condições
estabelecidas em lei e que devem ser cumpridas, de parte a parte, para produzir os efeitos
jurídicos esperados.
Dentre as características do contrato de trabalho estão, por exemplo, a fixação de um
horário, de um salário ou remuneração, podendo ser em local predeterminado ou em
domicílio, observando normas preestabelecidas, de acordo com a sua natureza.
Por se tratar de um direito social (art. 6º) suas condições, direitos e deveres estão
expressamente previstos no art. 7º; reconhecendo a Lei Maior a liberdade de associação
profissional ou sindical (art. 8º); o direito de greve (art. 9º); a participação dos trabalhadores e
empregadores nos órgãos públicos em defesa dos seus interesses (art. 10), bem como a eleição
de representantes dos empregados para entendimento direto com os empregadores (art. 11).
Quanto às regras especiais regentes da atividade laboral, a Consolidação das Leis do
Trabalho (Decreto-Lei nº 5452, de 1º/05/1943) as estabelece, além de copiosa legislação
existente sobre as diferentes situações que envolvem a relação empregatícia. 17
Como se pode observar, a atividade que requer qualificação, observância de regras
técnicas, procedimentos próprios que, geralmente, são ensinados em cursos, periodicamente
fixados, com currículos, práticas, etc., corresponde ao que se denomina atividade profissional
ou, simplesmente, profissão.
Ao comentar a educação profissional e tecnológica, Osvaldo Vieira do Nascimento
afirma que a adequação dos currículos, ajustes e correção são essenciais à formação dos
futuros profissionais:
O êxito na Educação Profissional e Tecnológica depende sensivelmente dos seus
currículos como essência dos conteúdos de cursos e programas de refletirem e
16
17
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 70. ed. vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 392.
BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho (decreto–lei 5.452, de 1º de maio de 1943).
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
responderem às solicitações atuais, relativas às ocupações e práticas de instruções
adequadas.18
No caso das crianças e adolescentes, o art. 6º do Estatuto proíbe, expressamente,
“[...] qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”.
Os princípios que devem reger a formação técnico-profissional do adolescente estão
no art. 63 do Estatuto, visando, acima de tudo, o seu desenvolvimento.
Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada bolsa de aprendizagem (art.
64); àquele maior de quatorze anos são garantidos os direitos trabalhistas e previdenciários
(art.65); e ao portador de deficiência é reconhecido o direito ao trabalho protegido (art. 66).
Quanto aos programas sociais que tenham por base o trabalho educativo, os
adolescentes deverão ter atendimento prioritário, uma vez que o trabalho educativo é, pelo
que dispõe o art. 68, §1º, “[...] a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas
ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”.
Os precitados programas sociais podem ser de responsabilidade governamental ou
não, e a remuneração paga pela atividade não a desfigura como possuindo caráter educativo
(art. 68, §2º do Estatuto).
Por fim, garante o Estatuto que o adolescente tem direito à profissionalização e à
proteção no trabalho, desde que sejam levados em consideração os seguintes aspectos (art.
69):
“I – respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;
II – capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho”. 19
Roberto João Elias faz lembrar que houve significativa mudança do trato da
atividade laboral pelo texto do Estatuto, em relação ao disposto na legislação vigente
anteriormente:
Anteriormente o trabalho era permitido a menores de quatorze anos (art. 60 do
ECA), porém agora, de acordo com o art. 7º, XXXIII, da CF, aos menores de
dezesseis anos é proibido qualquer trabalho, exceto na condição de aprendiz, que é a
partir de quatorze anos. Contudo, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre é
proibido aos menores de dezoito anos. 20
18
NASCIMENTO, Osvaldo Vieira do. Educação profissional e tecnologia: princípios e filosofia. Curitiba: J.M.
Livraria, 2010, p. 59.
19
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990).
20
ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 87.
52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Uma vez constatado o reconhecimento legal do direito à educação e à qualificação
para o trabalho, não só pelo Estatuto, mas pelo texto constitucional e estabelecidas diretrizes
para a erradicação do trabalho infantil (PETI: Portaria nº 458, de 4 de outubro de 2001), fica
evidenciada a carência de políticas públicas, sobretudo, para combater os efeitos prejudiciais
aos interesses da criança e do adolescente.
Dentre os danos causados ao futuro das crianças e adolescentes pela falta de acesso à
educação profissionalizante podem ser citados:
a) O subemprego;
b) O consumo de entorpecentes e o seu tráfico;
c) O trabalho infantil, em razão da miséria causada pela desqualificação profissional
dos pais;
d) A violência intrafamiliar e urbana, gerada, em muitos casos, pela pobreza no
ambiente familiar, motivando a prática de crimes contra o patrimônio, dentre
outros;
e) A carência de formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e
tecnologia (art. 218, §3º, CF); 21
f) A crescente dependência de bolsas, programas, auxílios, pensões etc da parte de
um contingente de brasileiros, cada vez maior, nutrida pelo despreparo profissional
destes cidadãos.
Assim, sem tentar exaurir os efeitos prejudiciais ao País, decorrentes da
desqualificação profissional de seus cidadãos, a enumeração feita visa, apenas, despertar
reflexões sobre a matéria.
3 O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR
3.1 Perfis
O Estatuto da Criança e do Adolescente representou, quando de sua entrada em
vigor, um significativo avanço na proteção e na abordagem das questões referentes ao mundo
infantil e juvenil, cujo conhecimento, mesmo hoje, ainda está em fase inicial.
21
BRASIL, Constituição da Republica Federativa do Brasil (5 de outubro de 1988), art. 218, § 3º: “O Estado
promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”; §3º: “O estado
apoiará a formação de recursos humanos nas áreas e ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que elas se
ocupem meios e condições especiais de trabalho.”
53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A Psicologia tem dado grandes passos no sentido de investigar o “universo paralelo”
em que vivem, cada um a seu tempo, a criança, o adolescente e o jovem.
Como bem assinala Ted Ward, professor da Universidade Estadual de Michigan, em
East Lansing, Michigan, o mundo infantil é povoado de ansiedades, de fobias, de sentimentos
contraditórios, mas acima de tudo, de “mistérios”, representados pelos padrões, regras, etc.,
fixados pelos adultos e incompreensíveis à criança. 22
Com o desenvolvimento físico e mental, as limitações sensoriais infantis vão, aos
poucos, desaparecendo, ocorrendo a descoberta e utilização de formas mais adultas de pensar.
Com o passar do tempo, o raciocínio da criança evolui, por isso os pais não podem exigir que
pensem amadurecidamente antes do momento certo.
Jean Piaget (1896–1980), psicólogo suíço, passou toda a sua vida estudando o
comportamento das crianças, tendo publicado algumas das mais célebres obras de Psicologia
Infantil, a exemplo das seguintes: A Formação dos Símbolos (1946); A Biologia e o
Conhecimento (1967) e Memórias (1968).
Utilizou a observação em crianças, em todos os tipos de situações – nos brinquedos,
na escola, no lar etc., procurando ouvir atentamente como falam com os adultos, com outras
crianças e consigo mesmas. 23
Diversos componentes interferem ou contribuem para a formação do raciocínio de
uma criança, influenciando como é de se esperar, o seu modo de ser e agir quando
adolescente, jovem e adulto. Por exemplo, a hereditariedade, ou seja, a criança herda o
material genético dos pais, mas a capacidade de desenvolvimento de ideias abstratas, ou
mesmo de senso artístico, dependerá de outros fatores e experiências que vier a ter, no meio
em que vive.
As experiências obtidas no trato com as pessoas, sobretudo da família, formam em
seu desenvolvimento mental uma categoria especial, porque à medida que a criança se
desenvolve vai se tornando diferente, com identidade própria,
construindo sua
personalidade.24
22
WARD, Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP,
1981, p. 50.
23
PIAGET, Jean. O raciocínio na criança. Trad. Valerie R. Chaves. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1967,
p. 15-67.
24
WARD, Ted. Op. Cit., p. 51-54.
54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A socialização é que permite o desenvolvimento mental, afetivo e moral da criança,
porque lhe propicia tornar-se mais independente, não só pela interação com os outros, mas
pelo tratamento que recebe. 25
À medida que a criança se relaciona com outras pessoas, além da própria família, é
modelada pelo processo de socialização. A escola, o clube, a Igreja, a família etc., permitem
este processo de socialização se intensificar.
O desenvolvimento da compreensão, processo mental que permite apreender o
significado dos seres e das coisas, se verifica quando as experiências não se ajustam ao que é
esperado pela criança que aprende, então, a lidar com as decepções, a ganhar, perder, tolerar,
repartir, emprestar etc.
O processo inicial de desenvolvimento mental da pessoa se completa em torno dos
12 (doze) anos, começando a adolescência que vai até os 18 (dezoito) anos completos.
Como bem assinala Munir Cury, o ser humano vive diferentes fases da vida de modo
que cada etapa é, a seu modo, “plena”, porque irrepetível, única, não retornando mais. 26
Brincar é essencial ao desenvolvimento da personalidade infantil; praticar esportes é
para adolescentes e jovens; a profissionalização e a formação da família para o adulto e o
descanso para o idoso.
No entanto, nada impede que possa o indivíduo brincar, divertir-se, praticar esportes,
realizar-se profissionalmente, formar família ou descansar em qualquer época da vida, mas na
fase própria a vivência e os resultados são mais satisfatórios, proveitosos, as alegrias que
trazem, também, dão à pessoa a sensação de plenitude.
O Estatuto, no art. 2º, identifica o adolescente como a pessoa entre doze e dezoito
anos de idade, acrescentando, no parágrafo único, que a Lei poderá, excepcionalmente, ser
aplicada às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 27
A adolescência é vista como uma importante fase de transição na vida do ser
humano, entre a infância e a adultícia:
Esse conceito deve ser orientador do trabalho: adolescência não como crise, mas
sim como uma importante fase de transição entre duas etapas da vida, na qual o
indivíduo moldará a sua identidade, fará suas escolhas e se preparará para o
ingresso no mundo adulto. É uma etapa em que o ser humano está deixando de ser
criança, sem ainda ser adulto. 28
25
Idem, loc. cit.
CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. Ed. São
Paulo: Malheiros Ed, 2005, p. 55.
27
BRASIL, Estatuto da criança e do adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).
28
IASP, Cadernos do. Compreendendo o adolescente. Paraná: Imprensa Oficial do Paraná, 2006, p. 15.
26
55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
As mudanças corporais ocorridas na adolescência correspondem ao período
denominado de puberdade; as principais modificações são as alterações hormonais que se
iniciam entre 9 e 14 anos para os meninos e entre 8 e 13 anos para as meninas. 29
Os aspectos sociais da adolescência são influenciados pelo ambiente em que vive,
uma vez que as relações com a família, com os amigos, com os grupos, com a religião etc., é
que vão determinar a formação de sua identidade pessoal.
Os componentes psicológicos da adolescência são contraditórios, uma vez que se
trata de uma fase em que a instabilidade, a incerteza, as flutuações de humor, a rebeldia, os
conflitos familiares etc., constroem um quadro de grande intensidade emocional nesta etapa
da vida humana. 30
Um dos conflitos mais frequentes na adolescência é representado pela repulsa à
autoridade dos pais, dos professores, dos adultos em geral e por um acentuado ímpeto pela
emancipação, pela independência; tornando-se, em razão disto, o adolescente, uma pessoa
insubordinada.
A insubmissão à autoridade pode ser tolerada desde que represente uma fase
transitória, sendo que detectados sinais de desequilíbrio mental, torna-se necessário identificar
a possível presença do consumo de drogas, doenças etc.
É importante salientar que os revezes que a instituição familiar têm sofrido resultam
de inúmeras causas, desde as de natureza econômica, passando pelas mais comuns, quais
sejam, a ausência dos pais nos lares, o enfraquecimento dos laços afetivos etc.
Paulo Lúcio Nogueira, ao analisar a crescente vulnerabilidade de crianças e
adolescentes em razão da fragilização da família comenta que:
Não há dúvida que o grande problema consiste na reestruturação e auxílio à própria
família, que é o fundamento primeiro da formação humana. A situação de desajuste
e de pobreza da família gera a condição do menor carente ou abandonado. E a
educação mais eficaz é justamente aquela dada no lar. 31
Crianças e adolescentes têm seus direitos elencados no Estatuto (Lei n. 8069, de 13
de Julho de 1990), construídos com base nos preceitos constitucionais (art. 227 e parágrafos),
que repousam em dois princípios basilares, a saber, proteção integral e prioridade absoluta de
atendimento. 32
29
Idem, ibidem, p. 16-17.
Idem, ibidem, p. 20-23.
31
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, p.
12-13.
32
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).
30
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
3.2 Princípios Basilares
A “proteção integral” e a “prioridade absoluta” são dois princípios presentes no texto
constitucional que estabelecem os pilares processuais e hermenêuticos do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990).
A criança e o adolescente são reconhecidos pelo art. 3º do Estatuto como sujeitos de
direitos fundamentais, gozando de proteção integral, além de plenitude de respeito à sua
condição de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.
Como discorrem Murillo José Digiácomo e Ildeana de Amorim Digiácomo:
Tal disposição é também reflexo do contido no art. 5º, da CF/88, que ao deferir a
todos a igualdade em direitos e deveres individuais e coletivos, logicamente também
os estendeu a crianças e adolescentes. O verdadeiro princípio que o presente
dispositivo encerra, tem reflexos não apenas no âmbito do direito material, mas
também se aplica na esfera processual, não sendo admissível, por exemplo, que
adolescentes acusados da prática de atos infracionais deixem de ter fielmente
respeitadas todas as garantias processuais asseguradas aos acusados em geral, seja
qual for sua idade [...] 33
Quanto à prioridade absoluta, é regulada pelo art. 4º do Estatuto como “dever da
família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público” a preservação dos direitos
elencados pelo mesmo artigo, além de sua efetivação.
Trata o parágrafo único do art. 4º de distintas situações em que as autoridades
públicas devem, obrigatoriamente, garantir prioridade na atenção da criança e do adolescente.
Não se pode interpretar este parágrafo de forma restritiva, mas, extensiva, uma vez que a
clareza do texto estatutário não deixa margem a dúvidas quanto à prevalência dos interesses,
carências e necessidades infanto-juvenis:
Como se depreende em rápida exegese do precitado dispositivo estatutário, existe
[...] um verdadeiro comando normativo dirigido em especial ao administrador
público, que em suas metas e ações não tem alternativa outra além de priorizar – e
de forma absoluta – a área infanto-juvenil, como vem sendo reconhecido de forma
reiterada por nossos Tribunais [...] 34
33
DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado/Murillo José
Digiácomo e Ildeara Amorim Digiácomo. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná – Centro de Apoio
Operacional das Promotorias da Criança e do adolescente, 2010, p. 13.
34
Idem, p. 14.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O disposto no art. 227 da Constituição, seus parágrafos e incisos, encontra ecos
diretos e objetivos não apenas no art. 4º, parágrafo único do Estatuto, mas em todas as suas
prescrições, de modo que é evidente o diálogo que se estabelece com a Lei Maior.
Com a finalidade de correlacionar os preceitos da Carta da República com o Estatuto,
será feita breve síntese assim delineada: 35
Além da proteção integral aos seus direitos fundamentais e à efetivação dos mesmos,
com absoluta prioridade, as normas estatutárias deve ser interpretadas sempre levando-se em
conta a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º), em que se encontram a
criança e o adolescente.
Os seus direitos se apresentam no Estatuto arrolados em cinco grupos, a saber, vida e
saúde (arts. 7º - 14); liberdade, respeito e dignidade (arts. 15- 18); convivência familiar e
comunitária (arts. 19 - 52); educação, cultura, esporte e lazer (arts. 53 - 59); profissionalização
e proteção no trabalho (arts. 60 - 69).
Ocupa-se o Estatuto da prevenção de ocorrência de ameaça ou violação aos direitos
da criança e do adolescente, em todos os aspectos, mas em especial no que respeita à
informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, produtos e serviços que possam
afetar-lhes a personalidade em desenvolvimento, sob qualquer ângulo (arts. 70 a 84).
Quanto à ação das políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente,
cabe ao Poder Público articulá-las mediante a colaboração com organizações nãogovernamentais, além da atuação da União, Estado, Municípios e Distrito Federal (art. 86 97).
As medidas de proteção (arts. 98-102) e a prática de ato infracional (arts. 103-126),
somadas às medidas aplicáveis aos pais ou responsável (art. 129-130) compõem a garantia de
respeito e dignidade que o Estatuto visa promover, ao afastar, no art. 5º, “qualquer forma de
negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” praticada contra
criança ou adolescente.
Com a participação da comunidade são escolhidos os membros do Conselho Tutelar
(arts. 131 a 140), cujas atribuições estão previstas no art. 136 do Estatuto, objetivando o
atendimento e a promoção de iniciativas voltadas ao bem-estar da criança e do adolescente.
O acesso à Justiça da criança e do adolescente se dá pela Defensoria Pública,
Ministério Público e Poder Judiciário, respeitados a gratuidade e o sigilo dos atos judiciais
35
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).
58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
(arts. 141-144), sempre que os seus interesses assim o exigirem, sendo vedada qualquer forma
de discriminação ou restrição ao pleno exercício de seus direitos em juízo.
Caberá à Justiça da Infância e da Juventude julgar as ações previstas no art. 148,
incisos e alíneas, bem como disciplinar, mediante portaria e alvará, os atos que estão previstos
no art. 149, incisos e alíneas do estatuto. Os procedimentos adotados pela Lei n. 8069/1990 se
aplicam subsidiariamente às normas gerais previstas na legislação processual pertinente (arts.
152 a 224).
Os crimes e infrações administrativas são regulados pelo Estatuto nos arts. 225 a 258,
sem prejuízo do disposto na legislação em vigor.
Diante da analise sumaria realizada e das questões por este diploma legal arroladas, é
evidente a interlocução existente entre os preceitos da Lei maior e do Estatuto, traduzindo sua
relevância social e ética para o País.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao conferir à educação a natureza de direito fundamental, o art. 205 da vigente
Constituição especificou diretrizes que foram examinadas detidamente nas reflexões ora
concluídas.
Por primeiro foi analisado o pleno desenvolvimento da pessoa, cujo leque de
situações envolve desde os aspectos físicos, aos emocionais e intelectuais. Considerou-se a
educação como processo, portanto, com prolongamento no tempo, que na infância e
adolescência deve ser lastreado pela afetividade e embasado nos valores, princípios e
tradições de uma comunidade, grupo ou família. Assim, sendo o ambiente doméstico
acolhedor, a criança e o adolescente se tornarão pessoas amáveis e com responsabilidade
social. Conforme destacado, em palavras de Ted Ward, o ser humano é “totalmente
dependente”, vale dizer, somente se realiza em grupo, construindo sua personalidade como
reflexo dos valores e, na infância, tal insuficiência é marcante, pelas mais distintas razões, a
começar pela carência afetiva, somada à alimentar e sanitária. Cabe, igualmente, ao teor do
art. 205, à sociedade o dever de colaboração, ao lado do Estado e da família, promovendo e
incentivando ações educativas.
Na sequência, abordou-se o preparo para a cidadania como diretriz do processo
educativo, à luz do texto constitucional. Verificou-se a presença de situações persistentes, a
exemplo da evasão escolar, causada por inúmeros fatores, dentre estes a baixa escolaridade
dos pais, além da situação econômica da família. À educação incumbe a missão de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
transformar crianças, adolescentes e jovens em cidadãos compromissados com os valores da
sociedade à qual pertencem, além de conscientes de seu papel político. Foram levantadas no
texto três questões problemáticas, representativas dos reflexos do despreparo para o exercício
da cidadania, causados pelo abandono escolar ou mesmo falta de acesso à educação no País:
desinformação quanto aos direitos e deveres (apatia, alienação, acomodação), sobretudo dos
analfabetos, iletrados ou com letramento precário; exclusão social e econômica, com
crescente marginalização de um elevado contingente de cidadãos e, por fim, a violência
intrafamiliar e urbana, cujos efeitos perversos estão, a todo momento na mídia. Representada
pelo espancamento, abandono, maus tratos físicos, emocionais etc a insegurança social nada
mais é do que o espelho das condições de precariedade afetiva, moral e intelectual das
famílias.
Quanto à qualificação para o trabalho deu-se atenção a questões remanescentes do
próprio sistema ou decorrentes da falta de êxito na formação profissional e tecnológica de
grande número de adolescentes (menores aprendizes) e jovens (mão de obra informal).
O trabalho é um direito social (art. 6º) na Lei Maior, cujas condições, direitos e
deveres estão expressamente previstos no art. 7º, também, da Carta Constitucional. Proibições
aparecem no tocante a qualquer trabalho por menores de 14 (quatorze) anos, no texto da
Constituição, cujos princípios que devem reger a formação técnico-profissional do
adolescente se encontram no art. 63 do Estatuto. Valores do trabalho devem ser incutidos
desde os primeiros momentos de contato do adolescente aprendiz com a atividade
profissionalizante, intensificando-se com a formação do jovem.
Deu-se no texto destaque ao diálogo do Estatuto com os princípios constitucionais
não só do art. 205, mas que permeiam as disposições em geral, pela necessidade de contínua
interlocução com a realidade socioeconômica educativa do País. Os perfis da criança e do
adolescente foram esboçados no texto sob o enfoque psicopedagógico, socorrendo-se a
análise de fontes diversas, legais, científicas e técnicas, não só do Direito, mas de outras áreas,
conforme referenciado nas reflexões elaboradas. Fundamentou-se uma breve síntese do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990) nos princípios
presentes na Lei maior (“proteção integral” e “prioridade absoluta”), igualmente diretores da
hermenêutica material e formal da mencionada legislação estatutária.
Considerando-se que a pedra de toque do texto foi a análise das diretrizes do art. 205
da vigente Constituição e a percepção da urgente necessidade de promoção, incentivo e
acesso à educação quanto, sobretudo, à infância e adolescência; verificou-se que as políticas
públicas ainda são insuficientes para atender a demanda reprimida.
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
As possíveis soluções atravessam diversas áreas dos setores públicos e privados,
mas, o começo de qualquer iniciativa em educação está, sem dúvida, na conscientização dos
educadores e na mobilização da sociedade.
REFERÊNCIAS
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Janeiro: JUERP, 1981.
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A TEORIA GERAL DO GARANTISMO E A ESTRITA LEGALIDADE APLICADA A
DIREITOS SOCIAIS: O EXEMPLO DA LEI 12.010/2009
A GENERAL THEORY OF GUARANTEEISM AND STRICT LEGALITY APPLIED TO
SOCIAL RIGHTS: THE EXAMPLE OF LAW 12.010/2009
Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto1
RESUMO
Uma das transformações mais significativas que ocorreu no sistema jurídico brasileiro, diz
respeito ao protagonismo judicial que ocorreu após a edição da Constituição de 1988. Tal
questão tem sido objeto de um debate permanente que envolve, além das justificativas para
esta atuação, os limites da mesma. Dentre as teorias que podem auxiliar e dar respostas
efetivas a essa questão, está a Teoria Geral do Garantismo, a qual tem como espaço
privilegiado de aplicação o Estado Constitucional de Direito e trás um conceito que se mostra
fundamental no enfrentamento da questão relaciona ao ativismo judicial: a estrita legalidade
que, em face da dupla artificialidade do sistema (formal e material), possibilita um controle
mais democrático das políticas públicas. E foi justamente o que ocorreu com a edição da Lei
12.010/2009 a qual reformou parte do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90),
reduzindo o espaço de discricionariedade judicial de forma adequada e positiva.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Constitucional de Direito. Ativismo Judicial. Garantismo.
Direitos Sociais.
ABSTRACT
One of the most significant changes in the Brazilian legal system relates to judicial
prominence that occurred after the enactment of the 1988 Constitution. Such a question has
been the subject of an ongoing debate that involves the justifications for this action and its
limits as well. Among the theories that can help and give effective answers to this question,
there is the General Theory of Guaranteeism, which has as a privileged space for the
application of State Constitutional Law and brings a fundamental concept in addressing the
issue related to the judicial activism: the strict legality that, given the dual artificiality of the
system (formal and material), enables a more democratic control of public policies. And it
was precisely what occurred with the enactment of Law 12.010/2009 which reformed part of
the Children and Adolescents Statute (Law 8069/90), reducing the area of judicial discretion
in an appropriate and positive manner.
KEYWORDS: State Constitutional Law. Judicial Activism. Guaranteeism. Social Rights. 1
Doutor em Direito (UFSC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do
Itajaí-SC (UNIVALI) e do curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Juiz de Direito de 2º Grau (Desembargador Substituto) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9181238721519519. Email: [email protected]
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1 INTRODUÇÃO
Analisadas as transformações ocorridas no cenário jurídico nacional, uma das
características mais marcantes é, sem dúvida alguma, o protagonismo judicial a partir da
edição da Constituição da República em 1988. Defendido por alguns, criticado por outros, o
fato é que em nenhum outro momento de nossa história republicana o Poder Judiciário esteve
tão à frente do atendimento das políticas públicas incorporadas ao texto constitucional como
hoje.
E é justamente daí que surge o debate sobre os limites da atuação jurisdicional, já
que para alguns o poder de escolha do administrador público e do legislador não pode ser
invadido pela atuação do Poder Judiciário. Para eles, tal quadro leva a um rompimento do
princípio da separação de poderes, causando a substituição de um governo ou de um
legislador democraticamente eleito, pela vontade de um agente político não legitimado para
tanto. Já para outros, tal se mostra normal e aceitável em um Estado Democrático de Direito,
cuja característica principal é a total submissão aos comandos colocados na Constituição,
documento esse que tem a pretensão de dirigir todos os setores da vida em sociedade.
Outra questão importante que resulta dessa oposição de ideias a respeito dos limites
da atuação dos Juízes está ligada a segurança jurídica, a qual – se adotada a tese que admite a
inexistência de limites quando se trata da realização de direitos constitucionalmente
assegurados – restaria comprometida ante a ausência de soluções uniformes para problemas
comuns.
Partindo de uma visão negativa dessa atuação, o que se aclarará ao longo do texto, o
objetivo aqui é demonstrar como é possível a utilização da Teoria Geral do Garantismo para
fazer frente a esse protagonismo. Afinal, Luigi Ferrajoli – seu idealizador –sustenta uma
concepção negativa do exercício do poder, combatendo claramente o autoritarismo na política
e o decisionismo no Direito. Diz ele que, no exercício do poder há sempre presente um
potencial abuso e sua neutralização somente ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de
uma visão instrumental do Direito e do Estado.
Disso decorre uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição rígida:
uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas produzidas –
marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao Direito –
marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está disciplinada
por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo. Eis o resgate do princípio da
legalidade, através da chamada “dupla artificialidade”, que é um dos caminhos mais seguros
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
para enfrentar essa difícil questão, a exemplo do que ocorreu com o direito penal, onde o
princípio da legalidade (formal e material) tem sido utilizado com sucesso para evitar a
permanente tentativa de endurecimento do sistema penal como resposta à criminalidade. Igual
prática deveria e poderia ser adotada como os direitos sociais, onde há ainda um campo fértil
para a busca de tais limites, a fim de que ajudem a justiça brasileira a encontrar parâmetros
mais claros em relação à satisfação dessa modalidade de direitos.
Exemplo disso foi o que ocorreu com o direito da criança e do adolescente, e essa é a
questão se pretende explorar a seguir.
2 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO
Como já dito nos capítulos anteriores, duas transformações paralelas e semelhantes
deram-se em campos diversos do conhecimento e influenciaram não só o modo de
compreensão do Direito, mas também as funções reservadas ao Estado contemporâneo. A
primeira ocorreu na Filosofia do Direito, que admitiu a existência de um novo momento, o
“pós-positivismo”, cuja essência reside no reconhecimento de que há um novo paradigma a
merecer atenção, o paradigma constitucional, o qual tem como marca fundamental a
superação do mero legalismo. A segunda ocorreu na Teoria do Estado. Nela, em lugar de um
Estado de Direito e da centralidade do princípio da legalidade como norma de reconhecimento
do Direito vigente, surge um Estado Constitucional de Direito, que se apresenta como
superação do primeiro. A mudança reside na crescente importância das constituições
contemporâneas, nelas destacadas duas características fundamentais: supremacia e rigidez.
Esses documentos tornam-se os elementos centrais da nova formulação, que requer
instrumentos aptos para a realização dos direitos fundamentais, categoria que se apresenta
como elemento central desse novo momento.
A prática de declarar direitos em cartas constitucionais, ação iniciada com as
revoluções liberais – especialmente a francesa no século XVIII, ganha força com esses
movimentos. Nasce a esperança de que, transformadas as aspirações sociais em direitos
fundamentais, e estes, por sua vez, colocados a salvo em Constituições protegidas das
maiorias eventuais, ter-se-ia proteção suficiente para criar uma sociedade livre das barbáries
ocorridas ao longo dos anos.
Constatou-se, porém, sua insuficiência, já que a dificuldade atual está localizada não
mais no reconhecimento de direitos e na sua declaração, mas sim “em como juridicizar o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Estado Social, como estabelecer ou inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para
garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos” (BONAVIDES, 2005, p. 338).
Tal é, sem dúvida alguma, o ponto fundamental para a superação final das antigas
estruturas do Direito e do Estado – que ainda privilegiam antigas técnicas –, estruturas essas
totalmente inadequadas para fazer frente a este novo desafio. O pensamento que proclama
uma compreensão do sistema apenas e tão somente pela vinculação formal do conjunto
normativo, já não tem mais lugar no pós-positivismo e no Estado Constitucional e
Democrático de Direito.
Daí que cuidadoso exame merecem as ideias de Ferrajoli, expostas inicialmente em
Diritto e Ragione, obra publicada na Itália em 1989 e traduzida para o espanhol em 1995.
Desde então protagonista de grandes discussões, foi depois detalhada em uma série de
trabalhos publicados, com especial atenção aos livros que apresentam os debates com outros
professores, os quais serão analisados mais à frente.
A pretensão de Ferrajoli é construir uma “teoria geral do Garantismo”, razão pela
qual dedica os dois últimos capítulos de sua obra Direito e Razão a tratar do assunto. Na base
de seu pensamento, há a identificação de três aspectos de uma crise profunda e crescente
vivida pelo Direito na atualidade.
A primeira crise é a chamada “crise da legalidade”, ou seja, do valor vinculante
associado as regras pelos titulares dos poderes públicos, que se expressa pela ausência ou
pela ineficácia dos instrumentos de controle. Seu resultado imediato é a ilegalidade do poder.
Um reflexo dessa situação pode ser encontrado em vários Estados – europeus ou não – em
que há uma espécie de Estado paralelo que funciona baseado na corrupção e se estende por
todas as áreas (política, economia, administração pública etc.) (FERRAJOLI, 2001, p. 15).
A segunda está ligada à inadequação das estruturas do Estado de Direito para dar
conta das novas funções a ele atribuídas no chamado Welfare State. Se antes a marca
fundamental do modelo na sua versão liberal era a de protetor de uma esfera de
individualidade, cuja atuação não exigia apenas a imposição de limites e proibições, agora
tudo muda. Exige-se do Estado de Direito Social uma atuação positiva, atuante, pró-ativa, de
que resulta uma inflação legislativa que é provocada pelos mais diversos setores sociais com
leis cada vez mais específicas, parecendo meros atos administrativos. Há dificuldade para a
consolidação de um sistema de garantias tão eficiente como foram aqueles criados para
proteger os postulados do liberalismo, situação agravada pela acentuação do caráter
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
incompleto, seletivo e desigual que se manifesta na crise pela qual este modelo de Estado
passou no início dos anos setenta.
A terceira crise está relacionada ao debilitamento do Estado Nacional e se manifesta
no deslocamento dos lugares da soberania, já que as questões relacionadas, por exemplo, às
questões militares, de política monetária e políticas sociais escapam de suas fronteiras,
passando a depender mais de questões externas do que de questões internas. Além disso, há
um enfraquecimento do constitucionalismo, ante a inexistência de suporte teórico em Direito
Internacional que resolva a inserção desses novos espaços decisórios externos no sistema das
fontes de Direito.
No raciocínio de Ferrajoli, o problema central está em que essas três crises podem
colocar em colapso a própria Democracia, já que, por trás de todas elas, está presente uma
crise da legalidade, ou seja, do princípio da legalidade na sua versão mais pura e naquilo que
tem de mais precioso: a vinculação de todos às normas legais. Sua ausência gera a ilegalidade
do poder e formas neoabsolutistas de exercício do poder público “carentes de limites y de
controles y gobernadas por intereses fuertes y ocultos, dentro de nuestros ordenamentos”
(FERRAJOLI, 2001, p.17).
A esse respeito pode ser dito ainda que – como se trata de uma teoria que se
desenvolve no ambiente do Estado Constitucional de Direito e é própria dele – não traz
consigo a simples defesa de um mero legalismo, até porque o Garantismo é incompatível com
a falta de limitação jurídica do poder legislativo, já que a mera sujeição do juiz à lei
possibilitaria a convivência com as políticas mais autoritárias e antigarantistas (ABELLÁN,
2005, p. 21).
Sustenta sim, a partir de uma concepção negativa do exercício do poder, vez que
reconhece que há sempre presente um potencial abuso, que sua neutralização somente
ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de uma visão instrumental do Direito e do Estado.
O Garantismo se opõe de modo veemente “al autoritarismo en política y al decisionismo em
derecho, propugnando, frente al primero, la Democracia sustancial y, frente al segundo, El
principio de legalidad; en definitiva, El gobierno sub leges (mera legalidad) y per leges
(estricta legalidad)” (ABELLÁN, 2005, p. 22).
Pensar o contrário colocaria em risco as conquistas do Estado Moderno, em especial,
os direitos fundamentais, já que é inegável a perda de confiança que pode gerar,
especialmente após a constatação das crises existentes que afetam diretamente o sistema
normativo e, como já destacado, o princípio da legalidade. É bem verdade, afirma Ferrajoli,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
que, na época da implantação do sistema juspositivista, o quadro não era diferente, ou era até
pior, mais complexo e irracional. Contudo, não se pode negar que a razão jurídica atual tem a
seu favor um aliado importante: os progressos do constitucionalismo, que permitem
configurar e construir o Direito atual – muito mais do que se permitiu no velho Estado Liberal
– com um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenadas para a tutela dos
direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2001, p. 18).
Tal decorre de uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição
rígida: uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas
produzidas – marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao
Direito – marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está
disciplinada por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo (FERRAJOLI,
2001, p. 19).
Nesse passo, Garantismo e Estado Constitucional de Direito são expressões que se
identificam, podendo até mesmo afirmar-se que o segundo expressa a fórmula política do
primeiro, de modo que, apenas por meio desse, aquele consegue realizar seu programa, até
porque “solo este modelo político incorpora um riguroso ‘principio de estrita legalidad’, que
supone el sometimiento del poder no únicamente a limites formales, sino también a los limites
sustanciales impuestos por los principios y derechos fundamentales” (SANCHÍS, 2005 p.
41).
Pois bem, voltando à mencionada “dupla artificialidade”, é preciso dizer que ela se
constitui na mais importante conquista do Direito contemporâneo, já que o modelo garantista
se opõe frontalmente ao modelo paleopositivista, na medida em que se apresenta como uma
garantia diante do Direito ilegítimo. Nessa construção, as Constituições são fundamentais, já
que é na sua primazia como sistema de limites e vínculos para a maioria que deve ser
reconhecida uma das suas dimensões essenciais, não menos importante que sua dimensão
política. É o que Ferrajoli chama de dimensão substancial da Democracia, em contraposição à
dimensão meramente formal, constituída precisamente pelo princípio da maioria.
Há, contudo, um aspecto importante que leva necessariamente ao reconhecimento da
segunda dimensão, a substancial: no cerne da primeira, está localizada a confusão entre
Democracia e princípio da maioria, de forma a se entender esta última apenas como o poder
da maioria legitimado pelo voto popular. Tal compreensão
[...] ignora la que es la máxima adquisición y al mismo tiempo el fundamento del
Estado constitucional de derecho: la extensión del principio de legalidad también al
poder de la mayoría y, por consiguiente, la rígida sujeción a la ley de todos los
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
poderes públicos, incluindo el legislativo, y su funcionalización a la tutela de los
derechos fundamentales constitucionalmente garantizados (FERRAJOLI, 1995, p.
11).
Eis o reconhecimento de uma dimensão substancial da Democracia, com o
importante detalhe de que estes vínculos materiais não são outra coisa senão as garantias dos
direitos fundamentais, desde os direitos de liberdade até os direitos sociais:
[...] cuya estipulación ha introdocido, en la estructura misma del principio de
legalidad propio del actual estado constitucional del derecho, una racionalidad
sustancial que se ha añadido a la racionalidad formal propia del viejo positivismo
jurídico y del paradigma roussoniano de la Democracia Política, basados ambos en
la omnipotencia del legislador de mayoria (FERRAJOLI, 1995, p. 12).
Partindo de uma base de Direito Penal, em que se visualiza com perfeição a
divergência entre a normatividade do modelo constitucional e a ausência de efetividade nos
níveis normativos inferiores, Ferrajoli sustenta a já referida "Teoria Geral do Garantismo".
Como ele mesmo afirma:
La orientación que desde hace algún tiempo se conoce por el nombre de
'Garantismo' nació en el campo penal como una réplica al creciente desarrollo de la
citada divergencia, asi como a las culturas jurídicas y políticas que la han avalado,
ocultado e alimentado, casi siempre en nombre de la defensa del estado de derecho y
del ordenamiento democrático (FERRAJOLI, 1995 p. 851).
A partir daí, Ferrajoli propõe o significado da palavra "Garantismo" em três
concepções diversas, suscetíveis de ser trasladadas para todos os campos do conhecimento
jurídico.
A primeira delas decorre do entendimento de Garantismo como um modelo
normativo de Direito, já que é justamente a partir do Direito Penal que a palavra representa a
ideia de estrita legalidade, própria do Estado de Direito; a segunda representa a acepção do
termo Garantismo como uma teoria jurídica da validez e da efetividade, consideradas
categorias distintas entre si, e também da vigência ou existência das normas. Nesse caso, a
palavra Garantismo expressa uma aproximação teórica que mantém separados o ser do dever
ser do Direito, além de propor como questão central a divergência existente – nos
ordenamentos complexos – entre:
modelos normativos (tendencialmente garantistas) y práticas operativas
(tendencialmente antigarantistas), interpretándola mediante la antinomia – dentro de
ciertos limites fisiológica y fuera de ellos patológica – que subsiste entre validez (e
inefitividad) de los primeros y efectividad (e invalidez) de las segundas
(FERRAJOLI, 1995, p. 85).
Por fim, na terceira forma de compreender Garantismo, a palavra designa uma
filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado uma “carga de la justificación externa
conforme a los bienes y a los intereses cuya tutela y garantia constituye precisamente la
finalidad de ambos” (FERRAJOLI, 1995, p. 853).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Ferrajoli explica ainda que esses três sentidos, que até aquele momento haviam sido
usados com uma conotação unicamente relacionada ao Direito Penal, contêm um alcance
teórico mais amplo e desenham uma teoria geral fundada nos seguintes aspectos: 1) caráter de
vinculação do poder público no Estado de Direito; 2) divergência entre validade e vigência
produzida pela existência de normas em níveis diversos dentro do sistema jurídico e certo
grau (irredutível) de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de níveis inferiores; 3)
distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico)
e daí a divergência entre justiça e validade; e, por fim, 4) autonomia e precedência da justiça e
um certo grau de ilegitimidade política das instituições vigentes com relação a ela
(FERRAJOLI, 1995, p. 854).
Por todos esses motivos, fica evidente que a ampliação do campo de incidência do
Garantismo jurídico é perfeitamente possível, já que a similitude de questões a ser superadas
do antigo Estado de Direito e a construção de estruturas para a plena vigência do Estado
Constitucional de Direito, assim apontam. Some-se a isso a identidade estrutural entre os
diversos sistemas presentes no ordenamento jurídico, elemento que torna possível a ampliação
dessas estruturas para os mais diversos campos do Direito que, na atualidade, passam pelos
mesmos problemas.
3 AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO
JURÍDICO EM UM MODELO DE POSITIVISMO CLÁSSICO
A apresentação das mudanças trazidas pelo novo modelo de Garantismo leva
necessariamente a um confronto direto com a concepção de Direito sustentada pelo
positivismo clássico, diferença essa que pode ser percebida nos seguintes planos: 1) no plano
da Teoria do Direito, em que se faz necessária uma revisão da concepção de validade das
normas jurídicas, que decorre da diferenciação que é feita entre validade e vigência; 2) no
plano da teoria política, já que agora se postula o reconhecimento da dimensão substancial da
Democracia, não sendo mais suficiente apenas sua compreensão no plano formal; 3) no plano
da teoria da interpretação e da aplicação da lei, vez que agora se impõe ao juiz uma nova
postura, com a redefinição do seu papel, e, ainda, das condições para que se dê sua
vinculação; e, 4) no plano da ciência jurídica, que se afasta de uma postura meramente
descritiva do sistema, para assumir uma postura crítica em relação ao seu objeto.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
3.1 O Garantismo e a Teoria do Direito
No que se refere à primeira alteração, evidencia-se uma clara superação das teses
apresentadas por três dos mais importantes teóricos do Direito no século passado: Kelsen,
Bobbio e Hart. Isto porque, conforme Ferrajoli, a validade da norma não é mais identificada
unicamente por sua conformidade com as normas que regulam sua produção e que também
pertencem a esse ordenamento (FERRAJOLI, 2001, p. 20).
Para o autor, essa concepção é uma simplificação indevida do sistema normativo e
resulta da falta de compreensão da complexidade do princípio da legalidade no Estado
Constitucional de Direito, já que não se pode desconhecer que neste, o sistema de normas
sobre a produção de normas não se compõe unicamente de regras formais que tratam de
competência ou procedimentos, mas sim – e também – traz “normas sustanciales, como el
principio de igualdad y los derechos fundamentales, que de modo diverso limitan y vinculan
al poder legislativo excluyendo o imponiéndole determinados contenidos” (FERRAJOLI,
2001, p. 21).
Isso significa que uma norma deixa de ser reconhecida somente pelo atendimento aos
requisitos previstos para sua criação. Passa a exigir também respeito à matéria que é objeto
dessa lei, que não poderá jamais contrariar o conteúdo da “norma de reconhecimento”. Para
os aspectos formais, há o conceito de vigência, que serve justamente para a verificação do
respeito, ou não, aos procedimentos para a elaboração da norma, da competência para sua
edição e do atendimento aos requisitos necessários para produzir seus efeitos. Para as
questões relacionadas à sua substância, ao seu conteúdo, ao seu aspecto material, busca-se o
conceito de validade, que é resultado direto da dupla artificialidade do sistema jurídico que
hoje se reconhece.
Há uma imposição de limitação ao poder do legislador – já que na compreensão de
Ferrajoli a possibilidade do abuso do poder está sempre presente – a qual é feita
fundamentalmente através da separação dos conceitos de vigência e validade da norma, que
deixam de ser compreendidos como um só, o que ocorria no estado paleopositivista de
Direito. Agora uma norma será justa, se merecer a aprovação moral, juízo que é externo ao
sistema; será válida, se não contiver vícios materiais, ou seja, não contrariar normas
hierarquicamente superiores; será vigente, se preencher os requisitos formais previstos no
sistema; e, por fim, será eficaz se observada pelos destinatários (ABELLÁN, 2005, p. 26).
Contudo, apesar das vantagens identificadas na teoria apresentada por Ferrajoli –
considerada como uma completa Filosofia do Direito que inclui teses metodológicas,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
conceituais e axiológicas – ainda assim algumas dificuldades podem ser encontradas,
especialmente no que se refere à separação entre vigência e validade. Nesse sentido, Abellán
afirma que, ao se considerar a vigência como uma categoria submetida a um juízo
interpretativo e não um mero juízo de fato, e a validade também como um juízo de
interpretação e não de valor indecidível, em ambos os casos não há como se afastar de uma
discricionariedade interpretativa, no segundo caso mais presente do que no primeiro
(ABELLÁN, 2005, p. 33).
A consequência disso é que a validade se torna então um juízo externo, afirmação
reforçada pela interpretação de Ferrajoli apresentada por Abellán, para quem:
interpretar la constituición no consiste solo en atribuir significado al texto normativo
según el canon interpretativo de la intención de su autor, sino según la filosofia
política que subyace a la misma y que esta solo imperfectamente recoge; es decir,
según el modelo axiológico del Garantismo (ABELLÁN, 2005, p. 35).
Apesar de apontar que esse efeito pode levar ao enfraquecimento do Garantismo, vez
que o coloca em posição próxima àqueles a quem critica, é preciso dizer que esse detalhe
pode ser compreendido de outra forma.
É que – além de se tratar de um juízo interno e não externo – detém um forte
componente de racionalidade sistêmica, ausente no exame da justiça da norma, uma vez que,
como lembra Serrano:
el juicio de validez depende de los mecanismos internos de control del sistema
jurídico, en mucha mayor medida que el juicio de justicia pueda depender de
mecanismos de control de los sistemas Morales. Los sistemas jurídicos están más
diferenciados y son, en este sentido, mucho más cerrados que los sistemas Morales
(SERRANO, 1999, p. 53).
Ainda em relação ao entendimento de validade sustentado por Ferrajoli, tal
sustentação leva ao reconhecimento de que – a partir daí – se constroem três novas esferas de
decisão política, inexistentes na compreensão do sistema jurídico no modelo paleopositivista
do Estado de Direito, em que validade e vigência se confundem. São elas: 1) a do indecidível
formada pelo conjunto de direitos de liberdade e de autonomia que impedem decisões –
expectativas negativas – que podem lesioná-los ou reduzi-los; 2) a do indecidível formada
pelos direitos sociais que impõem decisões – expectativas positivas – dirigidas a satisfazê-los;
e, por fim, 3) a do decidível, instância em que se legitima o direito de autonomia, tanto
política (através da representação) como privada (através das regras do mercado). E é
justamente nesse ponto, de acordo com Sanchís:
[que a] Democracia formal aparece generada por los derechos de autonomia que
determinan quién y cómo se manda; la Democracia sustancial viene delimitada por
los derechos de liberdad que dan lugar a obligaciones de abstención o respeto de
âmbitos de inmunidad (lo indecidible) y por lo derechos sociales que reclaman
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
acciones positivas de dar o de hacer (lo indecidible que no) (SANCHÍS, 2005 p.
43).
Dá-se então o ponto de encontro das duas formas de compreender o sistema,
promovendo a ligação entre o aspecto formal e o substancial, com especial ênfase aos direitos
fundamentais.
3.2 O Garantismo e as Dimensões da Democracia (Formal e Substancial)
Na relação entre Garantismo e Democracia, o que sobressai é a compreensão de um
aspecto até então encoberto ou desconhecido da Democracia, que é a sua dimensão
substancial, já que de um olhar para a Democracia que servia apenas para ditar procedimentos
de coleta da vontade popular, passa-se a perceber a existência de outro aspecto em relação a
ela, agora voltado para a garantia de direitos não só da maioria, mas também da minoria, vez
que seu reconhecimento impede que a primeira anule ou aniquile os direitos da segunda, sem
qualquer possibilidade de existência de uma onipotência da primeira, o que resulta de uma
compreensão de Democracia plebiscitária ou majoritária.
E é justamente em oposição a essa compreensão limitada de Democracia que
Ferrajoli aponta a existência de uma Democracia constitucional, a qual se contrapõe a uma
Democracia legitimada unicamente pela vontade da maioria que desqualifica os limites
impostos ao poder executivo, tido como um poder absoluto no modelo paleopositivista de
Estado de Direito (FERRAJOLI, 2008, p. 25).
A esse pensamento se opõe a moderna concepção de Constituição, já que reduz (ou
elimina) sua principal função por meio da imposição de limites ao poder. Para Ferrajoli, a
essência do constitucionalismo e do Garantismo – e da Democracia constitucional
reside precisamente en el conjunto de limites impuestos por las constituciones a
todo poder, que postula en consecuencia una concepción de la Democracia como
sistema frágil y complejo de separación y equilíbrio entre poderes, de limites de
forma y de sustância a su ejercicio, de garantias de los derechos fundamentales, de
técnicas de control y de reparación contra sus violaciones (FERRAJOLI, 2008, p.
27).
Nesse novo modelo, o Estado constitucional está submetido ao Direito, tanto quando
os demais poderes do Estado, o que se dá em função da supremacia constitucional, elemento
que se apresenta como uma das grandes novidades nos sistemas políticos do pós-guerra. Dáse o surgimento de um novo paradigma que passa a informar todo o Direito, redefinindo sua
função dentro do sistema social, o qual pode ser mais bem compreendido se observado que é a
partir do fim da Segunda Guerra mundial – quando o homem percebe que sua capacidade de
destruição é superior a sua capacidade de construção – que se dá o seu surgimento. É
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
justamente ali que se veem os malefícios que podem ser causados pela maioria diante da
ausência de limites a ela e, ainda, que o consenso das massas não pode ser a única fonte de
legitimação do poder (FERRAJOLI, 2008, p.28). Há uma redescoberta das constituições com
uma leitura mais ampla do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789, em que estava dito que só tinha Constituição a sociedade que garantisse direitos e
separasse poderes.
A tudo isso se agrega um novo elemento: a rigidez constitucional, elemento que se
apresenta com a concepção hierarquizada do sistema jurídico – de onde decorre a supremacia
do texto constitucional – e que resulta, conforme Ferrajoli:
en la sujeición al derecho de todos los poderes, incluso el poder legislativo, em el
plano del derecho interno y también el del derecho internacional: su sujeición,
precisamente, al imperativo de la paz y a los princípios de justicia positiva, y ante
todo a los derechos fundamentales, establecidos tanto em las constituciones estatales
como en ese embrión de constituición mundial constituido por la Carta de las
Naciones Unidas y la Declaración universal de los derechos humanos (FERRAJOLI,
2008, p. 29).
Esse novo elemento faz com que o momento de elaboração de uma Constituição seja
um momento especial, único. Com isso, retira-se da maioria o poder de supressão de direitos e
garantias, e asseguram-se os direitos à minoria, o que autoriza a afirmação de que o Estado
Constitucional é mais do que Estado de Direito, já que o elemento democrático nele
introduzido não foi apenas ali colocado para travar o poder, foi também inserido pela
necessidade de legitimação desse mesmo poder (CANOTILHO, 2003, p.100).
Há uma constitucionalização da ordem jurídica, que pode ser identificada com as
chamadas “sete condições de constitucionalização” já mencionadas, que é preciso repetir: 1)
rigidez constitucional, de modo que qualquer reforma do texto maior somente poderá se dar
através de um processo mais agravado do que aquele utilizado para a aprovação, modificação
ou revogação das leis ordinárias; 2) controle de constitucionalidade, decorrente da rigidez e da
supremacia da Constituição, que funciona como mecanismo de proteção da autoridade do
texto fundamental, ao prever modos de retirar do sistema o que lhe for contrário; 3) força
vinculante da Constituição, já que não se pode admitir que um texto com essa importância
deixe de gerar obrigação aos cidadãos e ao poder público, até porque “al asegurar el carácter
normativo de las constituciones se garantiza la vinculación a las cláusulas constitucionales de
los poderes públicos y los ciudadanos en los momentos de política ordinária” (PEÑA
FREIRE, 2004, p. 34); 4) A adoção de uma interpretação extensiva da Constituição, ou seja,
uma compreensão da Constituição de modo a extrair também as normas implícitas nela
inseridas; 5) Aplicação direta das normas constitucionais, o que impõe a compreensão de que
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
se trata de um documento que – em lugar de estar no topo do ordenamento jurídico – também
pode ser visto no centro de uma estrutura de onde irradia toda sua força normativa; 6)
Interpretação das leis ordinárias conforme a Constituição, o que significa levar a extremos o
controle de constitucionalidade, incorporando as modernas técnicas de fiscalização da
constitucionalidade das leis, alçando, inclusive, as variações de interpretação das normas fora
do texto maior; e, por fim, 7) Influência da Constituição nas relações políticas, o que decorre
diretamente da aceitação do documento perante a comunidade em geral (GUASTINI, 2005, p.
50-58).
De todas as mencionadas, não há dúvida de que as duas primeiras são essenciais e
fundamentais nesse processo, já que são justamente elas que determinam a colocação da
Constituição em um novo espaço que a diferencia daquele que lhe era reservado no antigo
Estado Paleopositivista de Direito. Com isso, tem-se uma Constituição resultante da
compreensão de que com ela esse espaço servirá como um elemento de superação da
debilidade estrutural presente no antigo Estado de Direito.
Afirma-se o caráter jurídico e vinculante dos textos constitucionais, a rigidez e a
qualificação de determinados referentes jurídicos, tais como os direitos fundamentais, signos
desse processo (CADEMARTORI, 2006, p. 20).
Nesse passo, torna-se explícita a compreensão de que os direitos fundamentais
constituem a base da igualdade moderna, igualdade em direitos que evidencia duas
características estruturais que diferenciam essa categoria de direitos de todas as demais. A
primeira pode ser percebida no direito de propriedade, este, um tipo de direito que pode ser
chamado de universal, já que corresponde a todos na mesma medida, diferentemente do que
ocorre com os direitos patrimoniais, que são direitos excludentes, posto que um sujeito pode
ou não ser detentor, com um importante detalhe que deve ser levado em consideração: ao ser
uma pessoa titular de um direito desse tipo, dá-se a exclusão dessa possibilidade para todas as
demais. A segunda está relacionada à indisponibilidade e à inalienabilidade, tanto ativa como
passiva, características que “los sustrae al mercado y a la decisión política, limitando la esfera
de lo decidible de uno y otra, y vinculándola a sua tutela y satisfacción” (FERRAJOLI, 2001,
p. 23).
Aqui também, evidentemente, estão presentes os elementos que sustentam um Estado
Constitucional de Direito em superação ao velho Estado de Direito de matrix paleopositivista,
já que essenciais se mostram duas de suas características já ressaltadas, a saber, a supremacia
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e a higidez do texto constitucional. Ocorre dessa forma pelo simples fato de que esses dois
elementos colocam a salvo de toda e qualquer maioria eventual os direitos da minoria.
Adianta Ferrajoli que a dupla artificialidade – que determina a existência de normas
que tratarão da vigência e de normas que tratarão da validade das normas – serve também
para o reconhecimento de que a dimensão formal da Democracia estará atenta a quem decide
e a como se dá a decisão política, ao passo que a dimensão substancial (ou material) está
focada sobre o que pode ou não ser objeto da decisão política (FERRAJOLI, 2001, p. 23).
3.3 O Garantismo e o Papel do Juiz
Se na Teoria do Direito e na extensão de mais um significado ao entendimento do
que é Democracia, os reflexos do Garantismo se fazem presentes, idêntica situação ocorre em
relação à atividade jurisdicional e às possibilidades interpretativas que se abrem para o
operador do Direito. Em verdade, e especialmente no que se refere ao primeiro ponto, há uma
redefinição do papel que o juiz pode ocupar dentro do sistema, já que será a jurisdição uma
função que dará a garantia ao cidadão de que a norma inválida e que não diga respeito aos
parâmetros substanciais, deixará de ser aplicada por falta de vinculação. Com isso, a
ilegitimidade do poder que a colocou no sistema ficará evidenciada, já que, no novo sistema, a
vinculação do juiz não será mais à lei, como no velho Estado Paleopositivista de Direito.
Agora, no Estado Constitucional de Direito, a vinculação se dá à Constituição, pois nela estão
depositados os valores fundamentais da sociedade expostos sob o título de direitos
fundamentais. Como explica Ferrajoli:
En esta sujeición del juez a la Constituición, y, en consecuencia, en su papel de
garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el
principal fundamento actual de la legitimación de la jurisdición y de la
independencia del poder judicial de los demás poderes, legislativo y ejecutivo,
aunque sean – o precisamente porque son – poderes de mayoría. (FERRAJOLI,
2001, p. 26).
Disso decorre uma importante consequência que diz respeito ao fundamento do
exercício da atividade jurisdicional, a partir do reconhecimento de que sua atribuição é a
garantia de direitos fundamentais com o respeito à dupla artificialidade do sistema. Cai por
terra o dogma de que sua legitimação está relacionada apenas e unicamente à separação de
poderes. Há, como se vê, um deslocamento, de modo que:
Esta legitimación no tiene nada que ver com la de la Democracia Política, ligada a
la representación. No se deriva de la voluntad de la mayoría, de la que asimismo la
ley es expresión. Su fundamento es únicamente la intangibilidad de los derechos
fundamentales (FERRAJOLI, 2001, p. 27).
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O que se pode extrair disso é uma mudança fundamental que se dá com a alteração
na concepção do Estado de Direito – e sua passagem para um Estado Constitucional de
Direito – e a compreensão do Garantismo não mais como apenas uma mera proteção dos
direitos de liberdade em relação ao Estado, ou diante dele, entendimento histórico da
expressão. Se antes era assim entendido, o que gerava uma função jurisdicional típica do
liberalismo calcada na ideia de separação dos poderes, agora a concepção de Garantismo
representa uma forma de identificar a Democracia constitucional própria do Estado
Constitucional de Direito (IBANHES, 2005, p. 61).
Isso explica sua raiz penal e a ampliação para a garantia de todos os demais direitos
fundamentais, legitimando e justificando a atuação judicial para essa proteção – já que o
sistema constitucional atual impõe de maneira vinculante uma Teoria Crítica do Direito, não
mais limitada e na ocultação das divergências entre o ser e o dever ser, mas que problematiza
o Direito, perdendo o juiz seu papel tradicional imposto pela visão kelseniana do
ordenamento.
3.4 O Garantismo e a Ciência Jurídica
No que se refere à quarta e última das alterações produzidas no velho Estado de
Direito em sua versão juspositivista, está ela relacionada à afirmação de que situações como a
incoerência, a falta de plenitude, as antinomias e as lacunas são vícios insuperáveis do sistema
jurídico. Na visão de Ferrajoli, tal situação – em lugar de alimentar um pessimismo em
relação às possibilidades do Direito – no Estado Constitucional e Democrático de Direito,
constituem-se em seu maior mérito. O que à primeira vista se mostra paradoxal, deixa de sê-lo
ao se observar que justamente as características do Estado Democrático de Direito é que
excluem as formas de legitimação absoluta e permitem sempre “más que la legitimación, la
deslegitimación del ejercicio de los poderes públicos por violaciones o incumplimientos de las
promesas altas e difíciles formuladas en sus normas constitucionales” (FERRAJOLI, 2001, p.
28).
Diante disso, evidencia-se um papel destinado à ciência jurídica inexistente no antigo
modelo, que é justamente o de exercer um papel crítico em relação ao seu objeto de estudo, e
não apenas e tão somente descritivo. Com a já falada dupla artificialidade existente no sistema
de normas jurídicas, surgem possibilidades dentro do sistema – e não mais de fora dele – de se
promoverem as correções necessárias para impedir o abuso de poder manifestado pela
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
inserção de normas que violem esse mesmo conjunto normativo, agora não unicamente pela
forma de inserção, mas também pelo conteúdo.
Importante observar que esse papel crítico, que se dá no campo da legitimidade da
norma, está ligado – também – ao seu conteúdo, a partir do exame da sua validade que, como
já exposto, difere da vigência. A esse respeito, ainda é preciso destacar a questão relacionada
à justiça da norma, que difere tanto da vigência quanto da validade.
Em relação ao primeiro, tal se evidencia pelo fato de que a vigência é apenas e tão
somente relacionada à existência jurídica da norma, ou seja, é um juízo de fato que abre a
possibilidade de observação dos aspectos meramente formais exigidos para que a norma possa
fazer parte do ordenamento jurídico. Quanto ao segundo, as diferenças se mantêm, já que se
trata de um juízo de adequação entre o conteúdo da norma e o conteúdo das normas
superiores a ela. Contudo, há um ponto que merece destaque: aqui há uma identidade entre o
juízo de justiça da norma e a sua validade, relacionada à estrutura do exame que é feito. Tais
coincidências ocorrem em dois pontos: 1) juízos valorativos e 2) juízos complexos, difusos ou
de grau, em oposição ao de vigência, que é simples ou binário (sim ou não), já que “establecer
que uma norma jurídica deriva de otra o, cuando menos, que no es incompatible com Ella no
es uma operación geométrica o posibilística, sino una determinación probabilística de grados”
(SERRANO, 1999, p. 52).
Em síntese, pode-se lembrar com Cademartori quando afirma que essa forma de
compreender e abordar o Direito “coloca em questão dois dogmas do positivismo jurídico
dogmático: a fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva e avalorativa do jurista
em relação ao direito positivo vigente” (CADEMARTORI, 2006, p.104).
4 A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM
EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO
POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Quando o assunto é direitos sociais, um dos pontos mais sensíveis da Constituição da
República é o que trata do direito das crianças e dos adolescentes e se evidencia na ênfase
dada ao assunto, tratado em um capítulo inteiro da Constituição de 1988. Dos artigos que
tratam da matéria, o principal é o de número 227, em que está dito:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Pela simples leitura desse artigo, percebe-se uma ênfase especial à chamada “política
da proteção integral”, expressão que resume a visão doutrinária adotada pelo sistema
constitucional brasileiro, deixando para trás as formas antes privilegiadas que, ao longo dos
anos, mostraram-se insuficientes para dar conta do problema, ainda mais violadoras do que
garantidoras de direitos e, por isso mesmo, inadequadas como mecanismos de proteção às
crianças e adolescentes.
Para compreender o alcance dessa mudança de paradigma, é preciso voltar ao início
do século passado, quando o Brasil editou o Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927,
ato legislativo que modificou a situação de total descaso até então existente em relação aos
menores. Esse documento, na época considerado um avanço, olhado com a distância do
tempo, mostra-se insuficiente, já que trata a criança e o adolescente de forma única,
desconsiderando as diferenças entre as duas fases do crescimento, o que se percebe ao
observar que todos eram tratados de forma geral como “menores abandonados” e, a partir daí,
colocados na condição de “filhos do Governo”.
Alguns dispositivos são interessantes e bem demonstram a visão equivocada, como é
o caso do art. 15 que preconizava: “A admissão dos expostos á assistencia se fará por
consignação directa, excluido o systema das rodas”. Essa norma possibilitava a entrega da
criança para o Estado sem a identificação da genitora, de forma anônima. Admitir essa
condição significa tratar a criança como um objeto à disposição do adulto, sem levar em
consideração a existência de seu direito à convivência familiar.
Outro exemplo está no art. 26 do já mencionado Decreto que considerava como
abandonados e colocava sob a tutela do Estado, não só aqueles que tinham menos de 18 anos
sem habitação certa ou meios de subsistência por serem os pais falecidos ou desaparecidos,
como também os “que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou
libertinagem” mesmo que seus pais fossem conhecidos (inciso V, do art. 26, do Decreto n.
17.943-A, de 12.10.1927).
Como se vê, para situações completamente diversas, era o mesmo o tratamento
previsto. Caso houvesse o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de
direito, seria outra a intervenção proposta.
Essa compreensão equivocada manteve-se nas legislações posteriores, dentre as
quais merece destaque o Código de Menores de 1979, que adota a chamada “Doutrina da
Situação Irregular” e afirma em seu artigo 1º que aquele código tratava da “assistência,
proteção e vigilância a menores”. O mencionado código descreve no art. 2o o que entende por
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
menor em “situação irregular”: aquele que estivesse em falta, omissão ou impossibilidade dos
pais; fosse vítima de maus tratos; corresse perigo moral; estivesse em desvio de conduta ou
fosse autor de infração penal. Mais uma vez, em lugar da individualização, o trato genérico
exclusivamente focado no adulto.
Com o já mencionado art. 227 da Constituição de 1988 e a adoção da política de
proteção integral, muda-se por completo essa concepção que traz como marca: 1) a
compreensão de que a violação de qualquer direito da criança ou do adolescente é de
responsabilidade da família, da sociedade ou do Estado; 2) desaparecem as caracterizações
ambíguas como “risco”, “perigo moral”, “situação irregular” que nelas permitiam o
enquadramento de qualquer situação fora do padrão ditado pelos adultos; 3) as crianças e os
adolescentes são sujeitos de direitos, e não mais meros problemas ou objetos à disposição dos
adultos; e, por fim, 4) há uma forte atenção à garantia dos direitos, não se preocupando o
legislador apenas com sua declaração.
Dentro dessa linha foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8069/90), ato normativo que tem por pretensão detalhar toda a “política da proteção integral”
– como anuncia já nos seus primeiros artigos – e o faz a partir de uma estrutura dividida em
três sistemas de garantias: em primeiro, as políticas públicas de atendimento (arts. 4a a 87);
em segundo, as medidas de proteção destinadas às crianças e aos adolescentes em situação de
violação de seus direitos (arts. 98 a 101); e, por fim, um sistema que trata de medidas sócioeducativas aplicáveis a adolescentes em conflito com a lei. Os demais dispositivos tratam das
estruturas que darão suporte a este sistema de garantias, como os Conselhos, a Justiça da
Infância e da Juventude, as infrações administrativas e os crimes específicos, bem como suas
penalidades.
De início, uma das características que pode ser percebida no trato do direito da
infância e da juventude no Direito brasileiro é que, de uma concepção que nominalmente era
protetiva, mas na prática era seletiva, já que deixava aos aplicadores da norma um largo
espaço para, inclusive, escolher quem deveria se enquadrar nos seus conceitos, caminhou-se
para a adoção de uma legislação que identificava melhor os casos que a ela deveriam se
submeter, abandonando as denominações ambíguas e o espaço de escolha do aplicador da
norma.
Agora, embora evidente a escolha desse caminho, há ainda um largo espaço de
discricionariedade deixado ao aplicador da norma (seja na esfera administrativa, seja na esfera
jurisdicional) quando se trata da implementação de qualquer dos direitos ali previstos. O que
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
se vê é que, na aplicação concreta desses dispositivos, ainda persistem inúmeras
possibilidades de interpretação, a exemplo, registre-se, do que ocorreu com a distribuição de
remédios nos casos de portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de
AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida).
É bem verdade que, com a edição da Lei n. 9313/96 (que determina a distribuição
gratuita de medicamentos), houve uma redução das decisões judiciais contraditórias,
caminhando-se para uma uniformização. Mas é preciso recordar o que ocorria antes dela: de
um lado, decisões determinando a concessão do remédio de forma gratuita a toda e qualquer
pessoa que dele necessitasse; ao mesmo tempo, de outro, decisões negando essa possibilidade
pelos mais diversos argumentos, os quais iam desde a falta de estrutura do Estado para
atender a todos, até julgamentos morais relacionados aos portadores da referida síndrome.
É inegável que parte do problema foi resolvida, mas também é inegável que em
muitas outras situações ele persiste, o que se dá pela existência de um ponto comum entre
eles: a existência de “vazios” legislativos que possibilitam arbítrios jurisdicionais e tratamento
desigual a situações semelhantes. Tanto isso é verdade que, na tentativa de resolver esse
problema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação n. 31, de 30 de março de
2010, documento que apresenta várias medidas que devem merecer a atenção do juiz quando
se depara com pedidos dessa natureza, tudo com o objetivo de evitar decisões conflitantes que
importem em gastos inadequados ao Estado, seja com medicamentos ainda em fase
experimental, seja com medicamentos de eficácia duvidosa ou destinados a pessoas em
condições de arcar com seus custos.
É justamente aqui que se aplicaria a noção da estrita legalidade, agora
redimensionada em face da dupla artificialidade proclamada por Ferrajoli, ou seja, em face do
vínculo formal e do vínculo substancial, sempre tendo por parâmetro a Constituição Federal e
a possibilidade de uso dos seus instrumentos de defesa, em especial, o controle de
constitucionalidade.
A exemplo do que já ocorre com o Direito Penal, abre-se a possibilidade de
construção de um sistema garantista de ordem social mais claro e aplicável com maior
facilidade, evitando a contaminação de concepções pessoais, que estariam impedidas de
invadir a esfera de atuação judicial como forma de limitar o exercício dos direitos
fundamentais. Além disso, obrigaria de modo mais claro o administrador a implementar tais
direitos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Retomando o caso do direito da criança e do adolescente, foi justamente isso que
ocorreu com a edição da Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, com o objetivo de aperfeiçoar a
sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e
adolescentes. Pela leitura dos seus diversos artigos, que promovem alterações substanciais no
Estatuto da Criança e do Adolescente, o que se percebe não é uma mudança de concepção no
trato da matéria como antes colocada, mas sim uma especificação dos institutos previstos,
detalhando-os de modo mais claro, não só em relação aos procedimentos que devem ser
adotados, mas também em relação às condições para a ocorrência de uma série de situações
jurídicas.
Exemplo disso é o que diz agora o art. 19, § 2º: “A permanência da criança e do
adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois)
anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente
fundamentada pela autoridade judiciária”. Antes dele, não havia qualquer prazo fixado para a
busca de uma solução, abrindo-se um grande espaço de liberdade ao juiz para a escolha do
destino a ser dado à criança naquela situação, sem qualquer justificativa. Isso agora não será
mais possível diante da obrigatoriedade de justificar quando o prazo previsto for superado.
Outro ponto que igualmente demonstra a opção pelo detalhamento em lei com o
objetivo de evitar manifestações contraditórias é o que trata da habilitação para adotar. Desde
a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/1990), foi implantado na
maioria dos juizados da infância e juventude espalhados pelo Brasil um sistema que dispunha
que toda adoção deveria ser antecedida por uma habilitação prévia. Esta era feita por meio de
um pedido assinado pelos próprios requerentes, em que, além de apresentar as características
da criança ou adolescente por eles desejado, anexavam alguns documentos. Depois, os
pretendentes eram submetidos a um estudo social e, com manifestação do Ministério Público,
era prolatada uma decisão judicial declarando-os habilitados, ou não, ato que poderia merecer
recurso à instância superior.
A lei determina os cuidados referentes à adoção em artigo específico em que se lê:
Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um
registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de
pessoas interessadas na adoção.
§ 1º O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do
Juizado, ouvido o Ministério Público.
§ 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfizer os requisitos legais,
ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29.
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Percebeu-se, no entanto, que, em inúmeras comarcas espalhadas pelo Brasil, tal
procedimento era limitado à simples colocação do nome do interessado em um livro após
contato com as assistentes sociais, o que era feito sem qualquer formalidade maior que
permitisse conhecer mais o pretendente e, após isso, elaborar um juízo seguro sobre sua
preparação para a responsabilidade de assumir uma criança ou adolescente.
A falta de uniformidade no proceder levou à necessária regulamentação de modo
mais detalhado daquilo que antes já era a intenção do legislador, ou seja, uma avaliação
preliminar do pretendente a fim de dar maior segurança às novas adoções. Para tanto, o
legislador detalhou de modo mais claro o procedimento a ser seguido, reduzindo a
possibilidade de dispensa do procedimento.
É o que se vê nos parágrafos e incisos incluídos no art. 50, da Lei 8069/90 a partir da
Lei n. 12010/2009, merecendo destaque a obrigatoriedade de “preparação psicossocial e
jurídica”, agora prevista no novo parágrafo 3º, do art. 50, o que torna explícita a intenção da
habilitação: preparar as pessoas para a adoção. É ali que está colocado:
A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação
psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da
Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da
política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
Além disso, o novo parágrafo 4º também trata e regulamenta algo que na prática já
ocorre, mas que precisa ser organizado, o contato dos pretendentes com as crianças e
adolescentes disponíveis para adoção:
Sempre que possível e recomendável, a preparação referida no § 3º deste artigo
incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou
institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação,
supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com
apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela execução da
política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
Com isso, evitam-se situações indesejáveis como, por exemplo, o contato com todas
as crianças, inclusive aquelas não disponíveis para adoção, o que pode gerar sofrimento
desnecessário aos pretendentes e às crianças, já que – caso haja interesse na adoção – essa seja
obstada pela existência de vínculos com os genitores. Com a visita e o contato orientados, os
encontros se darão somente com as crianças e adolescentes em condições de adoção.
Idêntica é a situação quando se trata do deferimento do pedido de adoção. Na
redação anterior do Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia qualquer menção
expressa de que a adoção deveria ser deferida apenas a pessoas previamente habilitadas no
cadastro de adoção. Havia a previsão desse cadastro em apenas dois artigos e nada mais. Tal
situação gerou uma grande divisão na doutrina e na jurisprudência, havendo quem afirmasse a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
obrigatoriedade da inscrição prévia, ao lado de outros que afirmavam ser ela desnecessária e
mera formalidade. Com isso, admitiam-se adoções que, na maioria dos casos, acobertavam
transações comerciais.
Com a nova lei, a situação aclarou-se. O parágrafo 13 do art. 50 afirma:
Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil
não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:
I - se tratar de pedido de adoção unilateral;
II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha
vínculos de afinidade e afetividade;
III - quando oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança
maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência
comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a
ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta
Lei.
Com esse dispositivo, mais uma vez, limita-se a liberdade do julgador, de modo a
obrigá-lo a seguir um critério mais claro, e menos pessoal, no deferimento das adoções,
tornando explícita a necessidade de que o cadastro seja a principal opção para a aproximação
de crianças e adolescentes e pretendentes, colocando a adoção direta (ou pronta) – aquela em
que as pessoas já comparecem ao juizado com a criança ou adolescente que pretendem adotar
– como uma exceção limitada à hipótese prevista no inciso III. Isso evita o comércio, a
intermediação indevida e a exploração que poderá daí decorrer. Garante o direito à
convivência familiar, já que é possível um trabalho com a família biológica para a
recolocação da criança ou adolescente entre seus membros, além de aumentar as
possibilidades de sucesso da adoção por força da preparação anterior já tratada, fundamental
para evitar as devoluções.
Estes exemplos demonstram como é possível tornar a atividade jurisdicional mais
democrática e menos pessoal, privilegiando a compreensão de que o fato de ser instrumento
para a garantia de direitos fundamentais ou de agente político não autoriza qualquer agente do
Estado a se arvorar em detentor de uma legitimidade inexistente em um sistema político em
que a busca do equilíbrio no exercício do poder é uma das marcas fundamentais.
Evidentemente que haverá casos em que a estrita legalidade não será suficiente.
Contudo, não se pode esquecer que hoje temos um sistema de controle de constitucionalidade
bem desenhado, com imposição de respeito aos limites formais e materiais ditados pela
Constituição, o que, por certo, contribuirá para impedir abusos legislativos ou, ainda, abusos
nas decisões judiciais.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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Jurídica: Revista Latinoamericana de política, filosofia y derecho n. 22, Curitiba:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
E OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
THE OUTSOURCING IN PUBLIC ADMINISTRATION
AND PUBLIC HEALTH SERVICES
Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior1
SUMÁRIO:
1.
Introdução
2.
Terceirização 3. Terceirização no âmbito
da Administração Pública 4. Terceirização
de serviços públicos de saúde 5.
Terceirização na área de saúde por meio
de organizações sociais 6. Conclusão
RESUMO: O presente artigo trata da terceirização de serviços públicos de saúde pela
Administração Pública, buscando traçar as principais características desse método de gestão
tipicamente empresarial. O objetivo do presente estudo é, basicamente, delimitar as normas e
princípios aplicáveis quando da utilização da terceirização pelo Poder Público. O ponto de
partida é a compreensão das normas da Constituição brasileira relacionadas ao tema. Entre as
várias formas de terceirização de serviços públicos de saúde, é analisada aqui, a título
exemplificativo, a delegação por meio de organizações sociais, que tem encontrado grande
resistência nos meios acadêmicos devido à sua má utilização pelo Poder Público.
PALAVRAS-CHAVE: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA; SERVIÇOS PÚBLICOS DE
SAÚDE; TERCEIRIZAÇÃO; LIMITES; ORGANIZAÇÕES SOCIAIS.
ABSTRACT: This article is about the outsourcing of public health services by Public
Administration, in order to describe the main characteristics of this typical business
management’s method. The objective of this study is basically to define the rules and
principles that are applied to the use of outsourcing by the Government. The starting point is
the understanding of Brazilian Constitution’s rules related to the subject. Among the various
forms of outsourcing of public health, it is analyzed here, as an example, the delegation
through social organizations, which has found great strength in academic circles due to its
misuse by the Government.
KEYWORD: PUBLIC ADMINISTRATION; PUBLIC
OUTSOURCING; LIMITS; SOCIAL ORGANIZATIONS.
HEALTH
SERVICES;
1 INTRODUÇÃO
1
Mestrando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito
Público (2012) e Direito Processual (2009) pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Advogado.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Busca-se no presente estudo analisar o instituto da terceirização de serviços públicos,
com foco no compartilhamento de responsabilidades entre a iniciativa privada e o Estado,
especialmente no que diz respeito ao serviço público de saúde, a fim de investigar alguns
limites para a utilização desse processo de gestão da atividade do Poder Público.
Em um primeiro momento, pretende-se avaliar o conceito de terceirização, tanto no
meio empresarial, no qual surgiu, quanto no âmbito estatal, em que vem sendo intensamente
utilizada atualmente. A partir daí, vai-se indagar a respeito das possibilidades constitucionais
e legais para a terceirização de serviços públicos de saúde, adentrando, especificamente, na
transferência desses serviços às organizações sociais.
2 TERCEIRIZAÇÃO
O termo terceirização é uma criação linguística derivada do latim tertius, que quer
dizer terceiro. Não se trata, porém, sob o aspecto puramente técnico, da figura normativa do
“terceiro”, típica das relações civilistas ou processuais. Nessas, enquanto o terceiro é
exatamente o estranho em uma relação jurídica entre duas ou mais partes, na terceirização
este sujeito integra, efetivamente, a relação jurídica e, embora seu vínculo seja como
interveniente ou intermediário, ele não é um estranho.
Segundo Maurício Godinho, esse “neologismo [terceirização] foi construído pela
área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando enfatizar a
descentralização empresarial de atividades para outrem, um terceiro à empresa”
(DELGADO, 2006, p. 428).
Acerca do conceito de terceirização, Maria Sylvia Zanella Di Pietro esclarece que
“existe certo consenso entre os doutrinadores do direito do trabalho em definir a
terceirização como a contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiro para o
desempenho de atividades-meio”. (DI PIETRO, 2012, p. 212).
No âmbito do Direito do Trabalho, Maurício Godinho traz a seguinte definição
acerca do tema:
Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a
relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria
correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do
tomador de serviços sem que se estendam a este laços justrabalhista, que se
preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma
relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista:
o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais
junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa
tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição
clássica de empregadora desse trabalhador envolvido.
O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge com o processo
terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que se funda
em relação de caráter essencialmente bilateral. Essa dissociação entre relação
econômica de trabalho (firmada com a empresa tomadora) e relação jurídica
empregatícia (firmada com a empresa terceirizante) traz graves desajustes em
contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre
caracterizaram o Direito do Trabalho ao longo de sua história. (DELGADO, 2006,
p. 428)
Diversamente ao entendimento citado, Sérgio Pinto Martins defende que a
terceirização deve ser entendida de forma mais ampla, como o simples fato de a empresa
contratar serviços de terceiros para a execução de suas atividades-meio. De acordo com o
Autor:
Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realização de
atividades que não constituem o objeto principal da empresa. Essa contratação pode
envolver tanto a produção de bens, como de serviços, como ocorre na necessidade
de contratação de serviços de limpeza, de vigilância ou até de serviços temporários.
Envolve a terceirização uma forma de contratação que vai agregar a atividade-fim
de uma empresa, normalmente a que presta os serviços, à atividade-meio de outra. É
também uma forma de parceria, de objetivo comum, implicando confiança mútua e
complementariedade. O objetivo comum diz respeito à qualidade dos serviços para
colocá-los no mercado. A complementariedade significa a ajuda do terceiro para
aperfeiçoar determinada situação que o terceirizador não tem ou não quer fazer.
O objetivo principal da terceirização não é apenas a redução de custos, mas também
trazer maior agilidade, flexibilidade e competitividade à empresa. (MARTINS,
1997, p. 22)
Desses conceitos até então trazidos à tona, pode-se destacar dois aspectos
fundamentais na conceituação de terceirização. O primeiro diz respeito ao fato de se tratar de
execução indireta de atividades-meio, de serviços de apoio, em oposição às atividades-fim,
que são o próprio produto final da empresa. O segundo aspecto está ligado à inexistência de
vínculos, quer dizer, laços trabalhistas, entre o ente tomador de serviços e o empregado
terceirizado, já que o ônus social dessa relação fica a cargo da entidade interveniente.
Essa noção privatista de terceirização pode ser transposta para a Administração
Pública, seara em que esse processo de gestão empresarial de transferência de serviços a
terceiros contribui, em tese e se bem aplicado, para a otimização da atuação administrativa na
consecução do interesse público.
3 TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Em que pese o fato de o conceito de terceirização aplicável ao Poder Público ser
basicamente o mesmo já delineado para o setor privado, a diferença fundamental está no fato
de que o regramento atinente à Administração Pública exige a observância de um complexo
principiológico específico, que se funda na supremacia e na indisponibilidade do interesse
público, e não na autonomia da vontade, como ocorre na iniciativa privada. Essa noção deve
sempre ser a base de fundo para aplicação e interpretação da terceirização no âmbito da
Administração Pública.
Em uma concepção ampla, haverá terceirização junto ao Poder Público sempre que o
Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a execução de atividades que lhe são afetas.
Já em 1967 o Decreto-lei n.º 200 consignava em seu texto a possibilidade (na
verdade, necessidade) de a Administração desobrigar-se, mediante contrato com particulares,
da realização material de tarefas executivas (atividades-meio) e, através da Lei n.º 5.645/70,
exemplificaram-se quais seriam essas atividades que deveriam ser objeto de execução
indireta.
Além da citada norma, o Decreto Federal n.º 2.271/1997 prevê o seguinte:
Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional
poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias,
instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência
legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes,
informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de
prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução
indireta.
§ 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às
categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo
expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou
parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
Art . 3º O objeto da contratação será definido de forma expressa no edital de
licitação e no contrato exclusivamente como prestação de serviços.
Atualmente, dois são os principais diplomas legais que tratam da possibilidade de a
Administração terceirizar suas atividades e serviços, muito embora não utilizem a expressão
em questão, a saber: a Lei n.º 8.666/93 e Lei n.º 8.987/95.
Nos termos da legislação atual, a terceirização em relação à Administração Pública
pode assumir as mais variadas formas, mas, sinteticamente, podem-se categorizar dois
grandes tipos de terceirização: a dos próprios serviços públicos e de atividades ligadas aos
serviços públicos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O que é possível ocorrer junto à Administração Pública é a terceirização como
contrato de prestação de serviços (terceirização de atividades ligadas aos serviços públicos),
regulada pela Lei n.º 8.666/93, e a terceirização como contrato de concessão ou permissão
(terceirização de serviços públicos), cuja base legal é a Lei n.º 8.987/95 e a Lei n.º
11.079/2044 (parceria público-privada). A primeira encontra fundamento constitucional no
art. 37, inc. XXI2 e a segunda, no caput do art. 1753.
Fato é que a terceirização de atividades-fim no âmbito da Administração Pública, que
não seja sob a forma concessão ou permissão, não tem respaldo constitucional ou legal, nem
mesmo com base na Lei 6.019/74. É o que corriqueiramente se vê como contrato de
fornecimento de mão de obra
O fundamento para tal proibição é a regra geral do concurso público, prevista no art.
37, inciso II, da Constituição da República de 1988, que só admite duas exceções: a
contratação temporária, que depende de lei específica de cada ente federativo, e a nomeação
para cargos em comissão.
Embora manifestamente ilegais, esses contratos de fornecimento de mão de obra têm
sido celebrados sob a forma de prestação de serviços técnicos especializados, o que mascara a
relação de emprego que seria própria da Administração Pública, favorece o nepotismo e o
apadrinhamento político, burla a regra do concurso público e o regime dos servidores
públicos, além de afrontar os princípios administrativos constitucionais da impessoalidade,
moralidade e eficiência.
Esses terceirizados irregularmente são, na verdade, funcionários de fato, que só
podem praticar atos materiais, sem nenhum conteúdo decisório. De qualquer modo, sua
atuação pode ensejar a responsabilidade objetiva da Administração Pública, com fundamento
no art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988.
O que se admite é a contratação de atividades-meio sob a forma de prestação de
serviços (art. 37, XXI), por meio da Lei n.º 8.666/93, como já previam o Decreto-lei 200/67 e
o 2.300/86, que determinam a prioridade da execução indireta de tarefas executivas e
acessórias da Administração Pública.
2
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as
obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure
igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,
mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de
qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
3
“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Destaque-se, ainda, que a Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve que os gastos
com a terceirização de serviços (“fornecimento de mão de obra”) devem ser contabilizados
como despesas de pessoal (art. 18, § 1º), obviamente para que tais despesas sejam incluídas
nos limites de gastos fixados. Isso não abrange gastos com a regular contratação de
empreitadas e prestação de serviços, pois o objeto do ajuste é o resultado.
4 TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
Como já ressaltado, só se admite a prestação de serviços públicos diretamente pelo
Estado (por meio da Administração Direta ou Indireta) ou sob o regime de permissão ou
concessão (art. 175, CR/88), inclusive com base na concessão da Lei nº 11.079 (parceria
público-privada).
O serviço público, em sua totalidade, não pode ser terceirizado por meio de locação
de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra.
O que justifica essa impossibilidade são as distinções jurídicas entre locação de
serviços e concessão de serviços públicos, que acabam por delimitar o âmbito de legalidade
da terceirização:
a) Distinção quanto ao objeto: por meio da concessão o Estado transfere o serviço
público ao particular, com todo o seu complexo de atividade; não há transferência
de uma determinada atividade ligada ao serviço público na concessão, muito
embora a concessionária possa terceirizar determinadas atividades. Na locação de
serviços, o objeto do contrato é a execução de determinada atividade acessória ao
serviço público, complementar à atividade-fim do Estado (que continua sendo
executada pela entidade pública).
b) Distinção quanto à forma de remuneração: na concessão, na forma como previsto
na Lei n.º 8.987/95, a regra é que a remuneração se faça pelos usuários, admitidas
formas acessórias e alternativas. Na locação de serviços, a remuneração é paga
pelo Poder Público. Nesse ponto, a concessão administrativa (parceria públicoprivada) até se assemelha à locação de serviços (pois o Poder Público pode
remunerar a concessionária total ou parcialmente), mas com ela não se confunde
em razão do regime jurídico e das prerrogativas públicas.
91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
c) Distinção quanto às prerrogativas públicas: as concessionárias assumem a posição
do Poder Público na prestação do serviço e, portanto, detém determinadas
prerrogativas (como promover desapropriações, exercer o poder de polícia sobre
os bens vinculados ao serviço, promover a subconcessão, etc.). Na locação de
serviço, não há transferência de prerrogativas, pois o contratado é mero executor
material de uma atividade-meio.
d) Distinção quanto ao poder de intervenção: o poder concedente pode intervir na
concessionária (art. 32 a 34 da Lei nº 8.987/95), mas não pode fazê-lo com relação
ao contratado na locação de serviços.
Especificamente com relação à saúde, não há dúvida de que trata de um serviço
público, que deve ser prestado de forma gratuita pelo Estado, mas não é exclusivo do Poder
Público. Em diversos artigos a Constituição da República de 1988 trabalha a noção de
execução dos serviços de saúde em parceria com a iniciativa privada. São alguns exemplos:
Art. 197, CR/88: São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo
ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização
e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,
também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198, CR/88: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo
com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera
de governo;
Art. 199, CR/88: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema
único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou
convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às
instituições privadas com fins lucrativos.
Há, portanto, espaço para que a iniciativa privada preste serviços de saúde em
parceria com o Poder Público.
Segundo Ives Gandra da Silva Martins e Fátima Fernandes Rodrigues de Souza:
De todas essas disposições decorre que a ideia de parceria permeia a prestação da
assistência à saúde. Sob regime de direito privado, mediante a participação mais
próxima do Estado, no tocante à sua regulação e fiscalização; sob regime de direito
público, mediante a efetiva participação do particular no regime único, em caráter
complementar. (MARTINS; SOUZA; 2007, p. 106)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Analisando a questão da descentralização das ações e serviços de saúde (art. 198, I,
CR/88), DI PIETRO esclarece que a forma adequada para tanto seria a descentralização por
serviços4.
Segundo a Autora, a melhor forma de descentralização administrativa dos serviços
de saúde é por meio da criação de autarquias, fundações e empresas públicas (esta última deve
ser sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos, pois o serviço de saúde é
necessariamente gratuito).
A princípio, a concessão e a permissão (formas de descentralização por colaboração)
não são adequadas para a terceirização de serviços de saúde, pois os delegatários não podem
ser remunerados pelos usuários do serviço, que é gratuito.
Admite-se, entretanto, a utilização da parceria público-privada (concessão
administrativa da Lei n.º 11.079), na qual o Estado remunera integralmente o parceiro privado
(é o que já ocorre no Hospital do Subúrbio de Salvador, e vai ser implantado no Hospital
Metropolitano de Belo Horizonte).
Nos termos do que prevê o citado art. 199, § 1º, da Constituição da República de
1988, a participação de instituições privadas na execução de serviços públicos de saúde deve
ocorrer de forma complementar, por meio de “contrato de direito público” ou “convênio”.
Admite-se como contrato de direito público, nesse caso, aqueles voltados para
atividades complementares aos serviços do Sistema Único de Saúde, fundamentado na Lei de
Licitações, ou aqueles de concessão da Lei n.º11.079 (PPP), que é espécie de descentralização
por colaboração, por meio da transferência da própria atividade-fim para particulares.
Como a Constituição somente permite às instituições privadas participarem dos
serviços de saúde “de forma complementar”, DI PIETRO entende que não há validade na
formalização de um contrato cujo objeto seja a transferência para os particulares da totalidade
de um serviço público. Não se admite, por exemplo, a transferência de toda a administração e
execução das atividades de saúde de um hospital público para um particular.
4
Descentralização territorial ou geográfica: criação de uma entidade local, com personalidade de direito público,
capacidade de autoadministração, delimitação geográfica, capacidade genérica para a prestação de serviços
públicos e sujeição a controle pelo poder central (territórios federais). Comum em Estados Unitários (França e
Itália).
Descentralização por serviços, técnica ou funcional: criação, por meio de lei, de pessoa jurídica de direito
público ou privado, que assume a titularidade e a execução de determinado serviço público. Autarquias,
fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas. - Características: personalidade jurídica,
capacidade de autoadministração, patrimônio próprio, capacidade específica (especialização), sujeição a controle
ou tutela (nos limites da lei)
Descentralização por colaboração: transferência a pessoas jurídicas de direito privado (estranha ao aparelho
estatal), por meio de acordo de vontades ou por ato administrativo unilateral, da execução de serviços públicos,
mantendo a titularidade do mesmo com o Poder Público.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Para a Autora, somente pode haver a terceirização de atividades de execução
material, como atividades-meio (tais como limpeza, vigilância, contabilidade, etc.) e serviços
técnico-especializados (como é o caso de hemocentros, realização de exames médicos, etc.).
O Estado, de acordo com o que esse argumento, não pode abrir mão da prestação de
um serviço que lhe incumbe, transferindo-o integralmente a terceiros. Pode contar com a
iniciativa privada de forma complementar, mediante contrato ou convênio. Em suas palavras,
“apenas se admite a terceirização de determinadas atividades materiais ligadas ao serviço de
saúde; nada mais encontra fundamento no direito positivo brasileiro.” (DI PIETRO, 2008, p.
227)
O que justifica tal argumento é o fato de que a prestação de um serviço público deve
estar subordinada a um regime de direito público, ainda que parcialmente, nos termos do que
determina o art. 175 da Constituição da República de 19885.
Voltando-se ao art. 199 da Constituição, há a possibilidade ainda de transferência de
serviços públicos de saúde por meio de convênios, os quais são admitidos com pessoas
jurídicas de Direito Público, com entidades da Administração Indireta e com instituições
privadas. Quando a atividade é entregue por convênio à iniciativa privada, a orientação legal é
no sentido de dar preferência (e não exclusividade) às entidades filantrópicas e sem fins
lucrativos.
É o que dispõem os artigos 24 e 25 da Lei n.º 8.080/90:
Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a
cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de
Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.
Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será
formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de
direito público.
Art. 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins
lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS).
Vigora a lógica da subsidiariedade da sociedade civil na prestação de serviços de
saúde. O Estado é o titular do serviço público e tem o dever constitucional inarredável de
prestá-los, observando os princípios administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37,
caput, CR/88), e os princípios específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e
igualdade de acesso (art. 196, CR/88). Esse dever, entretanto, não torna o serviço de saúde
5
“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
exclusivo do Estado, na medida em que a iniciativa privada pode atuar em parceria com o
Poder Público, mas sempre de forma subsidiária.
Não se admite, portanto, que o Estado se abstenha de prestar os serviços de saúde,
entregando-o totalmente à iniciativa privada. Tampouco se admite que a atuação do Estado
seja menor que a dos particulares na área de saúde pública, pois essa relação de dependência
foi expressamente vedada pelo texto constitucional.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, os serviços públicos de saúde estão entre
aqueles que o Estado tem obrigação de prestar, mas sem exclusividade. Os particulares podem
desempenhar essas atividades (inclusive independente de concessão), mas “o Estado não
pode permitir que sejam prestados exclusivamente por terceiros” (BANDEIRA DE MELLO,
2012, p. 705)
É esse também o entendimento da Profa. Cristiana Fortini, para quem a terceirização
não traduz alternativa para o Estado se desvencilhar de suas obrigações constitucionais,
especialmente na área de saúde. Em suas palavras:
Certamente não há como desconsiderar a redação do art. 197 da Constituição da
República, segundo o qual ‘são de relevância pública as ações e serviços de saúde,
cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação,
fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de
terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado’. Entretanto, não
há como enxergar na norma autorização para que todos os serviços ligados à saúde
sejam privatizados, mediante terceirização. A participação de terceiros faz-se
possível em caráter de complementariedade da atuação estatal, jamais em caráter
substitutivo. (FORTINI, 2007, p. 5)
Em decisão recente, de 28/08/2012, o Ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal
Federal, analisando o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 445.167, do
Município do Rio de Janeiro, ratificou seu entendimento de que
O serviço público de saúde não pode e não deve, ser terceirizado, admitindo o art.
197 da Constituição da República, em caráter complementar, permitir a execução
dos serviços de saúde através de terceiros. O caráter complementar não pode
significar a transferência do serviço à pessoa jurídica de direito privado.
Em que pese o eminente Ministro negar a possibilidade de terceirização, admite ele
que a Constituição considera como lícita a execução dos serviços de saúde através de
terceiros, o que, contraditoriamente, é exatamente a terceirização. Tal contrassenso, porém,
não altera sua conclusão, no sentido de que a transferência do serviço de saúde à pessoa
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
jurídica de direito privado não pode ocorrer como um todo, sob pena de violação ao caráter
complementar da participação privada nesse importante setor público.
Entre as inúmeras formas de terceirização, pretende-se fazer uma breve incursão na
transferência de serviços de saúde às organizações sociais.
5 TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES
SOCIAIS
As organizações sociais foram instituídas pela Lei Federal nº 9.637/98, dentro das
iniciativas de reformas neoliberais do Estado do Governo Fernando Henrique Cardoso e do
chamado “Plano Nacional de Publicização”.
O objetivo desse movimento reformista foi a descentralização de atividades não
exclusivas do Estado e a transferência, para organizações sociais, de atividades
desempenhadas por órgãos públicos, inclusive na seara da saúde pública.
De certo modo, a pretensão do Governo era de que o serviço público passasse a ser
considerado como atividade privada de interesse público, para que, uma vez prestado por
particulares, sob fomento do Estado (que se dá por meio da celebração de contrato de gestão),
pudesse se extinguir o órgão público ou a pessoa jurídica de direito público inicialmente
incumbida de sua execução.
A partir de uma análise da Lei Federal n.º 9.637/98, algumas características das
organizações sociais podem ser traçadas:
a) A titulação de organização social é, na verdade, uma qualificação, uma habilitação
jurídica outorgada a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos (art.
1º);
b) As entidades qualificadas como organizações sociais são declaradas como
entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais (art.
11);
c) Áreas possíveis de atuação das organizações sociais: ensino, à pesquisa científica,
ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à
cultura e à saúde (art. 1º);
d) Conselho de Administração das organizações sociais (órgão de deliberação) tem
composição mista, com representantes do Poder Público e da sociedade civil (art.
3º);
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
e) A parceria (fomento) é estabelecida por meio da formalização de contrato de
gestão;
f) A Fiscalização e o controle do contrato de gestão têm como foco as metas
estabelecidas e os resultados alcançados (art. 8º);
g) Formas de fomento pelo Poder Público: recursos orçamentários, permissão de uso
de bens públicos (dispensada a licitação – art. 12), cessão de servidor público;
h) Contratos de prestação de serviços realizados com organizações sociais, para
atividades contempladas no contrato de gestão, podem dispensar licitação (art. 24,
XXIV, da Lei 8.666/93)
i) O descumprimento do contrato de gestão pode acarretar a desqualificação da
organização social, mediante processo administrativo (art. 16).
No contexto da legislação em comento, as organizações sociais podem exercer
atividade privada de interesse público, com incentivo do Poder Público, ou podem
desempenhar o próprio serviço público, como atividade delegada.
Nesse caso de transferência do próprio serviço público, não pode o Estado se abster
totalmente dos serviços sociais, pois esses são deveres constitucionais do Poder Público.
Uma crítica que comumente se faz à transferência de serviços públicos de saúde às
organizações sociais é no sentido de que essa absorção visaria, em verdade, fugir do regime
de direito público, que, em certa medida, impõe inúmeras restrições à Administração Pública
(como teto salarial, proibição de acumulação de cargos, entre outras).
Em São Paulo, Estado em que a terceirização de serviços de saúde para a iniciativa
privada ocorreu (e vem ocorrendo) em grande medida por meio de parcerias com
organizações sociais, a legislação é um pouco mais rígida quanto à atuação dos particulares na
prestação de serviços públicos.
As organizações sociais paulistas, de acordo com a Lei Complementar Estadual nº
846/98, administram o serviço público de saúde por delegação do Estado, investindo-se de
determinadas prerrogativas públicas, assim como ocorre nas concessões e permissões da Lei
n.º 8.987/95.
Algumas características específicas da legislação estadual diferenciam as
organizações sociais de São Paulo daquelas qualificadas em âmbito federal:
a) Atuação restrita às áreas de saúde e cultura (art. 1º);
b) Não podem absorver atividades exercidas por entes públicos;
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
c) Não podem utilizar bens do patrimônio público que estejam sendo utilizados por
entidades públicas (art. 14, § 4º);
d) Não contam com representantes do Poder Público em seus órgãos de
administração (art. 3º);
e) Existe um procedimento de convocação pública para escolha da entidade (art. 6º,
3º).
Atualmente, segundo dados disponibilizados pela Secretaria de Estado de Saúde de
São Paulo, 37 hospitais, 38 ambulatórios, 1 centro de referência, duas farmácias e três
laboratórios de análises clínicas são administrados por organizações sociais. Os novos
hospitais colocaram a serviço do SUS cerca de 4.300 leitos no Estado de São Paulo6.
Experiência semelhante tem sido vivenciada, também, no Estado de Goiás, onde
vários hospitais tiveram sua administração transferida para organizações sociais, como o
Hospital Materno Infantil (HMI), o Hospital de Doenças Tropicais (HDT), o Hospital de
Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa).
Nesses dois exemplos, um aspecto que deve ser levado em consideração é o fato de
que a absorção de serviços públicos por organizações sociais não desobriga o Estado da
prestação desses serviços.
Novamente segundo Celso Antônio Bandeira de Mello:
Anote-se que, como os serviços em questão não são privativos do Estado, não entra
em pauta o tema da concessão de serviços públicos, que só tem lugar nas hipóteses
em que a atividade não é livre aos particulares, mas exclusiva do Estado. Aliás, se
entrasse, seria obrigatória a aplicação do art. 175 da Constituição Federal, que
estabelece que tanto a concessão como a permissão serão ‘sempre’ precedidas de
licitação.
Assim, os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos
insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão. Logo, como sua prestação
se constitui em ‘dever do Estado’, conforme os artigos citados (art. 205, 206 e 208),
este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo
pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais
aludidos pela via transversa de ‘adjudicá-los’ a organizações sociais. Segue-se que
estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita
de encargos que a Constituição lhe irrogou. (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p.
245)
As organizações sociais devem, enfim, atuar ao lado do Estado, por meio de uma
política de fomento. Não pode haver a transferência integral de serviços públicos sociais para
organizações sociais ou quaisquer entidades do terceiro setor (como OSCIPs, por exemplo),
6
http://www.saude.sp.gov.br/ses/acoes/organizacoes-sociais-de-saude-oss.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
pois esses serviços são da titularidade do Estado, como atribuição constitucional típica
(VIOLIN, 2012, p. 122/123).
6 CONCLUSÃO
Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social e, finalmente, para o Estado
Democrático de Direito, a Administração Pública sofreu intensas modificações estruturais,
influenciadas pelo nível de intervenção do Poder Público nas atividades privadas. Atualmente,
dentro do contexto constitucional brasileiro, depreende-se uma lógica da subsidiariedade,
segundo a qual o Estado deve se abster de determinadas atividades que podem ser exercidas
satisfatoriamente pela iniciativa privada. A terceirização de serviços públicos é uma das
formas de parceria entre o público e o privado para a execução indireta de atividades estatais,
que decorre da aplicação do citado princípio da subsidiariedade.
Na seara do direito privado, a terceirização é tida como um processo de gestão
empresarial de transferência de serviços, essencialmente ligados à atividade-meio da empresa,
para terceiros, sem o estabelecimento de vínculos diretos trabalhistas com a tomadora do
serviço. Essa concepção foi albergada pela Administração Pública, mas com as ressalvas que
o sistema principiológico de Direito Público impõe ao citado instituto.
De modo geral, sempre que o Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a
execução de atividades que lhe são afetas, estar-se-á diante da terceirização, que poderá ser
dos próprios serviços públicos (por exemplo, por meio de concessão ou permissão) ou de
atividades ligadas aos serviços públicos (por exemplo, por meio de contratos de prestação de
serviços, cujo objeto só pode estar vinculado a atividade-meio do Poder Público).
No que diz respeito aos serviços públicos, a Constituição determina que eles só
podem ser prestados diretamente pelo Estado ou sob o regime de permissão ou concessão
(incluindo PPP). Logo, é manifestamente ilegal a terceirização de serviços públicos por meio
de locação de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra.
A saúde, embora seja serviço público típico, não tem sua execução afeta
exclusivamente ao Poder Público. A execução dos serviços públicos de saúde em parceira
com a iniciativa privada é uma orientação constitucional expressa (art. 197, 198 e 199,
CR/88), mas somente pode ocorrer sob o prisma da complementariedade.
Essa participação complementar da iniciativa privada nos serviços de saúde se opera
por meio de contratos de direito público (contratos de prestação de serviços, para atividademeio, e contrato de concessão – PPP, para atividade-fim) ou por meio de convênios, os quais
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
devem ser celebrados preferencialmente com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.
Em qualquer dos casos, não está o Poder Público autorizado a se abster da prestação do
serviço público ou prestá-lo de forma dependente da iniciativa privada, sob pena de violação
da regra da complementariedade, prevista no art. 199, § 1º, da Constituição da República de
1988.
Entre as inúmeras formas de terceirização dos serviços de saúde, a Administração
Pública tem se valido muito do estabelecimento de parcerias com organizações sociais, o que
em âmbito federal ocorre com base na Lei nº 9.637/98.
Nesse caso, pode haver tanto a assunção de um determinado complexo de serviços de
saúde, quanto de atividades acessórias aos serviços públicos, mas em ambas as hipóteses, a
absorção de serviços de saúde por organizações sociais deve ocorrer de forma complementar,
sem desobrigar o Estado da sua prestação, a qual sempre se submeterá aos princípios
administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37, caput, CR/88), e aos princípios
específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e igualdade de acesso (art. 196,
CR/88).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São
Paulo: Malheiros, 2012.
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101
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: Considerações sobre os fatores que
comprometem a prestação dos serviços e benefícios previdenciários.
BRAZILIAN SOCIAL SECURITY CRISIS: Considerations about the factors that affect
the provision of services and social security benefits.
Raul Lopes de Araújo Neto
RESUMO
O crescimento dos investimentos nos planos de previdência complementar trouxe uma
oportunidade para reflexão sobre o papel da previdência social pública brasileira. Esse
trabalho propõe apresentar os principais argumentos responsáveis pela crise da previdência
pública. A análise histórica sobre a formação da previdência e a evolução das políticas
publicas nas ultimas cinco décadas demonstram o comprometimento da gestão pública com
atual crise previdenciária. Temas como a longevidade, desemprego, avanço tecnológico e
administração serão os principais pontos para a condução do trabalho. O estudo será
conduzido do ponto de vista critico utilizado como referencia dados socioeconômicos e
estatísticos do atual sistema securitário.
Palavras Chave: Seguridade Social; Previdência Pública; Crise Econômica.
ABSTRACT
The growth of investment in pension plans has brought an opportunity for reflection on the
role of public social welfare in Brazil. This paper proposes to present the main arguments in
charge of public pension crisis. The historical analysis on the formation and evolution of the
welfare of public policy in the last five decades has demonstrated the commitment of public
management with the current pension crisis. Topics such as longevity, unemployment,
technological advancement and administration are the main points for the conduct of work.
The study will be conducted from the standpoint of critical socioeconomic data used as
reference and the current statistical system of security.
Keywords: Social Security; Public Security; Economic Crisis
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
1. INTRODUÇÃO
Desde o início da década de 90 houve um significativo crescimento dos planos de
previdência complementar, tanto na quantidade de optantes, como pelo aumento do capital
formador de poupança interna.
Um dos motivos desse crescimento é o atual
comprometimento dos serviços e benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência
Social.
O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da
década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América
Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas
ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o
déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação
dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da
previdência.
A crise da previdência não vem desacompanhada da crise do Estado. Inicialmente será
feita uma analise da evolução da nova ordem econômica a partir do Welfare State, passando
pelo plano Beveridge e as ideias liberais do pós guerra de Keynes até a mudança na
concepção do Estado provedor para o Estado regulador e posteriormente serão apresentados e
discutidos os principais fatores causadores da crise no sistema protetivo.
Não é objetivo desse estudo detalhar o funcionamento e a gestão da previdência
pública, mas sim, apontar os fatores que contribuem para a crise previdenciária e desmistificar
diversas causas que não passam de criações políticas de “fabricação do consenso”1 .
2. MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO
REGULADOR
1
A expressão "fabricação do consenso" foi inicialmente cunhada por Edward S Herman e Noam Chomsky. O
"fabrico do consenso" implica a manipulação e a modelação da opinião pública. Institui a conformidade e a
aceitação à autoridade e à hierarquia social. Procura a obediência a uma ordem social instituída. A "fabricação
do consenso" descreve a submissão da opinião pública à narrativa dos meios de comunicação predominantes, às
suas mentiras e maquinações.
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
As grandes crises econômicas de 1929 e situação calamitosa dos países envolvidos na
segunda grande guerra, fez com que o Estado se preocupasse com chamados os riscos sociais,
que segundo Durand (1991, p. 55), são classificados em:
Os infortúnios, que sugerem um revés da sorte, um infortúnio, uma desgraça, como
a morte ou a invalidez e os venturosos, que manifestam-se por fatos ditosos,
afortunados, felizes, como a sobrevivência da pessoa (a aposentadoria por idade é
uma contrapartida ao fato da sobrevivência do segurado).
Horvath Júnior (2004, p. 27) faz usa das palavras de Santoro-Passarelli, para definir o
risco social:
Risco social é o perigo que ameaça o indivíduo e se transfere para a sociedade
atingindo toda a coletividade, fazendo surgir a necessidade social. Cabe à
previdência social a função de aliviar a necessidade social surgida em virtude da
ocorrência dos eventos previamente selecionados, garantindo uma tutela de base
(mínimo vital).
Diante da nova ordem social, os riscos sociais merecem resposta do Estado, que
depende dos impostos para existir e como contrapartida deve estruturar a rede de proteção dos
trabalhadores aos riscos sociais que só alguém que vive em sociedade tem.
Dentro desse processo encontra-se o Social Security Act. Remetendo a crise
econômica de 1929, o Estado passou a ter importância na vida social das pessoas, a
importância do risco social para os indivíduos passou a ser também preocupação do Estado.
O plano de recuperação americano, idealizado por Franklin Delano Roosevelt
fundamentou a ideia do Bem Estar Social (Welfare State) caracterizada com um tipo de
organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção
(protetor e defensor) social e organizador da economia.
Segundo Schumpeter (1908) nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de
toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas
privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bemestar social garantir serviços públicos e proteção à população.
104
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Weintraub (2005, p. 32) resume a ideia americana que possuía o objetivo de “distribuir
riqueza entre os velhos (sofriam mais que a maioria com a grande depressão) era também
permitir que a distribuição de renda gerasse fluxo de mercado, reativando a economia”.
Evoluindo na preocupação do Estado em prover os riscos sociais da população, surgiu
na Inglaterra o plano Beveridge em 1941. Esse plano serviu para que o governo inglês criasse,
em 1946, um sistema tão abrangente de proteção social que possuía como slogan
característico: from the cradle to de grave (do berço ao tumulo).
Lord Beveridge recomendou que o Governo inglês devería encontrar formas de
combater os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, e miséria e
a ociosidade. Para tanto, era necessário garantir um padrão mínimo de sobrevivência,
tratando-se de uma universalidade plena com proteção mínima para manutenção de um
padrão de vida digno.
Esse padrão mínimo seria garantido por uma contribuição semanal ao Estado por parte
de todas aquelas pessoas com idade e capacidade laborativa. Esse dinheiro seria
posteriormente usado como subsídio para doentes, desempregados, reformados e viúvas.
Essas ideia inspiraram a formação de nossa ordem social.
Nos países da América Latina, os sistemas previdenciários passaram também por
reformas, em alguns deles num processo de imitação do modelo de estratégia liberal, baseadas
na privatização da previdência social, ênfase na desregulamentação do mercado de trabalho e
nos benefícios seletivos ao invés de universais, enquanto em outros as mudanças foram mais
limitadas. Países como Chile (1981), Peru (1993), Argentina e Colômbia (1994), Uruguai
(1996), Bolívia e México (1997), El Salvador (1998) e Costa Rica (2001) optaram por
substituir, parcial ou integralmente, os sistemas públicos de repartição por sistema privados
obrigatórios de capitalização individual (GENTIL, 2007).
A ordem social brasileira da Constitução Federal (1988), apresenta a Prvidencia Social
como direito social. Inserido nesse contexo, o artigo 201 da Carta Magna, disciplina:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de
caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa
renda;
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e
dependentes, observado o disposto no § 2º.
Assim com o plano Beveridge a proteção brasileira é ampla, mas necessita de prévia
contribuição para o recebimento de benefícios, caracteristica compulsoria e contributiva que
não existe nos outros dois ramos da seguridade: Assistência Social e da Saúde.
Sobre a Previdência Social brasileira, Carvalho e Murgel (2007, p. 26) explicam:
Por meio da previdência social vem o Estado garantir a dignidade humana,
impedindo a degradação do homem e propiciando ao individuo uma existência
material mínima em período de infortúnio ou de dificuldade no exercício do seu
oficio. Desse modo, promove a igualdade de direitos entre todos os homens; garante
a independência e autonomia do ser humano; observa e protege os direitos
inalienáveis do homem; não admite a negativa dos meios fundamentais para o
desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas
de vida.
Gentil (2007) complementa que no Brasil, as alterações no sistema de seguridade
social ao longo dos anos 1990 não foram tão extensas a ponto de mudar suas características
mais fundamentais. O sistema ainda é o mesmo previsto pela Constituição de 1988, ou seja,
permanece público, em regime de repartição e continua a caracterizar-se pela universalidade
da cobertura, muito embora sua implementação tenha resultado em grande afastamento dos
princípios constitucionais.
O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da
década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América
Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas
ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o
déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação
dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da
previdência.
Já adentrando aos motivos ensejadores da crise previdenciária, o sistema protetivo
brasileiro enfrenta graves problemas estruturais dos quais Derzi (2003) elenca quatro grupos:
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
a) Atuariais, uma vez que precocemente o Brasil introduziu a aposentadoria por
tempo de serviço, desvinculada da idade do trabalhador, alongando-se em demasia a
sua duração.
b) Administrativos, pois a burocracia, a corrupção, o empreguismo e o nepotismo
agigantaram os órgãos previdenciários, elevando-se o seu custo.
c) Caixa, pois desvios de recursos da previdência social para outras finalidades do
Estado advieram de lacunas existentes na Constituição de 1967-69; o caixa da
previdência social confundiu-se com o caixa do Tesouro Nacional e seus recursos
foram canalizados até para construção de hidroelétricas.
d) Econômicos-conjunturais ou estruturais, desencadeados pelas crises de recessão,
desemprego e queda dos salários no produto interno bruto, o que provoca o
acentuado decréscimo no produto da arrecadação das contribuições previdenciárias,
incidente sobre a massa dos salários.
Diante desses fatores, torna-se importante a opinião de Carvalho e Murgel (2007)
sobre o modelo do Estado do Bem Estar Social e a crise previdenciária brasileira:
Sabe-se que o Estado do Bem Estar Social, o Estado Providência, eminentemente
protecionista, é modelo desestruturado e esgotado. Por outro lado, a prestação
positiva dos direitos sociais não pode permanecer no alvedrio da vontade do
legislador ou dos governantes, embora esteja na dependência do orçamento do
Estado. Ora, trata-se de dever e obrigação do Estado zelar pela proteção dos direitos
sociais, de forma positiva.
A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O
apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para
garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio
Estado.
Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas
globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima
apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade
Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social.
Para exemplificar a crise no sistema securitário, o setor da saúde passa por uma crise
crônica que se arrasta ao longo de décadas, problemas que vão do atendimento até a
capacitação dos servidores. Sobre o tema Sabroza (2007) explica:
A primeira limitação seria fundamentalmente econômica, centrada na inviabilidade
do estado provedor, e em última instância da sociedade, de suportar o aumento dos
custos da atenção médica. Sumetidos às pressões de demandas inesgotáveis por
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
cuidados que exigem recursos de alto nível tecnológico, promovidas pelos interesses
de setores industriais e de grupos médicos organizados a partir da lógica do lucro,
associados à ideologia da saúde como panacéia, estes sistemas teriam ficado
inviáveis, quando o setor público perdeu a capacidade de regulação. A segunda, com
implicações ainda mais sérias, decorreria da incapacidade deste tipo de atendimento
de necessidades individuais e coletivas resultar em um nível maior de bem-estar e
aumento da produtividade social.
No setor da Assistência Social a instabilidade das medidas assistenciais compromete a
implementação de programas visem proteger os gastos sociais e que seja de ao mesmo tempo
fiscalmente sustentável e economicamente compensadora.
A previdência social amarga uma crises que já dura cinco décadas e além das
dificuldades de funcionamento da Previdência Social, outras, mais comuns, são apresentadas:
aposentados enfrentam enormes filas no INSS e nem sempre conseguem receber seu
benefício; os serviços são bastante precários, faltam remédios, os hospitais e asilos de idosos
estão em condição de miséria. O capital é mal empregado pelo governo.
A falência do providencialismo causou o surgimento dos órfãos do Estado que
contribuiu para o crescimento da pobreza e a exclusão social. Clarck, Nascimento e Correia
(2006) define o papel do Estado nessa na evolução da ordem econômica:
No mesmo sentido, o New Deal (baseado no reformismo keynesiano) e o Estado
Social jamais representaram um socialismo puro. Tanto no início (Revolução Russa
de 1917) como no fim (Consenso de Washington) do século XX surgiram posições
teóricas extremistas quanto à função do Estado no mercado, mas a implementação
delas nos meios jurídico e econômico é realizada com diversas adaptações, e por
causa destas é que podemos chamar neoliberais todos os arranjos que se fizeram na
estrutura dos Estados. Essas adaptações aproveitaram sempre princípios liberais
originais, preservando-se o mercado, porém, ora o Estado intervém com mais vigor
na economia, ora com menos.
No neoliberalismo sugerido na por Clarck, Nascimento e Correia (2006) tem como
fase inicial a exigência de um Estado Social, cuja atuação no domínio econômico se dava
diretamente (via empresa pública, sociedade de economia mista e fundações) e indiretamente
(mediante rígidas normatizações), tudo em nome do desenvolvimento ou do crescimento. Em
seguida se realiza no Estado Democrático de Direito, e as intervenções diretas passam a ser
minimizadas e priorizam-se a intervenção indireta (normas) e a intermediária (eis que
aparecem no cenário jurídico as Agências Reguladoras).
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O neoliberalismo não requer necessariamente o Estado mínimo, mas pode apresentarse no Estado Social ou no Estado Democrático de Direito. Na mudança dos modelos de
Estado encontramos o liberalismo, passamos pelo neoliberalismo de regulamentação e
chegamos ao neoliberalismo de regulação2. O surgimento do Estado Regulador decorreu de
uma mudança na concepção do conteúdo do conceito de atividade administrativa em função
do princípio da subsidiariedade e da crise do Estado de Bem-Estar, incapaz de produzir o bem
de todos com qualidade e a custos que possam ser cobertos sem sacrifício de toda a sociedade.
Daí a descentralização de funções públicas para particulares (SOUTO, 2005).
Esse novo modelo de Estado caracteriza-se principalmente pela utilização de
competência normativa e outras providências para regular a atuação dos particulares.
Sobre a reforma do Estado no Brasil, Barroso (2003, p. 291), defende que é
fundamental compreensão de que as reformas econômicas não chegaram a produzir um
modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo.
“Pelo contrário, apenas
deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com
a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades
econômicas”.
3. A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL
Partindo da premissa do artigo 194 da Constituição Federal de 1988 que a Seguridade
Social é um conjunto de medidas de iniciativa do poder público e da sociedade que tem com
objetivo assegurar a saúde, a assistência e a previdência social, verifica-se o tripé formador do
sistema protetivo social do Brasil
O principio da tríplice forma de custeio introduzido em nosso ordenamento em 1934,
define que a seguridade será financiada por três atores: o governo com aportes de capital nos
déficits da previdência, os trabalhadores com o pagamento de contribuições sobre seus
rendimentos e a empresa que sobre a folha de salário, lucro, faturamento e receita.
2
É neoliberal, não porque se trata de uma tendência de retorno ao liberalismo econômico clássico, mas porque
preserva princípios originários deste e os faz conviver com técnicas diferentes de ação econômica do Estado. As
reformas do New Deal, portanto, instituíram as técnicas do neoliberalismo de regulamentação, e as reformas
constitucionais e políticas pós-Consenso de Washington, as do neoliberalismo de regulação (CLARK,
NASCIMENTO e CORRÊIA, 2006).
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Nota-se que para dar mais sustentabilidade e segurança à seguridade social, as
contribuições sociais devem respeitar o principio da diversidade da base de financiamento,
que protege o sistema evitando a sobrecarga em uma só fonte de financiamento.
Mesmo com toda proteção constitucional, a prestação de serviços relacionados à
saúde, assistência e previdência social é deficiente. Mais especificamente no campo
previdenciário, as aposentadorias não representam dignamente uma contrapartida por todas as
contribuições vertidas por 35 anos no caso da aposentadoria por tempo de contribuição
A forma de contribuição que a maioria dos segurados brasileiros estão vinculados é o
de repartição simples, daí aparecer como legítima a preocupação do governo em manter seu
orçamento equilibrado, ainda que se deva reconhecer, de imediato, que a corrosão das receitas
previdenciárias pelo crescimento do desemprego, da informalidade do trabalho e da
sonegação é desdobramento natural da sua própria política econômica. Cresce, paralelamente,
um sistema privado complementar de capitalização para aquela minoria que volta do mercado
com mais do que o tal troco da cesta básica no bolso.
O sistema previdenciário brasileiro foi instituído, a partir da década de 30, com o
advento da Lei Eloy Chaves, como um sistema de capitalização, que só se transformou, por
razões que precisam ser mais elucidadas, num sistema de repartição simples pelo menos duas
décadas depois.
Ora, isso significa que, por bons e longos anos, os fundos previdenciários arrecadaram
muito mais do que despenderam, e a questão que se coloca é a seguinte: o que foi feito do
dinheiro acumulado?
A resposta dos especialistas não poderia ser conclusiva, pois um levantamento
histórico dos dados ainda está por ser feito. Entretanto há uma presunção bem-amparada de
que os governos brasileiros das décadas de 1930 a 1960 se valeram desses recursos para
financiar muitas das obras de infra-estrutura do período.
No período pós 1964 Oliveira et al (1999. p. 8) resume:
O financiamento do INPS continuava a basear-se em um sistema de contribuição
tripartite, no entanto a União passou a se responsabilizar unicamente pelos custos de
administração (cerca de 11% das despesas totais do INPS) e pessoal do instituto. A
maioria das cotizações de empregados e empregadores era da ordem de 8% sobre o
salário. Porém, a União permanece como uma grande devedora, na medida em que
honra seus compromissos somente de forma parcial (em 1968 dos R$
1.505.938.136,46 despendidos com pessoal e administração somente R$
846.777.579,32 foram efetivamente repassados à previdência pelo governo federal).
110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Para ilustrar a evolução da divida no referido observa-se os seguintes gráficos:
Gráfico 1
Gráfico 2
Fonte:INSS/Coordenadoria Geral de Contabilidade
Essa prática de saques dos recursos previdenciários para outras finalidades está se
repetindo nos últimos 20 anos. O artigo 90, da Lei 8.212/91 autorizou o Conselho Nacional de
111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Seguridade Social a apurar o montante do grande devedor da previdência social. Porém, no
governo anterior, foi extinto o Conselho Nacional de Seguridade Social. Deste modo, o débito
da União3 nunca foi apurado e está crescendo cada vez mais, comprometendo a papel do
Estado em cumprir com o preceito constitucional do artigo 201.
O comprometimento dos benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência
Social sede principalmente a essa má gestão pública. Não se pode apontar que o crescimento
das entidades de previdência complementar são responsáveis por um impacto financeiro
negativo aos cofres públicos, sob a alegação de que o segurado destinaria suas contribuições
para outro regime que não seja o público.
Os segurados do Regime Geral não optam por qual regime deverão ser vertidas suas
contribuições, eles são obrigados4 a contribuir como regime público durante o período e
forma predeterminada pelo Estado, portanto, o financiamento do Regime Geral está garantido
por todos aqueles maiores de 16 anos que exercem atividade remunerada licita.
O insucesso do Regime Geral está na ineficiência do Estado, como bem assevera
Fabrício et al. (2003, p. 37):
A culpa toda seria do Estado-pai, que distribuiu benesses excessivas e compatíveis
com as forças do sistema; a solução seria entregar ao miraculoso poder de autoregulamentação do mercado mais esse lucrativo campo de atuação, afastando o
poder publico do inepto e perdulário.
Ao apontar a má gestão e a inadequada aplicação das contribuições previdenciárias
não se defende a desnecessidade do Estado cumprir com o que determina o artigo 201 da
3
Segundo Wagner Balera no artigo intitulado “poço sem fundo” publicado no site consultor jurídico a crise a
divida da previdência tem como principal responsável a União e cita que no ano de 2004, foram aprovadas 17
leis que desviaram quase R$ 10 bilhões da seguridade social para outras finalidades que não guardam relação
com saúde, previdência social e assistência social. Afirma ainda que, nesse contexto, a existência da dívida do
governo federal para com o sistema de seguridade social prejudica a todos os setores que dela dependem: a
saúde, a previdência social e a assistência social. O setor de saúde funciona mal. Até as camadas mais pobres
da população se obrigam a contratar um seguro médico particular. O setor da previdência social funciona mal,
distorcendo os valores dos benefícios com correções que sempre perdem da inflação e obrigando as pessoas a
buscarem amparo no Poder Judiciário. São milhões e milhões de processos nos quais todos querem a mesma
coisa: o valor justo para os benefícios que lhes custaram muitos anos de contribuições. O setor de assistência
social é o mais vulnerável de todos. Não há previsão legal ou constitucional de quanto se deve gastar com as
medidas assistenciais, nem que medidas devem ser tomadas. Por essa razão, a cada governo que assume o
poder mudam completamente os programas sociais.
4
No Regime Geral de Previdência Social também exista a possibilidade do segurado filiar-se como facultativo,
sendo considerado todo aquele maior de 16 anos que não exerça atividade remunerada.
112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Constituição Federal, mas alertar e chamar atenção para a importância da previdência
complementar na vida dos segurados, quando visa proporcionar mais dignidade quando do
recebimento de sua aposentadoria.
A ineficiência administrativa não justifica a possibilidade de privatização da
previdência, nem sugerir discussão sobre qual deve ser o regime ideal, se exclusivamente
público ou privado, apesar do primeiro, teoricamente, ser mais suscetível de controle efetivo.
Importante frisar a relação da crise previdenciária pública com o desenvolvimento da
economia e a sociedade. Com o aumento da longevidade cumulado com o baixo índice de
natalidade reserva aos cofres públicos a diminuição da arrecadação decorrente da subtração
do número de segurados (financiadores) e o aumento do número e do tempo de concessão dos
benefícios.
A questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser pontuada a única
causa para o atual déficit previdenciário. O momento demográfico para a questão
previdenciária é positivo, existem teoricamente mais pessoas em atividade para financiar
aquelas que estão aposentadas. A tabela abaixo demonstra claramente a projeção da relação
entre a população de jovens e idosos no Brasil:
Gráfico 3
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Matijascic, pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da
Unicamp, concorda que a questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser
pontuado entre as causas para o atual déficit previdenciário e que o momento demográfico
para a questão previdenciária é positivo, pois existem teoricamente mais pessoas em atividade
para financiar aquelas que estão aposentadas. Por outro lado, segundo o pesquisador, a
questão do envelhecimento é um fator secundário e assim, mesmo que sejam executadas
medidas com relação a esse fator, o problema previdenciário pode persistir e se aprofundar se
não forem atacadas suas reais causas que, para ele, não pertencem ao sistema.
Na base arrecadatória para manutenção do Regime Geral estão às contribuições dos
segurados pagas sobre seus rendimentos, a principal delas vem da categoria dos empregados,
surge daí um novo fator que justifica a atual crise previdenciária, o desemprego. Sobre o tema
Esteves (2008, p. 114) explica:
Contudo, partir dos anos 80, a crise econômica fortaleceu-se e o cenário
empregatício mudou, declinando os seus índices. Nos anos seguintes, o crescimento
do setor produtivo deu-se pela inserção das novas tecnologias e não pela mão de
obra. Assim, diminui-se a produção de emprego e o acesso ao mercado de trabalho,
e os que aparecem vêm de forma cada vez mais precárias.
O desemprego não só atinge o Brasil, em tempos de globalização essa crise atinge
escala global como exemplifica Martin e Shumann (1998, p.11):
Alemanha, 1996. Mais de seis milhões de pessoas não conseguem arranjar emprego
permanente – um número que nunca havia sido atingido desde a fundação da
Alemanha Federal. A penas na indústria, serão suprimidos pelo menos um milhão e
meio de postos de trabalho ao longo da próxima década.
Nos Estados Unidos, Rifkin (1995, p.5) explica:
Só nos Estados Unidos, isto significa que, nós próximos anos, mais de 90 milhões de
empregos, de uma força de trabalho de 124 milhões de pessoas, estão seriamente
ameaçadas de serem substituídos pelas máquinas.
Dentre os mais variados motivos de comprometimento dos serviços prestados pela
Previdência Social pública, a má gestão administrativa continua sendo a causa mais relevante
do agravamento da ineficiência previdenciária. O gráfico abaixo demonstra o déficit da
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
previdência social nos últimos quatorze anos, que apesar do aumento da arrecadação em 5,1%
no ano passado, a divida não para de crescer.
Gráfico 4
Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2009/08/19/arrecadacao-da-previdencia-sobemas-nao-se-sustenta-215510.asp
Pela leitura dos índices acima resta demonstrado a progressão do crescimento da
divida pública da União com a Previdência Social brasileira. Por mais delicada que possa ser,
mas não seria absurda a afirmação de que a dívida da previdência é falsa, pois se forem
excluídos os desvios públicos da conta da previdência seria possível o Estado buscar efetivar
os direitos sociais de cada beneficiário.
4. CONCLUSÕES
A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O
apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para
garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio
Estado.
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas
globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima
apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade
Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social.
Dentre os vários fatores do comprometimento dos serviços e benefícios da previdência
pública brasileira a má administração é o principal deles. Os recursos destinados ao
financiamento da Seguridade Social são frequentemente desviados pela própria União para
serem aplicados em áreas que não guardam finalidade com a previdência social.
A diminuição da folha de salários causada pelo desemprego e o avanço tecnológico, a
crise internacional, a longevidade ou ate mesmo a baixa natalidade são fatores que
isoladamente não geram o déficit previdenciário, mas exigem da administração pública
medidas que preservem o sistema protetivo nacional.
Medidas ou reformas orçamentárias que não violem os direitos sociais nunca foram
objeto do poder legislativo o que se criou atualmente foi a inversão dos pilares de sustentação
da previdência, pois diante do quadro apresentado, ao invés do Estado realizar aportes de
capital para os déficits da previdência, como garante o Princípio da Tríplice Forma de Custeio
como é a previdência que vem sustentado o Estado em momentos de crise.
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118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: A escassez de creches e pré-escolas e a violação do
direito à educação.
RIGHT TO EDUCATION CHILDREN: A shortage of kindergartens and preschools and
violation of the right to education.
Ivan Dias da Motta1
http://lattes.cnpq.br/1508111127815799
Luiz Fellipe Preto2
http://lattes.cnpq.br/7534667569687014
RESUMO: As crianças de 0 a 5 anos de idade há tempos vêm tendo cerceado o seu direito à
educação. Aludido direito social, na realidade, é igualmente direito da personalidade e
compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da pessoa humana. Neste ínterim,
é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil, até mesmo em
decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem como junto ao
próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes Escolares e
Declarações Universais. Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta
garantia constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das
políticas públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da
personalidade à educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e
manutenção da democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a
possibilidade de escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil; Dignidade da pessoa humana; Crianças.
ABSTRACT: Children 0-5 years of age have long having curtailed their right to education.
Alluded to the social right, it is actually also the right personality and composed undoubtedly
the magnum principle of the dignity of the human person. Meanwhile, it is the duty of the
State to promote secure access to early childhood education, even as a result of insculpido in
our Constitution with the Article 205, as well as with the actual Statute of Children and
Adolescents, and the Law School and Guidelines Universal Declarations. There are, however,
notoriously unreliable delivery and effectiveness of this constitutional guarantee. Thus, the
theme is bounded by the demonstration of the role of public policies in order to guarantee
everyone the right social and personality fundamental to education as a form of human,
societal transformation and maintenance of democracy, analyzing it under focus does not lie
in favor of the public entity a choice in achieving and enforcing fundamental rights.
1
Pós-doutor em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor permanente
do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado e consultor
em Direito Educacional. Endereço eletrônico: <[email protected]>
2
Formado em Direito pela Universidade Norte do Paraná, especialista em Direito Tributário, Direito Civil,
Direito Processual Civil e Direito Público, Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de
Maringá – CESUMAR, advogado com escritório profissional situado em Londrina/PR e professor universitário
da Universidade Norte do Paraná.
119
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KEYWORDS: Early childhood education; dignity of the human person; Children.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 insere o direito à educação como direito
fundamental, incluindo-o no rol dos direitos sociais3. O direito à educação também encontra
previsão legal no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (art.4º) e na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação nacional, Lei nº 9.393/1996 (art. 2º).
O direito ao saber possui também uma dimensão universal estando consolidado na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Nações Unidas (1948), Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (1848), Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU
(1966), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Declaração Mundial sobre
Educação Para Todos (1990), entre outros.
Ainda, nos termos dos artigos 205 e 227 da Constituição Federal de 1988, a educação
é dever do Estado, como gestor e fomentador da educação, que deve realizar as políticas
públicas necessárias para que efetivamente haja educação para todos. É também um dever da
família, que é instrumento mestre, sem a qual o processo educativo é relegado a um segundo
plano, não havendo perspectivas de uma verdadeira transformação no homem e, igualmente,
deve ter a colaboração da sociedade que sofrerá todas as consequências da ausência de um
sistema educacional perfeito e acabado.
Nesta toada, o Estado tem o dever de garantir o acesso à educação a todos. Isto em
razão do direito social à educação constituir um avanço para minimizar distorções da
sociedade, visando à melhoria de condições de vida e a minoração das desigualdades sociais.
Desta forma, o Estado tem o dever de implementar políticas públicas para a garantia
do acesso de todos à educação. Para tanto, há previsão de dotação orçamentária (art. 212 e
213 da Constituição Federal de 1988) afastando qualquer argumento de que o acesso à
educação é norma de cunho programático, dependente da vontade do gestor.
Como direito público subjetivo o particular tem a faculdade de exigir o cumprimento
da obrigação pelos poderes públicos e as autoridades públicas devem ser responsabilizadas.
Pois bem, ultrapassadas estas premissas iniciais, cumpre salientar que as crianças de
0 a 5 anos de idade há tempos vêm tendo cerceado o seu direito à educação, mesmo a
3
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
educação infantil sendo obrigação estatal. Aludido direito social, na realidade, é igualmente
direito da personalidade e compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da
pessoa humana. Tem-se, portanto, diante do defeituoso fornecimento da educação infantil a
violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Neste ínterim, é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil,
até mesmo em decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem
como junto ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes
Escolares e Declarações Universais.
Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta garantia
constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das políticas
públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da personalidade à
educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e manutenção da
democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a possibilidade de
escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais.
2 ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL
É inegável que o direito à educação faz parte das condições para a existência digna
da pessoa humana, muito embora o conceito de dignidade seja extremamente amplo e, ainda,
nos dias de hoje, de difícil conceituação e delimitação, se é que se pode limitar a dignidade
humana.
É justamente em razão da importância do direito à educação que nosso ordenamento
jurídico prevê, junto a inúmeras legislações, o dever do Estado e a necessidade de garantia do
acesso à educação a toda coletividade, fazendo-o junto à Constituição Federal, Código Civil,
Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e também junto à
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além da previsão, igualmente, em diversas
declarações universais.
Neste ínterim, pode-se afirmar que a disposição do direito à educação junto ao texto
constitucional e que, tal disposição, em conjunto com as demais, é reveladora da tendência
das constituições em favor de um Estado Social, que tem como valor final a justiça social em
uma democracia pluralista exigida pela sociedade de massas.
Desde a Constituição do Império, datada de 1824, já havia disposição no sentido de
garantir o direito à educação, em seu artigo 179, XXXII, ao dispor que: “A instrução primária
é gratuita a todos os cidadãos”. Muito embora fosse singela aludida disposição constitucional,
121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
depreende-se a preocupação com a educação e a verificação de sua importância desde os
primórdios.
Já a Constituição de 1934 deu passos significativos ao elencar um capítulo próprio
para os temas relativos à educação, estabelecendo ser direito de todos, evidenciando, ainda,
que deveria ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, consoante o artigo 149 de
referido diploma legal. Este mesmo regramento constitucional estabeleceu que a educação
deveria possibilitar “eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação” e que deveria ser
desenvolvida “num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”.
Junto a Constituição de 1946 houve a inauguração de um curto período de Estado de
Direito, a qual, junto ao artigo 168 estabelece a obrigatoriedade do ensino primário oficial e
gratuito para todos e o ulterior também terá assegurada a gratuidade para aqueles que
comprovadamente não tiverem recursos suficientes.
Nem mesmo com o golpe militar houve a alteração substantiva no que concerne à
previsão constitucional relacionada à educação, pois, também junto ao artigo 168 do texto
constitucional de 1967, de forma expressa, residiu a menção de ser a educação um direito de
todos podendo ocorrer no lar e na escola e devendo ser inspirada, paradoxalmente, nos ideais
de liberdade e de solidariedade humana, porquanto o Estado era de exceção, com cerceamento
da liberdade. Além da garantia constitucional da educação universal, o ensino torna-se
obrigatório dos sete aos quatorze anos e ministrado nos diferentes graus pelo Poder Público.
De simples análise deste breve percurso histórico pelas constituições brasileiras pode
se perceber que o direito a educação jamais foi suprimido. Mesmo nos momentos ditatoriais
este direito manteve-se presente nos textos constitucionais, demonstrando que é essencial,
necessário e fundamental.
3 A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO
TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988.
A expressão educação possui sua origem no latim, educatio, educationis, e sua
tradução lato senso significa o ato de criar. O ser humano nasce com uma série de habilidades
e de possibilidades, oportunidade em que é a educação o instrumento capaz de garantir e,
principalmente, transformar aludidas potencialidades em realidade. Nesse sentido a educação
se reveste de notória e evidente necessidade e, por isso, é considerada essencial para integral
desenvolvimento da personalidade humana e, consequentemente, fundamental para o
desenvolvimento da cidadania.
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A educação é pressuposto integrante para a edificação do Estado Democrático de
Direito, o qual exige cidadãos capazes, críticos e prontos para desempenharem seus papéis
sociais e exercerem na plenitude a cidadania. É sabido que um dos principais objetivos da
educação é justamente o preparo para a cidadania e que a proteção dos direitos humanos
demanda um processo educacional sério, eficaz e capaz de despertar nas gerações presentes e
futuras a consciência de participação na sociedade, o que, infelizmente, não ocorre nos dias de
hoje diante da precariedade dos sistemas de ensino atuais e, também, da promoção de
políticas públicas por parte do ente estatal.
A educação detém a finalidade, como direito fundamental que é, de destinar-se em
um primeiro momento, ao substrato da sociedade, ou seja, às crianças, embora, até
recentemente estas e os adolescentes não tenham sido tratados como cidadãos e nem mesmo
como sujeitos de direitos.
Todavia, embora seja prioridade, a garantia do acesso à educação para as crianças,
como prioridade, não pode compactuar com a exclusão da universalização do ensino para as
demais faixas etárias, inclusive para os adultos, como ocorre nos dias de hoje, em que o
próprio sistema educacional é desigual. A formação intelectual, social e cidadã, função
primordial da educação, deve voltar-se, sem nenhuma forma de exclusão. Somente assim
poderemos iniciar a busca por um efetivo Estado Democrático de Direito.
Como já dito, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta vários diplomas legais que
buscam garantir a dignidade da pessoa humana, incluindo, por decorrência e obviedade, a
criança. A função primordial de tais disposições legais é a de garantir uma vida digna a todos
que estão sob seu manto.
Neste ponto inclui-se a educação das crianças, a qual passa a fazer parte do mínimo
existencial4. No entendimento de Simone de Sá Portella:
“O mínimo existencial refere-se ao ensino fundamental. Assim se em
um determinado Município não houver vagas nas escolas de ensino
oficial, pode o munícipe ingressar com uma ação, obrigando o Poder
Público Federal, estadual ou municipal, pois a competência é
concorrente das três entidades, a efetuar a matrícula em uma escola
particular. [...] No que tange ao ensino médio, não constitui mínimo
existencial”.5
4
PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio
Grande. 2007. P. 41.
5
PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio
Grande. 2007. P. 42.
123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Também, o direito à educação infantil é um direito inalienável, pois a matrícula é
obrigatória e a disponibilidade de vagas é obrigação do Estado, o qual resta compelido a
garantir a todos quanto delas necessitarem. Para que possa existir referida garantia,
imprescindível é, portanto, a promoção de políticas públicas com vistas à necessidade de a
União Federal e os demais entes federados aplicarem, anualmente, receitas provenientes de
impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino, conforme preleciona o Artigo 212
do texto constitucional.
Desta feita, é de suma importância registrar que não somente ao Estado incumbe o
dever de garantia do direito à educação, mas, também, por ser um direito fundamental, o
ordenamento jurídico pátrio confere à família e à sociedade a responsabilidade de,
igualmente, de garantir e proteger o direito das crianças à educação.
É exatamente neste sentido, também, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada
pela Assembléia das Nações Unidas, a qual dispôs, em seus princípios, que a criança terá
direito a receber educação, gratuita e compulsória, pelo menos no grau primário.
O direito à educação infantil é direito fundamental, inalienável, indisponível e
impostergável, sendo exatamente neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, o qual dispõe ser a educação infantil prerrogativa constitucional indisponível.
A sociedade brasileira, entendendo a importância do direito à educação e a
necessidade de garantia de seu acesso, deu mostras nas últimas décadas do empenho pela
universalização do acesso à educação nas escolas, especialmente no que tange à educação
infantil. Esta reivindicação garantiu que nossos legisladores pátrios trouxessem junto ao texto
constitucional a educação como um direito de todos, definindo a quem cabe a
responsabilidade por sua promoção e incentivo e estabelecesse seus fins junto ao Artigo 205.
A idéia da educação como direito subjetivo e dever do Estado e da família deve ser
analisada sob o enfoque da escola republicana, ou seja, “para todos”. No entanto, não basta a
simples oferta de vagas na rede pública de ensino, uma vez que ente público deverá garantir
também todos os meios necessários para a permanência do educando nas salas de aula. Resta
inegável, portanto, embora não haja menção expressa nos textos legais, que além do acesso e
da permanência é indispensável a efetividade. Sem este último quesito, o dispositivo
constitucional citado perde sua razão de existir, tornando-se inócuo.
Compete ao ente estatal, através das instituições de ensino, em colaboração com a
família e a sociedade de modo geral, buscar os meios para que a escola desempenhe seu papel
e garanta a aplicabilidade do artigo 205 da Constituição Federal. Desta feita, o Estado tem o
124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
dever de garantir o acesso e a permanência das crianças na escola, pois o ensino fundamental,
até a oitava série ou o nono ano, será obrigatório e gratuito.
4 O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado um marco na
garantia e afirmação consolidada dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros. Em
razão de aludido dispositivo legal criou-se um conjunto de atenção à infância e à
adolescência, em especial, inerente à inserção escolar.
Nesta toada, o Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente eleva a educação a
direito positivado e enumera seus princípios basilares ao dispor a necessidade de igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola, direito de respeito pelos educadores, direito
de contestar critérios avaliativos, direito de organização e participação em entidades
estudantis, e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.
Depreende-se, portanto, que o foco central do processo educativo é a criança,
oportunidade em que o ensino deve garantir a sua plena realização, como pessoa, como
sujeito de direito. Portanto, depreende-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente
encontra-se em perfeita sintonia com o texto constitucional ao determinar, igualmente, o
acesso em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. Em razão disto
garante-se, em um primeiro momento, a educação de crianças a partir dos primeiros meses de
vida junto às creches e, em segundo lugar, confere condições aos pais para que possam
permanecer no mercado de trabalho, com a tranquilidade de ter onde deixar o filho.
As creches, nos últimos anos, vêm ganhando conotação de entidade capacitada a
garantia da educação infantil. Infelizmente, a obrigatoriedade de acesso às creches e préescolas não foi acompanhada pelo pleno atendimento da demanda, fato este que prejudica, em
muito o desenvolvimento das crianças.
Ainda, o legislador pátrio editou dispositivos legais determinando a quem remanesce
a responsabilidade pelos cuidados e zelo com as crianças e adolescentes. Aos dirigentes de
instituições de ensino o Estatuto da Criança e do Adolescente outorgou uma única tarefa, que
é a de comunicar ao Conselho Tutelar acerca das infrações praticadas junto à escola por parte
dos educadores e alunos ou decorrentes do processo de aprendizagem.
Por fim, constata-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, também, que
o Poder Público deverá instigar a pesquisa e novas propostas relacionadas à educação em
125
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
geral, de forma que novas possibilidades alcancem o objetivo primordial que é o de manter as
crianças na escola e formá-las como efetivos cidadãos. O Estatuto da Criança e do
Adolescente corrobora a tese defendida até o presente momento, qual seja, a de que a
educação é um direito fundamental e existem, assim, normas cogentes pertinentes.
5 O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO
NACIONAL
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional surge em um contexto não muito
favorável, qual seja, a crise econômica de 1990. Apostou-se, com isso, no receituário
neoliberal e, ao apostar-se neste ponto específico para resolver os graves problemas
econômicos, afetou-se, por consequência, as políticas sociais, repercutindo nas políticas
públicas de educação. Nesta toada, a educação acabou tendo que adequar-se às necessidades
de ajustes da economia propostos pela equipe econômica.
Assim, a legislação em comento estabelece em seu primeiro artigo que “a educação
abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
Também, o diploma legal em análise, ao traçar os princípios e fins da educação
nacional, evoca a Constituição Federal, especialmente seu artigo 205, ao estabelecer em seu
Título II, artigo 2º e seguintes, que “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”.
Nesta toada, a criança por meio da educação tem que estar preparada para exercitar
sua condição de cidadão que é, ou seja, de titular de direitos e deveres, tanto por uma
condição universal, uma vez que se encontra assegurada na Carta de Direitos da Organização
das Nações Unidas, quanto por uma condição particular, amparada no princípio constitucional
de que todos são iguais perante a lei.
6 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL
O Código Penal igualmente é um importante meio de proteção e garantia do direito à
educação. Junto a seu artigo 246, estabelece que os pais ou responsáveis que deixarem de
126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
prover a “instrução primária” dos filhos em idade escolar terão a pena de detenção pelo prazo
de 15 dias a um mês, ou multa. O tipo penal é o abandono intelectual.
Abandono nada mais é do que a falta de amparo. Pratica abandono intelectual os pais
que deixam, sem justa causa, de prover a educação dos filhos menores. O dispositivo do
Código Penal em análise busca proteger um bem jurídico determinado que o direito ao ensino
fundamental dos filhos menores e desta forma almeja-se assegurar-lhes a educação necessária
capaz de facilitar-lhes o convívio social.
A criança tem o direito fundamental à educação e seus responsáveis não podem
deixar de dar a devida atenção a ele. Aos que se esquivarem dessa garantia de forma dolosa
aplicar-se-á a pena prevista no artigo 246 do Código Penal.
7 DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS
PÚBLICAS?
É notório em nosso País a carência de creches e pré-escolas, questão esta que,
indubitavelmente contribui para a idêntica notoriedade da precariedade da educação infantil.
É urgente a necessidade de concretização e consecução de políticas públicas no setor, pois,
atualmente, o Brasil está com 84,5% de crianças fora das creches6. Em razão da deficiência
apresentada pelo setor público, tem-se que é somente com um macro esforço, pela
mobilização junto aos municípios, à iniciativa privada e sociedade civil é que conseguirá
cumprir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação elaborado em 2001. Neste
sentido, de acordo com pesquisa realizada por Oman Carneiro:
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD)
2006, o quadro da carência de creches é comum em todas as regiões:
Norte com 94,2%; Centro-Oeste, 90%; Nordeste, 88,3%; Sudeste ,
84,2% e Sul, com 83,9% de crianças não assistidas, índices estes que
comprovam o levantamento que considera apenas 30% dos municípios
brasileiros com algum investimento em infraestrutura para a criação
de espaços educacionais para a infância.7
6
Disponível em:
<http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-ea-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13.
7
Disponível em:
<http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-ea-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A justificativa apresentada pela grande maioria dos municípios é a falta de recursos
para investimento na construção de creches e pré-escolas para atender a educação infantil.
Para conter o déficit, e atendendo à justificativa da insuficiência de recursos, alegada por
maior parte dos municípios, o Governo Federal em nota publicou que estará investindo R$
800 milhões na construção e equipagem das creches.
Mas, para atender a estimativa de 11 milhões de crianças com idade de 0 a 3 anos
que estão desprovidas deste direito constitucional, o País precisa construir, pelo menos, de 9 a
12 mil creches por ano.
Com vistas à estas informações, dúvidas não remanescem. Existe evidente
problemática inerente à promoção de políticas públicas pelo poder estatal e, não só isso, mas,
também, vícios na consecução das políticas públicas já existentes, como, por exemplo, o
Plano Nacional de Educação.
As idéias e tentativas são válidas de consecução de políticas públicas. Todavia, não
são eficazes e, na grande maioria das vezes acabam por esbarrar na burocracia e também na
própria corrupção.
Dúvidas, portanto, não existem com relação à deficiência enfrentada nos dias de hoje
inerente à educação infantil a qual não prospera em razão da ineficácia, tanto de elaboração
como de procedimento, das políticas públicas.
8 DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS EM FACE DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
Antes de adentrar ao foco principal do presente tópico, importante deixar registrada,
novamente, a fundamentalidade do direito à educação, como sendo o principal fundamento de
gerar ao país a ultrapassagem de uma situação de terceiro mundo para, finalmente, passar a
ser o país do presente e não mais o eterno país do futuro, como tem em mente nossos
legisladores pátrios.
Com vistas ao afirmado, pode-se, ainda, firmar o entendimento de que a própria
justificativa adotada, inerente à não consecução de políticas públicas no setor educacional
infantil, é de terceiro mundo. É periférica e superficial por não ser capaz de, sequer, buscar
compreender e conferir eficácia a nossos princípios magnos constitucionais.
Em nosso País, meninos de rua e jovens à deriva são o resultado da pobreza em que
vivem suas mães, da ausência dos pais, da violência dentro e fora de casa e do total abandono
do Estado a quem dele precisa. É, sim, urgente e necessário reforçar os espaços e tempos de
128
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
acolhimento de crianças e jovens pelos adultos, pais e, principalmente, pelo Estado para que
não tenha, quando adultos, que puni-los e privá-los da liberdade. Esta é a idéia.
Nesta toada, imprescindível colacionar o entendimento de Luiz Edson Fachin ao
dispor que: “em todo campo do saber (daí a pertinência quiçá especial com a instância
jurídica), há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não
liberta”.8 É, neste sentido, igualmente pertinente invocar as palavras de Paulo Freire, para
quem: “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate.
A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.9
Pertinente, também, os dizeres de Marilena Chauí, para quem:
As leis, porque exprimem os privilégios dos poderosos ou a vontade
pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos
nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder Judiciário
aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa
autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade
seja, por um lado, incompreensível e, por outro, ineficiente (a
impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível
com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). 10
A democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada e não há, nem nunca haverá
democracia, isonomia e justiça social sem o acesso pleno à educação como único caminho a
ser trilhado no sentido de ver concretizados os anseios do legislador constituinte. A carência
de políticas públicas ou sua ineficiência, contribuem para má formação dos cidadãos e a
consequente manutenção de nossa sociedade em um estado de alienação quase que completo.
Na situação atual, não há que se falar em civismo, em democracia, em justiça social ou sequer
em dignidade, pois, aludidos institutos podem ser considerados, hoje, irreais e um objetivo a
ser atingido.
Veja, portanto, a importância da educação. Neste ínterim, é inconcebível que se
admita, como justificativa para negativa de implementação e garantia deste direito
fundamental, a carência de recursos públicos.
A pergunta que se deve fazer neste momento é: o administrador público possui,
em todos os casos, carta branca para escolher as prioridades, ou seja, para decidir quais
8
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42.
10
CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem.
9
129
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
valores serão contemplados e, consequentemente, quais serão postergados em face da
escassez dos recursos públicos? Tal pergunta deve ser respondida com cautela.
A regra é que, por atribuição constitucional, cabe ao Poder Executivo definir os
programas de governo que serão tratados com prioridade; boa parte deles, referendados pela
vontade manifestada nas urnas. Todavia, há um núcleo de direitos que não pode, em hipótese
alguma, ser preterido, pois constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado Democrático
de Direito.
O termo "em hipótese alguma" frisa que nem mesmo a vontade da maioria pode
tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da
maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas
este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos
direitos fundamentais.
Explica-se. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão,
pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito
às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja
a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a
Democracia.
Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do
governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que
depende unicamente da vontade política.
A não priorização de direitos essenciais implica o destrato da vida humana como um
fim em si mesmo, ofende, às claras, o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana, dentre os
quais os relacionados às liberdades civis e aos direitos prestacionais essenciais como a
educação e a saúde, não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das
escolhas do administrador.
A argumentação até aqui apresentada expõe a existência de duas questões que
precisam ser conciliadas. De um lado, tem-se o real problema da ausência de recursos
orçamentário; do outro, a necessidade de realização dos Direitos Fundamentais.
A tese não deixa de ser uma decorrência do reconhecimento da reserva do possível.
Por não haver recursos para tudo, é que se deve garantir, ao menos, o suficiente para que se
possa viver com dignidade. Esse mínimo existencial não pode ser postergado e deve ser a
prioridade do Poder Público.
130
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Somente depois de atendido é que se abre a possibilidade para a efetivação de outros
gastos, não entendidos, num juízo de razoabilidade, como essenciais. Por esse motivo, pelo
menos a priori, a teoria da reserva do possível não pode ser oposta ao mínimo existencial.
Antes, mais uma consideração. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital,
ou seja, o mínimo para se viver. Não deixar alguém morrer de fome é, certamente, o primeiro
passo, mas não é, nem de longe, o suficiente para fazê-lo viver com dignidade.
O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições
socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um
mínimo de inserção na "vida" social.
Definido o conteúdo do mínimo existencial, não fica difícil perceber que dentre os
direitos considerados prioritários encontra-se o direito à educação.
O que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal
social. Animal social a abelha é, a formiga é, inúmeros outros são. O traço diferencial do
homem é a sua condição de ser um animal político; a sua capacidade de relacionar-se com os
demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade.
A distinção é importante, pois denota a existência de uma dupla dimensão da vida
humana. Há a vida natural, biológica, que faz do homem um animal como qualquer outro. Há,
também, uma espécie de segunda vida, a que é exercida na esfera pública, nas relações
intersubjetivas e políticas que o indivíduo realiza com os demais integrantes da sociedade.
A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço
característico, o relacionamento com os demais em um espaço público - onde todos são, in
abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o
discurso do que em virtude de atributos biológicos - é que torna a educação um valor ímpar.
Em outras palavras, no espaço público - onde se travam as relações comerciais,
profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania - a ausência de educação, de
conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das
forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias. Daí surge a
necessidade do insculpido junto aos Artigos 205 e 227 da Constituição Federal.
Observa-se, nesse ponto, que a priorização dos investimentos na educação infantil,
devido a sua essencialidade, não é resultado de opções políticas dos ocupantes momentâneos
do cargo chefe do Poder Executivo, mas sim uma imposição da própria Carta Federal.
Com efeito, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto - quando a
escassez é resultado de um processo de escolha das atividades que serão atendidas - ao
131
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
mínimo existencial, aos direitos que a própria Constituição Federal elege como prioritários,
como é o caso do direito à educação infantil.
9 DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À
OBRIGATORIEDADE DE VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA
EDUCAÇÃO INFANTIL.
Conforme já exaustivamente disposto, a acesso dos cidadãos ao saber contribui para
a expansão dos conhecimentos e cria subsídios individuais e coletivos para o
engrandecimento da consciência sobre a realidade social em que vivem e sobre as relações
existentes nos contextos dos quais são sujeitos históricos, econômicos e políticos. Ao firmar
esta conscientização, o sujeito se transforma e passa a viver de maneira mais efetiva e
presencial. Na esteira desse entendimento, são esclarecedoras as palavras de Octávio Ianni:
Poucos são os que dispõem de condições para se informarem e
posicionarem diante dos acontecimentos mundiais, tendo em conta
suas implicações locais, regionais, nacionais e continentais. Quando se
criam condições mais plenas para a elaboração da autoconsciência, no
sentido de consciência para si, então a cidadania se realiza
propriamente como soberania.11
Nesta toada, educação e escola, principalmente infantil, são essenciais para o
indivíduo e para a sociedade vez que promove e garante o avanço da humanidade. Todavia,
para que isto ocorra, indispensável é a promoção de políticas públicas voltadas para a
educação.
Infelizmente, a realidade brasileira é precária em propostas e ações concretas que
enaltecam compromisso com as efetivas necessidades dos indivíduos, oportunidade em que
aludido fato é refletido junto aos entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de
Justiça conforme se demonstrará.
Nosso País herdou do período Imperial um contexto educacional extremamente
complicado, com vistas ao fato de que a alfabetização das crianças não era preocupação do
Poder Público. Neste sentido, tem-se o entendimento de Florestan Fernandes:
11
IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. P. 115.
132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
É certo que a República falhou em suas tarefas educacionais. Mas
falhou por incapacidade criadora: por não ter produzido os modelos de
educação sistemática exigidos pela sociedade de classes e pela
civilização correspondente, fundada na economia capitalista, na
tecnologia científica e no regime democrático. Em outras palavras,
suas falhas provêm das limitações profundas, pois se omitiu diante da
necessidade de converter-se em Estado educador, em vez de manter-se
como Estado fundador de escolas e administrador ou supervisor do
sistema nacional de educação. Sempre tentou, não obstante, enfrentar
e resolver os problemas educacionais tidos como “graves”, fazendo-o
naturalmente segundo forma de intervenção ditada pela escassez
crônica de recursos materiais e humanos. Isso explica por que acabou
dando preeminência às soluções educacionais vindas do passado, tão
inconsistentes diante do novo estilo de vida e das opções republicanas,
e por que simplificou demais a sua contribuição construtiva,
orientando-se no sentido de multiplicar escolas invariavelmente
obsoletas, em sua estrutura e organização, e marcadamente rígidas, em
sua capacidade de atender às solicitações educacionais das
comunidades humanas brasileiras.12
Mais do que um problema localizado no setor educacional, o Manifesto dos
Pioneiros situa o problema educacional como eminentemente social, conforme analisou
Otaíza de Oliveira Romanelli, indicando a educação como possibilidade para alavancar o
desenvolvimento econômico brasileiro e conseqüentemente possibilitar também o
desenvolvimento da sociedade.
Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a
educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de
Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela
condição econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter
biológico”, com que ela organiza a coletividade em geral,
reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o
permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem
econômica e social. A educação nova, alargada a sua finalidade para
além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a
verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia
democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos
os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de
educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de
ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvimento natural e
integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”,
de acordo com certa concepção de mundo.13
12
FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 4.
AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores
(1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. P. 40.
13
133
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Uma vez reconhecida a educação como direito de todos, o Manifesto dos Pioneiros
confere um progresso qualitativo junto à compreensão da educação como fundamental para o
desenvolvimento da cidadania. O papel desempenhado no contexto do Manifesto, que trouxe
em seu bojo as importantes reivindicações de uma educação pública, obrigatória, gratuita,
leiga e igual para ambos os sexos. Neste sentido, tem-se os dizeres de Fernando de Azevedo:
Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua
educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos
meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de
estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus
graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em
condições de inferioridade econômica para obter o máximo de
desenvolvimento de acordo com suas aptidões vitais. Chega-se, por
esta forma, ao princípio da escola para todos, “escola comum ou
única”, que tomando a rigor, só não ficará na contingência de sofrer
quaisquer restrições, em países em que as reformas pedagógicas estão
intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das relações
sociais.14
Neste sentido, a educação é, assim, “um direito social fundante da cidadania e o
primeiro na ordem das citações”15 Sem educação, não há cidadania.
Sob este enfoque, a educação é considerada como direito de todos e dever do Estado
e da família, sendo indispensável para a evolução do ser humano.
Realizados aludidos esclarecimentos, importa salientar que há notória tendência do
Superior Tribunal de Justiça em assegurar as crianças o acesso à educação infantil,
oportunidade em que, a totalidade dos Mandados de Segurança que foram ajuizados e
chegaram a análise desta Corte Superior tiveram seu deferimento como medida imposta, no
tocante a garantir e a assegurar vagas junto à instituições de ensino mantenedoras da educação
infantil.
Neste sentido, tem-se o entendimento unânime do Superior Tribunal de Justiça –
STJ, junto ao Recurso Especial 1345330/RS:
Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação
infantil constitui direito fundamental social, que deve ser assegurado
pelo ente público municipal, garantindo-se o atendimento em creche
ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com absoluta
14
15
FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 44.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A ,2002.
134
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do
ECA.
Ainda, a Corte Superior junto ao Recurso Especial 782196/SP, consignou que:
“Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação infantil constitui
direito fundamental social, que deve ser assegurado pelo ente público municipal, garantindose o atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com
absoluta prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do ECA."
Desta forma, o Superior Tribunal de Justiça – STJ é uníssono em entender o direito à
educação infantil como fundamental, indispensável e obrigatório, razão pela qual concede,
aos que buscam sua tutela jurisdicional, o acesso e garantia de vagas em instituição que atuam
neste setor educacional.
10 CONCLUSÃO
A educação como direito social e como um dos componentes da consolidação da
cidadania de um povo pressupõe a criação e efetivação de estratégias pelo poder público para
que o mesmo seja garantido no âmbito da concretude.
Para que a educação possa contribuir para a efetivação da cidadania do povo
brasileiro é preciso entendê-la enquanto direito, ou seja, a garantia da educação deve ocorrer
integralmente e não apenas como possibilidade de acesso à escola, pois para que esta
contribua com o exercício da cidadania de forma geral, precisa ser organizada de forma a
possibilitar que seus alunos usufruam de todas as possibilidades de acesso, aquisição e
desenvolvimento de novos conhecimentos para o exercício de seus direitos e deveres. Para
isso ocorrer é preciso efetivar ações que garantam a previsão legal.
11 REFERÊNCIAS:
PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito
Jurídico, Rio Grande. 2007.
IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966
CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem
135
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1999
AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos
educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000,
CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro:
DP&A ,2002
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO BRASILEIRO
SOCIAL RIGHT TO HEALTH: ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF
FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE CASE OF BRAZIL
Aline Maria Hagers Bozo1
Bárbara Guasque2
RESUMO
O presente artigo versa sobre discussão teórica acerca dos direitos fundamentais, enfatizando
que são eles absolutos, como tal, só podem ser relativizados mediante lei e em caráter
excepcional. Os Direitos Fundamentais de primeira a terceira dimensão pautaram-se no
ideário da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, no entanto, só serão
objeto de estudo os direitos de primeira e segunda dimensão, com ênfase no direito social à
saúde. O direito social à saúde é previsto na Constituição Federal de 1988 em vários
dispositivos, como no artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. O Brasil possui um sistema de
saúde público, de caráter universal, igualitário e gratuito, financiado pelo Estado. Contudo, o
Sistema Único de Saúde se apresenta deficitário, restando a pergunta se o direito fundamental
à saúde é garantido no Brasil. Entende-se que o SUS não atende satisfatoriamente as garantias
fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988, precisando que a União invista mais
recursos no sistema hoje proposto.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais; Direito Social,
Humana, Sistema Único de Saúde-SUS.
Dignidade da Pessoa
ABSTRACT
This article deals with a theoretical discussion about fundamental rights, emphasizing that
they are absolute and as such they can only be put into perspective by law and in exceptional
character. The Fundamental Rights of first to third dimensions were based on the ideology of
the French Revolution, liberty, equality and fraternity. However, the rights of first and second
dimensions will be the object of study, with emphasis on the social right to health. The social
right to health is provided in the 1988 Federal Constitution through various instruments, such
as the 6th article, 196, 197, 198, 199, and 200. Brazil has a public health system of universal
character, egalitarian and free, financed by the State. However, this Unified Health System is
deficient, leading to question whether the fundamental right to health is guaranteed in Brazil.
It is understood that the Unified Health System does not meet the fundamental guarantees
provided in the 1988 Federal Constitution satisfactorily and this fact represents a need for the
State to invest more resources in the system proposed.
KEYWORDS: fundamental rights, social rights, human dignity, Unified Health System.
1
Especialista em Direito Criminal pela UNICURITIBA e Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental
pela PUC/PR. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
2
Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011/2013), com o apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Advogada graduada em Direito pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (2003). Pós-Graduada em Direito Ambiental pelo Centro Universitário
Positivo - UNICENP (2009).
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Sumário: I.Introdução; II.As Dimensões dos Direitos Fundamentais; III. Os Direitos Sociais e
a Dignidade da Pessoa Humana. IV. Os Direitos Sociais. V. O Direito Social à Saúde. VI.
Competência dos Entes Federados quanto à Saúde. VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do
Possível frente à Efetividade da Prestação Estatal. VIII. Considerações Finais. IX.
Referências.
I. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 fora chamada de Constituição Cidadã por ter inserido
vários direitos fundamentais em seu texto. Dentre eles podemos destacar os direitos
fundamentais de primeira geração que são os garantidores de direitos básicos como a
liberdade de ir e vir. Por sua vez, os direitos fundamentais de segunda geração exigem do
Estado uma prestação para sua efetivação, como o direito à saúde.
Precisar um marco histórico para o surgimento dos direitos fundamentais é árdua
tarefa, da mesma forma que conceituar ou caracterizá-los. Muitos são os conceitos para os
direitos fundamentais, o que afasta a simplicidade de tal tarefa, visto que inúmeras são as
possibilidades de um resultado não satisfatório, uma vez que faltariam exatidão e
especificidade que abarcasse todo o conteúdo.
De acordo com Hesse3 os direitos fundamentais visam “criar e manter os pressupostos
elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana.” Enquanto Schmitt4 entende
que os direitos fundamentais podem ser caracterizados como direitos do homem livre e
isolado, direitos que possui em face ao Estado. Este autor menciona que os direitos
fundamentais são absolutos e não se relativizam, exceto se obedecerem a critérios da lei ou se
estiverem dentro de limites legais. E continua dizendo que “as limitações aos chamados
direitos fundamentais genuínos aparecem como exceções, estabelecendo-se unicamente com
base em lei, mas lei em sentido geral; a limitação se dá sempre debaixo do controle da lei,
sendo mensurável na extensão e no conteúdo”. 5
O presente trabalho questiona o direito fundamental, pautado no princípio da
dignidade da pessoa humana, à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988, se o mesmo
está sendo oferecido pelo Estado conforme preconizado pelo texto constitucional.
3
HESSE, Konradi, Grundechte, in Staatslexikon, v.2.In: Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional.
26 ed. p.560.
4
SCHMITT, Carl, Verfassungslehre, p.164 Apud. Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional. 26 ed.
p.561.
5
Id. Ibid. p. 562.
138
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
II. As Dimensões dos Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais habitualmente são classificados em gerações de direito. Há
algumas manifestações quanto à terminologia geração ou dimensão de direito, de forma que
Lenza6 explica que a doutrina mais atual prefere a expressão “dimensões” dos direitos
fundamentais, considerando que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da
“dimensão” anterior e, assim, a expressão se mostraria mais adequada.
Sarlet, Marinoni e Mitidiero, julgam as críticas dirigidas ao termo “gerações” de
direito bem fundadas, uma vez que o reconhecimento de novos direitos fundamentais exercem
processo cumulativo, posto que os novos complementam os já existentes e não há exclusão ou
alternância, como a expressão “gerações” poderia sugerir uma substituição gradativa, de uma
geração para outra. Assim como fez Lenza, os autores citados também preferiram utilizar-se
do termo “dimensão”, também de acordo com as mais modernas doutrinas. 7
Abandonando a questão de terminologia, no que tange a classificação dos direitos
fundamentais, eles podem ser ordenados em várias dimensões, sendo que as três primeiras
partem do lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ideário da Revolução Francesa 8, mas
apenas os de primeira e segunda geração serão objetos do presente estudo. 9
Os direitos fundamentais de primeira dimensão correspondem aos direitos de
liberdade, da não intervenção do Estado – os chamados direitos negativos - e vão se atrelando
também ao princípio da igualdade, em que todos são iguais no usufruto da liberdade. Nas
palavras de Paulo Bonavides10 “são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do
instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande
parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do
6
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.16ª edição atualizada e ampliada. Editora Saraiva,
2012, p. 958.
7
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2012, p. 258.
8
LENZA. Op. Cit. p. 958.
9
Na terceira dimensão dos direitos fundamentais encontram-se os ditos direitos de solidariedade e fraternidade,
cuja consagração decorre dos impactos ocasionados pela evolução tecnológica e científica. A principal diferença
entre os direitos de terceira dimensão com os anteriores, encontra-se na questão da titularidade. Isso porque, ao
contrário das dimensões anteriores, aqui a titularidade pertence a todo gênero humano, como os direitos difusos e
os direitos coletivos. São dessa dimensão os direitos relativos ao desenvolvimento, à autodeterminação dos
povos, à paz, ao meio ambiente e à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio comum da
humanidade – histórico e cultural, e à comunição. Alguns autores mencionam a existência de direitos
fundamentais de quarta dimensão. Para Bonavides a quarta dimensão de direitos fundamentais decorre do
fenômeno da globalização dos direitos fundamentais e compreende direitos como à informação, à democracia e
ao pluralismo.
10
BONAVIDES. Op. Cit. p. 563.
139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Ocidente”. O autor afirma que os direitos de primeira dimensão alcançaram projeção de
universalidade formal, de modo que qualquer Constituição os reconheça em toda a sua
extensão. Esses direitos tangem ao homem das liberdades abstratas e têm por titular o
indivíduo subjetivo; eles opõem-se ao Estado.
Os direitos de primeira dimensão refletem o pensamento do liberalismo-burguês do
século XVIII, preocupados com as questões individuais, ficando caracterizados como direitos
de defesa do indivíduo frente ao poder estatal. Tais direitos almejam uma abstenção por parte
dos poderes públicos, sendo assim, direitos de resistência ou de oposição ao Estado.
Conforme Sarlet:
Neste contexto, assumem particular relevo os direitos à vida, à liberdade, à
propriedade e à igualdade perante a lei, posteriormente complementados por um
leque de liberdades, incluindo assim denominadas liberdades de expressão coletiva
(liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos
direitos de participação política, tais como direito de voto e a capacidade eleitoral
passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e
a Democracia. 11
Os direitos humanos de primeira dimensão referem-se ao indivíduo e suas liberdades –
liberdade de ir e vir, ao culto religioso, de expressão, de reunião, de fazer escolhas na esfera
afetiva, e também a liberdade de propriedade e privacidade, sem nenhuma intervenção
estatal.12
Os direitos de segunda dimensão estão relacionados às liberdades concretas e na
perspectiva cronológica, dominaram o século XX. A Revolução Industrial, no século anterior,
representou o marco do fim da soberania burguesa. Nesse contexto, se evidenciaram o
acúmulo de capital nas mãos dos mais ricos, a aceleração de desempregos e as precárias
condições de trabalhos. Esses, dentre outros vários fatores acabaram por eclodir as
manifestações e organizações da classe proletária, clamando por direitos como, por exemplo,
do voto, o qual lhes concedia a escolha de seus representantes 13. Os direitos de segunda
dimensão estão relacionados às questões sociais, ao Estado Social, Estado este que se
preocupava com a redistribuição dos lucros, com a garantia de uma sociedade mais justa e
igualitária que contasse com a intervenção Estatal, a fim de que cada indivíduo pudesse ter
uma existência digna. Esses direitos, diferentemente dos de primeira dimensão, exigem ações
11
SARLET et al. Op. Cit. p. 260.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da legitimidade
política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Ed, 2006, p 59.
13
Id. Ibid. p. 56.
12
140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
positivas por parte do Estado para garantir o bem estar social - chamados também de direitos
positivos. São os direitos sociais, culturais e econômicos que surgiram arraigados ao princípio
da igualdade.
Porto descreve os direitos de segunda dimensão como sendo aqueles que concernem,
por sua vez, às conquistas no âmbito social, não apenas na esfera individual, contudo visando
à coletividade dos trabalhadores, estudantes, aposentados, crianças, adolescentes, idosos,
enfim, situando-os na condição de sujeitos de direitos. Este autor finaliza observando que
“ademais, nesta segunda dimensão, passa-se a exigir uma ação positiva do Estado para
concretização dessas novas categorias deônticas, daí serem chamados de direitos
prestacionais”. 14
III. Os Direitos Sociais e a Dignidade da Pessoa Humana
Dentre os direitos prestacionais sociais de segunda dimensão, o direito à saúde pede
especial atenção e não há como falar em saúde, sem falar em dignidade da pessoa humana15.
Como salienta Sarlet:
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e
qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em
razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra
particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo
Estado e por seus semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os
seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica. 16
A dignidade da pessoa humana é valor axiológico, é a base, o núcleo de todos os
direitos e garantias fundamentais e na Constituição Federal encontram-se importantes artigos
nesse sentido, como o artigo 1º, inciso III, que coloca a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República; artigo 3º, inciso III que põe como objetivos fundamentais, entre
outros, a erradicação da pobreza e da marginalização a fim de reduzir a desigualdade social e
regional; artigo 5º, caput, que coloca todos iguais perante a lei, e seu inciso III, que proíbe a
tortura, o tratamento desumano ou degradante; artigo 6º que determina a assistência aos
14
PORTO. Op. Cit. p. 60 e 61.
“(...) no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se
em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não
permite equivalente, então tem ela dignidade”. Conforme: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica
dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004.
16
SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da
República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22.
15
141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
desamparados; artigo 193 que menciona como base da ordem social o bem estar e a justiça
social e, por último, artigo 231 que reconhece aos índios sua organização social como um
todo, protegendo-os.
Nas palavras de Torres “o direito à alimentação, à saúde e à educação, embora
não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à
parcela mínima, sem a qual a pessoa não sobrevive” 17. Para Barroso, dignidade da pessoa
humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que, embora carregue em si forte carga
espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir
emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana. De fato, a dignidade da
pessoa humana ganha destaque, não obstante esta se merecer como um conceito de contornos
vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambiguidade e porosidade, assim como por sua
natureza necessariamente polissêmica. Tal relevância pode ser facilmente compreendida à luz
dos avanços tecnológicos e científicos da humanidade. 18
Sarlet propôs uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa humana:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada
ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos
demais seres humanos. 19
Há uma indissolúvel e intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais, mesmos naquelas constituições em que a dignidade humana não seja
explicitada em seus textos. Desta maneira, pode-se considerar que a dignidade da pessoa
humana é um axioma irrefutável de valor jurídico-filosófico. 20
Moraes21 define os direitos humanos fundamentais como sendo “o conjunto
institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o
respeito a sua dignidade, por meio da sua proteção contra o arbítrio do poder estatal”. E
afirma que a complementaridade, a efetividade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade, a
17
TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 133.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 296.
19
SARLET. Op. Cit. 2001, p. 60.
20
Id. Idem. p. 26.
21
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3º ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 39.
18
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
interdependência, a imprescritibilidade e a universalidade são as características destes
direitos.
Moraes22 ainda preceitua que a dignidade humana trata-se de valor moral e espiritual,
intrínsecos e indissolúveis a toda pessoa, e que conscientemente se expressa por meio da
determinação responsável pela própria vida, com o dever de exigir do outro a reciprocidade
do respeito.
Ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, o festejado dispositivo
que decreta a igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos, Rocha faz as
seguintes considerações:
Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não
muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos,
esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um
jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual. 23
Silva sobre o conceito de dignidade da pessoa humana, para que se possa entender o
significado além de qualquer conceituação jurídica, uma vez que a dignidade é posta como
condição inerente ao todo e qualquer ser humano, atributo que o caracteriza como tal, afirma
que “a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses
conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria
pessoa humana”. 24
E por fim, não menos importante, Flávia Piovesan discorre sobre o processo de
universalização dos direitos humanos e elucida que a formação de um sistema internacional,
composto por tratados, tem sua fundação na acolhida da dignidade da pessoa humana como
valor que norteia o universo de direitos. Conveniente se faz destacar a concepção da autora:
Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não
dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade
humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os
tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico,
incorporam o valor da dignidade humana. 25
22
MORAES. Op. Cit. p.40.
ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de Todos e para Todos. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 13.
24
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de
Direito Administrativo. v. 212 - abr./jun. 1998.
25
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. In: LEITE, George
Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003.
23
143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Assim, a Constituição brasileira de 1998 traz em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade
da pessoa humana como direito fundamental. Porém, importante perceber que a dignidade da
pessoa humana não foi inclusa no artigo 5º da Carta Magna, o qual estabelece os direitos e
garantias fundamentais, todavia, concede-o o enfoque como princípio constitucional basilar
do Estado Democrático de Direito.
O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a
dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas,
garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua
dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades
fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde,
moradia etc. 26
IV. Os Direitos Sociais
Os direitos sociais são considerados direitos de segunda dimensão, aqueles que exigem
prestações pelo Poder Público e requerem uma atuação positiva do Estado, de modo a
diminuir ou ao menos amenizar a desigualdade social dos hipossuficientes. De acordo com
André Ramos Tavares “são, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a
prestação, ou direitos prestacionais”. 27
Os direitos sociais estão intrinsecamente relacionados aos direitos humanos.
Independentemente de acordos pessoais ou determinações legais, tais direitos são atribuídos
ao ser humano enquanto tal e eles correspondem aos princípios morais que visam ao
fornecimento de garantias e satisfação do mínimo de condição para que o indivíduo tenha
uma vida digna. De acordo com Martins, “Os direitos sociais possuem um status garantidor
da autonomia do indivíduo, possibilitando-o exercer e usufruir de sua liberdade, mediante a
garantia de acesso a uma formação educacional, ao trabalho, à moradia e à assistência à
saúde”. 28
De acordo com Habermas:
26
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p.
71.
27
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10 edição revisada e atualizada. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 837.
28
MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 21.
144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Os direitos sociais são uma condição para que os direitos básicos, tais como o direito
à igual liberdade de ação, direito à livre associação entre os indivíduos, direito à
proteção dos direitos dos direitos individuais, direito à igual participação no
processo de formação de opiniões e vontades e direito à garantia de condições de
vida, sociais, técnicas e econômicas, possam vir a ser exercidos. 29
Para o autor, os direitos básicos são aqueles conceituados como princípios que
possibilitam o processo de legitimação de direitos. 30
Os destinatários dos direitos sociais são todos os indivíduos, no entanto objetivam dar
maiores condições aos mais necessitados de amparo por parte do Estado.
Os direitos sociais são institucionalizados na Constituição de 1934, sofrendo
influência das Constituições Mexicana, de 1917, alemã Weimar, de 1919 e da espanhola, de
1931. De acordo com José Afonso da Silva “os direitos sociais, nessas constituições, saíram
do capítulo da ordem social, que sempre estivera misturada com a ordem econômica” 31, mas
o texto constitucional de 1988 dedica um capítulo próprio aos direitos sociais – capítulo II do
título II e ainda, um título referente à ordem social – título VIII. Primeiramente, os direitos
sociais foram classificados apenas como normatividade programática, no entanto, como
proferiu José Afonso da Silva “a tendência é de conferir a esta normatividade maior eficácia.
E, nessa configuração crescente da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais
reconhecedoras de direitos sociais, é que se manifesta sua principal garantia”. 32
Logo depois, a Constituição de 1937, desconsiderando o princípio da dignidade da
pessoa humana, retirou direitos civis e políticos, concebendo uma ordem econômica em
completa inobservância do princípio da justiça e das necessidades da população. 33
Já a Carta de 1946 devolveu o instituto dos direitos sociais e até inseriu em seu bojo
ideias presentes na Constituição de Weimar, aliadas à ordem econômica, social e à liberdade
de iniciativa com a valorização do trabalho humano. 34
A Carta Magna de 1967 representou na seara dos direitos políticos um grande
retrocesso, no entanto no que diz respeito aos direitos sociais, não apresentou modificações
relevantes.
O atual sistema Constitucional brasileiro tem como alicerce os direitos sociais e
quanto ao seu status, Silva assim os define:
29
HABERMAS, Faktizität und Geltung apud MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte:
Fórum, 2008, p. 22.
30
Ibid. p. 22.
31
SILVA. Op. Cit., 2009, p. 285.
32
Id, Ibid, p. 465.
33
MARTINS. Op. Cit. p. 23.
34
Id. Ibid. p. 23.
145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são
prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a
realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se
ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos dos gozos individuais na
medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da
igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o
exercício efetivo da liberdade. 35
Há direitos sociais enumerados nos artigos 6º e 7º da Constituição Federal que têm
cunho de universalidade, que propicia a erradicação da pobreza e da marginalização e a
redução das desigualdades sociais e regionais. Lê-se no Artigo 6º que são direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. Chimenti et al leciona que na
forma como disposto na Constituição Federal, os direitos sociais são muito mais que normas
programáticas; são direitos subjetivos do indivíduo, oponíveis ao Estado, que devem fornecer
as prestações diretas e indiretas garantidas pela Constituição. 36
Novaes afirma que “ao lado dos direitos e liberdades clássicos – moldados e
comprimidos, particularmente no que se refere ao direito de propriedade, à medida das novas
exigências de socialidade – avultam, agora, os chamados direitos sociais indissociáveis das
correspondentes prestações do Estado”. 37
A Constituição de 1988, retirando os direitos sociais da Ordem Econômica, inseriu-os
no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e deu-lhes o regime jurídico da Ordem
Social. Fez um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, no qual inseriu os direitos
sociais, em razão da preocupação do constituinte em impedir que se repetissem as violações
de direitos que o recém extinto regime militar havia propiciado” 38. E ainda, os direitos sociais
se estendem a todos os residentes no País, em obediência à universalidade e à igualdade que
os caracterizam.
A justiça social só pode ser alcançada se a riqueza for equitativamente distribuída, o
que é possível mesmo num regime essencialmente capitalista. 39
Para Alexy:
35
SILVA. Op. Cit. p. 289.
CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Fernando Elias;SANTOS,Maria Ferreira dos.
Curso de Direito Constitucional – 5ª ed. Revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 128 e 129.
37
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: Do estado de direito liberal ao
Estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987, p. 130.
38
CHIMENTI et al. Op. cit. p. 509.
39
SILVA. Op. Cit., 2000, p. 764-765.
36
146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Considerando os argumentos contrários e favoráveis aos direitos fundamentais
sociais, fica claro que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução
consiste em um modelo que leve em consideração tanto os argumentos a favor
quantos os argumentos contrários. Esse modelo é a expressão da idéia-guia formal
apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição
alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão
importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser
simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa fórmula,
a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo definitivamente
tem é uma questão de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o
princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da
competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da
separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à
liberdade jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais e a
interesses coletivos. 40
V. O Direito Social à Saúde
A saúde é declarada na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos, como no
artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. No artigo 6º, o constituinte declara a saúde como sendo
um direito social, juntamente com a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.
Conforme prescrito no artigo 196, Mendes define que o direito à saúde é estabelecido
pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) “direito de todos” e (2) “dever do Estado”,
(3) garantido mediante “políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos”, (5) regido pelo princípio do “acesso universal e igualitário” (6)
“às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. 41
O ministro no que concerne ao item primeiro - direito de todos - leciona que é possível
que se identifique, na redação do artigo constitucional supracitado, tanto direito individual
quanto um direito coletivo à saúde. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito
social, consubstancia-se tão somente em norma programática, não sendo capaz de produzir
efeitos, tão somente norteando o que deverá ser observado pelo poder público, significaria
negar a força normativa da Constituição.
Desta forma, o Ministro Celso de Mello, destacou a dimensão individual do direito à
saúde, ao reconhecê-la como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das
40
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008, p. 511-512.
41
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em 12 de novembro de 2012.
147
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional42. Ressaltou o
Ministro que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa
constitucional inconsequente”, cabendo aos entes federados um dever prestacional positivo. E
finalizou dizendo que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador
constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde
(CF, art. 197)”, de forma a legitimar a atuação do Poder Judiciário caso haja omissão por
parte da Administração Pública no que tange ao mandamento constitucional em questão. 43
Gilmar Mendes profere que inexiste um direito absoluto que proteja, promova ou
recupere a saúde. No entanto, por meio de políticas sociais e econômicas, por meio de direito
público subjetivo a políticas públicas esse direito passa a ser assegurado.
Nesse sentido, em decisão proferida na ADPF n.º 45/DF, o Min. Celso de Mello
assinalou:
Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva
a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos
componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade
financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de
cumulativa ocorrência, pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-seá a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. 44
Desta forma, a garantia judicial da prestação individual da saúde pode ser
comprometida se não houver perfeito funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que
deve ser sempre demonstrado claramente e de forma concreta, em cada caso.
Quanto ao segundo aspecto do artigo 196 - dever do Estado – comentou-se que, a
Constituição preconiza que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental
de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e
também deve desenvolver políticas públicas que objetivam à redução de doenças, à
promoção, à proteção e à recuperação da saúde, bem como está expresso no referido artigo.45
No artigo 23, inciso II, está prevista a competência comum dos entes da Federação no
que diz respeito ao cuidado com a saúde e prevê assim, a solidariedade da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios na responsabilidade com a saúde, tanto individual quanto
coletivamente, dessa forma, “são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a
42
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
43
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012. AgR-RE N. 271.286- 8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000.
44
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.ADPF-MC N.º 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004.
45
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
148
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de
saúde.” A obrigação solidária entre os entes da Federação e o objetivo de aumentar a
qualidade de acesso aos serviços de saúde podem ser verificados na descentralização dos
serviços do SUS e a conjugação dos recursos financeiros dos entes federados. Desta maneira,
estabeleceram-se quatro diretrizes básicas para as ações de saúde: para cada nível de governo
uma única direção administrativa; descentralização político-administrativa; atendimento
integral valorizando prioritariamente as atividades preventivas; e a participação comunitária.46
O SUS baseia-se no financiamento público e na cobertura universal das ações de
saúde. De forma que, para que se garanta a manutenção do Sistema Único de Saúde por parte
do Estado é necessário que os gastos com a saúde sejam estáveis e que haja também a
captação de recursos. Dentre outras fontes, de acordo com o artigo 195, o Sistema Único de
Saúde opera com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios. Com o intento de proporcionar mais estabilidade aos
recursos à saúde, a Emenda Constitucional n.º 29/2000 estabeleceu um mecanismo de
cofinanciamento das políticas de saúde pelos entes da Federação. Com esta Emenda foram
acrescentados dois novos parágrafos ao artigo 198 da Constituição, os quais com o intuito de
aumentar e estabilizar os recursos à saúde asseguraram percentuais mínimos a serem
destinados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. 47
Todavia, o § 3º do art. 198 dispõe que caberá à Lei Complementar consolidar quais
serão os percentuais mínimos de que trata o § 2º do artigo em questão, quais serão os critérios
de divisão entre os entes federados, quais serão as normas de fiscalização, avaliação e
controle dos gastos com saúde, quais serão as normas de cálculo do montante a ser aplicado
pela União, além da especificação das ações e serviços públicos de saúde. 48
O terceiro item do artigo 196- garantido mediante políticas sociais e econômicas –
traduz exatamente a necessidade de formulação de políticas públicas que deem concretude ao
direito à saúde por meio de escolhas alocativas. Dispensar os escassos recursos utilizando
critérios distributivos é incontestável necessário, uma vez que a evolução da medicina impera
um viés programático ao direito à saúde, uma vez que muitas serão as novas descobertas,
46
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acessado em Nov/2012.
47
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
48
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
novos exames, prognósticos ou procedimentos cirúrgicos, ou ainda uma nova doença ou então
a volta de uma doença que se supôs eliminada. 49
Ainda analisando o artigo 196, o ministro comenta o quarto tópico- políticas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos – e neste item evidencia-se o caráter
preventivo no que tange à saúde e as ações preventivas que nesta área tiveram indicação de
prioridade no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal. 50
Quanto ao quinto item - políticas que visem ao acesso universal e igualitárioconsolidou-se na Constituição um sistema universal de acesso aos serviços públicos de saúde
e nesse sentido, a Ministra Ellen Gracie, na Suspensão de Tutela Antecipada 91, salientou
que, em sua compreensão, o art. 196 do Texto Constitucional diz respeito à efetivação de
políticas públicas que alcancem a população como um todo. 51 E de acordo com o artigo 7º,
IV da lei 8.080/90 o princípio do acesso igualitário e universal só tende a reforçar a
responsabilidade solidária dos entes federados, de modo a garantir a “igualdade da assistência
à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.52
E finalmente no sexto item - ações e serviços para promoção, proteção e recuperação
da saúde – menciona que a partir do estudo do direito à saúde no Brasil se pode chegar à
conclusão de que os problemas no que diz respeito à eficácia social desse direito fundamental
deve-se bem mais a questões relacionadas à implementação e à manutenção das políticas
públicas de saúde que já existem - o que implica também a composição dos orçamentos dos
entes federados - do que propriamente à falta de específica legislação. Noutras palavras,
verifica-se que o problema não é a falta de legislação, mas é problema de cunho
administrativo na execução das políticas públicas por parte dos entes da Federação. A Carta
Magna brasileira preconiza de forma enfática a existência de direitos fundamentais sociais em
seu artigo 6º, tornando específico conteúdo e forma de prestação nos artigos 196, 201, 203,
205, 215, 217, entre outros. Distingue também os direitos e deveres individuais e coletivos no
capítulo I do Título II e os direitos sociais no capítulo II do Título II, ao consolidar que os
49
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
50
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
51
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012. STA 91-1/AL, Ministra Ellen Gracie, DJ 26.02.2007.
52
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata consoante o artigo 5º, §1º, da mesma
Constituição. 53
Desta maneira, é notório que a Constituição Federal de 1988 acolheu os direitos
fundamentais sociais como autênticos direitos fundamentais. Torna-se inquestionável que as
demandas que visam à efetiva prestação ao direito à saúde devem ser resolvidas tomando
como ponto de partida a análise do atual contexto constitucional. 54
VI. Competência dos Entes Federados quanto à Saúde
A saúde é dever do Estado, sendo que não existe um dispositivo constitucional
taxativamente enumerado que disponha a quem caberá tal responsabilidade. Portanto, como
Estado compreende-se todos os Estados-Membros da Federação, ou seja, a saúde é dever da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tratando-se de competência
comum, sendo tarefa de todos os entes federados.55
O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal de 1988 regula acerca da competência
no que tange à saúde pública. Dalmo de Abreu Dallari assinala:
A conclusão inevitável do exame da atribuição de competência em matéria sanitária
é que a Constituição Federal vigente não isentou qualquer esfera de poder política da
obrigação de proteger, defender e cuidar da saúde. Assim, a saúde – ‘dever do
Estado’ (art.196) – é responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios. 56
A Constituição Federal de 1988 atribuiu competência a respeito da proteção e
desenvolvimento da saúde para legislar a todos os entes federativos, de forma concorrente, de
maneira que a União legisla sobre normas gerais, os Estados e Distrito Federal de maneira
complementar e os Municípios, conforme suas peculiaridades.
Entende-se que assim o sistema objetivava delinear constitucionalmente, no caso da
saúde pública, o que competia a cada ente, para que cada região pudesse ter tratamento
adequado e o atendimento à saúde não deixasse de ser prestado pelo mero fato de não existir
legislação que o abarcasse. Desta forma assim estabeleceu: à União responde pelas
53
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
54
BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>.
Acesso em Nov/2012.
55
SCHWARTZ, Gernano. O tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2004, p. 103.
56
DALLARI. Op. Cit. p.42.
151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
competências previstas nos artigos 22, 23 e 24; aos Estados os artigos 23, 24 e 25; ao Distrito
Federal corresponde o art. 32, § 1º; e aos Municípios as competências enumeradas nos artigos
23 e 30; todos da Constituição Federal de 1988.
Para José Afonso da Silva57 competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma
entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões e divide-se, em
regra, a competência pela predominância do interesse.
A ideia de que divide-se a competência conforme a predominância de interesse não é
uma premissa pacífica em que pese a extensão do território brasileiro impossibilitar que leis
gerais consigam abarcar todo o território, acabando por enfatizar apenas algumas regiões. No
entanto, assim o previu o legislador constitucional ao orientar ser de competência nacional
matérias, a priori, interessantes a todo o território brasileiro, e os Estados e Municípios
matérias específicas aos mesmos.
Assim, o legislador constitucional nominou as competências para legislar pertinente à
matéria saúde como sendo competências exclusivas e/ou privativas. Diferencia-se uma da
outra pelo fato de a primeira se referir à competência indelegável a outro órgão legislativo,
enquanto que a segunda pode ser delegável. No entanto, tanto no caso das competências
exclusivas como nas privativas não existem grau de hierarquia entre elas, ou seja, o Município
ao legislar privativamente sobre matéria de saúde, específica para sua região, não está
subordinado ao que diz seu Estado sobre a mesma temática e nem ao que diz a União, por ser
o assunto de interesse local.
Conforme Souza58, essa forma de repartição das competências decorre do modelo de
federalismo adotado pelo Brasil na Carta de 1988. No chamado federalismo clássico ou dual,
conjugam-se
competências
enumeradas
e
remanescentes,
sendo
discriminadas,
expressamente, as competências do poder central, remanescendo tudo quanto não for expresso
para as esferas de poder regional ou local. A repartição de competências, neste caso é
horizontal. É exemplo desse modelo a Constituição Americana de 1787, em sua origem. As
constituições de Weimar, de 1919, e austríaca, de 1920, são tidas como as que inauguraram o
federalismo cooperativo. Nesse modelo, se defere ao poder central a competência para a
edição de normas gerais a serem observadas nacionalmente, e aos poderes regionais,
competência para suplementá-las de acordo com o interesse local, a distribuição aqui é
vertical. A Constituição da Índia, de 1950, misturou os dois modelos; coexistindo
57
SILVA. Op. Cit. 1990, p. 402 e 403.
SOUZA, Mauro Luís Silva. A responsabilidade do Prefeito na concretização do direito Fundamental à
saúde. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/dirhum/doutrina/id536.htm>. Acesso em: 18/11/2011.
58
152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
competências exclusivas do poder central, competências exclusivas do poder regional e
competências concorrentes.
Conforme Custódio Filho Ubirajara (1988, p.54-56) apud SOUZA59, a Constituição
Brasileira de 1988 optou por um modelo semelhante ao indiano, pois conjuga matérias de
competência privativa ou exclusiva de determinado ente (distribuição horizontal) e matérias
onde deve haver cooperação ou coordenação entre os três níveis da federação (distribuição
vertical). A distinção é pertinente, pois, em caso de conflito de competências, é o tipo de
distribuição (vertical/horizontal) que informará a solução. Se a matéria versar sobre
competências distribuídas no regime de cooperação a distribuição é vertical, há hierarquia,
prevalecendo a norma nacional sobre a regional, e esta sobre a local. Se a matéria versar sobre
competências distribuídas em regime de exclusividade ou privativo não há hierarquia e
prevalece a vontade do ente para o qual foi arrolada a competência sobre a dos demais, seja
Município sobre o Estado ou este sobre a União .
BERCOVICI, Gilberto (2003, p.156) apud Souza60 menciona que o federalismo
cooperativo é o adequado ao Estado Social. Sendo este um Estado intervencionista, voltado
para a implementação de políticas públicas, os níveis local e regional não têm como decidir
sobre inúmeras tarefas da atuação estatal que necessitam de tratamento nacionalmente
uniforme, notadamente no campo econômico e social, que necessitam unidade de
planejamento e direção. Portanto, ao invés de o Estado Social estar em contradição com o
Estado federal, ele influi de maneira decisiva no desenvolvimento do federalismo atual.
Segundo CONOF/CD,61 em regra, o sistema federativo mostra-se adequado em países
marcados pela diversidade e heterogeneidade, por respeitar valores democráticos em situações
de acentuada diferenciação política, econômica ou social. Todavia, esse tipo de sistema torna
mais complexa a implementação de políticas sociais de abrangência nacional, particularmente
nos casos em que a diversidade se refere à existência de desigualdades e de exclusão social.
59
CUSTÓDIO FILHO, Ubirajara. As competências do Município na Constituição Federal de 1988. In:
SOUZA, Mauro Luís Silva. Op. Cit.
60
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. In: SOUZA, Mauro Luís Silva.
Op. Cit.
61
Núcleo de Saúde da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados
(CONOF/CD). Saúde no Brasil: História do Sistema Único de Saúde, arcabouço legal, organização,
funcionamento, financiamento do SUS e as principais propostas de regulamentação da Emenda
Constitucional
nº
29,
de
2000.
Disponível
em:
<http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/estudos/2011/nt10.pdf>. Acesso em: 20/11/2011. p.6.
153
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do Possível frente à Efetividade da Prestação
Estatal
Política pública pode ser definida como uma expressão polissêmica que compreende,
em sentido amplo, todos os instrumentos de ação do governo. Refere-se às “providências para
que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as
determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos
governados”62
Maria Paula Dallari Bucci compreende as políticas públicas como programas de ação
do governo com o intuito de coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, com a finalidade de realizar os objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados.63
Há nos dias atuais, uma íntima relação entre políticas públicas e orçamento público,
pois “a decisão de gastar, é fundamentalmente, uma decisão política. O administrador elabora
um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios disponíveis para seu
atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem inserta no documento solene de
previsão de despesas.”64
Ricardo Lobo Torres afirma que “o relacionamento entre políticas públicas e o
orçamento é dialético: o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das
políticas públicas; mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e
princípios como o do equilíbrio orçamentário (...).65
Em um Estado Social e Democrático de Direito, o orçamento tem a função de
instrumentalizar as políticas públicas para concretizar os direitos fundamentais garantidos na
Constituição Federal.
Percebe-se ao longo da história que o estudo do direito tem caminhado,
constantemente, em direção a uma maior limitação do poder estatal e a uma proteção mais
eficaz aos direitos fundamentais do homem, fato este que decorre da luta em defesa de novas
liberdades em detrimento do que outrora fora estabelecido no que tange ao poder.66
Destarte, como já anteriormente abordado neste trabalho, os direitos fundamentais de
primeira dimensão, também conhecidos como direitos negativos ou de defesa, são aqueles que
62
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT, 206, p. 251.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 241.
64
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 243.
65
TORRES. Op. Cit. p. 110.
66
Acerca do tema ver : BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
63
154
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
se destinam a limitar o poder do Estado em face do cidadão, como o direito à vida, à
liberdade, à propriedade, à igualdade, à participação política, entre outros.
Os direitos de segunda dimensão, por sua vez, são chamados positivos ou
prestacionais. São direitos sociais, econômicos e culturais e diferentemente dos direitos de
primeira dimensão, que eram reconhecidos por se traduzirem na abstenção estatal, os direitos
de segunda dimensão impõem ao Estado o dever de atuação efetiva para a sua garantia,
devendo o Estado atuar positivamente, dispondo de efetiva atuação material, a qual depende
de investimento e previsão orçamentária.
Conforme Sarlet “os direitos de defesa – precipuamente dirigidos a uma conduta
omissiva – podem, em princípio ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na
medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades, etc) pode ser
assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”.67
Mas seriam apenas os direitos prestacionais que envolvem custos ou seriam todos os
direitos fundamentais?
De acordo com um trabalho realizado pelos professores Stephen Holmes e Cass
Sunstein68- na obra The cost of rights : Why liberty depends on Taxes - os custos não se
limitam aos direitos prestacionais, de segunda dimensão.
Nesse sentido, leciona o professor José Casalta Nabais:
Do ponto de vista do seu suporte financeiro, bem podemos dizer que os clássicos
direitos e liberdades, os ditos direitos negativos, são, afinal de contas, tão positivos
como os outros, como os ditos direitos positivos. Pois, a menos que tais direitos e
liberdades não passem de promessas piedosas, a sua realização e a sua proteção
pelas autoridades públicas exigem recursos financeiros. 69
As premissas doutrinárias referentes ao efetivo âmbito de proteção da regra
constitucional do direito à saúde decorrem, principalmente, da essência prestacional desse
direito e da necessidade de se compatibilizar o que doutrinariamente se convencionou chamar
de “mínimo existencial” e “reserva do possível”.70
O mínimo existencial, como direito fundamental, deriva da própria Constituição, sem
que precise de lei para regulamentá-lo e está intimamente relacionado à pobreza absoluta,
67
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p. 263.
68
Stephen Holmes e Cass Sunstein na obra The cost of rights: Why liberty depends on Taxes.
69
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos, p. 12.
Disponível em: <http://www.agu.gov.br/Publicações/Artigos/0504202JoseCasaltaAfaceocultadireitos01pdf>.
Acesso em: 13 de novembro de 2010.
70
MENDES, Gilmar. Suspensão de Tutela Antecipada 278-6 Alagoas. Disponível em:
<www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA278.pdf>. Acesso em: 13 de novembro de 2010, p.5.
155
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
assim compreendida como aquela que deve ser combatida pelo Estado, contrariamente à
pobreza relativa, que depende da situação econômica do país, sendo sanada em consonância
com o orçamento.71
Por sua vez o conceito de reserva do possível pode ser entendido como um conceito
basilarmente econômico, decorrente da constatação de que são os recursos escassos, tanto
públicos como privados, em face das necessidades humanas: sociais, coletivas ou individuais.
Além de que os indivíduos, no momento em que fazem suas escolhas e elegem prioridades,
sopesam os limites financeiros de suas disponibilidades econômicas. Valendo-se da mesma
premissa as escolhas públicas, que devem ser feitas internamente ao Estado pelos órgãos
competentes para fazê-las.72
Trazendo a conceituação e os entendimentos anteriormente levantados para o Direito à
saúde pode-se afirmar que o mesmo está inserido no artigo 6º da Constituição Federal
Brasileira, sendo um direito social e como tal, as normas que o regulamentam possuem caráter
programático, as quais dependem de lei prévia e por isso são sujeitas ao conceito de reserva
do possível.
Os recursos públicos são escassos, devendo primeiramente ser garantidos os direitos
fundamentais, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, mas sempre
sopesando a forma de atingir a coletividade e não o sacrifício de todos em nome de um.
Nessa linha de análise Gilmar Mendes argumenta que o Poder Judiciário, o qual
realiza a justiça no caso concreto, micro-justiça, por algumas vezes, não possuiria condições
de saber as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte
com invariável prejuízo para o todo.73
Sucede Rogério Gesta Leal citando que:
[...] quando se fala em saúde pública e em mecanismos e instrumentos de atendê-la,
mister é que se visualize a demanda social e universal existente, não somente a
contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional, isto porque,
atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público (Executivo
ou Judicial), pode-se correr o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de
todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, por
absoluta falta de informações ou recursos para fazê-lo.74
PORTELA, Simone de Sá. Considerações sobre o Conceito de Mínimo existencial. Publicado em:
14/10/2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/2400/1/Consideraccedilotildees-Sobre-OConceito-De-Miacutenimo-Existencial/pagina1.html#ixzz15yWFkyVY>. Acesso em: 09/11/2010
72
NUNES, Antonio José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o Direito à Saúde. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011. p. 97.
73
MENDES. Op.cit. p. 7
74
LEAL, Rogério Gesta. A Efetivação do Direito à Saúde – por uma jurisdição Serafim: limites e
possibilidades. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. v.6. Santa Cruz do Sul:
Edunisc, 2006. p.71.
71
156
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O professor Juliano Heinen certifica que os recursos na área da saúde são
infinitamente menores que o necessário para atender a sistematização proposta pelo SUS
dizendo que “[...] se a escassez é notória, (não há recursos públicos para atender a todos), a
decisão judicial nada mais faz do que escolher quem será ou não atendido e quem será ou não
excluído, criando um privilégio jamais encontrado na Constituição Federal”.75
Nunes e Scaff, na mesma linha de raciocínio, se manifestam:
Adotar o procedimento de pleitear direitos individuais de saúde, sob o pálio do art.
196, seria transferir ao Poder Judiciário a fila de atendimento do SUS (ou ainda pior
do que ela em face da morosidade deste Poder), sendo que de forma injusta, pois
este não tem um critério de distribuição universal e simultâneo, distribuindo justiça
apenas a quem lhe pede.76
Sobre a temática interessante mencionar a decisão judicial anexa, devido sua
complexidade e sua impossibilidade de cumprimento, pois o município necessitaria utilizar
todo o seu orçamento fugindo dos princípios constitucionais e legais para cumprir tal decisão
judicial.77
75
HEINEN, Juliano: O custo do direito à saúde e a necessidade de uma decisão realista: uma opção trágica.
Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoaudienciapublicasaude/anexo/>. Acessado em 10 de
novembro de 2012.
76
NUNES; SCAFF. Op. Cit. p. 133.
77
“Invocando expressamente a autoridade da jurisprudência do STF, um Juiz de Maceió (Ação Civil Pública,
Processo nº 090.08.500162-7, 27.10.2009) decidiu favoravelmente um pedido do Ministério Público,
condenando o Município a cumprir integralmente o extenso e complexo programa definido na sentença com o
objetivo de retirar de condições de miséria material e moral crianças das zonas lagunares de Maceió. E como a
liminar antes concedida não tinha sido integralmente cumprida, o Juiz determinou o bloqueio de um milhão e
quinhentos mil reais da rubrica de contingência do Município, mandou depositar essa importância em conta
corrente no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica Federal e confiou a movimentação dessa conta ao
Ministério Público Estadual e do Trabalho. Em caso de incumprimento, o Juiz condenou ainda ao pagamento de
multa diária o Município (R$ 10.000,00), o prefeito (RS 300,00) e o Secretário Municipal de Ação Social (R$
200,00). Caberá nas competências do Ministério Público a gestão de dinheiros públicos retirados do orçamento
de um Município? Vale apena ler o programa definido pelo Juiz, que, ao elaborá-lo, se substituiu a meu ver, não
só aos órgãos do Executivo, mas até a profissionais de outras áreas (técnicos de saúde, de serviço social, de
segurança, etc.):
‘1- Formar uma comissão multidisciplinar de profissionais do Município, a serem acompanhados pelos autores
[o Ministério Público] ou profissionais por eles indicados ou ainda pelo respectivo Conselho Tutelar da região,
não componentes da estrutura deste juízo, para realizar um perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes da
comunidade da Orla Lagunar, no prazo de 90 (noventa) dias, identificando cada criança e adolescente pelo nome,
idade, endereço, nome dos pais se possuem registro de nascimento ou qualquer outro documento de
identificação, como sobrevivem, se passam fome, se já sofreram violência doméstica, se são vítimas de violência
sexual, se estão na escola, se saíram da escola e por quê, se trabalham, se passam o dia na rua, se usam drogas, se
seus pais são dependentes químicos, entre outras necessárias à identificação exata da situação de risco em que se
encontram; 2- Oferecer condições adequadas, no prazo de 60 (sessenta) dias, para o funcionamento do Conselho
Tutelar das Regiões I e II, dentre as quais: segurança, combustível em quantidade suficiente, computadores em
perfeito estado, verba de custeio, pessoal de apoio e número telefônico gratuito (0800) para recebimento de
denúncias de abuso, exploração e violência contra crianças e adolescentes, em caráter ininterrupto (24 horas),
para que o referido Conselho possa exercer adequadamente suas atividades de proteção das crianças e
adolescentes das regiões em que atuam, inclusive na comunidade da Orla Lagunar; 3- Apresentar um
157
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Por outra vertente, os que defendem a atuação do judiciário na concretização dos
direitos sociais, especialmente quanto à saúde, alegam que tais direitos são indispensáveis
para a materialização da dignidade da pessoa humana, manifestando que o “mínimo
existencial” de cada um dos direitos, não pode deixar de ser apreciado pelo judiciário.78
Alexy manifesta-se sendo favorável a uma análise que considere os argumentos
favoráveis e os contrários aos direitos sociais, raciocinando que ambos os lados dispõem de
argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto as
ideias favoráveis quanto às opostas. Tal modelo é a expressão da ideia-guia formal
apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são
posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão
sobre garanti-las ou não, não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...)
De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o
indivíduo definitivamente tem torna-se dissidência de sopesamento entre princípios. De um
lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais
da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da
separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade
cronograma, em 30 (trinta) dias, para que seja ampliada a rede municipal de proteção à criança e ao adolescente,
com a abertura de ABRIGOS para crianças e adolescentes, de ambos os sexos, em situação de risco, com até 18
ANOS INCOMPLETOS, com capacidade de atendimento das situações emergenciais identificadas no
diagnóstico requerido no item 1 e deferido, a funcionar no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a partir do
diagnóstico; 4 – Ofertar creche em horário integral e educação infantil, em quantidade suficiente a atender à
população de 0 a 6 anos da referida comunidade, apresentando o Município cronograma de abertura das unidades
necessárias e critérios para preenchimento das vagas à medida da abertura, em até 30 (trinta) dias a com prazo
estipulado para funcionamento em no máximo 180 (cento e oitenta) dias; 5 – Assegurar as matrículas de todas as
crianças e adolescentes em idade escolar de ensino fundamental, que não estejam matriculadas, imediatamente, a
partir do levantamento inicial; 6- Apresentar propostas de políticas públicas a serem implementadas pelo
Município com abrangência suficiente e ofertando soluções de curto, médio e longo prazo para a referida
população, no prazo de 90 (noventa) dias após o resultado do perfil apresentado; 7 – Incluir no projeto de Lei
Orçamentária de 2008 as verbas necessárias para implementação das políticas públicas a serem executadas no
ano, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais necessidades da população infanto-juvenil; 8 –
Utilizar a reserva de contingência do Município, caso este não apresente rubrica orçamentária diversa para fazer
face às despesas com o cumprimento das medidas liminares ora concedidas; 9 – Implementar ações visando à
expedição de registros de nascimento das crianças, adolescentes e pais residentes na região para incluí-los em
Programas Sociais e transformá-los em Cidadãos; 10 – Promover campanha permanente de conscientização, por
intermédio dos mais diversos meios de comunição , acerca da proibição do trabalho infantil, inclusive o
doméstico, da prostituição infantil e males à saúde causados por drogas e, ainda, a importância do papel da
sociedade na denúncia destes temas ao Conselho Tutelar da Região, explicitando que o Conselho Tutelar para
cumprir o seu papel deve encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa
ou penal contra os direitos da criança e do adolescente, dentre outros, assim considerado o trabalho infantil, nos
moldes do art. 136, inciso IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90)’”. Conforme: Nunes;
Scaff. Op. Cit. p. 43-44.
78
MENDES. Op. Cit. p. 7
158
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais sociais e a interesses
coletivos.79
Considerando os apontamentos acima elencados quanto à judicialização da saúde e o
voto dissidente do Ministro Teori Zavascki80, se questiona se o orçamento proposto para a
saúde no Brasil, sem considerar questões judiciais, se apresenta de maneira suficiente? Não.
Soma-se a isso as premissas judiciais de conceder direitos que “desorganizam” toda a
sistemática orçamentária proposta, qual solução resta. Talvez um aporte maior por parte do
Estado, representado pelo ente federativo União, que possibilite que as políticas públicas na
seara saúde possam ser executadas de maneira mais abrangente, além de um repensar no que
compete exatamente ao sistema único de saúde financiar.
Alguns juristas descrentes que a saúde e a educação recebam um orçamento
condizente com o mínimo essencial se manifestam de maneira enfática, como Nunes e Scaff:
Ocorre-me, contudo, dar uma sugestão ao final deste trabalho para garantir a
efetividade de alguns dos direitos sociais, em especial os gastos em saúde e
educação públicas. Não depende do Judiciário, mas do Congresso Nacional. Penso
que resolveríamos grande parte dos problemas se fosse adotada a obrigação,
certamente no âmbito constitucional, de que, quem fosse eleito devesse
necessariamente usar os hospitais e as escolas públicas para si, seus filhos, netos e
demais parentes. Seria uma injeção de estímulo na veia do SUS, que passaria a
contar com mais recursos e melhor cuidado em sua aplicação-aí sim, para todos.81
Constitucionalmente existe previsão de direitos sociais mínimos, e são vastos. Há
presciência também de regras orçamentárias básicas, que serão vistas no capítulo sequente.
Dentre o regramento constitucional orçamentário e a lei de responsabilidade fiscal é manifesto
que a União, Estados, Municípios e Distrito Federal não podem realizar gastos sem previsão
79
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008, p. 511-512.
80
“Destacou o Ministro que “não existe, na Constituição, direito subjetivo individual de acesso universal,
incondicional, gratuito e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde, médico ou farmacêutico.”
O conteúdo do art. 196 da CF é o mesmo do previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992 (art. 12, §§ 1º e 2º). Disse ainda que cabe aos Poderes
Legislativo e Executivo estabelecer e promover a execução das políticas públicas assim estabelecidas, bem
como suprir sua inexistência ou insuficiência, se for o caso, com a garantia de prestação decorrente do direito a
um mínimo existencial, o qual deve ser considerado como “o direito a uma prestação estatal que (a) pode ser
desde logo identificada, à luz das normas constitucionais, como necessariamente presente qualquer que seja o
conteúdo da política pública a ser estabelecida; e (b) é suscetível de ser desde logo atendida pelo Estado como
ação ou serviço de acesso universal e igualitário”. Portanto, encerra o Ministro, à luz dos princípios democrático,
da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de atender a uma prestação individual se não for
viável o seu atendimento em condições de igualdade para todos os demais indivíduos na mesma situação”.
Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 112.
81
Antônio José Avelãs Nunes é professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra, sendo que
foi diretor da Faculdade de Coimbra e Vice-Reitor, dentre vários outros títulos como Doutor Honoris Causa pela
Universidade Federal do Paraná e de Alagoas. Fernando Facury Scaff é Doutor em Direito pela USP e PósDoutor pela Universidade de Pisa-Itália. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 135.
159
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
orçamentária que os suporte, ato este reprovável e passível de punição conforme legislação
vigente. Considerando tal premissa, como pode o judiciário “ordenar” ao administrativo,
mediante invasão a esfera administrativa, que realize gasto sem previsão orçamentária, mas se
não o fizer, como serão efetivados direitos constitucionais em que o administrativo não prevê
orçamento. A questão é capciosa devendo existir bom senso, tanto pelo administrativo como
pelo judiciário para não fazer com que um ato de injustiça caracterizado pelo não garantir por
parte do administrativo estatal direito constitucional assegurado a um indivíduo, que pede
auxílio ao judiciário, gere um desequilíbrio orçamentário que impossibilite o agir estatal a
coletividade.
VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidenciou-se que os direitos sociais estão intrinsecamente ligados aos direitos
humanos, devendo o Estado prover as mínimas garantias de condições de vida digna aos seus
cidadãos.
Conforme prescrito no artigo 196 da Constituição Federal, o direito à saúde é
garantido a todos, independentemente de raça, religião, sexo ou condição financeira, sendo
dever do Estado a ser garantido mediante políticas públicas adequadas, que devem estar
previstas no plano plurianual, lei de Diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias, objetivando
reduzir o risco de doenças e outros agravos, visando não tão somente à medicina curativa
como também preventiva e recuperativa, de maneira igualitária e de acesso universal.
A promoção à saúde em todo território nacional cabe a todos os entes federados,
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não podendo nenhum deles eximir-se de suas
responsabilidades
alegando
competência
alheia.
Desta
feita,
necessitam
trabalhar
conjuntamente para que o SUS funcione adequadamente, havendo financiamento por parte de
todos os entes federados.
Devido ao atendimento deficitário realizado pelo governo na área da saúde, muitas
pessoas procuram o judiciário para garantirem seus direitos sociais fundamentais, surgindo
assim o fenômeno da judicialização da saúde. Entende-se que muitos casos devem ser
acolhidos, no entanto não cabe ao judiciário à postura de garantir os direitos que
obrigacionalmente são de responsabilidade do executivo. As pessoas deveriam se socorrer do
judiciário excepcionalmente e não corriqueiramente, como vem acontecendo. Isso demonstra
160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
que o SUS ainda não atingiu o objetivo Constitucional, a saber, garantir a saúde pública de
maneira efetiva, igualitária, gratuita e universal.
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163
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EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE
DEFESA E PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
ENVIRONMENTAL EDUCATION AS A TOOL FOR
DEFENSE AND PRESERVATION OF THE ENVIRONMENT
Andreza de Souza Toledo*
RESUMO
O Estado brasileiro, tendo a incumbência constitucional de promover a educação ambiental
em todos os níveis de ensino, deve assim proceder de forma mais efetiva, incentivando que,
através dela, seja possível vislumbrar-se e propagar-se uma nova visão de mundo, mais
crítica, emancipatória e conscientizadora. A educação ambiental é um instrumento que pode e
deve ser utilizado mediante a instituição de uma efetiva política pública de educação
ambiental, que coloque em prática os preceitos legais e constitucionais vigentes e que, além
disso, propicie um tratamento diferenciado aos saberes ambientais e que os mobilize de
maneira a gerar espaço nas grades curriculares de todos os níveis de ensino para um maior
aprofundamento quanto a esse conhecimento. Tal conhecimento deve ser, o quanto antes
possível, contínuo, permanente, universal, sistematizado, crítico, transdisciplinar, voltado à
modificação de consciência e de atitudes humanas, e à consolidação prática dos saberes
ambientais, contribuindo, dessa forma, para a defesa e preservação ambiental. No presente
estudo, procura-se avaliar a atual política pública nacional de educação ambiental e sua
estrutura legal, buscando identificar possíveis alterações que contribuam para a efetiva
realização dos seus propósitos, no que tange ao despertar da consciência ecológica e a
modificação prática das condutas humanas, em prol do meio ambiente. Para tanto, os métodos
utilizados no presente estudo são o dedutivo e hipotético-dedutivo, em um estudo
monográfico, através da revisão bibliográfica tradicional e da pesquisa legislativa. Objetiva-se
avaliar e identificar, na conjuntura atual da política pública nacional de educação ambiental,
as implicações advindas do seu arcabouço legal, as quais devam sofrer as respectivas
adaptações, compatibilizando-as com a efetiva concretização do despertar da consciência
ecológica e a promoção de mudanças práticas nas condutas humanas, em benefício do meio
ambiente. Com isso, espera-se apresentar sugestões de alterações legais e para as rotinas
educacionais relativas à educação ambiental que, coadunadas com a atuação do poder público
nesse sentido, promovam o efetivo despertar da consciência ecológica e a respectiva
adequação das condutas humanas em prol do meio ambiente.
PALAVRAS-CHAVE: Educação ambiental; Defesa e preservação ambiental; Estado; Política
Pública
ABSTRACT
The Brazilian state, with the constitutional mandate to promote environmental education in all
levels of education, should do so more effectively by encouraging that, through the
environmental education, be possible to glimpse up and spreading a new worldview, more
critical, emancipatory and able to create awareness. Environmental education is an instrument
that can and should be used by developing an effective public policy on environmental
*
Mestranda no curso de Especialização Stricto Sensu em Direito Ambiental e Sociedade, pela Universidade
de Caxias do Sul (UCS), na linha de pesquisa Direito Ambiental, Políticas Públicas e Desenvolvimento
Socioeconômico, Bolsista PROSUP/CAPES, a partir de 2013. Especialista em Direito Processual Civil pela
Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), Pós-graduanda Lato Sensu em Gestão Pública, pelo Instituto Federal do
Paraná (IFPR), Bacharela em Direito pela UCS, com aprovação no Exame da Ordem nº 3/2007. Servidora
Pública do Poder Executivo no RS. E-mail: [email protected].
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
education, which put into practice the present legal and constitutional precepts and, moreover,
provides a different approach to environmental knowledge, mobilizing them in order to make
room in the curriculum for all levels of education for further development on that knowledge.
Such knowledge should be, as soon as possible, continuous, permanent, universal, systematic,
critical, interdisciplinary, focused on modification of conscience and human attitudes, practice
and consolidation of environmental knowledge, thus contributing to the protection and
preservation of the environment. The present study seeks to assess the current national public
policy for environmental education and its legal structure in order to identify possible changes
that contribute to the realization of its purpose, regarding the awakening of environmental
awareness and practical modification of human behavior, in favor of the environment. The
objective is to evaluate and identify the current situation of the national public policy on
environmental education, the implications arising from its legal framework, which should
suffer their adaptations, making them compatible with the effective implementation of the
awakening of environmental awareness and promoting change practices in human behavior to
benefit the environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the
legal and educational routines concerning environmental education which should suffer their
adaptations, making them compatible with the effective implementation of the awakening of
environmental awareness and promoting change practices in human behavior to benefit the
environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the legal and
educational routines concerning environmental education that matched with the performance
of the government in this regard, promote effective awakening of environmental awareness
and adequacy of human behavior towards the environment.
KEYWORDS: Environmental education; Environmental protection and preservation; State;
Public Policy
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre a educação ambiental, como uma imprescindível
ferramenta a ser utilizada, tanto em favor do Estado e por este, quanto pelo bem da
coletividade e por esta, no sentido de impulsionar o real conhecimento acerca do meio
ambiente, todas as relações a ele atinentes e que nele influenciam, mediante construções
permanentes, contínuas e sistematizadas, em todos os níveis de ensino, a fim de consolidar a
conscientização popular geral da necessidade premente de serem buscados, logo e na prática,
meios para melhorar a qualidade de vida humana no Planeta, através da melhoria da qualidade
do ambiente em que se vive.
A efetiva educação ambiental pode e deve ser implementada pelo Estado, como uma
política pública, a ser concretizada em comunhão de esforços com a coletividade, mas de
forma diferenciada do que se tem hoje legalmente previsto, e que na prática, nem sequer nessa
modalidade vem acontecendo e, quando eventualmente assim ocorre, evidencia um caráter
fragmentário, pontual, eventual, descomprometido e descompromissado, corretivo, nãosistematizado e desorganizado.
Nesse sentido, parece que, tratar sobre a preservação e defesa do meio ambiente e da
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
vida, seria prática fútil, desnecessária e desimportante, distante do homem, tanto em termos
temporais, denotando a desnecessidade da urgência, quanto em termos locais, como se não
dissesse respeito ao habitat em que se vive, como se o homem estivesse desagregado,
dessituado de si mesmo, dos semelhantes, do tempo, do locus, da vida e do que é essencial
para mantê-la.
Evidencia-se,
outrossim,
o
papel
do
Estado
nesse
contexto,
dada
a
corresponsabilidade, determinada pela Carta Magna, entre o Estado e a coletividade, para
atuarem no sentido de mutuamente contribuírem para a existência de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, tanto para as presentes quanto, como legado, para as futuras
gerações, além da incumbência constitucional do Poder Público, para assegurar esse direito,
de promover a educação ambiental.
Alude-se aos principais eventos legais que instituíram a educação ambiental, tanto no
universo mundial quanto brasileiro, buscando-se a análise dos mais consideráveis
instrumentos legais do País que tratam desse tema, a fim de detectar a conexão entre as atuais
e possíveis intervenções da educação ambiental, seus efeitos e abrangências na realidade atual
do meio ambiente e conscientização humana em relação a este, além de tentar propor um
diferencial na universalização dos saberes ambientais, na forma de política pública estatal,
mais efetiva, conscientizadora, crítica, emancipatória e focada em uma nova visão de mundo.
1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL
A educação ambiental é indispensável para a realização de uma sólida política
ambiental, podendo também ser considerada como ponto principal de partida para a
conscientização popular quanto às práticas defensivas e protetivas do meio ambiente.
Tanto isso é verdade que o legislador pátrio, ao referir-se à educação e ao meio
ambiente, enfatiza que ambos são apresentados como “direito de todos” e que, em razão de
suas insignes expressões, não estão adstritos somente à atribuição do Estado, “mas também à
sociedade o dever de promovê-los e incentivá-los.” (LANFREDI, 2002. p. 123).
Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, a educação configura-se também um
direito subjetivo do cidadão.
Geralmente, pessoas desprovidas de maiores informações denotam caráter
rudimentar em seus tratos com os semelhantes e com o meio. Logo, em sendo eventualmente
indisponibilizada a educação ambiental, muito provável que as arbitrariedades ao ambiente
resultarão em nefastas consequências à vida humana e a todas as espécies de vida planetárias.
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Dentre os principais eventos e aspectos mundiais, concernentes à educação
ambiental, passe-se à menção de alguns.
Tendo surgido a partir da preocupação humana com a crise ambiental, o uso da
expressão “educação ambiental” iniciou-se em 1970, nos Estados Unidos, primeiro país a
elaborar uma lei versando sobre ela, conceituando-a de maneira a ressaltar a compreensão e
apreciação das “inter-relações entre o homem, sua cultura e seu entorno biofísico.” (DILL,
2008, p. 78).
Ainda em 1972, na Conferência de Estocolmo, restou criado o Pnuma 1, destacandose, outrossim, a recomendação para a criação do Programa Internacional de Educação
Ambiental (PIEA), que ficou conhecida como “Recomendação 96”, que enfatiza a
importância da “educação ambiental como uma base de estratégias para atacar a crise do meio
ambiente”(ONU, 1972).
Além dessa recomendação, nesse evento houve a elaboração da Declaração de
Estocolmo sobre Meio Ambiente, proclamando sete diretrizes e vinte e seis princípios
importantes para a aplicabilidade dessa política ambiental. Dessas diretrizes, extraem-se
trechos das de número 06 e 07, respectiva e especialmente por estarem diretamente
relacionadas à necessidade de política pública de educação ambiental, nesses termos:
6 - […] Pela ignorância ou indiferença podemos causar danos maciços e
irreversíveis ao ambiente terrestre de que dependem nossa vida e nosso bem-estar.
Com mais conhecimento e ponderação nas ações, poderemos conseguir para nós e
para a posteridade uma vida melhor em ambiente mais adequado às necessidades e
esperanças do homem. São amplas as perspectivas para a melhoria da qualidade
ambiental e das condições de vida. O que precisamos é de entusiasmo, acompanhado
de calma mental, e de trabalho intenso, mas ordenado. Para chegar à liberdade no
mundo da Natureza, o homem deve usar seu conhecimento para, com ela
colaborando, criar um mundo melhor. […]
7 - A consecução deste objetivo ambiental requererá a aceitação de responsabilidade
por parte de cidadãos e comunidades, de empresas e instituições, em equitativa
partilha de esforços comuns. Indivíduos e organizações, somando seus valores e seus
atos, darão forma ao ambiente do mundo futuro. Aos governos locais e nacionais
caberá o ônus maior pelas políticas e ações ambientais da mais ampla envergadura
dentro de suas respectivas jurisdições. Também a cooperação internacional se torna
necessária para obter os recursos que ajudarão os países em desenvolvimento no
desempenho de suas atribuições. (ARAÚJO, 2010, p. 14).
A educação ambiental foi, outrossim, mencionada através do 19.º enunciado da
Declaração de Estocolmo (ONU – 1972). Reza esse enunciado:
É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto à
gerações jovens como aos adultos e que preste a devida atenção ao setor da
1
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
população menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública
bem informada, e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coletividades
inspirada no sentido de sua responsabilidade sobre a proteção e melhoramento do
meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios
de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente
humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a
necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se
em todos os aspectos. (FIGUEIREDO, 2012, p. 181).
Dill (2008, p. 78) refere que, posteriormente, em 1977, em Tbilisi (Geórgia – antiga
União Soviética), ocorreu a I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental, a
qual foi organizada pela Unesco em colaboração com o Pnuma, que denotou um marco
significativo para que a educação ambiental se constituísse uma proposta pedagógica de fato,
tendo por fim a transformação do homem em todas as formas de trato com a natureza, a fim
de que ele seja o seu principal defensor. Foi após isso que se passou a ter a orientação da
articulação das diversas disciplinas e conhecimentos educativos para um enfoque integrado do
meio ambiente, o que veio a reiterar os termos da Conferência de Estocolmo.
Mas foi nas décadas de 80 e 90 (século XX) que se verificou um maior crescimento
da consciência ecológica, sendo isso corroborado a partir da conceituação de educação
ambiental pela Unesco, no Congresso Internacional sobre Educação e Formação Ambiental
(ocorrido em Moscou, em 1987), conceito esse bem próximo do que se vê exarado na Lei
Federal Brasileira nº 9.795/1999, de Política Nacional de Educação Ambiental, com o
diferencial de, esta, referir ser a educação ambiental processo essencial e permanente (art. 2º
da Lei nº 9.795/99).
Após, em 1992, decorrente da Rio-92 e do Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, foi acrescido ao conceito de educação
ambiental o cunho interdisciplinar, permanente e holístico da aprendizagem.
Logo depois, em 1997, a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e
Sociedade: Educação e Conscientização Pública para a Sustentabilidade, ocorrida na Grécia,
trouxe novas nuances para o referido conceito, propondo através da educação ambiental
mudanças em comportamentos e estilos de vida humana, na disseminação de conhecimentos e
conscientização da coletividade, rumo à sustentabilidade.
Isso evidencia que o conceito de educação ambiental foi sendo modificado no
decorrer dos tempos, acompanhando a evolução do conceito de meio ambiente e ficando
atrelado ao modo como este é percebido.
Em termos de Estado brasileiro, a educação ambiental já havia sido prevista no
Antigo Código Florestal Nacional (Lei nº 4.771/1965 – artigo 42), in verbis:
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Art. 42. Dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhuma autoridade poderá
permitir a adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos de
educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação,
ouvido o órgão florestal competente.
§ 1° As estações de rádio e televisão incluirão, obrigatoriamente, em suas
programações, textos e dispositivos de interesse florestal, aprovados pelo órgão
competente no limite mínimo de cinco (5) minutos semanais, distribuídos ou não em
diferentes dias.
§ 2° Nos mapas e cartas oficiais serão obrigatoriamente assinalados os Parques e
Florestas Públicas.
§ 3º A União e os Estados promoverão a criação e o desenvolvimento de escolas
para o ensino florestal, em seus diferentes níveis.
Aludida na Lei nº 6.938/1981, com a instituição da Política Nacional do Meio
Ambiente (art. 2º)2, a qual foi após recepcionada pela Constituição Federal de 1988, desta
partindo a Lei nº 9.795/1999 (Política Nacional de Educação Ambiental – arts. 1º e 2º) 3,
regulamentada pelo Decreto Federal nº 4.281/2002, a educação ambiental foi abarcada em leis
brasileiras, inclusive o fato de ela constar também na Carta Magna da República já faz desta
uma Constituição de vanguarda. Nesse entremeio, cabe lembrar que a primeira norma
brasileira a recomendar a inclusão da educação ambiental nos currículos escolares do Ensino
Fundamental e Médio foi o Parecer nº 226/1987, do Conselho Federal de Educação.
Tal como ensina Morin (2011, p. 36) “Em consequência, a educação deve promover
a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e
dentro da concepção global” (grifo do autor).
Conforme Khalil Gibran (2012, p. 73) menciona:
E então, disse um professor: Fala-nos do Ensinar. E ele disse: Ninguém pode vos
revelar nada, a não ser o que jaz meio adormecido no âmago do vosso
conhecimento. […] Se ele for realmente sábio, não vos convida a entrar na casa de
sua sabedoria, mas vos guia até o limiar da vossa própria mente.
Acerca do saber ambiental, Leff (2001, p. 239) cita as fracassadas pretensões
2
3
"Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da
qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os
seguintes princípios:
[...]
X - educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando
capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente."
"Art. 1º Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade
constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação
do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.
Art. 2º A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar
presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e
não-formal."
169
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interdisciplinares, atribuindo a isso resistências teóricas e pedagógicas, as quais teriam
ocasionado significativa dificuldade quanto à transformação dos paradigmas atuais do
conhecimento e os métodos educacionais, essenciais, no entender do autor, para a
disseminação desses saberes. Além disso, expõe o referido autor:
É que a interdisciplinaridade ambiental não é o somatório nem a articulação de
disciplinas; mas também não ocorre à margem delas, como seria colocar em jogo o
pensamento complexo fora dos paradigmas estabelecidos pelas ciências. A educação
ambiental requer que se avance na construção de novos objetos interdisciplinares de
estudo através do questionamento dos paradigmas dominantes, da formação dos
professores e da incorporação do saber ambiental emergente em novos programas
curriculares. (LEFF, 2001, p. 240).
Segundo Capra (1996, p. 230), “Precisamos revitalizar nossas comunidades –
inclusive nossas comunidades educativas, comerciais e políticas – de modo que os princípios
da ecologia se manifestem nelas como princípios de educação, de administração e de
política."
O homem, principalmente após a Revolução Industrial, ancorado na concepção
antropocentrista, passou a explorar a natureza de forma bastante acelerada e ilimitada, ao
passo que a natureza dispõe de bens que são limitados (e, embora muitos sejam renováveis, tal
renovação ocorre ao tempo natural de seus respectivos processos, cuja velocidade não
consegue acompanhar a do desenfreado uso de tais bens), o que evidencia que o período
moderno também esteve marcado por uma educação alienante, o que não se diferencia muito
dos tempos contemporâneos.
Firma-se isso na medida em que se analisa o pensamento de grande parte dos
doutrinadores brasileiros, da área da educação ambiental, que acreditam ser um exagero a
existência de uma disciplina específica para a educação ambiental, sob o fundamento de dever
esta ser tratada de forma articulada e integrada aos conteúdos obrigatórios, com base na
interdisciplinaridade.
No entanto, nada impede a existência de uma disciplina específica que trate da
matéria, que seja (e não há como não ser) articulada e integrada com os outros conteúdos,
utilizando-se, da mesma maneira, a interdisciplinaridade, que é essencial.
Assim entendida, essa ideia denota que a preocupação com a preservação da vida
também deve ser assimilada como um exagero. Mas infelizmente, foi nessa linha de
raciocínio que pendeu o legislador pátrio.
Um outro aspecto que deve ser sublinhado quanto à educação ambiental é a
inobservância de um currículo programático fundado no processo permanente ao qual aquela
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deve estar vinculada, segundo a conceituação dada em 1987, em Moscou.
Parece que uma mera articulação de conteúdos, sem fixação e programação de um
início, de uma continuidade e de quando e como isso será feito, força uma ponderação calcada
em um aspecto vago, impreciso, não-planejado, desprovido de seriedade, desvinculado e
descompromissado com as significativas proporções e implicações que o tema enseja.
A crise que assola a relação do homem com a natureza é incontestável e, no entanto,
os benefícios advindos dos avanços científicos e tecnológicos “não foram e não estão sendo
utilizados em prol da vida, mas sim do capital” (DILL, 2008, p. 30).
Isso porque, os valores humanos estão norteados pela ideologia moderna do sistema
de produção capitalista que, de certa forma, aliena4 o homem, na busca incessante e
desenfreada pelo acúmulo de riquezas, desrespeitando os seus próprios limites e os da
natureza.
E é nesse contexto que a educação ambiental crítica faz-se imprescindível, inclusive
para que a modificação desses valores prospere socialmente e ocasione, outrossim, a mudança
da conduta humana para com o ambiente.
Corrobora Capra (2005, p. 167), ao dizer que:
Além de sua instabilidade econômica, a forma atual do capitalismo global é
insustentável dos pontos de vista ecológico e social, e por isso não é viável a longo
prazo. O ressentimento contra a globalização econômica está crescendo rapidamente
em todas as partes do mundo.
2 OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
A Constituição Federal de 1988, no artigo 225, evidenciou a preocupação do Estado
Brasileiro Democrático e Socioambiental de Direito com a defesa, conservação e preservação
do meio ambiente, tendo em vista as constantes e alarmantes degradações ambientais
produzidas ao longo da existência humana no Planeta.
Quando se fala em defesa, parte-se da ideia de que ela ocorra através de práticas
diárias nesse sentido; em conservação, pensa-se no que diz respeito à utilização racional dos
recursos naturais; e em preservação, atém-se à ideia da manutenção da integridade daqueles
recursos essencialmente protegidos.
O artigo 6º do mesmo diploma legal, por sua vez, elenca a educação como um dos
4
Para Bello e Keller (IN LUNELLI e MARIN, 2012, p. 108) - embasados na concepção marxiana -, a
alienação, que contribui para a permanência da produção social da pobreza, é também o fruto do afastamento
dos produtores com relação ao resultado dos seus trabalhos. (N.A.).
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
direitos sociais, sendo também considerada um direito fundamental da pessoa humana, em um
primeiro momento, por estar inserida no direito à vida no seu aspecto integral e, num
segundo, por ser o homem um ser social.
Nesse sentido, leciona Sarlet (1998, p. 41) que “o fundamento dos direitos sociais
encontra-se na constatação de que o homem não poderá viver uma vida plena, digna,
enriquecedora, se não lhe forem satisfeitas as necessidades básicas”.
Doyal e Gough, mencionados por Potyara A. P. Pereira (2011, p. 75-76), identificam
como um dos satisfadores universais e específicos para a efetivação das necessidades
humanas básicas (saúde física e autonomia dos seres humanos) a educação apropriada.
O direito à educação formal integra o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 e,
tal como vem caracterizada neste dispositivo legal, ela “transcende a uma mera instrução,
devendo desenvolver as potencialidades morais e intelectuais do homem, preparando-o para
ser um cidadão e qualificando-o para o trabalho.” (DILL, 2008, p. 75).
Apresentada pelo legislador pátrio como um dos elementos basilares para se
conseguir a conscientização dos povos e o seu despertar para a necessidade de, mais que
nunca, passarem a ter maiores cuidados com o ambiente em que vivem, sob pena de
comprometerem as suas próprias existências, resta elencada a educação ambiental, a ser
proporcionada em todos os níveis de ensino.
Mais que isso, a educação ambiental é um dos instrumentos para a garantia da
efetividade “do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. (LANFREDI, 2002, p.
123).
Sendo dever do Estado e da coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, entende-se que se pode
chegar a esse patamar também através da educação ambiental prestada de forma extensiva e
crítica, em todos os níveis de ensino, tanto para o público quanto para o privado, com a
mesma qualidade de prestação.
Considerando a qualidade do ensino disponibilizado atualmente no País, há que se
evidenciar a necessidade de uma melhor preparação dos docentes de todos as escalas
curriculares, para poderem trabalhar, de forma efetiva e a contento, com a matéria ambiental,
como agentes ativos e conscientizadores, promovendo a mobilização popular a partir da
interação do conhecimento com as práticas diárias.
Porém, a educação ambiental precisa ultrapassar muitas barreiras e entraves, para
efetivamente se disseminar pelas estruturas curriculares e emergir para o verdadeiro fim que a
norteia, que é a conscientização e as consequências como reflexos incorporados no dia a dia
172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de cada cidadão.
3 EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999
A Lei nº 9.795, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, denota as
diretrizes nacionais que deverão servir de base para as Políticas Estaduais dos Estados
Federados.
Em que pese ser o meio ambiente equilibrado essencial para a sadia qualidade de
vida, parece que, aos elementos que podem contribuir com isso ocorra, não são dados a
devida atenção e investimento.
Sendo a educação ambiental um desses elementos, considerada como um
"componente essencial e permanente da educação nacional"(Art. 2º da Lei nº 9.795/99), não
parece estar compatível à sua importância a prestação do saber ambiental de forma meramente
articulada, em todos os âmbitos e modalidades do ensino.
Ainda mais quando expressamente consta que a educação ambiental não deve ser
ministrada "como disciplina específica no currículo de ensino." (Art. 10 da Lei nº 9.795/99).
Essa menção parece anular toda a primordialidade e importância postas em torno
desse elemento, pois em não havendo uma disciplina específica sob esse enfoque, as
discussões esparsas e descomprometidas com o efetivo saber e conscientização sobre o tema,
vão perdendo-se no tempo.
Disposições nessa linha de raciocínio dão mostras de que o legislador pátrio parece
entender que a maioria da população já possui todos os conhecimentos e a conscientização
necessários para ter ações todas em conformidade com as prioridades defensivas e protetivas
da vida.
Mas não é essa a realidade: todos estão carentes dessa informação e conhecimento,
sendo essencial a conscientização da população em geral, também tão absorta do automatismo
eloquente imposto pela sociedade de consumo e das ilusões efêmeras de aquisição da
felicidade.
Comete, pois, um grande engano o homem da modernidade, ao compreender a
felicidade e qualidade de vida estritamente através da acumulação de riquezas e do grande
poder de consumo, pois, ao final, percebe-se sem atingir a felicidade almejada, seguindo uma
trajetória de vida em um ambiente, ambos desprovidos de qualidade.
Ademais, é consabido que, em geral, não são repassadas aos discentes todas as
matérias previstas nas estruturas curriculares, normalmente por não haver disponibilidade de
173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
tempo para isso, quanto mais para destinar algum tempo extra para a inclusão do saber
ambiental e, ainda que assim ocorresse, com certeza esse conhecimento seria mitigado e
muito rapidamente trabalhado, quando a sua importância remonta à essencialidade da vida.
Por outro lado, a carência de tempo a ser destinado impede o estudo mais
aprofundado dos conteúdos programáticos curriculares já previstos, que dirá poder então
englobar mais a matéria ambiental que, ou não será nem mesmo mencionada ou se isso vier a
ocorrer, será muito superficialmente tratada.
Sob o viés da finitude da grande maioria dos bens ambientais e da atual escassez de
bens essenciais à manutenção da vida, como é o caso da água, por exemplo, e da crescente
rapidez dos efeitos degradantes, quanto ao meio ambiente urgem preocupações e ações mais
específicas, contundes, eficazes e de maior repercussão nacional, de forma a destinar o
verdadeiro tratamento necessário e imprescindível ao ambiente.
Quando da elaboração da Lei nº 9.795, em 1999, não estavam sendo ainda tão
veementemente sofridos os efeitos nocivos das modificações ambientais e da escassez, não
tanto quanto na atualidade, sendo que, no momento, já estão disponíveis inclusive as
projeções do crescimento acelerado no que tange aos prováveis danos ambientais.
Sendo assim, em virtude da significativa relevância do tema e da premente
necessidade de mudança de consciência e atitudes humanas, entende-se não mais comportar
tratamentos e medidas extremamente sutis e desagregadas na noção acelerada e rápida dos
acontecimentos presentes e, dessa forma, a incompatibilidade de uma educação que não leve
em conta a profundidade do tema e que não abra espaço largo para o seu aprendizado e
debate.
Outrossim, a referida lei faculta a criação de disciplina específica de educação
ambiental nos cursos de pós-graduação, extensão e nas áreas voltadas ao aspecto
metodológico.
Mediante essa faculdade, descarta-se a possibilidade do ensino continuado dos
saberes ambientais que, pelo que se depreende da sua distinta missão, parecem estar relegados
a meras informações descontínuas, que acabam por desarticular e não sistematizar
continuamente o entendimento e o âmbito integralizado e universal que aqueles deveriam
manter.
Resta apenas mencionado nessa lei que deve ser incorporado conteúdo concernente à
ética ambiental das atividades profissionais quando se tratar de cursos de formação e
especialização técnico-profissional, em todos os níveis. Entende-se que, nessa senda, a
simples incorporação de conteúdo acerca da ética ambiental não abarca toda a complexidade
174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
das matérias inerentes a esse instituto.
O artigo 11 dessa lei retrata a obrigatoriedade de constar, em todos os níveis e em
todas as disciplinas, a dimensão ambiental dos currículos de formação de docentes, sendo que
os que se encontram em atividade deverão receber uma formação complementar, em suas
áreas de atuação, para atingirem os propósitos da política nacional de educação ambiental.
Porém, há que se levar em conta que muitos professores que se encontram hoje ainda
ministrando aulas nunca tiveram sequer noções básicas acerca do meio ambiente, sem contar
que efetivamente essas formações complementares, na maioria das vezes, não saem do papel,
o que já traz inúmeros efeitos nocivos à propagação desses saberes.
Em termos da promoção da educação ambiental não-formal, tanto o Estado, a
sociedade, os meios de comunicação de massa, quanto as escolas, as universidades e as
organizações não-governamentais estão deixando muito a desejar quanto ao desenvolvimento
de "ações e práticas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais" 5,
o que é visivelmente percebido pela quase que ausência dessas medidas.
No que tange à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a única menção que
contém sobre educação ambiental está prevista no § 7º do artigo 26 – incluído pela Lei
12.608, de 10 de abril de 2012, referindo que "Os currículos do ensino fundamental e médio
devem incluir os princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental de forma
integrada aos conteúdos obrigatórios."
Sendo a LDB uma lei federal, incumbe a ela as disposições gerais em relação à
educação, e até mesmo quanto à educação ambiental. Já a Lei nº 9.795/1999, referente à
Política Nacional de Educação Ambiental, esta, em relação à LDB, trata-se de uma lei
especial, que discorre especificamente sobre a educação ambiental.
Na prática, entretanto, a educação ambiental, em geral, vem estando ausente nas
abordagens curriculares e no quotidiano das salas de aula e, se existente, é efetuada de
maneira insuficiente ou precária, não sendo prestada de forma permanente e continuada, mas
sim de forma eventual, esparsa, desarticulada e desagregada do ensino de um conjunto de
valores socioambientais condizentes com os fundamentos da educação ambiental.
4 EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996
Uma alteração à Lei de Diretrizes e Bases da Educação passou a vigorar
recentemente, em 2012, imiscuída entre os demais ditames da Lei nº 12.608/2012, que institui
5
Artigo 13 da Lei nº 9.795/99.
175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC.
Inexistia anterior previsão na LDB acerca de educação ambiental, desde 1996,
quando foi criada; somente em 2012 é que a LDB recebeu a inclusão dessa matéria, muito
embora a Lei nº 9.795, de 1999, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, já
estivesse em vigor desde o ano de 1999. São alarmantes as expressões da morosidade e
desinteresse nacional em torno dessas temáticas: educação e educação ambiental.
Com essa alteração da LDB, passa a ser obrigatória a inclusão, nos currículos do
ensino fundamental e médio, da educação ambiental de "forma integrada" aos conteúdos
obrigatórios, semelhante ao que já previa nacionalmente a Lei nº 9.795, desde 1999,
mencionando a educação ambiental de "forma articulada".
Consultando dicionários para diferenciar exatamente essas duas expressões, obtém-se
os seguintes conceitos:
ar.ti.cu.lar [...] 1 unir(-se) pelas articulações 2 tornar(-se) ligado; unir(-se); juntar(se) [...] 3 dizer, pronunciar [...]
in.te.grar [...] 1 incluir(-se) em (conjunto, grupo), formando um todo
coerente; incorporar(-se) [...] 2 [...] sentir-se parte de (grupo, coletividade);
adaptar(-se) [...] 3 unir-se, formando um todo harmonioso; completar-se.
(grifos do autor) (HOUAISS e VILLAR, 2004, p. 66 e 422).
ar.ti.cu.lar [...] 3. Juntar, unir, ligar uma coisa a outra. 4. Pronunciar (palavras). P. 5.
Juntar-se; organizar-se.
Integrar – [...] 1 Tornar inteiro ou integral; completar; integralizar; P. 2. Fazer parte
de um todo; associar-se; incorporar-se. (grifos do autor) (LUFT, [198-], p. 48 e 319).
Segundo a determinação estatal, a matéria ambiental deve estar presente de forma
integrada, ou seja, associada e incorporada aos conteúdos obrigatórios.
Entretanto, de acordo com esse enredo, ela, por si só, parece não representar um
conteúdo obrigatório, como disciplina autônoma para, nessa condição, interligar-se às demais,
incutindo um toque de secundariedade, dispensabilidade desse saber, incompatível com a
primordialidade do aspecto condizente à preservação do ambiente e da vida.
Já de forma articulada, entende-se que a educação ambiental deve ser trabalhada
vinculada aos demais conteúdos, em todos os níveis e modalidades de ensino.
Em síntese, ambos os vocábulos, embora muito pouco se diferenciem em seus
conceitos e sinônimos, na verdade deixam a mesma mensagem essencial: que os saberes
ambientais venham a ser repassados de modo associado e incorporado aos conteúdos
obrigatórios.
E esse tipo de tratamento ao tema parece deixar muito a desejar, ainda mais quando
176
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
há vedação legal para a existência de uma disciplina autônoma e específica. Logo, o ideal
seria a supressão dessa vedação legal, para ser consolidada a verdadeira importância desse
tema.
Entretanto, essas articulações e integrações dos saberes ambientais com os demais
conteúdos obrigatórios poderiam ocorrer igualmente, e de maneira ainda mais aprofundada se,
através desse modelo educacional proposto, houvesse o espaço para uma disciplina específica,
em todos os níveis e modalidades de ensino, jamais prejudicando a inter, a multi e a
transdisciplinaridade.
Quanto a essas últimas (inter, multi e transdisciplinaridade), depreende-se que, até
então, elas não restaram bem compreendidas pelos atuais educadores, que têm a tendência de
relacionar a educação ambiental “a práticas específicas (como coleta seletiva do lixo ou a
organização de hortas), ou considerar que qualquer observação do cotidiano ou regra de
civilidade” (VASCONCELLOS, 2011, p. 269) consiste no desenvolvimento da educação
ambiental sob o prisma da inter, multi e transdisciplinaridade.
É lógico que é inviável falar em educação ambiental sem pensar em vinculá-la aos
outros saberes, mas da forma como está sendo proposta, dá mostras de pouco esmero em
aprofundar os conhecimentos a ela atinentes e trabalhá-la com as crianças, jovens e adultos,
desde os primórdios da constituição/formação dos seus saberes, hábitos e personalidades.
Conforme já observado anteriormente, tampouco os conteúdos obrigatórios, às vezes,
são vistos em sala de aula, por carência de tempo, ou se vistos, são marcados por uma
superficialidade, face a impossibilidade do aprofundamento pelos motivos já expostos. Agora,
imagine-se o que acontece com a educação ambiental nas rotinas das salas de aula do País
todo.
Ademais, insta salientar que, tanto sendo observada a forma integrada, quanto a
forma articulada, em ambos os casos não resta preestabelecido se todos os professores
trabalharão a temática ambiental, se apenas os das áreas das Ciências Naturais, ou Humanas,
ou Sociais.
Diante de todas essas inquietações, questiona-se:
Em não havendo essa definição, e na maioria das vezes isso pode ocorrer, não por
má-fé dos docentes, mas por outros motivos por hora irrelevantes, como/quando fica a
prestação da educação ambiental e o atingimento dos seus objetivos?
A quem reclamar isso, se não há responsável ou responsáveis específicos, destinados
ao cumprimento desse dever, em um universo de vários docentes de cada nível de ensino, o
que acaba remetendo a uma situação de indeterminação e indefinição originárias?
177
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
E após a consolidação, nos dias atuais, dos respectivos estudos dos alunos, tanto nos
níveis fundamental quanto no ensino médio, sem terem sido alvo dos saberes ambientais,
especificamente aqueles que não terão a oportunidade de chegarem ao ensino superior, como
ficarão as suas situações? O que fazer diante disso?
Como esperar de uma educação ambiental prestada de forma integrada ou articulada,
que ela possa promover “processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem
valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a
conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de
vida e sua sustentabilidade”, se a ela tampouco foi aberto um espaço sagrado e reservado para
o conhecimento e o aprofundamento destes acerca das temáticas ambientais?
De outra banda, o incentivo à pesquisa parece estar mais afeto e enfatizado ao campo
da educação superior, porém constitui um dever do Estado para com a educação escolar
pública a garantia de “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um” (Art. 4º, V, da LDB).
No entanto, se a pesquisa sobre a matéria ambiental não for fomentada e incentivada
desde a educação básica, a partir de sólidos conhecimentos proporcionados aos estudantes,
dificilmente só na educação superior eles desenvolverão essas habilidades e pô-las em prática
em tempo e a contento.
Então, paira-se sob um ponto deveras crucial: o Estado tem o dever legal de
promover a educação ambiental e a conscientização da coletividade para a preservação do
ambiente, mas ele demonstra o efetivo interesse em promovê-las, na prática? Isso está ou tem
acontecido na atualidade, em todas as realidades do País?
5 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL,
INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL
Tanto o Estado como a coletividade restaram designados constitucionalmente (artigo
225, caput, da CF/88) para o desempenho do dever de defesa e preservação do meio
ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Esse mesmo dispositivo constitucional, em seu § 1º, inciso VI, infere ao Poder
Público, a fim de assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, o dever de promover a educação ambiental e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente.
Embora o tema acerca do ambiente não figure no artigo 5º da CF/88, o direito ao
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
meio ambiente é reconhecido doutrinariamente6 como um direito fundamental da pessoa
humana (artigo 225, caput, da CF/88), atrelado ao respeito à dignidade da pessoa humana.
Sérgio Luís Mendonça Alves (apud TEIXEIRA, 2006, p. 111), manifesta-se, dizendo que “A
Constituição do Brasil, […] instituiu como instrumento para proteger o meio ambiente
ecologicamente equilibrado a educação ambiental como princípio fundamental que decorre
dos direitos e deveres fundamentais.”
Além disso, o Estado Socioambiental de Direito definiu a educação ambiental
também como um direito fundamental social (artigos 6º e 205 da CF/88).
Entendendo-se que a efetividade social do Direito Ambiental consolida-se com a
conscientização comunitária para a realização de uma cidadania participativa e solidária com
as presentes e futuras gerações, sendo essa participação comunitária atuante “em conjunto
com o Poder Público na proteção dos bens ambientais” (LEITE, 2002, p. 28-29), a educação
ambiental não pode ser deixada a segundo ou terceiro plano, quanto à preocupação e
efetivação de medidas para que ela realmente ocorra, por esse mesmo Estado.
Antes mesmo da Constituição da República Federativa do Brasil prever a educação
ambiental como dever do Estado, a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente),
recepcionada pela Carta Magna brasileira, já previa esse dever estatal, em consonância com o
Código Florestal Brasileiro vigente naquela época, consoante já exposto.
A partir da Carta Constitucional de 1988, o Estado brasileiro instituiu a Política
Nacional de Educação Ambiental, através da Lei nº 9.795/1999, em vigência até o presente
momento, e regulamentada pelo Decreto nº 4.281/2002.
Todos esses diplomas legais, em suma, preconizam o dever do Estado na promoção
da educação ambiental. Isso pode ocorrer, de forma efetiva, através da implementação de
políticas públicas estatais sérias e comprometidas com a obrigação inerente à proteção e
manutenção da vida humana na Terra.
Por um lado, é bem verdade que o extensivo rol de corresponsáveis pelo dever de
educar ambientalmente, previsto no artigo 3º da Lei nº 9.795/1999, apresenta opções várias de
coadjuvantes para essa empreitada, porém, por outro, dos vários corresponsáveis, muitas
vezes pode acontecer que nenhum deles esteja efetivamente empenhado e desempenhando a
referida prestação esperada.
Foi precisamente nessa lei que restou delineado o conceito de educação ambiental,
que além de despertar a consciência, objetiva a modificação de atitudes humanas, em prol da
melhoria da qualidade de vida planetária.
6
Pode-se citar, dentre outros MILARÉ, Édis. 2011, p. 1065; TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. 2006, p. 82.
(N.A.).
179
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Sendo o Direito Ambiental um ramo do Direito Público, Figueiredo (2012, p. 129)
sustenta que, logo, há “a obrigatoriedade da intervenção estatal na defesa do meio ambiente”.
Para o autor supra, também é natural a aplicação e a exigência dos princípios
constitucionais que elucidam acerca da Administração Pública em todo e qualquer tipo de
políticas públicas.
Devendo o Estado primar pela realização dos princípios constitucionais referentes à
Administração Pública, é válido salientar o cumprimento do princípio da eficiência, o qual
refere-se “não só à Administração Pública (setorial)”, como também, no entender de Gabardo
(2002, p. 89-90), embasado no pensamento de Canotilho:
[...]ao princípio da eficiência do Estado como vetor geral (de caráter ético) do
sistema constitucional. Dessa forma, tão importante quanto à relação com os demais
princípios da Administração Pública, que não é só externa, mas intrínseca, é a
submissão do princípio da eficiência aos princípios estruturantes (ou fundamentais)
do sistema constitucional, entre os quais se destaca o Princípio do Estado Social e
Democrático de Direito.
Incumbe, então, ao Estado, principalmente deixar de omitir-se declaradamente no
que tange ao seu verdadeiro papel constitucional de atuação ativa quanto à implementação de
efetiva educação ambiental prestada em todos os níveis de ensino, atingindo, dessa forma e
por consequência, os deveres de defesa e proteção ambientais.
Por tratar-se do tema ambiental, cuja preservação do meio denota a consequente
preservação da vida humana, o assunto já tem importância suficiente para que o Estado se
empenhe muito mais fervorosamente e o mais rápido possível para conscientizar e ensinar a
coletividade a incluir em suas rotinas as práticas defensivas do meio ambiente.
Considerando que educação ambiental é o princípio, o caminho principal que pode
levar a coletividade a esse estágio, mas também não se olvidando que essa mudança de
consciência e atitudes ambientais não acontecem imediatamente, com todos os indivíduos,
levando em conta os diferentes níveis de assimilação e o despertar da consciência de cada um,
primordial seria que a efetiva educação ambiental já estivesse ocorrendo não só em termos de
Brasil, mas sim mundialmente, como preocupação estatal primeira.
6 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL
A área de estudos envolvendo políticas públicas configura uma múltipla interface
entre as Ciências Sociais, Política e Economia.
Sandro Trescastro Bergue (2011, p. 508), citando Heidemann, assim dimensiona
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
política pública “Entende-se por política pública (public policy) o conjunto coerente de
decisões, de opções e de ações que a administração pública leva a efeito, orientada para uma
coletividade e balizada pelo interesse público."
Refere, outrossim, que ela "distingue-se de políticas de Estado por serem estas
especificadas na Constituição da República, não restando aos atores políticos a possibilidade
de disputa de espaços ou opção nesse campo, senão seu cumprimento".
Faz ainda outra diferenciação entre a primeira ("produto da, e orientada para, a
comunidade política mais ampla") e políticas governamentais, afirmando serem estas
"empreendidas por atores governamentais, emanadas por órgãos e entes dos Poderes de
Estado, constituindo "o subgrupo mais importante das políticas públicas".
Em consonância com o pensamento de Freitas (2011, p. 288-290), insta salientar a
necessidade de o Estado "aplicar a Constituição em tempo útil e de ofício", uma vez que ele
"existe para prevenir e não para chegar tarde", evitando, assim, "(com prevenção e precaução)
os danos oriundos de toda e qualquer atuação desproporcional por excesso ou inoperância, no
atendimento, constitucionalmente imperativo, dos direitos fundamentais de todas as
dimensões."
E o que se espera da educação ambiental é justamente aproveitar e aprimorar os seus
espectros de prevenção e precaução de maiores danos ao ambiente, sendo isso promovido
essencialmente por iniciativa estatal, que deve atuar no modo antecipativo e não corretivo e
pontual.
Souza (2007, p. 5) caracteriza política pública como:
[...] o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o 'governo em
ação' e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor
mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação de
políticas públicas constitui-se no estágio em que governos democráticos traduzem
seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações, que produzirão
resultados ou mudanças no mundo real.
Assim entendida, a educação ambiental, promovida na forma de uma política pública
ativa e efetiva, estará direcionada à realização dos princípios do Direito Ambiental da
prevenção e da precaução.
Pautado na prevenção e precaução, através da educação ambiental, o Estado
brasileiro pode em muito contribuir para a preservação e conservação do meio ambiente.
Lógico que, inicialmente e sozinho, o Brasil não conseguirá uma transformação total
e universal, porém, estará dando um bom exemplo a ser seguido pelas demais nações.
Estará, outrossim, evidenciando o seu pioneirismo em práticas tais, contribuindo para
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
a lenta mas permanente modificação da consciência e de atitudes populares em termos
ambientais e, num segundo momento, quiçá estará conseguindo a mobilização e efetiva
sensibilização de todas as nações, para que realmente sejam colocadas em prática os
magníficos escritos e legislações que tratam do tema ambiental, sua proteção e preservação.
A partir do contexto explanado por Souza, os governos, através da utilização desse
instrumento, que é a política pública, podem produzir resultados e promover mudanças no
mundo real.
Dessa forma, entende-se que os governos podem e devem direcionar os seus olhares
para a efetiva modificação no modelo institucional/legal existente atualmente no que tange à
educação e, mais especificamente, à educação ambiental, de modo a promoverem mudanças
positivas no mundo real.
E uma das maneiras de isso vir a ocorrer é mediante o investimento em educação, em
educação ambiental, processo lento, gradativo, e que deve ser constante e permanente, mas
que, pelo qual, é possível implementar a modificação da consciência humana rumo a uma
convivência mais harmônica com a natureza e a veemente preocupação em cuidá-la e
preservá-la.
Consoante Bobbio (2004, p. 66-67):
É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do
problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de
resolver no que concerne àquela "prática" de que falei no início: é que a proteção
destes últimos requer uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela
proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços
públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social.
Quanto ao fato de existir uma política pública nacional de educação ambiental
prevista legalmente, deve-se destacar, primeiro: isso não significa que ela está sendo colocada
em prática em todo o País; segundo: que não significa que ela está sendo colocada em prática
em todos os níveis de ensino; terceiro: isso não significa que ela é efetiva e cumpra com as
suas finalidades constitucionais; e quarto: não significa que o Estado esteja atribuindo a
devida importância ao tema, que esteja atuando satisfatoriamente e que esteja envolvido com
a máxima dedicação sobre esse enfoque.
Uma nova proposta de política pública de efetiva educação ambiental deve versar ou
trabalhar a educação sob o prisma do abandono dos vícios antropocêntricos e “paradigma
separatista da insaciabilidade patológica”. (FREITAS, 2011, p. 190).7
7
Nos termos empregados pelo autor, a insaciabilidade patológica refere-se ao consumismo exacerbado e a
infinitude de necessidades consumistas criadas no/pelo homem através das crescentes e inovadoras ofertas
do mercado. (N.A.).
182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Sob o prisma do “posicionamento político-cultural emancipatório”, mencionado por
Lima (apud SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 31), faz-se essencial que uma séria
política pública de educação ambiental seja implantada em que não só haja a preocupação em
repassar conhecimentos atinentes ao uso racional dos recursos e manutenção dos ecossistemas
(superficialismos).
É imprescindível, entretanto, promover principalmente uma expressiva alteração de
valores, sob uma nova visão de mundo, de acordo com a qual, “cada parte tenha valor em si
própria e como parte do conjunto” (VASCONCELLOS, 2001, p. 269), parâmetro, do qual, a
situação atual da política pública de educação ambiental brasileira ainda não consegue sequer
se aproximar.
Ao mesmo tempo em que a Política Pública Nacional de Educação Ambiental proíbe
a existência de uma disciplina autônoma de educação ambiental, alegando que, dessa forma,
estaria evitando “qualquer resquício compartimentalista cartesiano na sua implementação”
(SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 29), na prática, porém, não propicia o espaço
adequado para que ela possa ser trabalhada de forma aprofundada e sob todos os aspectos
(social, econômico, cultural, político, etc.).
Mediante a proibição infracitada, a justifica também sob a alegação de estar
expungindo o caráter reducionista até então presente, porém, simultaneamente, acaba
impedindo, assim, que esse conhecimento sequer se propague, o que tampouco permitirá que
a educação ambiental e a propagação dos saberes ambientais ocorram de maneira transversal,
conforme seria o objetivo enfatizado.
Poder-se-ia, de qualquer forma, trabalhar a educação ambiental em uma disciplina
específica, abordando-a de maneira interdisciplinar, reservando para a sua interação com o
todo (todo o universo de conteúdos a ela relacionados) a versão transdisciplinar, a ser buscada
e executada pelo conjunto do corpo docente.
No entanto, ainda que se considerasse inviável ao Poder Público assumir sozinho o
encargo de promover políticas públicas de educação ambiental, logicamente o Estado pode e
deve contar com a participação social em alguns momentos, no desenvolvimento dessas
práticas, pois as aulas de educação ambiental poderão ser enriquecidas com palestrantes
(profissionais liberais, funcionários públicos de outras instituições) e também materiais
oriundos da colaboração comunitária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, partindo da noção de educação ambiental como sendo um meio
183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de proporcionar uma modificação de valores e de atitudes nos seres humanos, concernentes à
sua concepção e atuação em relação ao meio ambiente, evidencia-se a sua versão tímida,
inexpressiva, imatura e ineficaz, denotando a precariedade com que vem sendo conduzida.
É lógico que não se pretende direcionar o dever legal de implementá-la e promovê-la
unicamente ao Estado, que pode ser auxiliado e subsidiado pela sociedade civil e coletividade.
No entanto, é inegável a essencialidade de o Estado definir e estruturar as suas
diretrizes, essencialmente no âmbito educacional e, em especial, no da educação ambiental, a
fim de que possa se distanciar o bastante da letra das leis ao ponto de chegar à prática,
concretizando a vontade política que, sem dúvida, deve ser compatível com os ditames
constitucionais, como os de preservar e conservar o meio ambiente, tornando-o sadio e
ecologicamente equilibrado, às presentes e futuras gerações.
O instrumento que representa a educação ambiental não deve ser jamais
desperdiçado, principalmente pelo Estado, que deve ser o propulsor da conscientização
coletiva para a proteção e conservação ambiental, podendo ser ele utilizado como um meio
eficaz para a prevenção e embasamento fundamental para a precaução em termos de danos e
desequilíbrios ambientais, bastando ser bem direcionado e atuante de forma efetiva, constante
e permanente nos ambientes escolares, em todos os níveis de ensino.
Não obstante à previsão constitucional e à existência de leis federais dimensionando
os objetivos e a realização da educação ambiental, ainda que essa realização eventualmente
ocorra, é notável o seu caráter pontual, corretivo, esparso, eventual, fragmentário, nãosistematizado e descomprometido com a sua finalidade precípua.
Quanto a esta finalidade, que é a conscientização e a mobilização popular no sentido
de despertar uma nova visão de mundo que, contando com uma disciplina específica para
melhor poder abordar e aprofundar os temas inerentes, sem com isso descartar outras
disciplinas e, nesse âmbito, podendo valer-se da interdisciplinaridade, para inter-relacioná-las,
é cabível depreender-se a possibilidade da utilização concomitante da transdisciplinaridade,
enquanto analisados os temas ambientais sob todos os enfoques possíveis, para além das
fronteiras de toda a ciência, desejo, ideologia e ética.
Prima-se, pois, por uma atuação estatal que promova uma educação ambiental,
através de uma efetiva política pública, que concretize os objetivos de análise crítica e
emancipatória do meio e da realidade existentes, que permeie os horizontes até então não
desvendados por uma visão mundana atrelada ao capital, ao individualismo, ao ter, ao
consumo desenfreado, criação de necessidades desnecessárias, desperdício e carente de
conscientização e atuação conjunta para o bem coletivo, inclusive para o do planeta Terra.
184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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187
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL: CONSEQUÊNCIAS1
ARBITRARY ADMINISTRATIVE EMBARRASSMENTS IN
SOCIAL SECURITY PROCEDURES: IMPLICATIONS
Carlos Luiz Strapazzon2
Maria Helena Pinheiro Renck3
RESUMO – A dignidade da pessoa humana é o elemento moral nuclear do sistema de
valores sociais do Brasil. É também um bem jurídico, nuclear, que fundamenta a validade de
todo o sistema brasileiro de direitos humanos e fundamentais. O direito previdenciário,
enquanto subsistema de direitos fundamentais, existe para proteger e promover, por meio de
prestações pecuniárias a dignidade da pessoa humana. Este trabalho explica que embaraços
jurídicos injustificados que impedem o acesso, ou a manutenção, de benefício previdenciário
afetam não só a esfera patrimonial do titular segurado, mas também a extrapatrimonial. O
trabalho reconhece que o atual esquema de restabelecimento de benefício previdenciário
injustificadamente suspenso, ou a concessão do benefício devido (ainda que a destempo), é
providência juridicamente adequada e necessária para efeitos de reparação. O texto sustenta, por
outro lado, que esse modelo de proteção da eficácia dos direitos fundamentais previdenciários se
enquadra no conceito de proteção insuficiente. O método de abordagem do problema foi o
analítico-conceitual, posto que embasado em pesquisa teórico-conceitual. A teoria de base e a
metodologia de abordagem são derivadas da dogmática dos direitos fundamentais, tal como
concebida por Robert Alexy. Como conclusão principal, formula-se a tese jurídica de que a
indenização por danos morais deve ser reconhecida como consequência jurídica válida e
necessária no âmbito dos direitos previdenciários, haja vista que é meio adequado e necessário
para aprimorar a eficácia protetiva dos direitos a benefícios sociais previdenciários.
PALAVRAS-CHAVE
Fundamentais Sociais.
-
Dano
moral.
Direito
Previdenciário.
Direitos
ABSTRACT - The dignity of the human person is the moral and central element in the
Brazilian social values system. It is also a legal and main good, which ensure the reliability of all
the components that surround the Brazilian system of human rights. The social security law, as
an important part of the fundamental rights, works to protect and promote, through monetary
benefits the human dignity. This paper explains that unjustified legal obstacles prevent the
access or the maintenance of the benefits in the social security, not only by affecting the equity
in the social security holder, but also affecting all the facts that surround it. The research
1
Este texto foi desenvolvido como parte das atividades do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais
Sociais do PPGD, mestrado em direitos fundamentais da Unoesc. Os autores agradecem aos
pesquisadores integrantes do grupo pelas críticas e sugestões oferecidas, em especial à pesquisadora
Silvana Barros da Costa.
2
Pós-doutorando em Direito (PUC-RS). Doutor em Direito (UFSC). Professor do PPGD-Unoesc,
Mestrado em Direitos Fundamentais. Coordenador do projeto de pesquisa em Direitos Fundamentais de
Seguridade Social no PPGD-Unoesc. Editor-Chefe da Espaço Juridico Journal of Law [EJJL] - Qualis B1.
Professor da Universidade Positivo (UP); Professor das Faculdades Dom Bosco. email:
[email protected]
3
Mestranda em Direitos Fundamentais (Unoesc). Especialista em Direito Previdenciário; Pós-graduanda
em Direito Constitucional e Novos Direitos. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais
sociais do PPGD|Unoesc. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Sócia do Escritório
Pinheiro & Renck Advogados Associados. Maravilha – SC. Esta pesquisa tem o apoio financeiro do
Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior - FUMDES, coordenado
pela Secretaria de Estado da Educação - SED, de Santa Catarina. [email protected].
188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
recognizes that the current restoring law of social security benefits is not trustful, or in the
granting of the due benefit (for being out of time), is legally appropriate and necessary. The
investigation argues, however, that the protection efficiency model in the fundamental rights
of social security is characterized for being an insufficient protection. The approach method to
the problem used in the document was an analytical-conceptual method, since was made
following a theoretical and conceptual research. The basic theory and methodology was taken
from the fundamental rights dogmatic approach, as it was conceived by Robert Alexy. As main
conclusion, the thesis formulates that legal indemnification for moral damages must be
recognized as legal and necessary consequence under the social security rights, taking on count
that it is appropriate and necessary in order to enhance the protective effectiveness of the
social rights.
Key Words. Moral Damage. Social Security. Fundamental social rights
1 INTRODUÇÃO
O direito a benefício previdenciário é um direito fundamental social. O propósito
de sua existência é proteger o titular contra os riscos básicos da sobrevivência, tais
como a carência de bens relacionados com a própria subsistência e à saúde (alimentos,
medicamentos). Benefícios previdenciários, por isso, resguardam o mínimo vital de seus
titulares. Mas não é só. Benefícios previdenciários são reconhecidos pelo sistema
internacional de direitos fundamentais como bens jurídicos indispensáveis para garantir,
também, a existência (vida no trabalho, convivência em sociedade). Disso se segue,
adicionalmente, que embaraços injustificados à concessão ou à manutenção dos
benefícios previdenciários expõem o segurado a situações extremamente graves. Não só
a autonomia (aptidão para o trabalho e para a vida em sociedade), mas também a saúde
física de pessoas expostas a riscos especiais da sobrevivência digna ficam sobreexpostos
à ocorrência de danos irreparáveis. A rigor, embaraços injustificados a direitos
prestacionais fundamentais de seguridade social afetam severamente a dignidade de
seus titulares na medida em que afetam a dignidade da sobrevivência e da existência (as
condições mínimas) de seus titulares. No estudo dos embaraços injustificados ao
exercício dos direitos fundamentais previdenciários é indispensável considerar-se, em
primeiro plano, que a principal finalidade desses direitos prestacionais sociais é a
proteção da dignidade da pessoa humana nessa dupla dimensão: vital e existencial. Em
segundo plano, que os danos causados pela obstrução de acesso a esses bens jurídicos
fundamentais não podem ser reparados do mesmo modo como são os danos causados a
outros bens jurídicos não diretamente relacionados com a dignidade. Assim, não é
correto o entendimento corrente de que a mera restituição, reajustada, das parcelas não
pagas no momento devido é o meio adequado para assegurar uma justa compensação.
189
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Neste texto sustenta-se que a violação do direito à dignidade por embaraços
injustificados ao exercício dos direitos a prestações de benefício previdenciário é
conduta que gera, para seus titulares (1) o direito de restituição reajustada das parcelas
não prestadas, (2) indenização por danos morais. Este trabalho sustenta, ainda, que a
imposição da reparação do dano moral nas circunstâncias de comprovado embaraço
injustificado na concessão ou manutenção do benefício previdenciário é meio
juridicamente adequado, inclusive, para prevenir violações à dignidade da pessoa
humana.
2 OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL
POR OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Direitos previdenciários fazem parte da categoria geral dos direitos
fundamentais. Todos os direitos fundamentais resguardam e promovem a dignidade da
pessoa humana, fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Nessa configuração,
os direitos previdenciários representam a garantia de vida digna daquele segurado do
Regime Geral de Previdência Social que, acometido por uma contingência prevista em
lei, não apresenta condições de se manter, nem à sua família, através de sua força de
trabalho. Essa possibilidade socorrerá também o seu dependente.
Em tal cenário, o sistema brasileiro de Seguridade Social, por via da Previdência
Social, apresenta-se como uma seguradora pública, com o papel de garantir a
sobrevivência (elemento vital) e a qualidade mínima de vida (elemento existencial) da
dignidade do segurado, ou de seu dependente, por meio de prestações pecuniárias
mínimas denominadas de benefícios previdenciários. Enquanto meio de proteção da
dignidade em situação de risco, o direito previdenciário é um instrumento de guarda dos
direitos fundamentais da pessoa humana (SAVARIS, 2011a, p.60). Tal função essencial
exige especial cautela para que a concessão e a manutenção dos benefícios não sejam
embaraçados por motivos desarrazoáveis ou injustificados (CAMPOS, 2011, p. 79).
Muito embora a correta interpretação dos direitos fundamentais sociais aponte para essa
direção, a experiência revela que as relações entre titulares de direitos previdenciários e
Estado tem sido pautadas por graves situações de violação de expectativas legítimas
(STRAPAZZON, 2012, pp. 134-5) dos segurados. Uma hipótese freqüente é a seguinte:
o titular, segurado da previdência social, preenche todos os requisitos necessários ao
recebimento do benefício do auxílio-acidente, ou do auxílio-doença ou da aposentadoria
190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
por invalidez. Sua circunstância fática, embasada em laudos de médicos especializados,
é de incapacidade laboral, que poderá ser total ou parcial, temporária ou permanente.
Este titular hipotético, cumprido os demais requisitos legais indispensáveis, tem direito
adquirido ao recebimento do benefício correspondente. Muito embora esse
entendimento jurídico seja lógico e, sobretudo correto, mesmo assim, por embaraços
administrativos injustificados, muitos titulares não recebem, in concreto, a prestação
pecuniária correspondente. Isso pode advir do erro médico pericial, de má exegese de
leis, de inobservância de súmulas, de extravio do processo administrativo, de
descumprimento de decisão dos órgãos recursais (MARTINEZ, 2009, p. 151), ou ainda
de descumprimento ou procrastinação do cumprimento de decisões judiciais, de
suspensão indevida ou de cancelamento indevido do benefício4, não apreciação do
pedido5, ou de outras possibilidades. Casos assim frequentemente expõem a pessoa uma
situação dramática: tem de sobreviver com retorno ao trabalho, apesar de estar sem
condições adequadas de saúde; ou terá de apelar para a caridade alheia ou, o que é ainda
mais grave, da mendicância.
Se laudos médicos sérios são apresentados pelo titular do benefício
previdenciário para embasar, por exemplo, a condição de incapacidade para o trabalho,
e se todos os demais requisitos legais para obtenção da prestação previdenciária devida
estão cumpridos, então embaraços administrativos são injustificados sempre que o INSS
recusa a prestação devida.
A prestação previdenciária se refere ao ―
direito de não depender da misericórdia
ou auxílio de outrem‖ (SAVARIS, 2011a, p. 60) e aquele que, tendo direito ao benefício
previdenciário, não o recebe ou o tem cessado de forma indevida, vindo a depender da
misericórdia dos outros para sobreviver, sofre uma ofensa irreparável à dignidade de sua
condição de pessoa humana.
Na condição de núcleo essencial dos direitos fundamentais, a dignidade da
pessoa humana deve ser sobreprotegida pelo sistema jurídico. Se os direitos
fundamentais visam resguardá-la, qualquer embaraço injustificável a exercício de um
direito fundamental é também uma ofensa desarrazoada à eficácia dos bens jurídicos
mais importantes da ordem jurídica e, portanto, inadmissível em direito (SAVARIS,
2011a, pp. 264-266). A dignidade da pessoa humana, em sua dupla dimensão,
4
Ver, TRF2, AC 422880 2007.51.51003972-1 DJ 18/02/2009; TRF4 AC 2000.70.06.000998-8, D.E.
23/06/2008.
5
Ver, TRF4, APELREEX 5008427-06.2011.404.7003.
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
ontológica e relacional (SARLET 2009, p. 25), é elemento inerente do conteúdo do
direito fundamental previdenciário, sem o qual esse direito se desnatura. É o que
permite ao titular do direito a satisfação daquele interesse que o referido direito tem o
condão de satisfazer (SAVARIS, 2011a, pp. 264-266). Uma vez esvaziado esse
conteúdo essencial do direito previdenciário, não será possível qualquer forma de
restauração do status quo ante. Com base nisso, sustenta-se que qualquer restrição à
eficácia de um direito fundamental previdenciário jamais poderá ultrapassar essa linha,
isto é, a do limite imposto pela dignidade da pessoa humana, pois sem a devida proteção
da dignidade, o dano torna-se irreparável e a ordem jurídica compromete a sua
legitimidade (SARLET, 2011 a, p. 108-109).
Esta perspectiva permite a compreender que o direito previdenciário – como
qualquer outro direito fundamental - deve ser protegido das arbitrariedades que afetam
seu exercício regular. Só assim esse direito pode cumprir seu papel de instrumento da
concretização, efetivação, da dignidade da pessoa humana. Mantido o núcleo,
promovido seu conteúdo mínimo (vital e existencial), estará preservada a vida e
existência da pessoa, quando afetada por um infortúnio que lhe impeça de garantir a
sobrevivência própria, e dos seus, por sua força de trabalho. Nesse contexto é que as
prestações previdenciárias se mostram como pressupostos do direito de existir
condignamente, livre de adversidades desumanas.
A liberdade real só pode ser exercida pela pessoa com recursos
mínimos para sobreviver, planejar sua vida e dela fazer algo valioso.
Se a liberdade física, traduzida no direito de ir e vir, é vista como uma
inegociável expressão da dignidade humana, da mesma forma a
liberdade real, em oposição à liberdade formal, deve ser pensada como
um direito inalienável do ser humano, o direito de ir e vir, e viver. De
que liberdade se fala afinal quando o indivíduo é cercado pela
destituição, subnutrição e apenas com esforço extraordinário consegue
―v
ender sua força de trabalho‖ para prover seu sustento imediato?
(SAVARIS, 2011 a, p. 88).
E nesta seara Wania Campos (CAMPOS, 2011, p. 70) destaca que os embaraços
injustificados que impedirem o segurado, ou o dependente deste, de receber o benefício
a que faz jus, configuram lesão à necessidade de alimentos e agressão à órbita
psicológica e psíquica, pois afetam justamente as necessidades vitais básicas da pessoa.
Assim, os embaraços administrativos injustificados relativos ao recebimento das
parcelas dos benefícios previdenciários constituem-se num tormento a mais (CAMPOS,
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
2011, p. 79), o que atenta contra a razoabilidade e, portanto, contra a própria ideia de
exercício regular de um direito.
Essa questão dos efeitos da privação injusta das prestações previdenciárias sobre
a vida do segurado e de sua família é amplamente referida pela doutrina previdenciária:
são sobretudo, efeitos de natureza psicológica, ligados à segurança
econômica e à estabilidade pessoal proporcionadas pela segurança
social, susceptíveis de evitar a angústia de um futuro incerto, quando
os efeitos danosos dos riscos sociais atingem as pessoas, por vezes
com particular violência (SAVARIS, 2011a, p. 293).
Contudo não é somente neste sentido, de um sentimento de pesar, de injustiça
ou inferiorização pelo desprezo da sociedade, não é apenas neste campo das emoções
que o dano moral previdenciário deve ser concebido. Estes sentimentos são
consequências da lesão, e podem se manifestar, como frequentemente ocorre, ou não, o
que não é raro. É que, o titular de direitos previdenciários tem algumas singularidades:
ele nem sempre, por sua condição social pessoal, que teve seu pedido recusado por
embaraços injustificados, tem entendimento da natureza da lesão que sofreu, porque
sequer sabe quais são e qual é a extensão de seus direitos.
O dano moral é justamente aquele que não pode ser medido porque atinge o
núcleo do direito fundamental, o elemento básico e inerente à pessoa, a substância da
dignidade. Nesse contexto, impedimentos arbitrários ao recebimento das prestações
previdenciárias devidas que afetarem a possibilidade de manutenção da vida digna,
afetam a capacidade de autodeterminação da pessoa e a sua existência condigna com os
demais, causando, pelo menos, dois tipos claros de danos: por um lado o dano
patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá privação de bens materiais vitais;
e por outro o dano moral, visto que regularmente haverá ofensa à dignidade da pessoa,
resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a saúde,
a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial. Esses bens jurídicos
fundamentais são afetados direta ou indiretamente, pelos embaraços administrativos
injustificados.
Nesse contexto há diversas possibilidades de ofensa à dignidade da pessoa por
vícios na concessão e manutenção do benefício previdenciário. Ao se tratar da análise
do direito concernente às prestações previdenciárias, há que se ter em mente que, não se
está tratando de ciência exata, e nesse caso é indispensável considerar que ―
a verdade a
ser alcançada deverá ter o homem e sua contingência de destituição e de ameaça à
193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
sobrevivência como referência primeira.‖(SAVARIS, 2011a, 47) Então, tendo em
primeiro plano tais aspectos é que se verifica a peculiaridade de cada caso a fim de
verificar se o núcleo do direito fundamental em questão, foi atingido, e a possibilidade
de se considerar o dano moral como caminho que garanta o não desprezo por essa lesão.
O ponto de partida da análise pode ser a fórmula proposta por Ingo Sarlet
(SARLET 2009, p. 34), para quem a dignidade da pessoa humana pode ser considerada
atingida sempre que a pessoa é tratada como coisa, objeto, mero instrumento,
descaracterizada como pessoa enquanto sujeito de direitos. Sendo então a qualidade de
sujeito de direitos menosprezada, também restará configurada lesão à dignidade da
pessoa humana. Ingo Sarlet observa que apesar de essa fórmula não representar solução
para todos os casos, representa um modo inicial de identificar, no caso concreto, se
houve ou não agressão à dignidade da pessoa humana (SARLET, 2011a, p.103)
A ciência dogmática dos direitos fundamentais já assentou que a verificação de
uma lesão à dignidade humana pode ocorrer pela análise do objetivo da conduta, que
tem dois rumos possíveis: (1)a intenção de coisificar a pessoa, tal como acima descrito
(SARLET, 2011b, p. 63), ou — e isso é o que mais importa no contexto dos direitos
sociais prestacionais — (2) o desprezo por sua condição de titular de direitos subjetivos.
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver
respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde
as condições mínimas para uma existência digna não forem
asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a
liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os
direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente
assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e
esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de
arbítrio de injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto,
constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana
(SARLET, 2009, p. 35).
O que é transparente é que a dogmática jurídica da atualidade, sobretudo a
especializada no tema da proteção da dignidade da pessoa humana, não concebe a
manutenção da pessoa num quadro de exclusão social, sobretudo num quadro de
arbitrário de exclusão (STRAPAZZON 2011, 52). Neste sentido a posição de Sarlet:
A pobreza configura violação da dignidade da pessoa humana sempre
que ela implica em exclusão e déficit efetivo da autodeterminação.
Isso se verifica ―
sempre que as pessoas são forçadas a viverem na
pobreza e na exclusão, em função de decisões tomadas por outras
pessoas no âmbito dos processos políticos, sociais e econômicos‖
(SARLET, 2011b, p. 113)
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Esse é, precisamente, o cenário que decorre do arbitrário indeferimento do
benefício previdenciário, ou da sua arbitrária cessação/cancelamento.
Negar arbitrariamente ao titular de um direito fundamental subjetivo os recursos
necessários para que viva condignamente, tal como o benefício que lhe socorra quando
não tem mais condições de prover o sustento, corresponde, in concreto, a expô-lo a
grave risco de morte por inanição (SARLET, 2011a, p. 348), de viver em condições de
miséria ou de depender, de modo humilhante, da caridade alheia. A lesão ao direito
fundamental, à realização da expectativa imperativa de ter uma vida digna (em sua
dimensão vital e existencial mínimas), à característica da pessoa de ser sujeito de
direitos, é facilmente verificada em tais situações.
Normalmente os vícios que ferem o direito ao benefício previdenciário também
atingem outros direitos fundamentais, tais como o fundamental direito à manutenção da
vida, a liberdade, a saúde, integridade física, intensificando a lesão à dignidade da
pessoa humana. Todos os direitos fundamentais visam cada um e todos, em interação, a
Dignidade da Pessoa Humana. Não se isolam, mas se completam. A substância da
dignidade da pessoa humana, além de compor o núcleo, compõe os capilares que unem
os direitos fundamentais. Assim, se houver lesão à dignidade humana por lesão ao
direito fundamental previdenciário, pode haver também a lesão a outros direitos
fundamentais, afetando a dignidade – núcleo destes.
É por isso que, no caso da injusta cessação, cancelamento ou indeferimento de
benefício previdenciário por incapacidade, verifica-se também lesão à saúde e à
integridade física, à liberdade, e à igualdade. E, como observa Sarlet, a dignidade da
pessoa humana abrange a proteção da integridade física e corporal do indivíduo
(SARLET, 2011a, p. 103), tal qual ocorre com a liberdade e com a igualdade. Essas são
razões jurídicas bastante bem estabelecidas na dogmática dos direitos fundamentais e na
jurisprudência dos direitos sociais, em âmbito nacional e internacional (LANGFORD,
2009; LANGFORD, 2009a). Então, quando sem condições de sustentar-se devido à
incapacidade decorrente de doença, e sem receber a prestação do seguro que lhe deveria
acudir em tal situação, o segurado regularmente é posto em situações econômicas muito
desfavoráveis. E, se a causa desses eventos danosos forem decisões arbitrárias do
Estado, está configurada a responsabilidade civil do Estado.
É inegável que o sofrimento atinge a pessoa que passa pelo processo
de dessocialização progressivo e enfrenta o medo quanto à
subsistência. Afinal, como observa Christophe Dejours, psiquiatra e
195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
psicanalista francês, especialista em psicologia do trabalho, ―ésabido
que esse processo leva à doença mental ou física, pois ataca os
alicerces da identidade‖ (SAVARIS, 2011b, p.303).
O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução 1488/1998, expressou
seu entendimento oficial, segundo o qual considera atentatório à dignidade da pessoa
forçar alguém a trabalhar se estiver doente. O médico do trabalho, em casos de
necessidade, deve recomendar o repouso, o acesso a terapias ou o afastamento de
determinados agentes agressivos. Tudo isso faz parte das preocupações do CFM para
assegurar uma relação harmônica e respeitosa entre atividade laboral e integridade física
e moral dos trabalhadores. Retornar ao trabalho ou continuar as atividades,quando
impera a necessidade de afastamento, por absoluta falta de opção pode agravar o quadro
clinico do segurado; além do mais, em muitos casos de trabalhadores comissionados,
repercute também na renda, pois é inegável que os resultados possíveis de serem
alcançados por uma pessoa saudável e por uma pessoa incapaz são muito díspares. A
economia da família é afetada. A segurança da continuidade do emprego também é
atingida. Como se verifica, a negativa do direito ao benefício pode trazer consequências
morais e materiais muito graves.
Este panorama permite que se possa inferir de imediato que somente as
prestações do benefício devido, se vierem a ser restabelecidas, ou concedidas,
tardiamente, não podem recompor a dignidade da pessoa afetada por embaraços
arbitrários. O dano à dignidade não pode mais ser desfeito em tais situações.
A afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos
fundamentais e, de um modo especial, do direito ao benefício previdenciário, tem de ser
apreciada nas demandas judiciais previdenciárias. Como se sustenta aqui, esses são
casos em que é cabível a indenização por dano à moral e à personalidade do segurado.
A partir disso, é necessário que o Poder Judiciário considere, na análise das
impugnações que questionam a validade a atos administrativos que indeferem pedido de
benefício previdenciário, ou que indevidamente o cancelam ou suspendem, tanto a
natureza arbitrária do ato, quanto suas repercussões na esfera da dignidade da pessoa
(em sua extensão mínima, ou seja, de mínimo vital e existencial).
Esse é o meio correto de a jurisprudência aprimorar a proteção da dignidade da
pessoa e da eficácia dos direitos sociais prestacionais. A compreensão refinada da
extensão do dano permitirá avaliar a intensidade da agressão.
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Ademais, e inevitavelmente, outros direitos fundamentais estão diretamente
ligados ao direito ao benefício previdenciário, tal qual o direito à vida, a saúde, a
liberdade, a intimidade, por exemplo. A consideração da agressão através de um direito
fundamental não exclui a causada pela lesão a outro direito fundamental. Isso significa
que danos à dignidade da pessoa no âmbito previdenciário não dependam da existência
de lesão a outros direitos fundamentais. Caso isso ocorra, é o grau da agressão que se
agrava, não a natureza da agressão. Portanto, sempre que isso ocorrer, deve o Poder
Judiciário levar em conta a extensão do dano e dosar, proporcionalmente, o quantum
indenizatório. O dano, por isso, sempre deve ser avaliado caso a caso (ALEXY, 2008,
p.295-296; SARLET, 2011b, p. 145), pois a precedência da dignidade da pessoa
humana sempre é aferida na situação fática, da pessoa diretamente atingida.
3. EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS
Um exemplo de ato capaz de trazer dano à dignidade, resultando em dano moral,
é a perícia equivocada. Aqui, é útil recorrer ao depoimento de um dos mais experientes
previdenciaristas do Brasil:
a prática diuturna mostra que, além da rapidez, da sumariedade e da
singeleza dessas perícias, em alguns casos, são negados benefícios por
julgar o perito estar o trabalhador apto e, noutras hipóteses, eles são
concedidos para quem tem condições de trabalhar. (...).(MARTINEZ,
2009, p. 151).
Outra possibilidade é a negativa de entregar o direito à pensão ou ao auxílio
reclusão por não reconhecer a união estável ou a filiação. Esta situação além de cercear
o acesso à verba alimentar, pode se apresentar como vexatória, comprometendo as
relações sociais (CAMPOS, 2011, p. 150).
Martinez (MARTINEZ, 2009, p. 130), menciona como fato possível de lesar a
moral do segurado, a concessão tardia do benefício, a qual supera os 45 dias da entrega
da documentação necessária ao INSS, pois tal conduta submete o segurado aos
sofrimento e às necessidades. Frisa o autor que isso pode assumir maior dimensão a
depender da situação concreta e do tempo que levar a implantação.
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A dignidade do segurado poderá ser atingida também pela falta de orientação da
autarquia previdenciária em relação à melhor cobertura securitária cabível6. A entrega
da prestação menos vantajosa resulta em prejuízo material ao segurado, que
frequentemente o expõe a dificuldades pelas quais não precisaria passar. (MARTINEZ,
2009, p. 155)
A recusa do protocolo de pedido além de ferir o direito à informação e à petição,
pode submeter o segurado à agonia, à angústia, à decepção e ao não acesso ao órgão
público (MARTINEZ, 2009, p. 140), privando-lhe da prestação a que faz jus.
Estas situações e muitas outras que representem embaraços injustificados
poderão causar não somente lesões matérias, como também ferir a dignidade do
segurado.
A análise sistêmica do caso concreto, máxime segundo interpretação que vise à
preservação e promoção da dignidade da pessoa humana, é que possibilita a verificação
ou não do dano moral.
Apesar de já aparecer em julgados de vários Tribunais pátrios, esse tipo de dano
moral ainda é tratado de forma tímida, não obstante a expressa proteção legal aos
direitos fundamentais, à dignidade humana e a concepção dada a este valor maior. No
Tribunal Regional da Segunda Região os danos morais se tornaram evidentes no
julgamento da Apelação 200351010148011, devido ao cancelamento equivocado do
benefício por suspeita de óbito do segurado. Também há condenações por dano moral
no âmbito do direito previdenciário no Tribunal Regional da Quarta Região, como foi o
caso da APELREEX 5003997-17.2011.404.7001. Neste julgado o INSS foi condenado
a pagar danos morais ao segurado por ter cessado indevidamente seu benefício de
aposentadoria. Este Tribunal, no APELREEX 5008427-06.2011.404.7003, também
considerou devida indenização por dano moral porque a autarquia não apreciou o
pedido de um dependente num processo de obtenção de pensão por morte:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. DEPENDENTE
FILHO MENOR DE 21 ANOS. BENEFÍCIO DEFERIDO À
COMPANHEIRA QUE FORMULOU CONJUTAMENTE COM O
AUTOR REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. CONCESSÃO A
CONTAR DA DATA DO ÓBITO. DANOS MORAIS EM FUNÇÃO
DO EQUÍVOCO ADMINISTRATIVO CONSISTENTE EM
DESCONSIDERAR
O
PEDIDO
DO
AUTOR.
1. A concessão do benefício de pensão por morte depende da
ocorrência do evento morte, da demonstração da qualidade de
6
Ver Enunciado CRPS nº 5 e o Prejulgado 1 da Portaria MTPS nº 3.286/73.
198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
segurado do de cujus e da condição de dependente de quem objetiva a
pensão.
2. É presumida a condição de dependência do autor, filho do exsegurado e menor de 21 anos.
3. Preenchidos todos os requisitos, o demandante faz jus à cota parte
da pensão inicialmente deferida apenas à companheira do instituidor, a
qual formulou pedido administrativo na mesma ocasião em que o
autor, com termo inicial fixado na DIB (data do óbito).
4. O dano moral restou caracterizado pela omissão da autarquia
consistente em não apreciar o pedido administrativo do autor, presente
o nexo de causalidade entre a indevida inércia do serviço público e o
abalo psíquico vivenciado, e mantendo-se o valor da indenização de
forma adequada fixado pelo juízo a quo. (TRF4, APELREEX
5008427-06.2011.404.7003, Quinta Turma, Relatora p/ Acórdão
Maria Isabel Pezzi Klein, D.E. 06/02/2013)
A despeito da evolução desses valores na ordem nacional e internacional, tudo
leva a crer que as medidas adotadas até aqui não têm alcançado efetividade.
Infelizmente, como bem descreve Ingo Sarlet, mesmo no âmbito dos direitos de
primeira dimensão a efetivação está longe de ser considerada satisfatória, ―
a vida, a
dignidade da pessoa humana, liberdades mais fundamentais continuam sendo
espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo um
arcabouço de instrumentos jurídico-processuais e garantias constitucionais.‖(SARLET,
2011a, p.55).
Deste modo a ação de danos morais na esfera do direito a benefício
previdenciário pode ser admitida como decorrente de uma nova forma de proteção da
dignidade da pessoa humana, necessária a resguardá-la e restaurá-la dos embaraços
administrativos ligados à concessão ou à manutenção de benefícios, os quais expõem o
segurado injustamente à situação ainda mais gravosa dada a contingência que enfrenta.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
As lesões no âmbito do direito previdenciário tem a particularidade de serem
causadas pelo Estado. Isso revela uma inaceitável contradição com a visão
contemporânea de Estado Constitucional e democracia. É preciso estar atento para o
―
direito por princípios‖ do estado constitucional contemporâneo; e essa mudança
estrutural do direito tem que comportar, necessariamente, conseqüências muito sérias
também para a jurisdição (ZAGREBELSKY, 2007, p. 112). Kloepfer (KLOEPFER,
2009, p. 163) considera, por isso, especialmente cruel a lesão ocorrida quando o Estado
199
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
fere seus deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais, como no caso da
instituição pública que deixa de seguir as prescrições procedimentais que o Estado
elegeu para colocar em prática seu dever de proteção à vida e à intangibilidade física.
No âmbito previdenciário, a especial crueldade de que fala Kloepfer é bem
saliente. Não se pode esquecer que as relações jurídicas previdenciárias são marcadas
por contrastante disparidade de forças entre as partes envolvidas numa relação de
direitos e deveres (MARTINEZ, 2009, p. 29). Num dos pólos, estão os ―
frágeis,
desinformados
e
desamparados
cidadãos
buscando
meios
de
subsistência‖
(MARTINEZ, 2009, p. 23), e no outro o INSS, gestor da previdência social, entidade
pública, Estado em sentido amplo, e que assim, dispõe de todas as informações hábeis a
conduzir à concessão da prestação pretendida (SAVARIS, 2011a, p. 65).
no mais comum dos casos os beneficiários da seguridade social são
pessoas humildes, hipossuficientes culturalmente, sem noção de
cidadania e dos seus direitos, que aceitam de cabeça baixa imposições
descabidas, recusas indevidas, humilhações desnecessárias
(MARTINEZ, 2009, p. 69).
Como se vê, até mesmo a doutrina reconhece que os destinatários da proteção
previdenciária não tem sequer consciência do tipo de lesão que estão sofrendo. Logo por
isso é que o litígio com o INSS se torna um grande pesadelo; nem o direito de reparação
advinda da afronta patrimonial, nem da compensação pela agressão moral são
devidamente compreendidos como direitos subjetivos desses titulares. Os danos, de um
modo geral, são suportados pelos segurados, até mesmo porque o órgão que detém o
dever de zelar pelo seguro social goza de uma presunção de competência técnica que o
segurado hesita em questionar.
Nesse contexto destaca-se a máxima da proibição de proteção insuficiente como
um dever do Estado para com a eficácia dos direitos sociais prestacionais. Assume
particular ênfase no plano da dimensão positiva dos direitos fundamentais (SARLET,
2011a, p. 358).
A administração não pode esquivar-se de seu papel central de
sustentação do sistema. (...) Também é sua responsabilidade gerar
uma rede público-privada que confira respostas às necessidades da
sociedade como um todo. (...) Uma vez engendradas as políticas
públicas voltadas à promoção dos direitos fundamentais – sobretudo
daqueles de caráter social -, é por intermédio do exercício da função
administrativa que o Estado irá efetivar tal direito. (OLIVEIRA, 2007.
p. 324-325)
200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Como os objetivos gerais da República estabelecidos no Art. 3o. do texto
constitucional do Brasil indicam que Estado e sociedade devem estar orientados por: I –
construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduziras desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação as funções estatais legitimam-se como instrumento de realização e tutela
da dignidade da pessoa humana. Isso vai pautar a função administrativa, a qual deve ser
desempenhada de forma que as decisões tomadas efetivem aquele ideal constitucional
(OLIVEIRA, 2007,pp. 324-325).
Desta forma a pessoa lesada pelas arbitrárias ações ou omissões que lhe
oneraram física, moral ou pecuniariamente, ficam, ipso facto, investidos de poderes para
defesa dos interesses violados. Eis que compete ao Direito preservar a integridade moral
e patrimonial das pessoas em sua busca incessante por uma vida feliz (BITTAR, 1998,
p.15), o que só é possível ante a concretização da dignidade.
Como bem salienta Goldschmidt, a vida e a dignidade humana são direitos da
personalidade e assim, ante a lesão ou ameaça de lesão pode-se promover medidas para
que cesse a lesão ou a ameaça, sem prejuízo ainda a outras sanções (GOLDSCHMIDT,
2010, p. 213).
A responsabilidade do Estado por danos causados por embaraços arbitrários ao
exercício de direitos subjetivos previdenciários, é hipótese formalmente estabelecida no
direito brasileiro. Seu fundamento constitucional é a previsão do artigo 37§ 6º da
Constituição da República de 1988, segundo o qual o Estado responde objetivamente
pelos atos de seus agentes que, nessa qualidade, causem danos, materiais ou morais, a
terceiros, seja por ação ou omissão. A disposição constitucional é repetida no estatuto
básico das relações privadas (Art. 43 do Código Civil) e a reparação civil vem no artigo
186 e 927 do mesmo Código. O Estado deverá reparar ou indenizar o prejuízo, e poderá
acionar o seu agente de forma regressiva.
Responsabilizar a União por ofensa à dignidade da pessoa humana no âmbito do
direito a benefício previdenciário, inclusive, é medida que tem respaldo no reconhecido
―
objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência‖,
reconhecido pela Emenda Constitucional 67/2010, que instituiu o Art. 79 do ADCT e
criou o Fundo de Combate e erradicação da pobreza; mas além disso a indenização por
danos morais se respalda na Carta Constitucional em outros dispositivos, em especial
nos seguintes: Art. 1o, III: que reconhece que a dignidade da pessoa humana é o
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
fundamento de validade da ordem republicana do Brasil; Art. 3o. I: que fixa o objetivo
de construção de uma sociedade justa; e no inciso IV, que veda qualquer forma de
preconceito neste país, dado que existe para proteger o bem de todos; Art. 4o. II, na
prevalência dos direitos humanos; e o pouco discutido Art. 85, III, que define a conduta
presidencial atentatória contra direitos sociais como crime de responsabilidade.
A responsabilidade objetiva do Estado vincula-se ao risco administrativo. Para
que haja responsabilidade é necessário que se demonstre a conduta do ente público,
negativa ou positiva, seja de omissão ou ação; o dano e o nexo causal entre tais
elementos. Além disso, é preciso que não haja excludente, representada por fato/culpa
da vítima ou de terceiro, caso fortuito ou força maior. Mas o resultado do efeito
preventivo e educativo, no caso do reconhecimento do dano moral tende a ser até
superior ao resultado reparador/compensador porque o reconhecimento dos danos
morais tem um papel social de desestimular futuras ofensas (MARTINEZ, 2009, p. 63).
Nessa senda a doutrina destaca a elevada importância da ação regressiva como meio de
efetivação desse caráter preventivo da responsabilização objetiva do Estado por danos
morais, sem o que as condutas individuais ilícitas e arbitrárias se repetirão.
a compensação em favor dos titulares do direito subjetivo violado,
sistematicamente empreendida em relação ao culpado da ação, com
alguma certeza produzirá o desaparecimento ou a minoração dessas
causas determinantes (MARTINEZ, 2009, p. 63).
Frisa-se que não se pode confundir a ação de reparação de danos morais atinente
ao vício na concessão ou manutenção de benefício previdenciário com a ação relativa à
obtenção ou restabelecimento do mesmo. As prestações visam acudir a pessoa quando
submetida a uma contingência. Os danos morais derivam da lesão à dignidade, advinda
do vício na concessão ou na manutenção do benefício. São de naturezas distintas
(CAMPOS, 2011, p. 131).
O dano em si é prejuízo, isto é afetação do ser humano. O dano moral
agride a pessoa ou os seus bens, ainda no âmbito da individualidade,
no que ela tem de mais relevante, a sua personalidade (MARTINEZ,
2009, p. 27).
A indenização pelo dano moral no âmbito do direito ao benefício previdenciário
buscará confortar as lesões à dignidade, concebidas como as lesões à capacidade de
autodeterminação. Obviamente que não significa, como se tem insistido neste trabalho,
a eliminação do prejuízo ou suas consequências, mesmo porque isso não é possível
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
(CAHALI, 2000, p.42). Também, cumprirá com o papel preventivo ao servir de
desestímulo à repetição da ação ou omissão lesiva, desempenhando uma função de
importância social, inibindo a repetição da conduta lesiva, incentivando a eficiência
devida ao órgão previdenciário público existente num país cuja totalidade dos objetivos
se guia pelo fundamento da dignidade da pessoa humana, tendo portanto a mesma, o
dever e a finalidade de promovê-la
5. QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO
Como ocorre em todos os temas implicados com a responsabilidade civil do
Estado, também aqui nas relações jurídicas previdenciárias é grande a dificuldade para
quantificar proporcionalmente a dor causada por embaraços administrativos arbitrários
violadores do direito fundamental à prestação securitária. Todavia, na concessão de
benefício previdenciário há contingências muito particulares, tais como a idade
avançada, a doença, as atividades profissionais que prejudicam a saúde, o longo tempo
de contribuição exigido, somados a fatores de especial agravamento de sofrimento, tais
como o dever de cuidar dos filhos, a gestação, a adoção, acidentes morte, reclusão.
Todas essas particularidades do sistema de direitos previdenciários ainda se deparam
com os limites administrativos e financeiros da administração pública (reserva do
possível). Logo se vê a complexidade do cenário que se antepõe à dosimetria do
quantum indenizatório. Todavia, diferente das relações civis entre iguais, os danos
causados pelo Estado, por atos arbitrários de indeferimento, decorrem de uma relação
evidentemente desigual, pois se trata de uma relação entre a pessoa política soberana vs.
o hipossuficiente. Ou seja, o poder soberano vs. o não poder.
O quantum indenizatório, em casos como esse, não pode ser dimensionado
segundo os critérios convencionais da responsabilidade civil a ponto de não se dar o
devido peso à fundamentalidade dos bens jurídicos implicados e a assimetria colossal
existente entre os titulares da relação jurídica (segurado vs. Estado); nem pode aviltar a
situação sofrida e o valer o risco da conduta, mas também não poderá inviabilizar o
ofensor. Porém, estas dificuldades não podem impedir a fixação do valor indenizatório
(CAMPOS, 2011, p. 119).
203
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
É preciso considerar que o ato ilícito que causou o dano à dignidade não é
bastante em si mesmo. Normalmente representa
o agravamento de uma situação em que o segurado e dependente já se
encontra debilitado física ou psicologicamente, por vezes das duas
formas. Logo, constituindo uma causa de aumento de um problema já
existente, deve impor uma reparação de certa monta que supere os
prejuízos materiais e morais do ofendido e evite a repetição do ato
lesivo por parte do ofensor (CAMPOS, 2011, p. 119).
O segurado do Regime Geral de Previdência Social que sofrer lesão à moral, no
âmbito do seu direito de obter benefício previdenciário tem direito a buscar a reparação
dos danos junto ao Judiciário. Esse direito a ser reparado encontra base na dignidade da
pessoa humana (MARTINEZ, 2009, p. 127). O critério hermenêutico da proteção
preferencial da dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário mais do que a
interpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, mas que esteja
presente o imperativo segundo o qual a única interpretação conforme a Constituição é a
que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas e, portanto, os
seus direitos fundamentais(PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71). Então, a interpretação
dos danos decorrentes de lesões ao direito previdenciário não pode restringir-se à mera
subsunção à lei.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito previdenciário é um direito fundamental social. As prestações de
caráter alimentar existem para garantir a vida digna dos seus titulares, quando afetado
por uma das hipóteses fáticas estabelecidas no texto constitucional. Neste papel, tal qual
os demais direitos fundamentais, o direito previdenciário resguarda e promove a
dignidade da pessoa humana.
Contudo, frequentemente o titular dos direitos fundamentais a prestações
previdenciárias é frustrado em suas expectativas imperativas devido a embaraços
administrativos injustificáveis, que impedem o acesso ou a manutenção das prestações.
Pela peculiaridade do direito previdenciário, tais embaraços podem afetar a
possibilidade de manutenção da vida digna, causando, pelo menos, dois tipos claros de
danos: por um lado o dano patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá
privação de bens materiais vitais; e por outro o dano moral, pela ofensa à dignidade da
204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
pessoa, resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a
saúde, a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial.
Este trabalho evidenciou que embaraços administrativos injustificáveis relativos
à entrega ou manutenção das prestações previdenciárias violam o direito de acesso ao
mínimo vital e ao mínimo existencial. Atos assim, porque lesivos à dignidade da pessoa
humana, são atos inconstitucionais.
Há que se considerar que a dignidade humana é elemento moral nuclear do
sistema dos supremos valores constitucionais do Brasil e bem jurídico que fundamenta a
validade de todo o sistema brasileiro de direitos humanos e fundamentais. Assim,
considerando um valor de tal importância, tem-se que as prestações pagas a destempo,
mesmo que corrigidas monetariamente, se mostram como uma forma de proteção
insuficiente à dignidade da pessoa humana. A indenização por danos morais, nesse
contexto, se mostra como um instrumento válido e indispensável no caminho que
percorre a eficácia protetiva dos direitos sociais previdenciários, com vistas à adequada
proteção.
Por isso a afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos
fundamentais e, de um modo especial, do direito previdenciário, tem de ser apreciada
nas demandas judiciais previdenciárias. Esse é o meio correto de a jurisprudência
aprimorar a proteção da dignidade da pessoa e da eficácia dos direitos sociais
prestacionais, uma vez que o critério hermenêutico da proteção preferencial da
dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário que a única interpretação conforme a
Constituição é a que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas
e, portanto, os seus direitos fundamentais (PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71).
Nesse contexto a responsabilização do Estado por danos morais decorrentes de
violação à dignidade da pessoa humana no âmbito do direito a prestações
previdenciárias,
nas
circunstâncias
de
comprovado
embaraço
administrativo
injustificado, é meio juridicamente adequado à reparação parcial e à prevenção de danos
à dignidade da pessoa humana.
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207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS
EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS
PROGRESSIVAS NO TEMPO
SOCIAL ROLE OF PRIVATE PROPERTY: DETAILS REQUIRED TO
MUNICIPALITY TO LEGITIMIZE THE PROGRESSIVE RATES ADOPTION OF
THE TIME
Hertha Urquiza Baracho *
Sulamita Escorião da Nobrega**
RESUMO: O texto versa sobre o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo
desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade
através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia
através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento.
Permite visualizar a função extrafiscal da tributação e verificar o entendimento da doutrina
acerca do tema, sobretudo quando a função interventora do Estado se efetua no sentido de
desestimular determinado comportamento aumentando a alíquota do tributo incidente sobre
ele. A tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via indireta de
atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora do
cumprimento da função social da propriedade.
Palavras-chave: função social; desenvolvimento; tributos.
ABSTRACT: This paper analyzes the role of the democratic rule of law in the pursuit of
development and reflects on the implementation of the principle of the social function of
property through the progressivity of taxes. Analyzes activity intervening in the economy
through taxation and the influence of the tax system in promoting development. Lets you
view the role of taxation “extrafiscal” and check for understanding of the doctrine on the
subject, especially when the function interventionist state takes place in order to discourage
certain behavior by increasing the rate of tax on it. The taxation when used for purposes
“extrafiscal”, is revealed as an indirect way of skillful performance of the State to effect the
constitutional principles and guaranteeing the fulfillment of the social function of property.
Keywords: social function; development; taxes.
*Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade de São Paulo-PUC. Professora
Associada III da Universidade Federal da Paraíba e Professora Titular do Centro Universitário
de João Pessoa-UNIPÊ. Coordenadora do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade,
desenvolvimento e cidadania ambiental perante o núcleo de Pesquisa do UNIPÊ.
**Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social
Argentino(UMSA) Buenos Aires. Professora Assistente do Centro Universitário de João
Pessoa/PB. Advogada. Membro do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade,
desenvolvimento e cidadania ambiental perante o Núcleo de Pesquisa do UNIPÊ.
208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
1. Introdução
O artigo aborda o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo
desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade
através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia
através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento. O
tributo além de ser uma forma de arrecadar receita para o Estado é também um meio de
estimular ou desestimular condutas econômicas praticadas por agentes sociais, através da
tributação extrafiscal do Estado.
Esta pesquisa pretende responder às seguintes indagações: A progressividade do
IPTU viabiliza o cumprimento da função social da propriedade? E quais os requisitos
necessários para legitimar a adoção da progressividade do IPTU no tempo?
O texto é relevante porque permite visualizar a função extrafiscal da tributação e
verificar o entendimento da doutrina acerca do tema, sobretudo quando a função interventora
do Estado se efetua no sentido de desestimular determinado comportamento aumentando a
alíquota do tributo incidente sobre ele.
Salienta-se que o método de abordagem escolhido para elaboração dessa
investigação foi o método dedutivo, iniciando-se pelo estudo da Constituição,
desenvolvimento, propriedade e função social, até a investigação da progressividade do IPTU
e dos requisitos exigidos do Município para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no
tempo.
Quanto à técnica de pesquisa para a coleta de dados, utilizou-se basicamente a
pesquisa bibliográfica.
2. Constituição, propriedade, função social e desenvolvimento.
Com o fim do constitucionalismo liberal, que afasta o Estado da atividade econômica
e entende a propriedade como um direito individual e um bem absoluto, surge o
constitucionalismo social.
As Constituições Sociais ou Econômicas elaboradas no Final da Primeira Guerra
Mundial marcam essa nova fase de constitucionalismo. As Constituições sociais assim como
as liberais possuem a declaração dos direitos individuais, mas as constituições sociais vão
mais além, dispõem sobre os direitos sociais, econômicos e culturais.
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A primeira Constituição Social ou Econômica foi a do México, de 1917, seguida da
Constituição de Weimar de 1919. A primeira dispõe, no art. 27, que “ A Nação terá, a todo
tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse
público”. Enquanto esta última, no art.153 afirma que „„A propriedade obriga e o seu uso e
exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social”. No Brasil, a
primeira Constituição Social ou Econômica foi a de 1934. É a partir desse momento que o
direito de propriedade abandona a concepção romanística clássica e passa a ter finalidades
sociais, coletivas. A noção de função social já estava presente implicitamente.
A função social da propriedade só apareceu como um dos princípios da ordem
econômica e social de forma explícita na Constituição Federal de 1967, art. 157.
“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos
seguintes princípios: (...) III- função social”.
A Constituição Federal de 1988 manteve a propriedade e sua função social como um
dos princípios conformadores da ordem econômica.
A propriedade é tratada na Constituição atual no art. 5º (incisos XXII, XXIII) como
direito fundamental e no art. 170, II e III, como princípio da ordem econômica, isso quer dizer
que o constituinte relativizou o conceito de propriedade ao condicioná-la à função social e ao
submetê-la à existência digna e à justiça social.
Oportuno realçar que a Constituição Federal refere-se a várias espécies de
propriedade, tanto que os autores falam em “propriedades”, e diversos são os seus regimes em
relação à sua função social. Da mesma forma, pode-se afirmar que não há uma única função
social, mas diversas funções sociais que variam de acordo com a natureza da propriedade. No
dizer de Silva, “onde ser cabível não falar em propriedade, mas em propriedades”.
Na Constituição Federal de 1988 várias são as espécies de propriedade: propriedade
autoral; propriedade de inventos; propriedade dos bens de família; propriedade dos bens de
produção; propriedade dos recursos minerais; propriedade urbana; propriedade rural.
Para Silva (2010, p.123) a função social é integrante do conceito de propriedade e a
mesma só existe se e enquanto realiza a sua função social. Comunga com o pensamento de
Pedro Escribano Collado: no entendimento de que a função social “introduziu, na esfera
interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e
que, em todo caso, é estranho ao mesmo”.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Grau (2007, p.346) entende que a ideia de função social dá à propriedade um
conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito. Para ele a propriedade dotada
de função social justifica-se pelos seus fins, seus serviços e sua função, sendo esta última a
sua base de legitimação.
A Constituição Federal brasileira de 1988 é uma Constituição Dirigente e
Desenvolvimentista. É dirigente porque é repleta de normas „‟programáticas, sociais ou
econômicas” (Bercovici, 2005). E é desenvolvimentista porque é extremamente minuciosa em
relação a implantação de um desenvolvimento sustentável. Proporciona a diferença entre
desenvolvimento e crescimento econômico diferentemente das Constituições da década de 60,
época em que não se fazia essa distinção e como consequência tinha-se o desenvolvimento
excludente.
Necessário realçar que a Constituição econômica brasileira não é parte isolada dentro
da Constituição total, e que deve ser interpretada em seu todo e nunca em tiras, como leciona
Grau. (2007, p.166)
E que a Constituição econômica atual não se restringe apenas aos Princípios Gerais
da Ordem Econômica, art.170, mas está presente em toda a Constituição. Já no Preâmbulo da
Constituição Federal de 1988 constata-se que o desenvolvimento é um dos fins do Estado
Democrático brasileiro. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
está no art. 3°, II, a busca pelo desenvolvimento nacional. Os incisos I, III e IV do mesmo
artigo também preconizam o desenvolvimento quando dispõem sobre a erradicação da
pobreza, das desigualdades e da promoção do bem de todos.
Para Celso Furtado (2008, p. 83), o desenvolvimento é um processo cultural e
histórico, cuja dinâmica se apoia na inovação técnica posta a serviço de um sistema de
dominação social.
Celso Furtado (2004, p.484) distingue crescimento e desenvolvimento:
O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na
preservação do privilégio das elites que satisfazem o seu afã de
modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo projeto social
subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição
suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas
quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida da
população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento.
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O Estado Democrático de Direito estabelecido em 1988 pela Constituição Federal
busca o desenvolvimento, entre outros meios, através da tributação, que serve de instrumento
de intervenção na sociedade, sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de
concretizar as diretrizes constitucionais.
O Estado, além de arrecadar tributos e aplicar os recursos arrecadados, estimula ou
desestimula comportamentos, fenômeno denominado de extrafiscalidade.
Enquanto a fiscalidade se refere à forma como o Estado arrecada tributos com o
objetivo de obter recursos (receita) para realizar os seus fins, a extrafiscalidade arrecada
tributos mas sua finalidade principal é alcançar resultados econômicos e sociais através da
exigência fiscal.
A tributação é um poderoso instrumento de concretização dos direitos fundamentais
e de promoção do desenvolvimento.
O Estado utiliza a tributação como instrumento de intervenção na sociedade,
sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de concretizar as diretrizes previstas
na Constituição.
Nesse artigo interessa a propriedade urbana e o Imposto Territorial Urbano.
3. Contornos conceituais das funções dos tributos
O Estado pode ser entendido como uma sociedade juridicamente instituída fincado
nos elementos povo, território, soberania e finalidade. Pode-se afirmar que o último
componente materializa-se no exato momento em que o Estado promove o bem comum, ou
seja, possibilita a esse “povo” condições necessárias à vida em coletividade.
Sabe-se que a satisfação das necessidades coletivas se viabiliza por meio do
desenvolvimento de políticas públicas que, por sua vez, possuem um custo operacional
considerável para implantação e manutenção.
O meio do qual o Estado se vale para estruturar-se financeiramente denomina-se
atividade financeira que pode ser compreendida como a busca de condições para que o
Estado possa funcionar dentro de um planejamento estruturado. No entender de Guerra (2007,
p.30), “o Estado deve criar meios de gerar recursos suficientes para cobrir os gastos com os
serviços públicos e a sustentação da máquina administrativa”, haja vista que na ótica do
mencionado autor, “o Estado não tem objetivo de enriquecer, mas tão somente, de arrecadar
dinheiro na medida suficiente e necessária para realizar sua finalidade precípua” (2007, p.30).
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A constituição dos recursos que possibilitem o custeio das necessidades ocorre, em
regra, através da obtenção dos ingressos públicos que adentram aos cofres via receitas
patrimoniais, tributárias, creditícias etc. Hodiernamente, a tributação se revela como uma das
principais vias, se não, a principal, de que o Estado moderno dispõe para formação de suas
receitas públicas1.
Doutrinariamente se classificam os tributos quanto a sua função – ou finalidade –
como fiscais e extrafiscais.
Um tributo possui finalidade ou função fiscal quando objetiva tão-somente dotar os
cofres públicos de dinheiro para custeio das necessidades. O objetivo é meramente
arrecadatório. Carvalho, ao discorrer acerca da finalidade fiscal da tributação, assim pondera:
Fala-se, assim, em fiscalidade sempre que a organização jurídica do tributo denuncie
que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da
sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem
que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no
direcionamento da atividade impositiva (CARVALHO 2009, p.254).
Diferentemente da função fiscal ou arrecadatória, a tributação atinge a função
extrafiscal quando é utilizada como instrumento de intervenção. No entender de Carvalho, a
extrafiscalidade constitui-se “no emprego de fórmulas jurídico-tributárias para a obtenção de
metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários”
(2009, p.256).
Assim, a face da extrafiscalidade tributária aparece na medida em que a exigência
assume um papel indutor de condutas e se revela, conforme afirma Basso, como um
“instrumento de desestímulo de comportamentos difusamente indesejáveis” (2010, p.224).
Logo, o tributo é extrafiscal quando transcende o objetivo de ser mero veículo arrecadador.
Quando destaca os principais critérios de classificação dos tributos, Ferreira Filho
afirma que:
tributo extrafiscal é aquele cuja finalidade não é a arrecadatória. Sua finalidade pode
ser econômica – Ex.: alteração alíquota do IE (imposto sobre exportação) visando o
controle da balança comercial – ou social – desestímulo à manutenção de
propriedade improdutiva. Ex.: ITR (imposto territorial rural) ( FERREIRA
FILHO e SILVA JÚNIOR, 2008, p.65).
Ainda na perspectiva da extrafiscalidade, Buffon (2009, p. 227), esclarece que “[a]
exação extrafiscal está direcionada a servir como meio de obtenção do bem comum, o qual
deve ser entendido como a concretização dos objetivos constitucionalmente postos, via
materialização dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais”.
1
Receita Pública é a entrada que, integrando-se ao patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência
no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo. (BALEEIRO, 2010, pág. 148).
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Torna-se oportuno o registro de que as finalidades da fiscalidade e da
extrafiscalidade não são reciprocamente excludentes. Carvalho (2009, p.256) assegura que
“os dois objetivos convivem, harmônicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lícito
verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro”.
O mesmo pensamento é refletido no dizer de Basso e Reis (2012, p.40) ao afirmarem
que “as finalidades fiscal e extrafiscal não se excluem reciprocamente, isto é, pode haver a
presença das duas no mesmo instante, o que ocorre é a predominância de uma delas”. O
IPTU é um exemplo de que essa premissa é verdadeira. Pode-se afirmar que, via de regra,
esse imposto atende a função fiscal, ou seja, objetiva prover o Estado de receita pública.
Entretanto, quando ele é utilizado como instrumento para desestimular o mau uso da
propriedade urbana, nos termos no artigo 182 § 4º, II CF, vislumbra-se nitidamente sua face
extrafiscal, que será detalhada em seguida.
4. Considerações acerca do IPTU no Sistema Tributário Nacional
As regras gerais do tributo em discussão estão enumeradas nos artigos 32 a 34 do
Código Tributário Nacional. São elas que balizam as leis locais criadoras do imposto, haja
vista que para o exercício da competência tributária torna-se necessário que cada Município o
institua através de uma Lei Municipal, desde que respeitado o princípio da legalidade
tributária, podendo, entretanto, a instituição do imposto ser por meio de lei ordinária.
O tributo em análise é da espécie imposto, por isso caracteriza-se como tributo não
vinculado quanto a sua hipótese e de receita não afetada quanto ao destino de arrecadação. No
que se refere à possibilidade de repercussão do encargo econômico-financeiro é imposto
direto, uma vez que quem sofre o impacto do pagamento da exação é o próprio contribuinte;
real porque incide sobre a coisa e não leva em consideração características pessoais de quem
está pagando e em regra é predominantemente fiscal uma vez que se revela como uma
importante fonte de receita para os diversos municípios brasileiros.
Convém lembrar que possui função extrafiscal, na medida em que é utilizado como
forma de desestimular a má utilização dos imóveis urbanos, e promove, deste modo, o
princípio da função social da propriedade.
O Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, sob o aspecto
material, possui como hipótese de incidência a propriedade, o domínio útil ou a posse predial
e territorial urbana. Ressaltando que a posse a que se refere o artigo 32 do CTN, é a posse que
214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
pode conduzir ao domínio, ou seja, aquela que é exercida com o animus de definitividade2 e
não a mera posse direta, decorrente do contrato de locação, por exemplo.
Como se retira do texto Constitucional (art. 156, I, CF) o IPTU é de competência
privativa dos Municípios. Todavia, com base na competência tributária cumulativa (art. 147
CF) pode também instituir o IPTU o Distrito Federal e a União no caso de ser criado um
Território Federal e não estando este dividido em municípios.
Assim, da análise do aspecto pessoal da regra matriz instituidora do imposto em
questão retira-se que o sujeito ativo será o Município, o DF e na excepcional situação de
criação de Território Federal, a União. Quanto à sujeição passiva, obriga-se ao pagamento do
imposto toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que seja proprietária, titular do domínio útil
ou detenha a posse imobiliária no espaço físico de uma área urbana, urbanizável ou de
expansão urbana, nos exatos termos do artigo 32 parágrafos 1º e 2º do CTN, traduzindo-se
desse modo a referida área como o aspecto espacial3 do tributo.
Registre-se ainda que o elemento temporal que indica o momento de apuração do
dever de pagar o imposto predial e territorial urbano é uma ficção jurídica definida na lei
municipal instituidora do imposto e que, via de regra, as leis municipais que criam o IPTU
indicam o primeiro dia de cada ano como a verificação da ocorrência do fato gerador.
Em outro aspecto, o que importa para definição do contribuinte do IPTU é a pessoa
que figurar na condição de proprietário naquele momento definido na lei (exemplo: dia
primeiro de janeiro do ano X), independentemente da quantidade de transferências de
titularidade que tenham ocorrido sobre imóvel no decorrer do ano.
Sob a análise do último aspecto da regra matriz de incidência, o quantitativo, tem-se
que esta possibilita saber a exata dimensão do quantum debeatur da obrigação tributária. O
valor é encontrado através da seguinte equação: base de cálculo x alíquota. A base de cálculo
para apuração do IPTU será o valor venal do imóvel, ou seja, o valor de mercado descoberto
que se encontraria caso proceda à venda do bem, não importando para apuração dessa
grandeza, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 33 do CTN, o valor dos bens mantidos
em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração,
aformoseamento ou comodidade.
2
Para melhores esclarecimentos vide: REsp 1.205.250 – RJ.Rel Min. Luiz Fux e REsp 325.489 - Ministra Relatora Eliana
Calmon. Apesar de corriqueiramente transferir ex contractu, no caso de locação de imóvel o ônus do pagamento do IPTU,
não transforma o locatário em contribuinte do imposto.
3
Ainda sob o aspecto espacial do imposto em estudo vale o registro que por disposição do art. 15, Decreto-Lei 57/66, quando
tratar-se de imóveis, mesmo que localizados em zona urbana, mas que se dedique a exploração extrativa vegetal, agrícola,
pecuária ou agroindustrial, o imposto devido será o ITR e não o IPTU.
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
No que se refere às alíquotas, impende registrar que no ordenamento jurídico pátrio
não há definição do um patamar mínimo e máximo a serem observados. A lei municipal
instituidora do imposto predial e territorial urbano é quem irá definir, respeitando obviamente
os parâmetros constitucionais estabelecidos. No entender de Ferreira Filho e Silva Júnior
(2008, p.564) “as alíquotas não podem atingir valores tais que representem a destruição do
patrimônio do contribuinte”.
5. Definição de progressividade:
O IPTU é imposto em que se observa a possibilidade da utilização de alíquotas
progressivas, tanto de caráter fiscal como de caráter extrafiscal. Antes de se discutir o alcance
da progressividade aplicada a esse imposto, se faz necessário, para fins de adequação didática
do que se discute, que se entenda o que vem a ser progressividade4.
Definição bastante esclarecedora é a trazida por Barreto (2009, p.250) quando
assegura que “a progressividade opera-se pelo estabelecimento de alíquotas tanto maiores
quanto forem os níveis de intensidade ou de grandeza de um específico fator ou aspecto
tributário”. Ainda sob a ótica do autor “a progressão, implica em desigualação na medida em
que extrapassa a mera graduação (proporcionalidade)” (2009, p.250). Para Torres (2007, p.
94), “o subprincípio da progressividade significa que o imposto deve ser cobrado por
alíquotas maiores na medida em que se alargar a base de cálculo”. O autor aponta a
progressividade como um subprincípio da capacidade contributiva.
Cassone (2008, p.57) assegura que “a desproporcionalidade da tributação, em função
do valor tributável, é o elemento que diferencia a progressividade da proporcionalidade”.
Orientando-se
pelas
definições
e
exemplo
exposto,
pode-se
entender
a
progressividade como uma técnica ou fenômeno que conduz à elevação de alíquotas na
medida em que cresce o montante de riqueza demonstrada. Ou seja, para um imposto que
atenda a progressividade, quanto maior a riqueza ou a capacidade econômica, maior será a
alíquota (percentual) paga, objetivando-se com a progressividade a realização de uma justiça
fiscal, estando, portanto, intimamente ligada ao princípio da capacidade contributiva.
4
A progressividade não deve ser confundida com a proporcionalidade. Assim como na progressividade, Torres (2007, p.94)
entende a proporcionalidade como um subprincípio da capacidade contributiva, e a vislumbra quando “um imposto incide
sempre pelas mesmas alíquotas, independentemente do valor da base de cálculo, o que produzirá maior receita na medida em
que o bem valer mais”.
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Diante do que até agora foi exposto e guiados pelo critério da finalidade dos tributos
tem-se que quando a progressividade é utilizada para fins meramente arrecadatórios existe a
denominada progressividade fiscal; entretanto, quando sua utilização revela-se como
regulatória, observe-se que se está diante da progressividade extrafiscal.
5.1. A progressividade do IPTU na Constituição Federal de 1988
Como já apontado no corpo deste trabalho, a progressividade enquanto técnica
tributária pode ser utilizada tanto para fins fiscais como extrafiscais.
Alexandrino (2009, p. 269) refere-se ao primeiro caso (fins fiscais) ponderando que
“a técnica é utilizada segundo a capacidade econômica”. No segundo (fins extrafiscais), “é
artifício utilizado para, por meio de exacerbação da carga tributária, obterem resultados
diversos, não arrecadatórios, como desestímulo à manutenção de propriedades rurais
improdutivas ou à subutilização de solo urbano”.
Coelho ao analisar a progressividade no IPTU assim pondera:
Pode-se dizer, sem medo, que o IPTU admite a progressividade estribado em duas
matrizes:
a) a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional tem sede na
disposição que acabamos de transcrever (o autor transcreve em sua obra o artigo 182
CF), em prol da ordenação urbanística das municipalidades (progressividade
extrafiscal no tempo) e;
b) a matriz da capacidade do contribuinte que exsurge do artigo 145, § 1º, da CF.
(COELHO 2009, p.347)
Da análise do texto constitucional e de textos de abalizada doutrina, observe-se que a
utilização da progressividade especificamente relativa ao IPTU ocorre tanto sob a ótica fiscal,
expressamente trazida após a EC 29/2000 (nos termos do artigo 156 § 1º, I) quanto no caráter
extrafiscal (art. 182 § 4º, II).
Esta última, alvo de nossas ponderações, é denominada de progressividade no tempo,
ou também chamada por alguns doutrinadores, a exemplo de Silva Junior (2008, p. 567) de
“progressividade sanção” e se revela como um dos importantes instrumentos materializadores
de viabilização para o cumprimento da função social da propriedade urbana, conforme
veremos no tópico seguinte.
5.2. A progressividade do IPTU no tempo como instrumento de garantia do
cumprimento da função social da propriedade
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O planejamento racional das cidades é política que deve estar presente em todo
município brasileiro. O Brasil (país com dimensões continentais) é formado hoje, segundo
dados do IBGE5 por 5.564 municípios e possui uma população essencialmente urbana, haja
vista que os dados oficiais6 remetem a um percentual de 84% dos habitantes vivendo na zona
urbana contra 16% vivendo no meio rural. Desse modo, planejar racionalmente o meio urbano
como forma de diminuir o crescimento desordenado, desestimulando a especulação
imobiliária e coibindo os vazios urbanos, que se revelam muitas vezes como depósitos de lixo
prejudicando a qualidade ambiental das cidades brasileiras torna-se uma questão salutar e
imprescindível para toda a sociedade.
Não é de hoje a preocupação com a racionalidade na ocupação do solo urbano,
perquirindo-se a consagração da função social da propriedade urbana.
O ordenamento jurídico Constitucional brasileiro, no título VII, ao estabelecer as
diretrizes da Ordem Econômica e Financeira, mormente no Capítulo II, prescreve que a
política de desenvolvimento urbano deve ter como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade de forma a garantir o bem-estar dos que nela vivem.
Nesse contexto autoriza expressamente a utilização da tributação para consecução de
tal desiderato que se encontra fixada no artigo 182, § 4º, II, mediante a previsão do emprego
da progressividade no tempo para o IPTU. Assim, a progressividade no tempo se mostra
como relevante e necessário instrumento que contribui, viabiliza e garante o cumprimento da
função social da propriedade na medida em que os municípios foram legitimados a adotarem
a utilização gradual de alíquota, ano após ano, segundo algumas condições e critérios que no
tópico subsequente serão analisados mais detalhadamente.
Cabe realçar com o devido respeito aos doutrinadores que utilizam da denominação
“progressividade sanção” ao se referir à prevista para o IPTU, nos termos do artigo 182 § 4º,
II CF, a inadequação da designação, haja vista que como bem demonstra Alexandrino “esta
não deve ser entendida como penalidade, pois a subutilização não é ato ilícito e,
principalmente, o IPTU é tributo, não podendo, portanto, em nenhuma hipótese, constituir
sanção em sentido próprio” (2009, p. 271).
5
Disponível em: Informação retirada do site: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/municipios-brasileiros.
(último acesso: 01.03.2013).
6
Disponível em: Informações retiradas do site: http://noticias.uol.com.br/censo-2010/populacao-urbana-e-rural/ (último
acesso: 01.03.2013).
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
5.3. Requisitos que legitimam a adoção da progressividade extrafiscal.
As condições que autorizam os municípios brasileiros a adotarem alíquotas
progressivas no tempo para os imóveis que se revelem em disritmia com a função social da
propriedade estão apostas no dispositivo constitucional do § 4º do art. 182 da CF.
Da leitura do artigo mencionado observa-se que se trata de uma norma de eficácia
contida, necessitando dessa feita de uma lei para sua regulamentação. A lei federal que
regulamentou o dispositivo constitucional foi o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de
10.07.2001). Especificamente no artigo 7º desta lei está a previsão para os Municípios da
legitimação de adoção de alíquotas progressivas no tempo para o IPTU mediante a majoração
da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, no caso de ocorrer o descumprimento das
condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o da Lei em comento. O artigo
quinto, por sua vez, refere-se à possibilidade de o Plano Diretor determinar as regras para o
parcelamento, edificação ou utilização compulsória dos imóveis localizados na zona urbana.
Interpretando os dispositivos regulamentadores, deve-se entender que é dever do
Município zelar pela adequada utilização do solo urbano de forma a cumprir a função social
da propriedade, caso verifique o seu não cumprimento devido à não edificação, subutilização
ou não utilização, pode o Município primeiramente promover o parcelamento ou a edificação
compulsória (inciso I do Art. 182, § 4º CF) e depois utilizar a tributação extrafiscal aplicandose as alíquotas progressivas para o IPTU (inciso II do Art. 182§ 4º CF) como forma indutora
de comportamento ao titular da propriedade imobiliária urbana a imprimir uma adequada
destinação ou utilização do imóvel que lhe pertence, sob pena de ver-se exigido a assumir
uma carga tributária considerável.
Nota-se pela leitura do artigo 7º do Estatuto da Cidade, precisamente no parágrafo 1º,
que a alíquota máxima a ser alcançada atinge o patamar de 15%, devendo-se observar
ademais que a alíquota subsequente não poderá exceder duas vezes o valor da alíquota
anterior. No parágrafo 2º do artigo mencionado autoriza o Município a manter a alíquota
máxima atingida pelo tempo necessário ao cumprimento da obrigação estipulada, no
parágrafo anterior já comentado, podendo ainda após cinco anos o município proceder com a
desapropriação do imóvel.
Abre-se neste momento um mote de discussão a respeito das disposições do artigo 7º
do Estatuto da Cidade, se não ofenderia o princípio de vedação de confisco, ante a permissão
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de fixação máxima em 15% da alíquota para o IPTU quando se persegue a adequada
utilização do imóvel urbano.
Se existe unicidade por parte da doutrina em reconhecer a tributação como
instrumento que viabiliza pela via finalística da extrafiscalidade a concretização do princípio
da função social da propriedade, não existe, entretanto, consenso quando a discussão reside
nos limites da faixa progressiva de alíquota para consecução desse desiderato. Nesse sentido a
doutrina se revela fragmentada.
Barreto é incisivo ao afirmar e defender que houve ofensa à Constituição quanto à
regulamentação dos dispositivos 182 e 183 da CF por parte da Lei nº 10.257 de 2001
(Estatuto da Cidade), conforme destaque:
Deveras, tal como estruturada, a progressividade no tempo do IPTU, prevista no
Estatuto da Cidade, é manifestamente inconstitucional. Além de implicar absorção
do valor da propriedade, configurando nítida exigência do tributo com efeito
confiscatório [...] ainda que pareça que a intenção do legislador foi a
melhor possível ao impor outras limitações à majoração da alíquota do
IPTU no tempo, o fato é que a sistemática adotada esbarra no
princípio constitucional que veda a utilização de tributo com efeito de
confisco (BARRETO, 2010, p. 957).
Contrapondo-se ao pensamento defendido por Barreto, Coelho assim assegura:
A progressividade no tempo tem como único fundamento contrariedade ao plano
diretor. Pode ser exercitada até a exaustão se o proprietário de solo urbano nãoedificado, subutilizado e não-utilizado se mantiver teimoso e recalcitrante em
promover o seu adequado aproveitamento. (COELHO 2009, p.348).
Posteriormente, o autor arremata seu pensamento, referindo-se à progressividade no
tempo, afirmando:
[...] dizer que a progressividade, aqui, tem que ser suave, não podendo atingir o
exercício da propriedade, é desdizer a eficácia do remédio. Primeiro porque o
princípio do não-confisco licencia a extrafiscalidade. Segundo porque, se a
tributação não chegar às raias do insuportável, não há razão para a utilização da
progressividade (como técnica extrafiscal), reduzida a mera figura de retórica.
(COELHO 2009, p. 348)
Respeitando-se os que defendem o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei
regulamentadora dos dispositivos constitucionais 182 e 183, não há como deixar de comungar
com o pensar de Coelho (2009), não esquecendo, evidentemente que para a sua exigência há
que se ter observado os requisitos para utilização desse instrumento de coerção e,
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
consequentemente, atingimento ou pelo menos busca, de uma política urbana eficaz e
eficiente.
Desse modo, para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no tempo,
primeiramente faz-se necessário que os municípios aprovem seus planos diretores, haja vista
que é neste instrumento legislativo que se tem por definindo o que compreenderá solo urbano
não edificado, subutilizado ou não utilizado.
Observa-se, nos termos da Constituição, art. 182 § 1º, a obrigatoriedade de tal
instrumento para todos os municípios com população com mais de 20.000 habitantes. Assim,
o Plano Diretor torna-se a referência obrigatória para a consolidação e atualização do
conjunto de Leis de uma Cidade. Ocorre que em se tratando de estabelecer progressividade de
alíquotas à lei instituidora do plano diretor municipal é condição essencial para legitimar a
implementação das alíquotas progressivas no tempo, como pondera Enenberg, vejamos:
[...] se determinado município pretender utilizar-se dos instrumentos de coerção
previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal (o parcelamento ou a
edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação-sanção),
então deverá ter elaborado um plano diretor, no qual estejam estabelecidas as
exigências fundamentais de ordenação da cidade, que descumpridas pelo
proprietário urbano, podem ensejar a utilização pela municipalidade de tais
instrumentos urbanísticos especiais, desde que previstos em lei específica baseada
no plano diretor. (ERENBERG 2008, p.145)
A título de informação, o Município de João Pessoa aprovou seu plano diretor
através da lei complementar nº. 03/1992 tendo recebido atualizações através da
Lei-Complementar n.º 04/1993 e adequações posteriores através da LC 54/2008. No Capítulo
I deste instrumento, seção III, intitulado “Da Função da Social da Propriedade Urbana”, prevê
o artigo 48, a possibilidade de Lei Municipal instituir a progressividade no tempo para o
Imposto Predial e Territorial Urbano. Por sua vez, no mesmo ano foi aprovada mediante Lei
Complementar Municipal de nº. 53/20087 – Código Tributário do Município de João Pessoa
– no qual dispõem no artigo 195 das alíquotas progressivas no tempo para os imóveis que se
encontrem como não edificados, subutilizados ou não utilizados, ou seja, estejam andando na
contramão da função social da propriedade. Registre-se por fim que nos termos do Plano
7
Disponível em http://www.cmjp.pb.gov.br/. Código Tributário Municipal – João Pessoa-PB – LC 53/2008. Art. 195. O
imóvel que não atender à sua função social, seja não edificado, subutilizado ou não utilizado, nos termos do Plano Diretor do
Município ou legislação dele decorrente, ficará sujeito, durante 5 (cinco) exercícios consecutivos, à aplicação das seguintes
alíquotas progressivas: I - 2,0% (dois por cento) para o primeiro exercício; II - 4,0% (quatro por cento) para o segundo
exercício; III - 6,0% (seis por cento) para o terceiro exercício; IV - 8,0% (oito por cento) para o quarto exercício; V - 10,0%
(dez por cento) para o quinto exercício. Parágrafo único. Caso as exigências definidas no Plano Diretor ou em legislação
dele decorrente não sejam atendidas nos cinco exercícios, manter-se-á a aplicação da alíquota limite, até que se atendam as
referidas exigências. (último acesso em 01.03.2013).
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Diretor do Município de João Pessoa-PB, tal dispositivo fixou como alíquota mínima 2%
(dois por cento) e máxima o percentual de 10% (dez por cento).
Para finalizar, verifique-se que a implementação em um município brasileiro do
IPTU com fins extrafiscais deve-se primeiramente aprovar o Plano Diretor do Município e
posteriormente observar a edição de uma lei local na qual se definam as alíquotas
progressivas no tempo, tudo evidentemente observando e respeitando os princípios
constitucionais tributários além dos requisitos insculpidos no artigo 182 do texto
constitucional e das disposições contidas na Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade).
5. Considerações finais
Pretendeu-se com o presente trabalho demonstrar a importância da tributação não
apenas para fins arrecadatórios, mas também como instrumento indutor e viabilizador de
políticas públicas. Para tanto, demonstra-se em que consiste a função social da propriedade,
enaltecida na Constituição Federal de 1988. Desse modo, na tentativa de imprimir uma
abordagem didática, busca-se estabelecer as funções ou finalidades da tributação,
individualiza-se o imposto predial e territorial urbano, evidenciando suas principais
características e métodos de classificação, demonstra-se a compreensão do termo
progressividade, demonstrando que, hodiernamente, na Carta Magna, existe previsão para
aplicabilidade fiscal e extrafiscal quanto ao IPTU, afunila-se a análise para a progressividade
extrafiscal evidenciando os requisitos que os Municípios precisam observar para legitimar a
fixação e a exigência de alíquotas progressivas nas suas legislações. Por derradeiro,
reconhece-se que a tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via
indireta de atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora
do cumprimento da função social da propriedade.
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Janeiro-RJ: Renovar, 2006.
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO
CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.
João Emilio de Assis Reis*
Resumo: Este trabalho é um ensaio teórico que busca refletir sobre a evolução dos direitos
fundamentais sociais tendo como foco especial o direito constitucional à moradia. Partindo de uma
reconstrução histórica do direito fundamental à moradia como direito humano no plano internacional,
analisa a sua natureza com direito fundamental constitucional de cunho social, e seu contexto na
constituição brasileira. Apresenta por fim reflexão a respeito da efetividade desse direito fundamental
em razão das limitações enquanto norma constitucional programática e em razão das limitações de
natureza orçamentária, que se apresenta como um óbice fático a efetivação de direitos fundamentais
nos Estados contemporâneos.
Palavras-chave: Direitos Sociais. Moradia. Efetividade de direitos.
THE RIGHT TO HOUSING AS OBLIGATION IN BRAZILIAN
CONSTITUTIONAL LAW.
Abstract: This paper is a paper that seeks to reflect on the evolution of fundamental social rights
focusing on particular constitutional right to housing. From a historical reconstruction of the
fundamental right to housing as a human right in international level, analyzes its nature with
fundamental constitutional right of a social nature, and its context in the Brazilian constitution.
Displays finally reflection about the effectiveness of this fundamental right because of limitations
while programmatic constitutional norm and because of the limitations of economic and budgetary
nature, which presents itself as an obstacle to the accomplishment factual fundamental rights in
contemporary states.
Key-words: Social Rights. Housing. Effectiveness of Rights.
1. Introdução.
O presente estudo busca analisar o direito à moradia como um Direito Fundamental
Constitucional, sua eficácia ou possibilidades de concretização no ordenamento jurídico
brasileiro. A moradia passa a ser entendida como direito humano a partir do reconhecimento
do suprimento de necessidades mínimas ao ser humano e a partir da transformação do modelo
de Estado Liberal, vigente a partir da revolução francesa, em um modelo de Estado Social,
que positiva essas necessidades mínimas como direito de seus cidadãos, para além das
*
João Emilio de Assis Reis. Doutorando em Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito Privado pela UNIFLU
(RJ). Professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo.
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
chamadas liberdades públicas ou deveres negativos. Guardadas algumas peculiaridades, esse
é o caminho percorrido pelo Estado brasileiro.
O reconhecimento do direito à prestações de cunho sócio-econômico perante o Estado
implica em discutir a efetividade desses direitos, especialmente em situações como a do Brasil
em que a desigualdade social acompanha a formação histórica, e que o Direito Constitucional
tem a dignidade humana como princípio e tutela Direitos Sociais. Por outro lado, tem-se a
dificuldade dos Estados hoje em implementar programas sociais, inclusive com relação ao
Direito de Moradia, em razão de problemas de natureza orçamentária. Assim, a importância
de se verificar e discutir a efetividade de direitos sociais nasce justamente da necessidade
social dessa efetivação, principalmente partindo-se do pressuposto de uma Constituição como
a nossa que mais do que garantias, trás em seu bojo um modelo de sociedade a ser construído
e alcançado.
Sob esse pano de fundo, desenvolve-se o presente ensaio teórico, baseado em pesquisa
bibliográfica. Numa primeira parte, analisa-se a evolução histórica e o reconhecimento da
moradia como um direito humano e como direito fundamental e seus fundamentos. Num
segundo momento analisa-se a moradia contextualizada como um direito fundamental de
cunho social no ordenamento jurídico brasileiro para, finalmente, proceder-se reflexão sobre
sua efetivação e as possibilidades de exigência, perante o Estado Brasileiro.
2. Direito à moradia: notas históricas.
Situar um instituto ou categoria jurídica no tempo, percebendo seu nascimento e
evolução é premissa para sua compreensão. A norma jurídica não pode ser completamente
compreendida, se não compreendido o contexto histórico no qual foi produzida e que esse
processo criativo da norma fez-se em razão de um contexto futuro, ainda que hipotético. Se o
homem é um ser histórico, que transforma a natureza e cria um mundo cultural para
sobreviver, o direito necessariamente também o é, como fruto da genialidade humana.
A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos
seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa
da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue
de objetivo semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito
básico do jurista não é simplesmente compreender o texto, como faz, por exemplo, o
historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas
também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença
dos dados atuais do problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer,
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base
na norma enquanto diretivo de comportamento (FERRAZ JÚNIOR, 2008, 221)
De forma que para esse processo de busca de sentido para a norma jurídica, tem entre
os seus métodos, o histórico, em que se busca seu sentido na sua gênese ou evolução, que
fornecerão ao interprete da norma jurídica importante subsídio para situar o jurista e, em
conjunto com outras técnicas hermenêuticas lhe permitirá encontrar as respostas corretas na
aplicação da norma jurídica. Assim, não é possível falar-se em norma jurídica, desprendida de
um contexto qualquer.
Além disso, compreendida a moradia no âmbito dos direitos humanos, deve ser
compreendida necessariamente na característica histórica desses direitos. “Por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (BOBBIO, 2004, 25).
A questão da moradia é objeto de estudo nas mais variadas ciências, dada a
compreensão da sua essencialidade na vida do homem. Essa essencialidade se dá por diversos
motivos, desde os motivos mais simples que se pode imaginar como a necessidade do homem
primitivo de um refúgio para se proteger dos animais ferozes e das condições do tempo, como
a questão da idéia do homem como um ser cultural, que transforma e recria o mundo à sua
volta para sobreviver. A questão da moradia como a necessidade de ter um espaço próprio,
um “lugar pra ficar”, é própria da essência humana, seja pela necessidade de um ponto de
referência que permite a localização e individualização de certa ou certas pessoas, por
questões de saúde, ou mesmo pela condição de realizadora de outros direitos, como o Direito
ao Sossego, à proteção da intimidade, à segurança e mesmo à liberdade, visto que a liberdade
pressupõe um mínimo de espaço para a individualidade. Daí a sua compreensão unânime
como Direito Humano, não só por representar em si uma condição essencial para uma vida
humana digna, como em razão da sua conexão com tantos outros direitos também
considerados como essenciais para o ser humano, como o seu reconhecimento e incorporação
pelos diversos ordenamentos jurídicos, passando o amplo acesso à moradia como objetivo de
sociedades politicamente organizadas e como direito dos cidadãos exercitáveis contra os
Estados.
Embora se possa encontrar como exceções a Constituição do México (1917) e a
Constituição da República de Weimar (1919), nas origens do constitucionalismo social, o
direito à moradia passa por um movimento de reconhecimento histórico paulatino, no plano
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
internacional primeiramente. Ao ser reconhecido como um direito humano básico e exigível
dos Estados é continuamente conformado e reafirmado por diversos documentos que lhe dão
densidade e contornos, para só então ser reconhecido pelos ordenamentos jurídicos internos
dos Estados.
“Os organismos internacionais elaboraram o conceito para o que se pode identificar
como direito à moradia, com base na defesa de um adequado padrão de vida humano que toda
pessoa tem direito para si e para seus familiares”. (MELO, 2010, 37)
Isso se dá em razão da própria gênese do constitucionalismo moderno se dar sob o
paradigma do Estado Liberal, fruto da luta das classes burguesas desprovidas de poder
político contra o Estado absolutista, e que por isso preocupou-se apenas com os direitos
políticos e com os direitos de liberdade.
A constituição, que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para
conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de iniciativas privatistas: era
uma Sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida de toda uma consciência
anticoletivista. À constituição cabia tão-somente estabelecer a estrutura básica do
Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando
na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à
capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade.
(BONAVIDES, 2004, 229)
O primeiro documento de grande repercussão internacional a referir-se a moradia,
foram as cartas de Atenas, elaboradas no contexto do Congresso Internacional de Arquitetura
e Urbanismo em 1933. Muito embora não seja um documento de repercussão jurídica, referese às funções sociais que uma cidade deve proporcionar, entre elas “habitar”.
Se esse
documento não tem repercussão jurídica por si só, acaba por criar a noção de cidade como
função social, passando-se a compreensão do espaço urbano mais que simplesmente um
aglomerado de pessoas e edificações. O espaço urbano passa a ter funções a realizar.
Conforme a Famosa Carta de Atenas “o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais
diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em
todas as suas manifestações, individuais e coletivas” (SILVA, 2006, 31). Essa noção de
função social da cidade – incorporada posteriormente pela Constituição Federal de 1988 entre
as diretrizes da política urbana - guarda o mérito inicial de compreender a essencialidade da
moradia, como premissa para o desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades.
Estabelece-se como uma espécie de marco teórico inicial para a discussão da importância da
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
moradia participando do processo que terminará por reconhecê-la como objeto de proteção
dos direitos humanos.
A primeira previsão jurídica específica sobre moradia que para nós tem importância
remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece em seu art. XXV
“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais
indispensáveis.
Ao lado do referido dispositivo, o inciso XII da referida Declaração Universal prevê a
tutela do lar do indivíduo dispondo que “Ninguém será sujeito a interferências em sua vida
privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra ou
reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.
Muito embora o dispositivo citado refira-se ao “lar” do indivíduo de forma indireta,
reconhece-o direito a ele de certa forma, como pressuposto para o direito à vida privada sem
interferência indesejadas ou abusivas.
Em 1966, foi aprovado, também no âmbito das Nações Unidas, o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entra em vigência em 1976, em cujo art.
11 fica estabelecido que “Os Estados Partes no presente pacto reconhecem o direito a toda
pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive alimentação,
vestimenta e moradia adequada, assim como uma melhoria contínua de suas condições de
vida”.
Em 1976, tem-se a realização de importante conferência internacional para debate do
tema em Vancouver, no Canadá, denominada Conferência das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos – HABITAT I. Nesta conferência discutiu-se a necessidade de
adequada habitação para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis
em um mundo em urbanização estabeleceram-se metas a serem atingidas pelos signatários. A
seção III, Capítulo II, estabelece que
Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca
como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas,
começando com assistência direta para os menos avantajados através de programas
de ajuda mútua de ações comunitárias, os Governos devem se empenhar para
remover todos os obstáculos que impeçam a realização dessas metas.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Também no plano do Direito Internacional Particular Americano, destaque-se a
Convenção Americana de Direitos Humanos, que culmina com a elaboração do Pacto de San
José da Costa Rica. Esse documento, muito embora não enuncie de forma específica qualquer
direito social, cultural ou econômico, determina em seu art. 26 que os Estados signatários
alcancem, de forma progressiva, a plena realização desses direitos por meio de medidas
legislativas ou outras que se mostrem apropriadas.
A declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, embora não se refira a
direitos sociais específicos, tem como ponto de partida o reconhecimento de que o
desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao
constante incremento do bem estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em
sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e distribuição justa dos
benefícios daí resultantes, afirmando o direito ao desenvolvimento como um direito humano
inalienável.
Esse destaque ao Direito Internacional com respeito ao Direito à moradia é aqui
cabível, justamente pelo reconhecimento do Direito à moradia como um direito Humano no
plano do Direito Internacional, dado o reconhecimento da Organização das Nações Unidas, e
por estabelecer a vinculação jurídica dos Estados membros, a quem cabe o dever de assegurálo. Muito embora seja possível perceber em diversos momentos o estabelecimento ou a
tentativa de estabelecer-se políticas de acesso à moradia, isso se dá de forma muito incipiente,
limitada e pontual, sem jamais se ter uma política de acesso à moradia visto como algo
exigível, de acesso amplo e democrático, muito mais ligada a idéia de voluntarismo político
do que como um direito exigível.
Assim, esses tratados do qual a República Federativa do Brasil é signatário†, tem como
mérito inicial vincular o Estado brasileiro à moradia como um direito oponível e exigível por
parte de seus cidadãos. Algo que no plano da legislação interna só irá ocorrer com a Emenda
Constitucional No. 26 de 14 de fevereiro de 2000, que insere o Direito à Moradia como um
direito fundamental social, passando a constar do art. 6º do texto constitucional. Não se pode
contudo negar importância a esses tratados, principalmente por ser reconhecido
†
O Brasil é signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua promulgação em 1948, da Declaração sobre o
Direito ao desenvolvimento desde 1986, e do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de
Direitos Sociais, Econômicos e Culturais desde 1992.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
expressamente status a direitos e garantias que o Brasil incorporar por tratado internacional
(Constituição Federal, art. 5º. § 2º).
A primeira carta política a tratar a moradia como um direito constitucional é a
Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917, que no Título I, Capítulo I, que
trata dos Direitos Humanos e suas garantias, menciona o Direito à moradia no art. 4º ao dispor
que toda família tem direito a desfrutar de uma moradia digna e adequada e que a lei
estabelecerá os instrumentos e apoios necessários a fim de alcançar tal objetivo‡. Assim, a
Moradia tem cunho constitucional, tratando-se por disposição expressa de norma
programática, já que sua eficácia dependia de norma constitucional regulamentadora que
viesse efetivar o Direito. Cabe observar contudo, que a mesma constituição estabelece como
“base” da Seguridade Social, a disponibilização aos trabalhadores habitações baratas para
aquisição ou locação e determina a criação de um fundo nacional de habitação que
proporcione acesso a crédito barato e suficiente para aquisição de moradias adequadas.§
Da mesma forma a Constituição da República de Weimar (1919) também reconhece a
importância da moradia em seu artigo 155 dispõe que o fracionamento e o uso do solo serão
controlados pelo Estado de forma a impedir abusos e a permitir a todo alemão uma morada
saudável e a todas as famílias alemãs, em especial as mais numerosas uma morada e um
patrimônio que atenda suas necessidades.
As nossas seis constituições anteriores nada mencionam sobre o direito à moradia. A
Constituição Imperial de 1824 representa o modelo de constituição da época, em feições
liberais, preocupada com as liberdades públicas. A Constituição de 1891, mantém a mesma
feição liberal, inspirada principalmente no constitucionalismo americano, preocupando-se
quanto a direitos fundamentais também com as liberdades públicas. É a partir da Constituição
de 1934, seguida pela Constituição de 1946 e 1967 é que se pode passar a perceber a mudança
de feições no constitucionalismo brasileiro que passa a ter gradativamente feições sociais.
Pode-se perceber essa mudança através do instituto da propriedade que, a partir dessas
Constituições passa a ser condicionada a interesses sociais e coletivos (REIS, 2006, 82-83) ou
‡
Texto literal: “Toda familia tiene derecho a disfrutar de vivienda digna y decorosa. La Ley establecerá los
instrumentos y apoyos necesarios a fin de alcanzar tal objetivo”
§
Se proporcionarán a los trabajadores habitaciones baratas, en arrendamiento o venta, conforme a los
programas previamente aprobados. Además, el Estado mediante las aportaciones que haga, establecerá un
fondo nacional de la vivienda a fin de constituir depósitos en favor de dichos trabajadores y establecer un
sistema de financiamiento que permita otorgar a éstos crédito barato y suficiente para que adquieran en
propiedad habitaciones cómodas e higiénicas, o bien para construirlas, repararlas, mejorarlas o pagar pasivos
adquiridos por estos conceptos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
no estabelecimento de direitos constitucionais sociais de caráter trabalhista. No entanto, a
garantia de acesso à Moradia não recebe qualquer menção do direito brasileiro até o texto
constitucional atualmente em vigência.
3. Os Direitos Sociais no texto Constitucional.
O direito à moradia foi inserido no texto Constitucional por força da Emenda
Constitucional No. 26 de 2000 no Titulo II, que trata dos direitos fundamentais. Este título
subdivide-se em cinco capítulos: dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais, dos
direitos à nacionalidade e dos direitos políticos e partidos políticos, de forma que a Moradia
passou a constar do Capítulo II, que trata dos Direitos Sociais.
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição. (art. 6, Constituição Federal).
Direitos Sociais, prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de
situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de
igualdade. Valem como pressupostos do gozo de direitos individuais na medida em
que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o
que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício de sua
atividade. (SILVA, 2005, 286).
Os direitos Sociais surgem no contexto do constitucionalismo social. Aquele Estado
surgido das revoluções liberais do século XVIII preocupava-se basicamente com as liberdades
públicas, com o arbítrio do soberano e por isso, tinha como função básica garantir a liberdade
individual, mantendo a atuação do poder público eqüidistante da esfera privada e garantir a
igualdade formal, no sentido de que o poder público trata-se todos como iguais. No entanto,
essas conquistas pouco fizeram pela grande massa de despossuídos, de forma que pouco mais
de um século depois de surgido, o modelo de Estado Liberal entrava em crise.
Os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais nos séculos
XVIII e XIX, desigualdades que só se acirraram na Revolução Industrial, ao criar mais
miséria de um lado, com pessoas que trabalhavam em condições sub-humanas e de outro mais
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
concentração de riqueza.
A instabilidade social que se seguiu termina por permitir o
reconhecimento de direitos sociais. Esses, nascem de concessões, diante do temor provocado
pelas revoluções comunista e mexicana, pelo sindicalismo nascente que criavam riscos
derrubada dos regimes liberais então vigentes.
Desta forma, surgem os Direitos Sociais diante da compreensão de que o Estado deve
atuar minimamente para garantir condições mínimas para os seus cidadãos, e que a mera
garantia das liberdades públicas está aquém da função estatal. O Estado, que no liberalismo se
colocava numa posição relativamente eqüidistante pelas declarações de Direitos das
Constituições Liberais passa a ser imprescindível para a realização dos Direitos Sociais e
Econômicos. Os direitos sociais são, sob essa perspectiva, fins da ação do Estado, e não
limites desta ação, como o caso das liberdade públicas.
obedecem, primordialmente, ao princípio da solidariedade (ou fraternidade, no
tríptico da Revolução Francesa), a qual se impõe, segundo os ditames da justiça
distributiva ou proporcional, a repartição das vantagens ou encargos sociais em
função das carências de cada grupo ou estrato da sociedade (COMPARATO, 2004,
335).
Muito embora todo esse processo histórico-conjuntural de consolidação dos direitos
sociais, é preciso cuidado para que se vincule esses direitos a demandas sociais e econômicas
de determinado contexto, atribuindo-lhes eventual função reparadora de desigualdades
históricas ou função assistencial. Os direitos sociais devem ser compreendidos na sua essência
de direitos fundamentais, como um conjunto de direitos essenciais e inafastáveis
constitutivos da personalidade
e da dignidade humana, tanto quanto os direitos civis e
políticos, e tão inarredáveis quanto estes.
Desnecessário enfrentar aqui suposta distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos
Sociais. Essa distinção, que é um movimento típico de resistência do liberalismo, renitente em
reconhecer o mesmo status das velhas liberdades públicas aos Direitos Sociais, torna-se
claramente obsoleta e mesmo equivocada, quando percebe-se o lugar reservado a esses
direitos na Constituição como Direitos Fundamentais. Da fundamentalidade desses direitos
decorre especial status de proteção, tanto em sentido material como em sentido formal. Da
fundamentalidade formal resulta da compreensão dos Direitos fundamentais como ápices de
nosso ordenamento jurídico e nesse sentido cuidam-se de direitos de natureza supralegal.
Além disso, encontram-se submetidos aos limites materiais e formais de reforma da
constituição e, por derradeiro, cabe salientar que são de aplicação imediata (Constituição
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Federal art. 5º. § 1º.). Da fundamentalidade material, decorre serem os direitos fundamentais
elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a
estrutura básica do Estado e da Sociedade. (SARLET, 2011, 75).
Essas decisões, ou opções políticas do Estado, no caso da proteção que a Constituição
brasileira concede aos direitos sociais são inequívocas, principalmente se observado o
contexto constitucional, do qual consta verdadeira sensibilidade social, posto que o objetivo é
uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés da idéia tradicional e ineficaz de
simplesmente se garantir as liberdades. Essa leitura do texto constitucional é consistente,
posto que conforma valores como os que emanam do princípio da dignidade da pessoa
humana, fundamento da República, e ainda com outros valores e objetivos a se alcançar,
estabelecidos na Constituição, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3,
I); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art.
3, III); “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação” (art. 3, IV).
Daí percebe-se a importância da construção teórica que precede a positivação de
Direitos Sociais e do caso específico do Direito à Moradia. Toda a Construção teórica e a
evolução paulatina do reconhecimento dos Direitos Sociais e do Direito à moradia no plano
internacional, permitem a própria conformação do direito, a explicitação de sua
essencialidade, e proporciona a sua fundamentação quando da sua efetivação, o que, aliás é
pressuposto da efetivação de qualquer direito na tradição ocidental.
A positivação dos direitos sociais, por outro lado, é o que garante a sua eficácia
social. O reconhecimento de Direito como essencial depende do seu reconhecimento jurídico,
como tal. Num estado com princípios democráticos, a proteção jurídica de algo que se
entenda por direito resulta de um processo de legitimação indispensável. Esse processo de
legitimação em nível constitucional, é que torna o direito exigível explicitando sua origem
como escolha da vontade coletiva, nos temos da Constituição, cabendo ao Estado
Democrático, concretizador dessa vontade, instrumentalizá-lo.
234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
4. A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro e a
obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia.
Os direitos sociais, assim como os demais direitos fundamentais exigem distintos
níveis de obrigações obrigação de respeitar, de proteger e de satisfazer direitos. O texto
constitucional, dispõe, conforme já afirmado retro, que as normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais tem aplicação imediata. No entanto, parte da doutrina, tem uma visão
restritiva do disposto no art. 5, § 1º da Constituição Federal, de forma que a aplicabilidade
imediata caberia apenas aos direitos e garantias dispostos no art. 5º da Constituição. Não
obstante a localização topográfica do dispositivo, a literalidade do parágrafo aponta para todos
os direitos e garantias fundamentais, e não apenas para os direitos individuais e coletivos do
art. 5º.
No entanto, os direitos que exigem prestações positivas do Estado, através da
execução de políticas públicas, são concebidos tradicionalmente como normas de eficácia
limitada, cuja aplicabilidade é mediata e de eficácia reduzida. No entanto a emergência cada
vez maior um significativo número de normas de caráter programático, e o próprio risco de
esvaziamento de sentido dos direitos sociais como direitos constitucionais, vem provocando
uma ruptura com a teoria clássica, no sentido de conferir, pelo menos em certa medida,
aplicabilidade direta e imediata. Não tem sentido, pelo próprio significado histórico do Direito
Constitucional, não atribuir um mínimo de eficácia imediata a um direito positivado na
Constituição, se a Constituição surge justamente como um remédio ao arbítrio, submeter um
direito positivado na Constituição ao voluntarismo político significa privá-lo do seu caráter de
direito constitucional fundamental.
Em razão disso, leciona Canotilho
“devido a essa ruptura à doutrina clássica, pode e deve-se dizer que hoje não há
normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim,
normas-tarefa, normas-programa que “ impõem uma actividade” e “dirigem”
materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destar normas não é o
que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: “simples programas, “exortações
morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”,
“apelos ao legislador”, “programas futuros”, juridicamente desprovidos de qualquer
vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje valor jurídico
constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que
isso: eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas
programáticas não significa a dependência deste tipo de normas de interposição do
legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas)
que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes (CANOTILHO
apud SAULE JÚNIOR, 1999, 93).
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Daí decorre a posição hoje mais aceita pela doutrina, de que o disposto contido no art.
5, § 1º se trata de uma norma de cunho inequivocamente principiológico, um princípio
impositivo contendo um comando de maximização dos direitos fundamentais, estabelecendo o
dever dos órgãos estatais de conceberem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais.
Isso significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a
aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral,
ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente
justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada
norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma
interpretação tópico-sistemática. (SARLET, 2011, 271)
Assim, o Estado brasileiro tem obrigação de garantir minimamente o direito a
moradia, de forma que ninguém possa ser privado de direito ou garantia sob o argumento de
estar ele previsto em norma programática. Aceitar simplesmente esse argumento significa
negar a própria função do direito fundamental e o processo histórico por meio do qual ele se
desenvolveu desde sua gênese. É claro que a formulação e implementação de políticas
públicas é, primariamente, uma atribuição do Legislativo e do Executivo, cujos membros são
escolhidos democraticamente nos termos da própria constituição, mas negar-se eficácia aos
direitos fundamentais simplesmente por dependerem de norma infraconstitucional integradora
é submeter os direitos fundamentais ao voluntarismo político e dessa forma privá-los de sua
própria essência.
O
maior entrave que é colocado a efetivação de todos os direitos de cunho
prestacional por parte do Estado, é a questão do custo desses direitos. Sob os argumentos de
que os direitos sociais dependem de uma economia forte e de que o custo dos direitos sociais
superam os recursos orçamentários, cria-se a chamada “reserva do possível”, que busca
legitimar por meio de ilusória racionalidade a efetivação dos direitos sociais prestacionais aos
recursos orçamentários. Nesse sentido, a moradia se colocaria como um dos direitos de maior
custo, principalmente em razão da forma historicamente excludente com que o acesso à terra
se dá no Brasil. Observe-se ainda que, acesso à terra, não significa necessariamente moradia,
mas apenas a superação de um provável obstáculo. O acesso a moradia pressupõe o espaço,
mas demanda ainda uma série de outras intervenções estatais no sentido de garantir moradia
em condições adequadas, e por isso, muito mais caro.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Mas não se pode estabelecer uma relação de dependência entre a escassez de recursos
orçamentários e a efetivação de direitos. Afinal, todo o aparato estatal tem um custo, inclusive
quando é colocado em funcionamento para garantir os chamados direitos de defesa. Assim,
“estabelecer uma relação de continuidade entre a escassez de recursos públicos e a afirmação
de direitos acaba resultando em ameaça a existência de todos os direitos” (BARRETO, 2003,
121).
Aqui se coloca então a questão que parece fundamental. É possível a uma pessoa
compelir o poder público a alguma prestação material que venha a lhe assegurar o direito a
uma moradia digna?
A moradia é um direito social, e como tal se encontra enumerada expressamente entre
os direitos fundamentais, por outro lado, é compreendida
no contexto de uma norma
constitucional programática, exigindo integração por normal infraconstitucional para que
possa ser concretizada, o que não nega, e nem pode, a fundamentalidade dos direitos ali
estabelecidos. De outro lado, tem-se a questão da limitação orçamentária, que se não é capaz
de gerar verdadeiro argumento jurídico, apresenta-se como obstáculo fatal fático para a
eficácia dos direitos sociais.
Ora, sobre este último ponto, deve-se colocar a questão financeira do Estatal não deve
se sobrepor aos direitos fundamentais. A sua condição de fundamentais o coloca no centro do
ordenamento jurídico, a submeter toda a organização sócio-política da república por sua
condição de essenciais à vida humana, de forma que se os recursos não são suficientes para
atender os direitos fundamentais, devem ser tirados de outras áreas onde não a essa relação
essencialidade para a vida humana.
se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte,
fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente
ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde.
Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas
do tipo “porque gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL,
2002, 53)
A dignidade humana, como princípio fundamental da república, deve funcionar como
vetor no sentido de se garantir um mínimo de efetivação dos direitos sociais, inclusive o
direito à moradia, como um meio de garantir um mínimo necessário à própria existência
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
humana, a sobrevivência do indivíduo com um mínimo de dignidade. Se a limitação
orçamentária do poder público se afigura como uma realidade com a qual o direito tem que
lidar, isso não quer dizer por outro lado que os direitos sociais devem ser colocados como
reféns do orçamento ou efetiváveis quando houver sobras de caixa. A maximização dos
direitos fundamentais exige no mínimo posturas de todo o aparato estatal no sentido de
garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais e, garantir sua efetivação como
prioridade dada a sua fundamentalidade.
No que tange a questão da eficácia imediata dos direitos fundamentais, o fato das
normas constitucionais programáticas não regularem imediatamente um objeto, mas
preestabelecerem a si mesmo um programa de ação com respeito ao próprio objeto e se
obrigando a não se afastar dele sem um motivo, infere que o direito à moradia impõe a poder
público o dever de atuar positivamente em sua promoção e proteção enquanto meta
constitucionalmente estabelecida, no sentido de proporcionar moradia digna a toda a
população. O fato da norma ser estabelecida como programática, não implica em perda de
fundamentalidade pelo direitos sociais. Se por um lado tem eficácia eventualmente limitada,
por outro possibilitam inúmeros caminhos de proteção, ou mesmo, a criatividade do poder
público em fomentar o direito ali assegurado.
Assim, a se considerar exigível não o direito a moradia propriamente, mas condutas
estatais inequívocas, no sentido de promover o direito a moradia.
No caso brasileiro, pode-se considerar nesse contexto, as flexibilização das regras, e
dessa forma facilitação, da aquisição de propriedade pela usucapião a partir da Constituição
Federal de 1988, permitindo a aquisição por posse ininterrupta e justa, num prazo de 5 anos
de aquisição de imóvel para moradia própria e da família.
No Estatuto da Cidade, pode-se destacar a edição do Estatuto da Cidade, Lei No.
10.257/2001, onde em mais um passo importante o legislador admitiu a figura da Usucapião
Coletiva Urbana, instrumento de grande importância para regularização de assentamentos
habitacionais urbanos informais.
Mais recentemente, houve a implementação do programa governamental “Minha
Casa, Minha vida”, instituído pela Lei 11.977 de 2009, através do qual o governo federal
criou alguns mecanismos facilitadores da aquisição da casa própria.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
São importantes avanços em termos de concretização de direitos fundamentais,
podendo ser considerados inclusive sem parâmetros em nossa história constitucional, por
outro lado, na medida em que se atribui a característica universalidade aos direitos
fundamentais, é necessário que o aparato estatal tome medidas mais amplas, no sentido de
permitir a todos o direito de desfrutar de moradia condizente com a dignidade havida em todo
ser humano, especialmente quando trata-se da questão no âmbito do Brasil, um pais marcado
por desigualdades sociais históricas.
5. Considerações finais.
Os direitos fundamentais sociais, assim como os demais direitos fundamentais e
direitos do homem, surgem de um contexto histórico próprio, a partir do momento em que se
passou a compreender ao homem como essencial não apenas as liberdades e direitos políticos,
mas também outros direitos, de natureza social e econômica para que pudesse desenvolver
suas potencialidades enquanto ser humano com dignidade. Nesse contexto de direitos sociais,
encontra-se a moradia, compreendida como essencial ao ser humano, não só no âmbito da
construção histórica dos direitos humanos como dos direitos fundamentais constitucionais.
Assegurada na constituição de 1988, o direito a moradia enfrenta o dilema dos
direitos fundamentais sociais, normalmente de origem prestacional: a efetivação. Essa
efetivação encontra óbice na própria doutrina constitucionalista, com dificuldades em
identificar a mesma função e status nos direitos de cunho social, econômico e cultural
daqueles direitos fundamentais primariamente reconhecidos, as chamadas liberdades.
De fato, em um contexto constitucionalista que empresta ampla tutela à dignidade
humana, imprescindível se falar também em direitos fundamentais, dentre eles a moradia.
Embora se compreenda as limitações dos direitos fundamentais de cunho prestacional, sejam
aquelas colocadas pelo próprio ordenamento jurídico, sejam aquelas de ordem fática,
relacionadas ao custo financeiro da efetivação de direitos, é necessário que se preserve um
núcleo fundamental nos direitos sociais, de forma que eles mantenham sua condição de
fundamentos básicos da constituição e não se tornem reféns do voluntarismo político o que
desnaturaria a sua própria condição de direitos fundamentais.
Observa-se que, a compreensão atual do direito à moradia como norma programática,
se não nos permite dizer que ele vem sendo efetivada claramente, vez que direitos
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
fundamentais tem entre suas características a universalidade, e muito se faz necessário para
que todos os brasileiros tenham moradia digna, por outro lado, não é possível dizer que o
Estado brasileiro vem descumprindo com suas obrigações para a efetivação do direito.
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241
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O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS:
A
(IN)EFETIVIDADE
RESPONSABILIDADE
DA
PARTICIPAÇÃO
FISCAL
NA
PREVISTA
IMPLEMENTAÇÃO
PELA
DE
LEI
DE
POLÍTICAS
PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE
2014
THE RIGHT TO POPULAR PARTICIPATION AND THE MEGA SPORTS EVENTS: THE
(IN)EFETICTIVENESS OF PARTICIPATION PROVIDED BY THE LAW OF FISCAL
RESPONSIBILITY IN THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLICY
INFRASTRUCTURE FOR THE WORLD CUP OF FOOTBALL IN 2014
Alex Feitosa de Oliveira1
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a efetividade da participação popular
prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como em outras normas de nosso
ordenamento, no caso de orçamentos para a construção de obras que visam a estruturação das
cidades brasileiras para os megaeventos esportivos vindouros, em especial a Copa do Mundo
de Futebol de 2014. Procuraremos estudar qual a efetiva participação da população
diretamente afetada na definição orçamentária e no projeto de tais obras, não deixando
também de verificar se tal participação, ao menos é garantida quando da concretização das
obras. Dentro deste contexto, demonstrar-se-á a inexistência de participação inclusive nos
processos de desapropriação de propriedades privadas para construção de obras de
infraestrutura para os megaeventos, uma etapa necessária para a realização das obras, bem
posterior à etapa orçamentária aqui discutida. Demonstrar-se-á, diante da análise de uma obra
específica (VLT2 na cidade de Fortaleza) a inexistência da participação, desde a elaboração
orçamentária até a execução das políticas públicas.
Palavras-chave: Lei de responsabilidade fiscal, participação popular, orçamento,
megaeventos.
ABSTRACT
This work has as main objective analyse the efectiveness of the popular participation provided
by the Law of Responsability Fiscal, as well others norms of our ordering, in the public
budgets for construction of works aimed at structuring of Brazilian cities for the upcoming
mega sports events, especially the World Cup Football in 2014. This Study which will seek
the active participation of the population directly affected in setting budget and design of such
1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Defensor Público Federal titular do 5º ofício
cível na Defensoria Pública da União em Fortaleza/CE.
2
A sigla VLT irá ser utilizada neste trabalho para designar as obras do Veículos Leves sobre Trilhos na cidade
de
Fortaleza.
Para
maiores
informações,
consultar
http://www.transparencia.gov.br/copa2014/fortaleza/mobilidade-urbana/vlt-parangaba-ucuripe/.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
works, not leaving verify if such participation is guaranteed at least when the completion of
works. Within this context, it will demonstrate the lack of participation even in cases of
expropriation of private property for construction of infrastructure for mega events, a
necessary step for the realization of works, well after the stage budget discussed here. It will
demonstrate, before analyzing a particular work (VLT in Fortaleza), the lack of participation,
from budgeting to execution of public policies.
keywords: Law of responsability fiscal, popular participation, budget, mega events.
1 INTRODUÇÃO
A lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no ano de 2000 3, surgiu como um
instrumento para propiciar uma gestão publica responsável, entre outros objetivos4.
Objetivava tal lei mudar o pensamento dos gestores públicos, impondo-lhe um
comportamento baseado na transparência, eficácia e eficiência, tendo como um dos pontos
primordiais a ética dos gestores no exercício da função pública.
A lei em questão está dividida em 10 capítulos, abordando assuntos diversos que
envolvem o tema responsabilidade fiscal, despesa e receitas públicas, gestão patrimonial,
dívida e endividamento, transparência, entre outros5.
No presente trabalho pretendemos analisar um dispositivo específico da lei de
responsabilidade fiscal contido no capítulo destinado à transparência, controle e fiscalização.
Trata-se do art. 48, I da lei de responsabilidade fiscal, que dispõe sobre a participação popular
na elaboração e discussão acerca das leis orçamentárias6.
3
Lei complementar 101, de 04 de Maio de 2000.
Diversos são os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desde a transparência na gestão pública até a
penalização dos maus gestores. Ficamos aqui com os objetivos inseridos no art. 1º da lei: “Art. 1o Esta Lei
Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com
amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição. § 1 o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação
planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas
públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e
condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras,
dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de
garantia e inscrição em Restos a Pagar.”
5
De forma mais precisa, a lei se divide nos seguintes capítulos: i) Disposições preliminares; ii) Do
planejamento; iii) Da receita pública; iv) Da despesa pública; v) Das transferências voluntárias; vi) Da
destinação de recursos públicos para o setor privado ; vii) Da dívida e do endividamento; viii) Da gestão
patrimonial; ix) Da transparência, controle e fiscalização; x) Disposições finais e transitórias.
6
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive
em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações
de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei
Complementar nº 131, de 2009).
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração
e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de
2009).
4
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Tal análise terá como contraponto as obras destinadas aos megaeventos a serem
realizados no Brasil nos próximos anos (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016).
Procuraremos então verificar se houve/está havendo ou não a efetiva participação das
comunidades nos processos de elaboração dos orçamentos destinados às grandes obras a
serem realizadas, desde a elaboração dos orçamentos públicos até sua implementação, visando
a legitimação do procedimento7. Tentaremos responder a algumas perguntas, tais como: A
população diretamente interessada tem possibilidade de opinar sobre os orçamentos para as
obras de grande vulto, conforme dispõe a lei de responsabilidade fiscal? Há algum incentivo à
tal participação popular? Há efetivamente participação popular? Os interesses principais
realmente são os da comunidade que sofrerá os principais reflexos das obras? Se sim, porque
não há participação da comunidade na elaboração dos orçamentos, ao menos para tomar
conhecimento das quantias que serão despendidas?
Por fim, traremos como estudo de caso a situação das obras dos Veículos Leves
sobre Trilhos na cidade de Fortaleza, obra que, conforme dispõe o Governo do Estado do
Ceará8, irá trazer inúmeros benefícios à população da cidade de Fortaleza. Questionaremos
então se em tal obra houve ou está havendo obediência ao dispositivo da lei de
responsabilidade fiscal que dispõe sobre a participação popular, bem como procuraremos
responder às perguntas anteriormente formuladas, em especial verificando qual o grau de
participação popular nas etapas de tal obra.
Ressalte-se que, não é objetivo deste trabalho esgotar a questão relativa à
participação popular, visto que o foco principal aqui discutido é a participação na elaboração
dos orçamentos para tais obras e não na concretização ou execução de tais obras.
2 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR
7
A participação popular tem sido bastante utilizada como forma de legitimação dos atos através do
procedimento, como, por exemplo, as audiências públicas propostas pelo STF antes de decisões envolvendo
casos relevantes. Sobre o tema, Willis Guerra Santiago Filho afirma que “se mostra como a resposta adequada
ao desafio principal do Estado Democrático de Direito, de atender a exigências sociais garantindo a participação
coletiva e liberdade dos indivíduos, pois não se impõem medidas sem antes estabelecer um espaço público para
sua discussão, pela qual os interessados deverão ser convencidos da conveniência de se perseguir certo objetivo e
da adequação dos meios a serem empregados para atingir essa finalidade’ (GUERRA FILHO, Willis. Ensaios de
Teoria Constitucional, Fortaleza, 1989, pp. 90/91).”
8
O site oficial do Governo do estado do Ceará, ao tratar da obra do VLT dispõe que: “A criação desta linha de
VLT em Fortaleza favorecerá a dinâmica no transporte sob vários aspectos. Ele ligará a região hoteleira à
Parangaba, atendendo às diretrizes do Governo Federal, ao passar por portos, aeroportos, rodoviária e estádio.
Além disso, o VLT fará integração com o sistema de transporte público, o que o deixa em consonância com o
Plano Diretor de Fortaleza. Para se ter ideia da importância do VLT, basta analisar os números que caracterizam
a área por onde ele passará. No total, 62,14% das empresas instaladas em Fortaleza, 62,58% dos empregos
gerados e 81% dos hotéis da capital serão contemplados pelo Veículo Leve sobre Trilhos.”. Disponível em
http://transparencia.ce.gov.br/content/prioridades-de-governo/copa-2014/vlt-paranga-mucuripe.
Acesso em
15.07.2012.
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Conforme já aqui exposto, há dispositivo expresso na lei de responsabilidade fiscal
que prevê a necessidade de participação popular na elaboração dos orçamentos públicos.
Vejamos o que dispõe o citado artigo:
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada
ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos,
orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo
parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação
dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante
os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
Tal disposição legislativa corroborou o anseio da população brasileira em relação à
participação da mesma na gestão Pública. Isto porque, antes mesmo da publicação da lei de
responsabilidade fiscal, algumas iniciativas louváveis em termos de participação popular já
haviam sido desenvolvidas, o que aumentou em muito a pressão popular para a existência de
uma garantia de participação em nosso ordenamento, através de lei em sentido estrito9.
O caso mais emblemático é o da cidade de Porto Alegre, que se tornou modelo de
participação popular exaltado em todo o mundo. Boaventura de Sousa Santos ressalta tal
importância afirmando que:
Assim sucedeu na cidade brasileira de Porto Alegre onde, desde 1989, está
implantada uma forma de democracia participativa, designada por orçamento
participativo, cujo êxito hoje é amplamente reconhecido, tendo sido considerado
pela ONU como uma das quarenta melhores práticas de gestão urbana do mundo. É
conhecido que o êxito do orçamento participativo não foi estranho à escolha de
Porto Alegre como sede do Fórum Social Mundial. (SANTOS, 2002, p. 7-8)
Tal modelo baseou-se no denominado orçamento participativo, que permitia aos
cidadãos da cidade participar ativamente do processo orçamentário da cidade. Neste modelo
há três princípios básicos10, todos com ênfase na participação popular. A implementação se dá
9
Não se está aqui querendo afirmar que não seria possível defender a participação popular sem a existência de
uma lei, até mesmo porque alguns dispositivos constitucionais expressos (por exemplo a afirmação de que todo
poder emana do povo) poderiam justificar tal participação. Apenas discorre-se que o povo, com a existência de
lei expressa que regule a situação, se sentiria mais protegido de eventuais violações.
10
“Os três princípios são os seguintes: a) Todos os cidadãos têm o direito de participar, sendo que as
organizações comunitárias não detêm, a este respeito, formalmente, pelo menos, um estatuto ou prerrogativas
especiais; b) a participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia directa e de democracia
representativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é
determinado pelos participantes; c) os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método
objetivo baseado numa combinação de critérios gerais – critérios substantivos estabelecidos pelas instituições
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
através de várias instituições, desde governamentais até organizações comunitárias. O fato é
que a experiência de orçamento participativo de Porto Alegre foi amplamente reconhecida,
não só na cidade e no Brasil, mas também internacionalmente. A respeito da implantação do
orçamento participativo na Europa, Yves Sintomer, Carsten Hezberg e Anja Rocke afirmam
que:
Orçamentos participativos emergiram, simultaneamente, em sete países europeus, a
maioria da Europa Ocidental. Atualmente, outros processos estão em andamento ou
em fase preliminar em mais quatro países. No total, em 2008, existiam mais de cem
cidades europeias com orçamento participativo. (SINTOMER; HERZBERG;
ROCKE, 2010, v2, p. 41)
Muitas outras cidades brasileiras também o implementaram. O certo é que, a despeito
de críticas e possíveis adaptações, o caso do orçamento participativo de Porto Alegre trouxe
benefícios para a população residente naquele município, demonstrando que, mesmo não
efetivado de forma totalmente plena, a participação popular tende a trazer vantagens para os
cidadãos.
O orçamento participativo e outras formas de participação popular são instrumentos
de implementação da democracia participativa, democracia esta que ganha bastante força após
a fase autoritária vivida no Brasil11. Instaurada a democracia no País, em especial com o
advento da Constituição de 198812, a população, principalmente através dos movimentos
sociais, cada vez mais reivindica o direito de fazer parte do processo de gestão da coisa
pública. Assim, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal aqui citado pode ser visto
como um reflexo de tais reivindicações.
A nova Constituição Federal consagra a República Federativa do Brasil como um
Estado Democrático de Direito13. Desta forma, inegável que o Constituinte elegeu como
direito fundamental a democracia, que tem como essência, a participação popular em seu
governo14. Isto porque um país democrático não é só aquele que elege democraticamente seus
participativas com vistas a definir prioridades – e de critérios técnicos- critérios de viabilidade técnica ou
econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja
implementação cabe ao executivo.” Ibidem,2002, p.25-26.
11
Em especial com o regime militar ditatorial vivido por nosso País desde o golpe militar de 1964 até a
redemocratização ocorrida a partir do ano de 1985 e com marco final com a Constituição de 1988.
12
O artigo 1º da Constituição Federal bem reflete o anseio democrático ao afirmar: “Art. 1º A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”.
13
Art. 1º, caput da Constituição Federal de 1988.
14
Como exemplo de disposições constitucionais que indicam para o deito à participação popular podemos citas:
No art. 14, assegura a idéia da soberania popular e o voto direto e secreto de igual valor para todos, prevendo
ainda o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, instrumentos importantes da democracia participativa. No
âmbito municipal, o art. 29, XII, garante participação no planejamento e o art. 31, § 3º, garante a ampla
246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
administradores públicos, mas que também propicia aos cidadãos outras formas de
participação no governo.
Trazendo à baila a lição de Hugo de Brito Machado Segundo, quando discorre sobre
a democracia em sua obra, temos que:
a forma de governo na qual todos aqueles que se acham sob sua disciplina têm
iguais oportunidades de, livremente, interferir na sua formação e na sua condução,
podendo dele participar ou escolher,fiscalizar e criticar os que dele participam
(MACHADO SEGUNDO, 2010. p. 153.)
Assim, a democracia garante aos cidadãos não somente a escolha de seus
representantes, mas a participação na tomada de decisões relevantes para a Sociedade.
Entretanto, o que se tem verificado no início das obras para a Copa de 2014 é a total falta de
participação das comunidades, em especial aquelas afetadas diretamente pelos atos.
Em relação à participação política, o autor acima citado discorre: “Outra providência
que pode ser adotada, para aperfeiçoamento da legitimidade da ordem jurídica, é o incremento
na participação política dos cidadãos. Afinal, a democracia pressupõe a participação”.
(MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 225.) Assim, deve-se procurar incrementar a participação
popular nos processos orçamentários que visem às obras para os megaeventos.
Corroborando o caminho seguido pela Constituição Federal, o Estatuto da Cidade15,
contrariando, por exemplo, o procedimento que vem sendo adotado pelo Governo do Estado
fiscalização das contas. Ao disciplinar os princípios que regem a administração pública o Art. 37, § 3º,
possibilita ainda a criação de outras formas de participação do usuário na administração pública. Há também a
possibilidade da participação popular no processo legislativo, através de audiências públicas e reclamações
contra atos das autoridades, nas comissões das casas legislativas, previstas no Art. 58, II e IV, bem como a
participação diretamente na produção de leis, através da iniciativa popular prevista no Art. 61, § 2º. Prevê ainda a
participação de cidadãos no Conselho da República, conforme disposto no Art. 89, VII, e a participação de
entidades de representação de classe na escolha do quinto constitucional para integrantes dos Tribunais
Regionais Federais, Tribunais Estaduais e do Distrito Federal, conforme disciplinado no Art. 94. Disciplina
também a participação popular na gestão da atividade de administrar, tais como: dos produtores e trabalhadores
rurais no planejamento da política agrícola (Art. 187); dos trabalhadores, empregadores e aposentados nas
iniciativas relacionadas à seguridade social (Art. 194, VII); da comunidade em relação às ações e serviços de
saúde (198, III); da população através de organizações representativas nas questões relacionadas à Assistência
Social (Art. 204, II); a gestão democrática do ensino público (206, VI); da colaboração da comunidade na
proteção do patrimônio cultural (Art. 216, § 1º); da coletividade na defesa e preservação do meio ambiente (Art.
225); de entidades não governamentais na proteção à assistencial integral à saúde da criança e adolescente (Art.
227, § 1º) e das comunidades indígenas, inclusive nos lucros, das atividades que aproveitem os recursos hídricos
e minerais das suas terras (231, § 3º)
15
Lei nº 10.257/2001.
247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
do Ceará, nas desapropriações para obras da Copa do Mundo de 2014 16, prevê expressamente
a participação popular nas decisões17 que envolvam projetos urbanos para o Município.
Em contraposição, ainda visualiza-se resistência dos gestores públicos em permitir
tal participação, talvez como forma de não permitir um controle popular dos atos praticados,
dando margem a práticas políticas que visam não o interesse da coletividade, mas sim
interesses dos próprios gestores ou de particulares, em especial aqueles detentores do poder
econômico. Assim, a despeito de existir norma legal que dispõe sobre a participação popular,
na prática, tal dispositivo torna-se apenas mais uma norma que não possui implementação
efetiva por parte do Poder Público.
É sabido que a democracia participativa é umas das formas de legitimação do Poder.
Permitindo a participação dos cidadãos nos processo orçamentários, os gestores públicos
acabam por legitimar seus atos, que serão praticados com a participação dos cidadãos
diretamente envolvidos. Partindo desta premissa, a participação popular somente traria
benefícios aos gestores públicos, que veriam seus atos aprovados pelos cidadãos diretamente
interessados, fazendo sua gestão possuir uma maior legitimação.
Então, porque não se
implementa de forma efetiva tal participação? Como já disposto aqui, outros interesses
envolvidos acabam por frear o processo de participação popular. Citemos por exemplo o
interesse dos grandes grupos econômicos envolvidos, em especial das construtoras. Para tais
grupos, a manutenção de comunidades pobres em áreas consideradas de alta especulação
imobiliária acaba por inviabilizar ou mesmo dificultar a venda de eventuais imóveis
localizados naquela região, em virtude da presença de nichos de pessoas pobres. Assim, a
pressão que tais grupos fazem nos gestores públicos é enorme no sentido de que as obras
públicas atravessem os locais de moradia de tais pessoas de baixa renda, retirando-os daquele
local. Assim, permitir a participação de tais pessoas na definição do orçamento público, o que
conduz a uma inevitável participação nos projetos das obras a serem realizadas, acabaria por
dificultar a implementação dos interesses dos grandes empreendedores.
Tanto é verdade que as principais obras projetadas para a realização de infraestrutura
em cidades que vão sediar o evento Copa do Mundo de 2014, não estão contando com a
16
Várias violações, principalmente ao direito à moradia, estão sendo denunciadas nas desapropriações para as
obras da Copa do Mundo de 2014, nas mais variadas cidades-sedes, tendo a população cearense também sido
vítima de tais violações..
17
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano;
248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
participação popular na elaboração dos orçamentos e dos projetos, nem mesmo daquelas
pessoas que serão diretamente afetadas por tais obras. Talvez tal atitude seja motivada pelo
incômodo que pode gerar ao povo tal participação que, muitas vezes não terá benefícios reais
das obras a serem realizadas com orçamento público, visto que, em muito casos, as pessoas de
baixa renda são na realidade desalojadas do local onde vive. Matéria publicada no jornal
eletrônico A COMUNA bem expõe tal descaso:
Moradores de favelas, população de rua, prostitutas, e outros trabalhadores
informais já começam a sentir os efeitos negativos das operações urbanas e do
avanço da especulação imobiliária nas regiões centrais e próximas aos estádios.
Milhares de famílias estão sendo forçadamente removidas das áreas onde vivem para
a construção de infra-estrutura para os eventos, moradores de rua estão sendo
assassinados pela polícia, e muitos trabalhadores informais perderam a possibilidade
de trabalhar quer diante da intensificação da fiscalização dos municípios, quer pelo
avanço do grande mercado capitalista nas zonas onde trabalhavam. Para essas
pessoas a Copa do Mundo provavelmente não será a grande festa do futebol, mas o
pesadelo de serem removidas dos espaços urbanos em que durante anos moraram e
trabalhara. (COPA...,, 2012)
Assim, apesar de avanços significativos, muito ainda deve ser realizado para que
consigamos implementar uma democracia participativa ideal. Isto porque, a despeito das
experiências aqui citadas, muitas das obras públicas não permitem ao cidadão interessado
opinar sobre a forma de realização bem como de qual maneira se efetivarão os gastos
públicos. O caso dos megaeventos é um deles.
3 OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA
Após ser escolhida como sede para a Copa do Mundo de futebol de 2014 bem como
das Olimpíadas de 2016, várias cidades brasileiras iniciaram o planejamento com vistas à
criação de infraestrutura para realização de tal evento. Sem aqui adentrar na questão que
contorna a necessidade e os reais interesses de tais eventos 18, os mesmos podem ser sim ser
utilizados como meio de melhorar a infraestrutura da cidade, bem como também propiciar
melhoras sociais para os cidadãos residentes da localidade onde tal evento irá ocorrer.
Entretanto,
conforme
expomos
neste
trabalho,
contrariando
disposições
constitucionais e legais expressas, verifica-se que apenas uma pequena parcela da população,
em geral a parcela dos grandes investidores, se beneficia de forma direta de tais obras. A
18
Várias são as críticas que afirmam ser econômico o grande interesse para realização de tais eventos. A FIFA,
juntamente com várias empresas multinacionais, não nega a questão econômica envolvida nos jogos, como se
nota através da imposição de exclusividade para alguns de seus patrocinadores para os eventos.
249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
população de baixa renda, muitas vezes já com altos graus de pobreza e de violações de sua
dignidade, com a realização das obras, têm seus direitos ainda mais violados.
Assim, é certo que, após tal escolha do Brasil como sede de tais eventos, vários
projetos de obras iniciaram seu ciclo. Grande parte delas, para não dizer a totalidade, estão
projetadas para concretização com uso do orçamento público, seja ele federal, estadual ou
municipal. O seguinte trecho realça a quantidade de dinheiro público que será inicialmente
gasto com tal evento:
Além desse aterrador cenário que parece suspender disposições constitucionais
básicas, é preciso ressaltar que os ônus advindos da realização dos jogos no Brasil
incidirão quase que inteiramente sobre o dinheiro do povo. Já foi anunciada pelo
Governo Federal uma estimativa de 23 bilhões em gastos para a Copa, dos quais
98% devem vir dos cofres públicos. Estados e municípios que não tem nada a ver
com o Mundial, ficaram fora da bolada, assim como investimentos nas áreas
prioritárias como a saúde, a educação e a proteção social do governo já estão a ser
cortados. Acresce-se a isso o risco do país não conseguir recuperar o dinheiro
investido e acabar ficando com dívidas, assim como aquelas levantadas pela África
do Sul, no Mundial de 2010, a Grécia, nas Olimpíadas de 2004 e o Rio de Janeiro,
com os jogos Pan Americanos. Outras medidas como a privatização de aeroportos e
estádios de futebol, também parecem indicar que a população tem muito a perder
com o Mundial. (COPA..., 2012)
Dentro destes gastos públicos, pode-se ainda, por exemplo, citar a inclusão das
cidades escolhidas dentro do chamado Programa de Aceleração do Crescimento. O
denominado PAC contempla uma série de ações voltadas à dotação de equipamentos de
infraestrutura rural e urbana, atuando através de um conjunto de obras e ações nos segmentos
de energia, habitação, saneamento, mobilidade urbana e pavimentação, desenvolvimento
comunitário, universalização de acesso aos serviços de água e luz e ampliação da rede
logística de transportes19.
Em decorrência do PAC bem como de outros projetos, várias são as obras em
andamento no País. Todas com grande pressão da FIFA20 para que as mesmas sejam
concluídas a tempo de aproveitamento para a Copa do Mundo de 201421. Em relação às
olimpíadas que ocorrerão no Rio de Janeiro no ano de 2016, a situação não é diferente. A
pressão das entidades organizadoras é constante para que tudo esteja pronto è época do
20
Para maiores informações acerca do Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se visitar a página do
programa, disponível em http://www.brasil.gov.br/pac.
20
A FIFA é uma entidade privada que controla e organiza o futebol mundial.
21
Veja por exemplo cobrança da FIFA, uma de muitas, realizada em plena época dos Jogos Olímpicos de
Londres. Disponível em http://www.brasilturis.com.br/noticias.php?id=3322&noticia=fifa-aproveita-encontronao-agendado-em-londres-e-. Acesso em 27.07.2012. Em contrapartida, não se viu, em qualquer fase escolha do
Brasil como sede dos megaeventos, qualquer manifestação de tal entidade em prol da participação da população
nas decisões governamentais.
250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
evento, não importando a forma que se utiliza para que se concluam as obras, mesmo havendo
graves violações aos direitos dos cidadãos.
Assim, em muitos casos, para que as obras venham a ser concluídas a tempo do
evento, direitos das pessoas que sofrem o reflexo de tais obras são violados. Um desses
direitos violados é do da falta de participação no orçamento que visam tais obras. Participação
esta prevista na lei de Responsabilidade Fiscal, bem como implicitamente extraída do
princípio democrático. O fato é que sequer tais pessoas têm qualquer participação no processo
de elaboração do orçamento que visa a construção de tais obras, verificando, por exemplo, a
real necessidade das mesmas.
Questiona-se então se o interesse na realização e conclusão de tais obras não é
puramente financeiro e que visa beneficiar não a população que realmente sofre com os
reflexos de tais obras, em especial aquela população que terá suas moradias removidas22, mas
sim os grandes investidores e patrocinadores do evento. Acreditamos que sim. Tais entidades
pouco se preocupam com o desenvolvimento do país-sede bem como com os reflexos que os
eventos podem trazer para o avanço social de tais países.
Ao contrário, as obras, buscando a história recente de outros megaeventos, têm sido
marcadas por violações aos direitos dos cidadãos habitantes das cidades-sedes. A título de
ilustração, pode-se citar relatório elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, infra:
“Em Seul, por exemplo, 15% da população sofreram despejos forçados e 48.000
edifícios foram demolidos antes dos Jogos Olímpicos de 1988. Em Pequim, nove
projetos para a construção de um local representaram a expulsão em massa de seus
residentes, por vezes realizadas por homens nãoidentificados, no meio da noite e
sem aviso prévio. Em Nova Delhi, 35 mil famílias foram expulsas das terras
públicas para preparar os Jogos da Commonwealth 2010. Na África do Sul, o
projeto de habitação N2 Gateway, que incluiu a construção de habitação para
arrendamento para a Copa do Mundo de 2010, resultou na retirada de mais de 20 mil
moradores de Joe Slovo, um assentamento informal, que se mudaram para áreas
pobres nos limites da cidade”. (PLANEJAMENTO..., 2011).
Não se está aqui negando que os megaeventos podem trazer melhorias sociais, como
também já aconteceu na história dos mesmos23. Entretanto, pretende-se demonstrar que as
22
É certo que muitas das obras implicam em desapropriação de moradias, em virtude da necessidade de
construção e ampliação de vias, dos próprios estádios, e de infraestrutura em geral.
23
A respeito de resultados positivos experimentados em outros megaeventos, v. o acima citado relatório, que
aponta o seguinte: a) em Moscou, os Jogos Olímpicos de 1980 marcaram a culminação de uma política de
construção de moradias sociais com a transformação da Vila Olímpica em 18 edifícios de apartamentos com 16
andares; b) em Atenas, a Vila Olímpica erigida para os Jogos Olímpicos de 2004 deixou 3 mil novas unidades
habitacionais subsidiadas em benefício de 10 mil residentes6; c) em Londres, a metade das 2,8 mil unidades da
Vila Olímpica se convertirá em moradias acessíveis após os Jogos, e os planos atuais para a área do Parque
Olímpico contemplam ao redor de 10 mil novas moradias, 35% das quais poderão ser adquiridas.
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
violações aos direitos dos cidadãos são constantes quando se fala em grandes obras que
servem de base aos referidos eventos.
Como obras de grande interesse da população, as mesmas, em consonância com a lei
de responsabilidade fiscal, deveriam, quando da aprovação dos orçamentos a elas vinculados,
bem como antes mesmo de tal aprovação, quando de sua discussão, propiciar a participação
da população diretamente interessada, para que a mesma pudesse discutir a melhor forma de
realização de tais obras, buscando obras que realmente satisfaçam o interesse da população e
minimizando os impactos negativos de tais obras sobre a população, em especial a de baixa
renda. Entretanto, a realidade brasileira é outra. Muitas das obras realizadas visam beneficiar
não a população como um todo, mas sim empresários e instituições privadas. E um dos meios
para concretização de tais interesses é a negação da participação popular, conforme
discorreremos em seguida.
4 A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE
RESPONSABILIDADE FISCAL
Como vimos, existe previsão legal na lei de responsabilidade fiscal que determina o
incentivo à participação popular quando da discussão, elaboração e aprovação dos
instrumentos orçamentários.
Em que pese as iniciativas aqui já citadas, em muito casos, a aprovação dos
orçamentos se dá sem qualquer possibilidade da população diretamente interessada opinar
sobre os gastos a serem realizados pelo Poder Público, em desrespeito à Lei de
Responsabilidade Fiscal. O exemplo focado neste trabalho é o das obras para os megaeventos
esportivos. Assim, questiona-se a efetiva participação da população nos processos
orçamentários quando estão em jogo outros interesses, em especial os interesses privados.
Não data de hoje as críticas em relação a obras para megaeventos. Em relação aos
Jogos Pan-americanos de 2007, realizado no Rio de Janeiro, várias violações foram
denunciadas. No que tange aos orçamentos, objetos deste estudo, a situação foi a mesma. Os
gastos com o pan-americano do Rio de Janeiro foram os maiores da história. Muitas vezes,
para não alertar para a grande quantidade de gastos públicos, divulga-se um valor inicial a ser
gasto que, quase sempre, não é o valor final gasto. Vejamos o que dispõe o dossiê do Comitê
Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, ao analisar os gastos com o evento de 2007:
A divulgação de aumento de gastos frequentemente ocorre muito tempo após terem
sido efetuadas e, mesmo assim, nem todos os valores são publicados. Neste sentido,
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
a experiência do PAN 2007 é emblemática. O orçamento estimado em 2001, no
momento de pré-candidatura do município à sede era de R$ 390,15 milhões. Porém,
apenas seis meses após o encerramento dos jogos, foram contabilizados os gastos
que chegaram a R$ 3,58 bilhões, segundo dados do Tribunal de Contas da União
(TCU), indicando o acréscimo de quase 1.000 % em relação ao valor projetado
inicialmente. A ausência de transparência agravou a situação, pois há indícios de
que os dispêndios possam ter sido ainda maiores em função do TCU ter constatado
que os gastos não foram inteiramente contabilizados e divulgados. Em decorrência
disso o órgão O instaurou três processos investigativos. Ou seja, o direito à
informação pública novamente não foi respeitado.
No caso da preparação para os Jogos Olímpicos, há apenas uma estimativa inicial de
orçamento constando no dossiê de candidatura, mas que, segundo depoimento do
presidente da Autoridade Pública Olímpica, pode ser reajustada em quase o dobro já
neste ano de 2012. (MEGAEVENTOS..., 2012).
E muitos destes gastos foram realizados não para beneficiar a população que
realmente necessitava. Colacionamos outro trecho do relatório citado:
Por fim, concluímos que a atuação do Estado, através de seus gastos em um festival
esportivo, privilegiou as despesas que favoreceram o atual padrão de acumulação
capitalista no meio urbano, através de uma transferência de R$ 2,8 bilhões de
recursos públicos para poucos. De fato, os Jogos Pan-americanos de 2007 serviram
de elemento aglutinador de dirigentes esportivos, empresários e governantes na
construção do consenso político em torno do modelo de cidade global e visaram à
elevação dos rendimentos econômicos das classes mais favorecidas. Em decorrência,
ocorreu um aprofundamento da desigualdade social e concentração de renda a
despeito do legado de bem-estar social prometido. (MEGAEVENTOS..., 2012).
O mesmo dossiê traduz o sentimento em relação aos resultados obtidos com o
megaevento Pan-americano:
Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para
megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas
de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou
provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar
as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir
os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre
as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o
manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas
igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá
reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social.
(MEGAEVENTOS..., 2012).
Como se vê, não houve os benefícios desejados com o citado evento esportivo. Muito
desta desvirtuação dos gastos públicos se deve à falta de participação popular nas obras a
serem realizadas. Com a efetiva participação popular, um maior controle dos gastos públicos
poderia ter sido realizado. E a falta de participação popular ocorre não por falta de legislação
que o incentive. A Lei de Responsabilidade Fiscal, já amplamente exposta neste trabalho é um
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
exemplo. Ainda, a Resolução n. 13/2010 emitida pelo Conselho de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas recomenda às autoridades do país-sede “dar chance de
participação no processo de planejamento, desde a fase de licitação, a todas as pessoas que se
verão afetadas pela preparação do evento, e levar verdadeiramente em consideração suas
opiniões”. Além disso, também sugere ao COI24 e a FIFA que os países candidatos a
megaeventos esportivos “realizem processos abertos e transparentes de planejamento e
licitação, com a participação da sociedade civil, em particular as organizações que
representam o setor de moradia e as pessoas afetadas”.
Entretanto a participação popular não é efetivada. Não sai das legislações para a
prática. Muito disto se dá em virtude dos reais interesses por detrás dos megaeventos
esportivos. A maioria dos benefícios são direcionados para a classe dominante. Citemos mais
uma vez a experiência do Pan-americano de 2007:
Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para
megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas
de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou
provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar
as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir
os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre
as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o
manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas
igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá
reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social.
Como se vê, a experiência ocorrida no Rio de Janeiro demonstrou que as obras de
infraestrutura, no geral, visam beneficiar a camada mais favorecida da sociedade. Com este
objetivo, não há como os gestores públicos permitirem a participação popular, pois, com tal
participação, o objetivo principal, favorecer os detentores do capital, restaria obstacularizado,
pois a participação pressupõe discussão sobre a real necessidade dos gastos públicos, o que,
obviamente, traria para os grandes investidores problemas com a população local, que, com
certeza, não aceitaria as obras da forma com que são projetadas e concluídas.
Não podemos deixar de realçar que, algumas vezes, a participação popular é
formalmente permitida, no intuito de legitimar as obras que estão sendo realizadas, sem
contudo poder refletir de forma efetiva no desenrolar das obras públicas. Convoca-se, por
exemplo, uma audiência pública, exigida pela legislação, apenas para cumprimento da
mesma, já estando os projetos e os requisitos dos mesmos já traçados antes mesmo de se ouvir
a população diretamente interessada. Foi por exemplo o ocorrido com a audiência publica que
24
Comitê Olímpico Internacional.
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
visava discutir as obras do VLT. Apesar de realizada tal audiência, não foi dada oportunidade
de manifestação das comunidades diretamente interessadas (VLT..., 2012).
Como se vê, há clara violação da Lei de Responsabilidade Fiscal que, em muitos
casos, apenas é cumprida formalmente, sendo materialmente violada. Aliás, esta é uma
realidade de vários dispositivos legais brasileiros que, apesar de formalmente aprovados, são
desrespeitados sem qualquer escrúpulo, principalmente quando tais violações partem dos
gestores públicos. E isto se dá em benefício de atores externos, como, por exemplo,
especuladores imobiliários.
5 O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA
PARTICIPAÇÃO POPULAR
Iremos neste tópico analisar, como forma de trazer para a seara prática o que já foi
aqui afirmado em relação à falta de participação popular nos orçamentos que envolvem obras
para os megaeventos. O caso aqui posto é o de construção dos Veículos Leves sobre Trilhos,
que pretendem ser uma alternativa de transporte urbano, pretendendo modernizar o
deslocamento dos turistas presentes na cidade de Fortaleza para os megaeventos.
É importante inicialmente ressaltar que toda obra pública, de alguma forma, tende a
beneficiar uma camada da população. Acontece que, conforme veremos, o benefício sempre é
direcionado para as camadas mais abastadas da sociedade, não havendo uma preocupação
com a população mais necessitada que, em muitos casos, sofre prejuízos com tais obras.
Exigir a participação popular na elaboração dos orçamentos e projetos de
infraestrutura para os megaeventos, a despeito da legislação citada é, na prática, uma utopia.
Nenhuma forma de participação é permitida. A população diretamente atingida somente toma
conhecimento do projeto da obra, ou mesmo da obra, quando, por exemplo, o imóvel em que
reside entra na lista de imóveis a serem removidos, através de desapropriação.
No caso dos megaeventos, já foi noticiada na imprensa a falta de participação da
população, por exemplo, nos processos de desapropriação que visavam as obras de
infraestrutura relativas aos megaeventos, motivo pelo qual levou até mesmo a Relatoria
Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o Direito à Moradia Adequada a
enviar carta ao governo brasileiro com as denúncias recebidas25.
25
O dossiê traz relatos interessantes de violações que estão ocorerndo em todo o país. Para maiores detalhes
visualizar o dossiê em: http://faltacopa2014.wordpress.com/2011/05/13/dossie-denuncia-remocoes-da-copa/.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Entre as denúncias, no que toca à obra aqui relatada, está a existência de outros locais
possíveis para a desapropriação, tendo a Administração Pública escolhido para a passagem do
VLT, utilizando-se de sua discricionariedade, comunidades onde residiam pessoas sem poder
de reação ao procedimento, principalmente em virtude do baixo nível de escolaridade da
comunidade (minorias pobres).
Ainda, noticia-se que já se iniciou o processo de desapropriação sem qualquer
comunicação às comunidades, bem como que foi oferecido aos moradores opção de nova
moradia a ser construída em bairro bastante distante daquele em que residem, influenciando
substancialmente na vida cotidiana das pessoas26(COMITÊS..., 2011).
Ora, se os atos expropriatórios foram realizados sem qualquer participação popular, o
que dizer dos projetos orçamentários que visavam a obra em questão.
A população diretamente envolvida foi consultada e incentivada a opinar sobre a
obra do VLT? É óbvio que não. Apesar disto, talvez em virtude das graves violações que
estão sofrendo as comunidades envolvidas com as obras do VLT, em especial decorrentes de
suas remoções compulsórios, começa a haver uma forte resistência de tais comunidades,
exigindo-se sua participação no processo. Tal resistência demonstra a necessidade urgente de
mudanças que propiciem a participação popular. Em grandes obras, que acabarão por refletir
por vários anos sobre as comunidades, é essencial que haja a participação da população nos
projetos. E esta participação acaba por trazer uma maior justiça social, visto que, ao contrário
de privilegiar apenas as parcelas mais favorecidas da sociedade, tais obras, com a participação
do povo, também ajudará as camadas menos favorecidas.
Voltemos então para o exemplo da obra do VLT. Sem qualquer participação popular
no projeto, houve a definição de como a obra iria ser desenvolvida. Tal obra pretendia
inicialmente remover uma quantidade significante de pessoas de suas moradias, sob o
argumento de que era necessária tal remoção para a construção dos terminais do VLT.
Contudo, devido à grande resistência das comunidades, a quantidade de famílias a serem
removidas diminuiu significativamente (OBRAS..., 2012). Isto demonstra os transtornos
causados à população envolvida com as grandes obras em virtude da falta de participação
popular na definição dos orçamentos e de como as obras irão ser realizadas.
Os tempos são outros. A sociedade resiste com mais ênfase. Apesar de muitas vezes
não se preocupar muito com a questão da participação popular, quando há resultados que os
contrariem, a sociedade civil organizada reivindica seus direitos. E os gestores públicos, para
26
Nesta notícia, também podem ser encontrados relatos de violações aos direitos dos cidadãos afetados pelas
obras.
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evitar tais reivindicações podem muito bem utilizar a participação popular como meio de
legitimação de suas decisões. Mas uma participação efetiva e não apenas formal.
6 CONCLUSÃO
O presente trabalho pretendeu fazer um estudo e demonstrar que, apesar de
previsão legal, a participação popular na definição das diretrizes orçamentárias que visam a
gestão pública não acontece efetivamente na prática. No caso das obras que visam os
megaeventos, a situação não é diferente. Isto porque, em virtude de outros interesses
presentes, que muitas vezes influenciam a conduta dos gestores, a participação popular é vista
como um obstáculo à manutenção de tais interesses.
Entretanto, tem se verificado que, sem tal participação popular, os gastos públicos
com tais obras acabam por chegar a cifras bem acima dos valores que deveriam ser gastos,
apesar de críticas pontuais realizadas por alguns setores, em especial da imprensa jornalística
esportiva.
Ademais, os projetos das obras, em quase todas suas especificações, não têm uma
preocupação social, mas apenas mascaram interesses de grupos econômicos dominantes na
Sociedade. E uma forma de dar continuidade a tais interesses é deixa de fora do processo a
população diretamente interessada, que seria um obstáculo à concretização dos interesses
privados presentes.
O que fazer então? Os órgãos de controle têm papel essencial em tal efetivação.
Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Contas devem realizar seu papel
cobrando a participação da população em tais obras, desde a aprovação do orçamento até a
concretização das mesmas. Ainda, o Judiciário deve estar atento para tomar medidas eficazes,
quando provocado, para combater os desmandos do Poder, fazendo com que os gestores
públicos sejam obrigados a respeitar o dispositivo legal da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Outro meio talvez seja a conscientização da população através da educação e da
informação, a serem repassadas não somente por órgãos institucionais, mas também por
entidades privadas de defesa da população de baixa renda, como as ONGS, que estão cada vez
mais assumindo papel importante nesta luta.
Também há uma evolução neste sentido. As comunidades estão mais ativas em não
aceitar passivamente os atos públicos. Entretanto, entendemos que o gestor público ainda está
vencendo tais batalhas. Apesar de tais evoluções, os desmandos ainda estão sendo realizados.
257
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Cremos que, com uma maior mobilização popular, contando com o apoio das entidades aqui
citadas, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal tende a ser mais efetivamente
cumprido.
258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O DIREITO À SAÚDE: EQÜIDADE VERSUS ALTA COMPLEXIDADE
THE LAW TO HEALTH: EQUITY VERSUS HIGH COMPLEXITY
Sandra Maciel-Lima
Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba
Miguel Kfouri Neto
Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba
RESUMO
O direito à saúde no Brasil iniciou suas conquistas com o Movimento da Reforma Sanitária
em 1988 e com a definição na Constituição Federal relativa ao setor saúde. O artigo 196 da
Constituição Federal conceitua que a saúde é direito de todos e dever do Estado, propondo a
universalidade da cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo uma grande
mudança da situação vigente na época. A universalidade, por sua vez, é condição fundamental
para a equidade, entendida como igualdade de oportunidade na utilização de serviços de saúde
para necessidades iguais. Discutir a equidade significa considerar a diferença, a diversidade, a
pluralidade da condição humana. No bojo dessa discussão, o presente artigo visa discutir a
equidade no contexto da gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos
serviços de alta complexidade. Utilizando-se a pesquisa bibliográfica conclui-se que a
prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no
SUS, indica uma proximidade com o conceito de equidade na saúde, na medida em que esses
recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite.
Palavras-chave: Direito à Saúde; SUS; Equidade; Financiamento.
ABSTRACT
The Law to health in Brazil began its achievements with the Health Reform Movement in
1988 and with the definition in the Constitution relating to the health sector. Article 196 of
the Constitution defines that health is everyone's law and duty of the state, proposing the
universality of coverage of the Unified Health System (SUS), constituting a major change in
the situation prevailing at the time. Universality, in turn, is a prerequisite for equity,
understood as equality of opportunity in the use of health services for equal needs. Discuss
equity means considering the difference, diversity, plurality of the human condition. In the
midst of this discussion, this article aims to discuss fairness in the context of NHS
management, seeking to verify if this concept appears in the services of high complexity.
Using the literature concludes that the priority in transfers of resources to high-complexity
procedures in SUS, indicates a closeness with the concept of health equity to the extent that
these resources will be attending, not only the middle class but all people in need.
Keywords: Law to Health; SUS; Equity; Financing.
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INTRODUÇÃO
O tema da equidade em vem sendo abordado por vários autores no âmbito das
políticas públicas de saúde, visando, por meio da descentralização do Sistema Único de Saúde
(SUS), encontrar saídas para melhorar as condições de saúde da população brasileira. Um
debate complexo primeiro, pela dificuldade na escolha do conceito de eqüidade mais
apropriado para o campo da saúde e, segundo, pelo próprio contexto histórico da situação
socioeconômica e cultural brasileira.
O presente artigo não visa discutir a operacionalização das diretrizes constitucionais
de descentralização e de participação social para a organização e gestão do SUS, mas discutir
a eqüidade no contexto da gestão do Sistema Único de Saúde, buscando verificar se esse
conceito aparece nos serviços de alta complexidade. Assim, entender o significado de
eqüidade na saúde é fundamental para a presente discussão. Como afirma Lucchese (2003, p.
441), “encontrar a interpretação do conceito de eqüidade mais adequada ao campo de atuação
em saúde para então operacionalizá-la em tarefas de gestão do sistema orientadas à redução
de desigualdades é um grande desafio”.
Autores como Lucchese (2003), Viana, Fausto e Lima (2003) e Escorel (2001),
fazem referência à discussão presente na literatura internacional, que vem adotando como
ponto de partida para novas definições do termo eqüidade, o conceito desenvolvido por
Whitehead (1990) em seu trabalho intitulado “The concepts and principles of equity in
health”. Para Whitehead (1990, p.7) “eqüidade implica que idealmente todos deveriam ter a
justa oportunidade de obter seu pleno potencial de saúde e ninguém deveria ficar em
desvantagem de alcançar o seu potencial, se isso puder ser evitado1”. Ou ainda, que
iniqüidades em saúde "referem-se às diferenças desnecessárias e inevitáveis e que são ao
mesmo tempo consideradas injustas e indesejáveis2” (WHITEHEAD, 1990, p. 5).
Na opinião de Chetre (2000, s/p), “eqüidade sugere que pessoas diferentes deveriam
ter acesso a recursos de saúde suficientes para suas necessidades de saúde e que o nível de
saúde observado entre pessoas diferentes não deve ser influenciado por fatores além do seu
controle3”. Nesse sentido, a iniqüidade ocorre quando diferentes grupos têm acesso
diferenciado a serviços de saúde ou diferenças nas condições de saúde.
1
"Equity in health implies that ideally everyone should have a fair opportunity to attain their full health
potential and no one should be disadvantaged from achieving this potential if it can be avoided".
2
" It refers to differences which are unnecessary and avoidable but, in addition, are also considered unfair and
unjust".
3
"Equity suggests that different people should have access to sufficient health resources for their health needs
and that the level of health that is observed among different people is not influenced by factors beyond their
control".
262
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Assim, a eqüidade é “a introdução da diferença no espaço da igualdade e é parte do
processo histórico de lutas sociais que conformam em diversos contextos (tempo e espaço)
padrões de cidadania diferenciados”. Uma cidadania ampliada “na medida em que, ao
contrário dos direitos individuais civis e políticos, exigem a intervenção do Estado e
incorporam novos princípios ao desenvolvimento de padrões de cidadania” (ESCOREL,
2001, p.2-3).
Os princípios da igualdade e da universalidade na saúde tendem à homogeneização e
acabam por diluir as diferenças, prejudicando os cidadãos menos favorecidos. No entanto,
quando se introduz na discussão a eqüidade, no sentido de considerar a diferença,
possibilitamos a incorporação da diversidade, da pluralidade da condição humana, no
contexto das políticas sociais. É possível, entretanto, aproximar os conceitos de igualdade e
eqüidade, pois ambos “partem do princípio que a humanidade é diversa, plural, que os seres
humanos diferem entre si em suas personalidades, identidades e necessidades” (ESCOREL,
2001, p.5).
Incorporar a eqüidade no contexto da igualdade é para Escorel (2001), um avanço no
contexto das lutas sociais e das discussões sobre cidadania, no entanto, é preciso ficar atento
para a exacerbação do termo “cidadanias diferenciadas”, pois corre-se o risco de ressaltar a
inferiorização, a desqualificação dos mais pobres.
Sendo assim, a primeira parte do presente trabalho apresenta discussão sobre os
dilemas presentes entre os conceitos de justiça, eficiência e eqüidade. Para tanto, busca-se
referencial teórico em Bustelo (1994), Figueiredo (1997), Travassos (1997), Coelho (1998),
Vita (1999) e, principalmente, na discussão sobre “justiça como eqüidade” desenvolvida por
John Rawls (2002). Na segunda parte, discute-se a universalidade e a integralidade no SUS,
evidenciando-se os desafios da universalidade e do financiamento público em saúde. Na
seqüência, busca-se verificar a presença do conceito de eqüidade no serviço de alta
complexidade do SUS por meio de dados divulgados pelo Ministério da Saúde (MS), pelos
estudos do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS), pelo Sistema de
Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), pelo DATASUS, pela
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), pelos resultados do PNAD (2003)
apresentados por Travassos (2005) e pela pesquisa coordenada por Vianna (2005). Por fim,
conclui-se, por meio dos dados apresentados, que nos procedimentos de alta complexidade o
SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e integralidade no
acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. A prioridade nas
transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS indica uma
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão
atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite.
1
DESIGUALDADE VERSUS EQÜIDADE
Bustelo (1994), em seu texto “Hood Robin: Ajuste e eqüidade na América Latina”
apresenta algumas reflexões sobre os ajustes e as reformas econômicas, o aumento da pobreza
e da desigualdade social, no período da década de 1980. Utilizando-se de dados de diferentes
pesquisas (Banco Mundial, Cepal e outros), conclui que, nesse período, se acentuaram as
disparidades de renda, a pobreza aumentou, sobretudo nas áreas urbanas; a população mais
pobre sofreu perda maior de sua renda, em contrapartida os mais ricos melhoraram a renda em
números absolutos. Quanto aos gastos sociais, constatou-se que houve uma diminuição em
percentuais significativos, reduzindo a despesa real per capita em saúde, educação e
seguridade social4.
A eqüidade é segundo Bustelo (1994), o ponto político, social e econômico mais
delicado na agenda latino-americana. Equacionar a eqüidade com a eficiência implica evitar o
aumento das distâncias sociais, pois os equilíbrios macrossociais são tão importantes quanto
os equilíbrios macroeconômicos. Para o autor é importante abrir e ampliar os espaços de
integração social nos quais se reconciliem as complementaridades entre a eqüidade e a
eficácia. Então, para melhorar a eqüidade, além de requerer o crescimento, requer políticas
sociais que atuem sobre a distribuição da renda e da riqueza e não apenas políticas de
combate, as que configuram as metas “brandas” – metas relacionadas à tecnologia simples e
de baixo custo, porém de alto impacto, como é o caso da morbi-mortalidade infantil. Portanto,
falar em eqüidade implica falar de uma política social e econômica mais eficiente,
proporcionando uma maior cobertura, integração e qualidade dos serviços e políticas públicas.
No entanto, uma das grandes dificuldades em se definir uma distribuição social
adequada de recursos na área de saúde é conciliar justiça e eficiência (COELHO, 1998).
Dilemas entre justiça e eficiência repetem-se quando se procura estabelecer prioridades nas
políticas de saúde. Por um lado, “afirmar o princípio da eficiência significa negar socorro ao
mais necessitado ou discriminar certas categorias de indivíduos, o que é injusto e bárbaro”,
por outro lado, “afirmar princípios de justiça pode (...) significar que recursos que
4
Rocha (2005) aponta que o gasto social no Brasil – que inclui a totalidade dos gastos da previdência, da saúde,
da educação – equivale à cerca de 20% do PIB.
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
provavelmente salvariam determinados pacientes serão consumidos por outros sem que
resultem para estes últimos em benefícios significativos ou duradouros” (COELHO, 1998, p.
115).
No entendimento de Figueiredo (1997), a distribuição com base no critério da
necessidade gera um resultado mais igualitário. No entanto, distribuir de acordo com
necessidade requer uma alocação diferenciada de recursos, pois as necessidades são
diferentes. Os sistemas de seguridade social são, em geral, mistos com ênfase maior no mérito
ou na necessidade. Ao mesmo tempo em que garantem acesso a todos, distribuem de forma a
contemplar as necessidades, por meio de regras de seletividade e, o mérito, por meio da
manutenção do vínculo entre benefício e contribuição. Eis, novamente, o dilema.
Para Rawls (2002, p. 7), não é possível avaliar uma concepção da justiça unicamente
por seu papel distributivo, é preciso levar em conta suas conexões mais amplas, “pois embora
a justiça tenha uma certa prioridade (...), ainda é verdade que, em condições iguais, uma
concepção de justiça é preferível a outra quando suas conseqüências mais amplas são mais
desejáveis”. Os princípios da justiça social, na teoria de Rawls, fornecem um modo de atribuir
direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada
dos benefícios e encargos da cooperação social.
Rawls (2002, p. 64) trabalha com dois princípios de justiça:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de
liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem
ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como
vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e
cargos acessíveis a todos (grifos meus).
Para o autor, todos os valores sociais devem ser distribuídos igualitariamente a não
ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.
Nessa visão, a injustiça se constitui de desigualdades que não beneficiam a todos.
Rawls apresenta três princípios distintos de acordo com os quais a distribuição de
benefícios sociais e econômicos poderia ocorrer: a liberdade natural, a igualdade liberal de
oportunidades e a igualdade democrática.
O sistema de liberdade natural defende que um complexo institucional justo será
aquele que combinar uma economia competitiva de mercado com uma igualdade formal (ou
legal) de oportunidades.
O princípio de igualdade liberal de oportunidades visa assegurar um ponto de partida
igual para aqueles que têm talentos e capacidades semelhantes e estão similarmente
motivados a empregá-los. O que se exige são instituições e políticas que tenham por objetivo
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
neutralizar, tanto quanto possível, as contingências sociais e culturais que condicionam as
perspectivas que cada pessoa tem de cultivar seus próprios talentos. Na opinião de Vita
(1999), para os que têm sentimentos igualitários a desigualdade social fundada em diferenças
de talento e qualificação é ainda mais odiosa do que as desigualdades de renda e de riqueza
consideradas em si mesmas.
A igualdade democrática requer que os ricos abram mão de tirar proveito das
circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a não ser que o benefício se estenda
também aos pobres.
Na discussão de uma justiça eqüitativa, Rawls adota a interpretação da igualdade
democrática como a mais indicada e utiliza o princípio da diferença como solução para
enfrentar as arbitrariedades das políticas sociais. O princípio da diferença afirma que “não
importa o quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da
diferença, não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe5” (RAWLS, 2002, p. 80).
Na interpretação de Vita (1999), só são moralmente legítimas as desigualdades sociais e
econômicas estabelecidas para melhorar a sorte daqueles que se encontram na posição inferior
da escala de quinhões distributivos.
Percebe-se que o autor aposta na eqüidade para aparar os feitos negativos da
desigualdade.
No entanto, a forma como se dá a distribuição de recursos sociais ainda é um dilema.
Um dilema que se repete quando se procura estabelecer prioridades nas políticas de saúde
(COELHO, 1998).
Há um consenso de que a eficiência dos sistemas públicos de saúde depende de uma
alocação equilibrada dos recursos entre seus diversos setores. No entendimento do CONASS
(2006, p. 85), “problemas complexos como os da Saúde exigem soluções complexas e
sistêmicas”. Portanto, é preciso equilibrar as ações e os investimentos do sistema de saúde nos
níveis de baixa, média e alta complexidade. Veremos mais adiante que isso não ocorre. A
5
Na perspectiva de Rawls, o princípio da diferença considera a desigualdade justificável apenas se a diferença
de expectativas for vantajosa para os mais pobres. Ao aplicar esse princípio deve-se distinguir entre dois casos.
O primeiro caso é aquele em que as expectativas dos mais pobres estão de fato maximizadas. Nenhuma mudança
nas expectativas dos mais ricos pode neste caso, melhorar a situação dos mais pobres. O segundo caso é aquele
em que as expectativas de todos os mais ricos de qualquer forma contribuem para o bem-estar dos mais pobres.
Ou seja, se as suas expectativas fossem diminuídas as expectativas dos pobres cairiam da mesma forma. No
entanto, um esquema desses é injusto quando uma ou mais das maiores expectativas são excessivas. Se essas
expectativas fossem diminuídas, a situação dos mais pobres seria melhorada. A medida da injustiça de um
ordenamento depende de quão excessivas são as expectativas mais altas e da extensão em que sua realização
depende da violação dos outros princípios de justiça, por exemplo, a igualdade eqüitativa de oportunidades
(RAWS, 2002).
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
tendência dos investimentos do Ministério da Saúde (MS) não é de equilíbrio entre os três
níveis, e sim de prioridade dos investimentos em alta complexidade.
2
SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE
A seção de saúde da Constituição Federal de 1988 e as Leis n. 8.080 e 8.142 de 1990
constituem as bases jurídicas do SUS. A criação do Sistema Único incorpora grandes
demandas do movimento sanitário, tais como:
a saúde entendida amplamente como resultado de políticas econômicas e sociais; a
saúde como direito de todos e dever do Estado; a relevância pública das ações e
serviços de saúde; e a criação de um sistema único de saúde, organizado pelos
princípios da descentralização, do atendimento integral e da participação da
comunidade (CONASS, 2006, p. 25).
O SUS, segundo dados do CONASS (2006), organiza-se por meio de uma rede
diversificada de serviços, que envolve cerca de 6 mil hospitais, com mais de 440 mil leitos
contratados e 63 mil unidades ambulatoriais. São 26 mil equipes de saúde da família, 215 mil
agentes comunitários e 13 mil equipes de saúde bucal prestando serviços de atenção primária
em mais de 5 mil municípios brasileiros. Anualmente o SUS contabiliza 12 milhões de
internações hospitalares, mais de 1 bilhão de procedimentos em atenção primária à saúde, 150
milhões de consultas médicas, 2 milhões de partos, 300 milhões de exames laboratoriais, 1
milhão de tomografias computadorizadas, 9 milhões de exames de ultra-sonografia, 140
milhões de doses de vacina, mais de 15 mil transplantes de órgãos, entre outros.
Apesar desses números, o SUS ainda tem grandes desafios a superar, dentre eles, o
desafio da universalidade e o desafio do financiamento.
2.1
OS DESAFIOS DA UNIVERSALIDADE
A universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência é
um dos princípios do SUS, previsto na Lei 8.080 de 1990 (BRASIL, 2007), assim como a
integralidade na assistência; a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie; conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e
humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de
serviços de assistência à saúde da população, entre outros.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A universalidade no acesso aos serviços de saúde é, portanto, condição fundamental
para a eqüidade (TRAVASSOS, 1997). Na Constituição Brasileira (BRASIL, 1988), eqüidade
foi tomada como igualdade no acesso aos serviços de saúde, igualdade de oportunidade na
utilização de serviços de saúde para necessidades iguais6. Definição que, de forma humilde,
admite a complexidade no campo da saúde.
Para Mendes (1995) a universalização da saúde consagrada na Constituição de 1988
tinha como pretensão a inclusão de todos nos benefícios do sistema público de saúde, no
entanto, a expansão da universalização do sistema de saúde veio acompanhada de
mecanismos de racionamento, especialmente a queda na qualidade dos serviços públicos que
acaba por expulsar do subsistema público segmentos sociais de camadas médias, absorvidos
pelo subsistema privado. Nesse sentido, o mandamento constitucional é reinterpretado na
prática social não como um universalismo inclusivo, mas como um universalismo excludente
que garante a incorporação ao sistema público de segmentos mais pobres. Cria-se para
clientelas distintas, diversas modalidades assistenciais, tornando o sistema público mais uma
modalidade assistencial para pobres. Entretanto, os segmentos sociais expulsos não são
totalmente excluídos do sistema público porque continuam a depender dos serviços de alta
complexidade, com alto custos, que normalmente não são cobertos pelo sistema médico
privado.
Falar em igualdade no acesso aos serviços de saúde, ou ainda, na igualdade de
oportunidade para necessidades iguais, sem avaliar as desigualdades nas condições
socioeconômicas dos indivíduos é permanecer na obscuridade. Nesse sentido, Travassos
(1997) alerta para a importância em considerar que os custos incorridos no consumo de
serviços de saúde incluem, também, custos de transporte, de espera para o atendimento, de
aquisição de medicamentos etc. Esses tendem a ser, proporcionalmente à renda, maiores para
os grupos de menor renda, que geralmente vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços
é menor dificultando o acesso. Não há igualdade no acesso à saúde, há sim desigualdade,
diferença; uma realidade que reflete as desigualdades sociais.
Nas palavras de Travassos (1997, s/p.):
As desigualdades em saúde refletem, dominantemente, as desigualdades sociais, e,
em função da relativa efetividade das ações de saúde, a igualdade no uso de serviços
de saúde é condição importante, porém não suficiente, para diminuir as
desigualdades existentes entre os grupos sociais no adoecer e morrer.
6
O termo equidade não consta no texto da Constituição Brasileira de 1988, aparece na 8ª Conferência –
Princípio da Reforma Sanitária.
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Na prática, a maioria dos países apresenta sistemas mistos de eqüidade. No Brasil, o
SUS vem se consolidando como parte de um sistema segmentado que incorpora dois outros
subsistemas relevantes, o Sistema de Saúde Suplementar (sistema privado de assistência à
saúde) e o Sistema de Desembolso Direto (serviços de saúde adquiridos em prestadoras
privadas mediante gastos diretos dos bolsos das pessoas). Isso se dá, por várias razões,
“especialmente pelas dificuldades de se criarem as bases materiais para a garantia do direito
constitucional da universalização” e pelo fato do SUS se estruturar para responder demandas
dos setores mais pobres da população e demandas setorizadas, especialmente dos serviços de
maiores custos, da população integrada economicamente (CONASS, 2006, p. 50).
Na definição do CONASS (2006), sistemas públicos universais caracterizam-se por
ofertar a todos os cidadãos uma carteira bastante ampla, independentemente de gênero, idade,
renda ou risco, com financiamento público. Os sistemas segmentados, por sua vez,
caracterizam-se por segregar diferentes clientelas em nichos institucionais singulares. Nesse
caso, os sistemas público e privado são complementares, visto que atendem, mais ou menos
amplamente, a clientelas distintas.
A Tabela 1 apresenta a composição relativa dos usuários do SUS, reforçando a
característica de um sistema de saúde segmentado. Esses dados foram obtidos pelo CONASS
(2003) em pesquisa realizada para saber a opinião dos brasileiros sobre o SUS. Foram
entrevistadas 3200 pessoas distribuídas proporcionalmente em cinco grandes regiões.
Observa-se que 28,6% dos brasileiros pesquisados são usuários exclusivos do SUS, 61,5%
são usuários não exclusivos e 8,7% são não-usuários.
Pode-se afirmar, então, que 61,5% dos brasileiros utilizam-se também do sistema
privado e que 8,7% são usuários exclusivos dos sistemas privados.
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
TABELA 1 – PERCENTUAIS DE USUÁRIOS EXCLUSIVOS, NÃO EXCLUSIVOS E NÃOUSUÁRIOS DO SUS
CATEGORIAS
USUÁRIO SUS
USUÁRIO SUS NÃO
NÃO-USUÁRIO SUS
EXCLUSIVO
EXCLUSIVO
28,6
61,5
8,7
GERAL
REGIÃO GEOGRÁFICA
CENTRO-OESTE
20,6
69,2
8,5
NORDESTE
25,6
67,1
5,0
NORTE
31,9
64,2
3,4
SUDESTE
29,6
57,7
11,8
SUL
33,0
57,6
8,7
PARTE DO MUNICÍPIO
CAPITAL
30,1
55,7
13,0
INTERIOR
27,6
65,2
5,9
ZONA RESIDENCIAL
URBANA
28,3
61,0
9,8
RURAL
29,9
63,6
3,9
FONTE: CONASS (2003). Adaptação dos autores.
A mesma pesquisa identificou os diferentes graus de complexidade dos serviços
utilizados. Os resultados são apresentados na Tabela 2. Dos 86,8% do total de usuários
considerados exclusivos e compartilhados SUS, somente 5,8% dos pesquisados utilizaram
serviços de alta complexidade do SUS, enquanto 98% utilizaram os serviços de atenção
básica.
TABELA 2 – TIPOS DE SERVIÇO DO SUS UTILIZADOS NOS ANOS DE 2001 A 2003 – Em %
TIPOS DE USUÁRIOS
GERAL
86,8
Usuário de atenção básica
98,0
Usuário de atenção média
81,9
complexidade
Usuário de pronto atendimento
43,7
Usuário de atenção hospitalar
40,6
Usuário de atenção de alta
5,8
complexidade
FONTE: Adaptado de CONASS, 2003.
CENTROOESTE
86,0
97,7
82,8
NORDESTE
NORTE
SUDESTE
SUL
89,1
97,9
79,1
92,7
97,8
77.3
85,0
98,1
84,8
85,5
98,1
80,9
48,5
42,7
6,4
41,6
44,6
4,0
35,1
40,5
3,0
47,1
38,7
6,9
39,9
38,0
7,2
Percebe-se que há uma concentração maior na demanda por serviços de atenção
básica e de média complexidade. Enquanto que, um percentual pequeno, 5,8% no geral, busca
serviços de alta complexidade.
2.2
OS DESAFIOS DO FINANCIAMENTO
O desafio do financiamento da Saúde no Brasil, segundo o CONASS (2006), pode
ser analisado sob vários aspectos. O mais comum é o da insuficiência dos recursos financeiros
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
para se construir um sistema público universal. Nesse aspecto, o desafio está em, não só,
aumentar os investimentos, mas, também, melhorar a qualidade desse investimento.
De acordo com Carvalho (2007, s/p.), no Brasil,
mais de 30% da população vive em estado de pobreza (renda familiar mensal per
capita de até meio salário mínimo), e os gastos das famílias com habitação,
alimentação e transportes têm, em média, uma participação superior a 82% no total
das suas despesas, não incluídos aí os gastos com saúde, equivalentes a 5,35% do
total.
No entendimento de Travassos (1997), uma situação mais igualitária no sistema de
saúde brasileiro depende de maior disponibilidade de recursos financeiros para o setor, além
de um melhor uso dos já existentes com a implementação de uma política redistributiva na
alocação de recursos entre as esferas de governo e organização da rede local de serviços de
saúde para garantir uma melhor distribuição espacial desses serviços, adequando a oferta às
necessidades dos diversos grupos populacionais.
Na Constituição de 1988 ficou estabelecido que a responsabilidade do financiamento
seria compartilhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O SUS contava
também com o Orçamento da Seguridade Social – OSS, destinado ao financiamento das áreas
de Previdência Social, Saúde e Assistência Social e que estava apoiado na arrecadação das
Contribuições Sociais. A Constituição previa, no entanto, somente a participação da União,
que deveria destinar 30%, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o
desemprego, para o setor de saúde (BRASIL, 2005).
Apesar da previsão legal, até o ano de 1993, esse volume de recursos não chegou a
ser efetivado. Nesse ano instaurou-se uma crise no financiamento com a interrupção dos
repasses de recursos arrecadados pelo OSS. O MS assumiu o financiamento contraindo
empréstimos junto ao Fundo de Amparo do Trabalhador – FAT, pagos nos anos de 1997 e
1998. Na busca por soluções, criou-se a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou
Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira7 (CPMF), uma
contribuição vinculada à saúde e baseadas na movimentação financeira. Dois anos depois, ela
perdeu a sua exclusividade para a saúde, embora tenha sido prorrogada “após intensos debates
legislativos” (CARVALHO, 2007). Somente em 2000, e após um processo de negociação no
Congresso, a Emenda Constitucional 29 – EC 29 estabeleceu a vinculação de recursos para
ações e serviços públicos de saúde para União, Estados e Municípios. Para a União, o limite
mínimo de gasto foi estabelecido como o valor empenhado em 1999, acrescido de 5% e nos
7
A Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de
Natureza Financeira (CPMF) foi extinta em 31 de dezembro de 2007.
271
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
anos subseqüentes, acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB. Para
Estados, o montante mínimo de recursos a ser aplicado em saúde é de 12% da receita de
impostos e transferências constitucionais e legais e, para os Municípios, esse percentual chega
em 15% (BRASIL, 2005; CONASS, 2006).
Observando a Tabela 3, em termos de percentual do Produto Interno Bruto, os
recursos destinados às ações e serviços de saúde dos três níveis de governo cresceram entre
2000 e 2002, passou de 3,09% em 2000 para 3,48% em 2002, com ligeira queda em 2003,
atingindo 3,45% do PIB. A redução em 2003 deveu-se ao investimento federal, que
apresentou uma redução em termos de percentual do PIB destinado à saúde (BRASIL, 2005).
TABELA 3 – RECURSOS DESTINADOS ÀS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE POR
NÍVEL DE GOVERNO EM PERCENTUAL DO PIB, 2000 A 2003
2000
2001
2002
2003
2000
2001
2002
2003
Em % do PIB
Índice 2000 = 100
União
1,85
1,87
1,84
1,75
100,0
101,1
99,5
94,6
Estados
0,57
0,69
0,77
0,79
100,0
121,1
134,4
138,6
Municípios
0,67
0,77
0,87
0,91
100,0
114,9
129,9
135,8
Total
3,09
3,34
3,48
3,45
100,0
108,1
112,5
111,7
FONTE: SIOPS/SCTIE/MES. Notas técnicas 10/2004 e 09/2005 e IBGE. In: BRASIL, 2005, p. 4
De acordo com os dados do SIOPS, pode-se afirmar que essa redução, de 2002 para
2003, é uma tendência observada ao longo dos anos (Tabela 4) e a a queda de participação
federal após a implantação da EC 29 decorre, principalmente, do crescimento dos recursos
transferidos pelos demais níveis de governo.
TABELA 4 – PARTICIPAÇÃO NOS RECURSOS DESTINADOS À SAÚDE
SEGUNDO O NÍVEL DE GOVERNO 1980-2003
ANO
UNIÃO
ESTADOS
MUNICÍPIOS
75,0
17,8
7,2
1980
71,7
18,9
9,5
1985
72,7
15,4
11,8
1990
63,8
18,8
17,4
1995
59,7
18,5
21,7
2000
56,2
20,7
23,2
2001
52,9
22,0
25,1
2002
50,7
22,8
26,5
2003
FONTE: Equipe SIOPS/DES/SCTIE/MS. In: BRASIL, 2005, p.5
Obs.: Dados 1980 – 1990 – Despesa total com saúde; 1995- Gasto público com saúde
2000 a 2003 – ações e serviços públicos de saúde, segundo a EC-29.
A Tabela 5 mostra a evolução dos investimentos do MS, nos últimos dez anos, com
algumas categorias, merecendo destaque o incremento de 479% para medicamentos de
dispensação em caráter excepcional (drogas de alto custo e de uso permanente e, por vezes,
com indicação terapêutica para doenças raras), em valores corrigidos pelo IPCA de dezembro
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de 2004, tendo aumentado sua participação no gasto total com medicamentos (excepcionais,
estratégicos e farmácia básica) de 14% em 1995 para 34% em 2004.
TABELA 5 - EVOLUÇÃO DOS INVESTIMENTOS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1995 A 2004 – R$
MILHÕES DE DEZEMBRO DE 2004 - IPCA
TIPO DE GASTO
1) Média e Alta Complexidade
Serviços Produzidos (AIH/SIA)
Fundo a Fundo
Gestão Plena (ou Semiplena)
Medicamentos Excepcionais (1)
2) Atenção Básica
PAB Fixo
PAB Variável
Epidemiologia e Controle de Doenças
Farmácia Básica
Ações Básicas Vigilância Sanitária
PACS / PSF
Bolsa Família, Alimentação
e Combate, Carências Nutricionais
3) Medic. Estratégicos (2)
4) Saneamento Básico
5) Emendas Parlamentares
6) Demais Ações OCK
7) Pessoal Ativo
AÇÕES E SERVIÇOS DE
SAÚDE - TOTAL
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
11.819 11.797 13.685 12.501 13.568 14.447 15.017 14.358 14.817 15.807
10.583 9.159 9.509 6.901 8.271 6.304 5.631 6.104 5.870 1.290
1.236 2.638 4.178 5.598 5.296 8.142 9.386 8.254 8.947 14.517
1.093 2.515 3.892 5.329 5.011 7.632 8.792 7.714 8.392 13.691
143
123
286
271
285
512
596
539
555
826
2.557 2.277 3.035 3.662 3.943 4.382 4.894 4.972 5.122 5.997
2.152 2.017 2.358 2.833 2.683 2.460 2.369 2.192 2.036 2.094
405
260
677
829 1.259 1.922 2.525 2.780 3.086 3.903
202
204
281
482
708
649
662
641
74
187
234
222
195
190
186
6
9
35
82
91
56
87
88
93
83
152
195
269
372
489
935 1.282 1.550 1.747 2.163
249
875
125
0
3.530
4.726
56
407
60
123
3.011
4.160
171
953
152
341
3.602
4.092
97
864
235
408
3.710
3.702
211
1.262
304
535
4.327
3.777
217
1.178
227
546
4.473
3.749
225
1.136
1.587
823
2.808
3.478
299
1.349
670
516
3.728
3.498
394
1.275
109
548
3.790
3.590
830
1.418
471
753
4.447
3.810
23.632 21.835 25.861 25.082 27.715 29.001 29.743 29.091 29.249 32.703
FONTE: Departamento de Economia da Saúde / SCTIE / MS, cálculo de deflação pelo - IPCA realizado pelo
IPEA. In: CARVALHO, 2007, s/p.
(1) Inclui os relacionados a procedimentos de alta complexidade / custo, como transplantes e câncer, p.ex.;
(2) inclui os relacionados à hanseníase, TB e AIDS, entre outros.
A atenção básica foi o segmento assistencial que teve maior aumento (134,5%),
tendo sido de 33,7% o da atenção de média e alta complexidade, responsável pelo
financiamento da maior parte da assistência hospitalar.
Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido
insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve,
também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem
constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais,
afastando o SUS de um ideal de universalização. Devido à transição demográfica as
populações envelhecem e aumentam sua longevidade, aumentando os investimentos com os
mais velhos. A transição epidemiológica reforça o investimento com doenças crônicas e
doenças infecciosas emergentes e reemergentes. A incorporação tecnológica constante
aumenta as expectativas da população e dos profissionais de saúde em relação às novas
soluções sanitárias, assim como, são demandadas pelos prestadores de serviços, pela indústria
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
biomédica e pela indústria farmacêutica. Sem falar da existência de incentivos intrínsecos aos
sistemas de saúde que expandem as estruturas e as práticas médicas, estimulando a construção
de novas unidades de saúde, a formação de recursos humanos e a incorporação de formas de
pagamentos indutoras de uma sobreutilização (CONASS, 2006).
Em comparação com outros países (Tabela 6), o Brasil investe pouco em saúde. Em
2003, o Brasil situava-se abaixo da Argentina e dos países membros da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), que, em média, direcionam 8,5% do
PIB com saúde. Mas o que chama atenção é o investimento per capita do Brasil em 2003, 212
dólares anuais, valor inferior aos da Argentina (426 dólares), Chile (282 dólares), Costa Rica
(305 dólares) e México (372 dólares). O investimento público per capita do Brasil é de 96
dólares anuais, o mais baixo de todos os países analisados.
TABELA 6 – INVESTIMENTO EM SAÚDE EM PAÍSES SELECIONADOS, 2003
PAÍS
% DO PIB
PER CAPITA (US$)
ARGENTINA
8,9
BRASIL
7,6
CANADÁ
9,9
CHILE
6,2
COSTA RICA
7,3
ESTADOS UNIDOS
15,2
ITÁLIA
8,4
MÉXICO
6,2
PORTUGAL
9,6
REINO UNIDO
8,0
FONTE: World Health Organization (2006). In: Conass (2006).
426
212
2669
282
305
5711
2139
372
1348
2428
PER CAPITA PÚBLICO (US$)
300
96
1866
137
240
2548
1607
172
940
2081
Os investimentos estimados em saúde apresentados, na Tabela 7, revelam que em
2005 o gasto público em saúde foi de 68,8 bilhões. Os investimentos privados somaram 83
bilhões, dos quais 36,2 bilhões no Sistema de Saúde Suplementar e 46,8 bilhões no Sistema
de Desembolso Direto.
De acordo com o CONASS (2006, p. 72) o aumento no investimento público em
saúde encontra limites na carga fiscal e nas dificuldades que o país tem tido em crescer de
forma sustentada. Portanto, esse aumento remete a uma disputa distributiva nos orçamentos
públicos com outras categorias de investimentos e essas decisões se realizam na esfera
política. “O que define, ao fim e ao cabo, os direcionamentos dos recursos escassos são as
opções preferenciais da população que se transformam em demandas sociais e chegam aos
agentes de decisão política”.
274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
TABELA 7 – INVESTIMENTOS ESTIMADOS EM SAÚDE, POR SEGMENTOS. BRASIL, 2005
SEGMENTO DO SISTEMA DE SAÚDE
SUS
SISTEMA DE SAÚDE SUPLEMENTAR
SISTEMA DE DESEMBOLSO DIRETO
TOTAL
INVESTIMENTO ANUAL
R$ BILHÕES
68,8
36,2
46,8
%
45,3
23,8
30,9
151,8
100,0
FONTES: Ministério da Fazenda, STN. In: Afonso (2006). Agência Nacional de Saúde Suplementar
(2006). World Health Organization (2006). In: CONASS (2006)
Outro argumento apresentado é que os segmentos da classe média retiram-se do
8
SUS e abrigam-se no Sistema de Saúde Suplementar e por isso não tem interesse em
defender mais recursos para o sistema público de saúde. Por outro lado, “a experiência
internacional demonstra que a adesão dos estratos médios da sociedade foi um determinante
importante na implantação dos sistemas públicos universais” (CONASS, 2006, p. 73).
Entretanto, essa retirada é parcial, pois usam o SUS em dois pólos de serviços: o
mais simples, nas imunizações e o mais denso tecnologicamente, representado por serviços de
alta complexidade que não são ofertados pelo sistema privado nem custeados diretamente
pelas famílias, pelo alto custo (VIANNA, 2005). É o caso de alguns programas de excelência
do SUS, como o Programa Nacional de Imunizações, o Sistema Nacional de Transplantes e o
Programa e Controle de HIV/AIDS.
Nesse ponto o SUS parece aproximar-se efetivamente dos princípios da
universalização do acesso e da integralidade na atenção, um dos principais desafios da política
nacional de saúde. Na medida em que, em sua grande maioria, esses serviços de alto custo são
ofertados exclusivamente pelo SUS, como é o caso dos medicamentos de dispensação em
caráter excepcional, e dos transplantes, com poucas exceções (córnea, por exemplo). O
detalhamento será feito na próxima seção.
Outros aspectos interessantes para serem analisados em relação ao desafio do
financiamento da saúde é o da redução das despesas no sistema público de saúde e o da
eficiência na utilização dos recursos. Entretanto, esses dois aspectos serão apresentados neste
trabalho somente como indicadores de uma mobilização já existente, por parte das entidades
representativas do setor de saúde, em encontrar alternativas para alcançar a integralidade na
saúde (discutida na próxima seção).
A Tabela de Procedimentos, utilizada como referência para a remuneração de
serviços hospitalares prestados ao SUS, foi implantada no início da década de 1980, como
8
A chamada “universalização excludente” discutida no item anterior – Dilema da Universalização.
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
parte integrante do então denominado Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da
Previdência Social – SAMHPS, que se caracterizava como um sistema de remuneração fixa
por procedimento, baseado no conceito de valores médios globais. Com a implantação do
Sistema Único de Saúde, o SAMHPS foi renomeado SIH – Sistema de Informações
Hospitalares (em 1991) e continua até os dias de hoje sendo utilizado como base para o
pagamento de hospitais, embora os valores atualmente constantes da tabela guardem pouca ou
nenhuma relação com os custos (CARVALHO, 2007).
O SIH passou a ser utilizado como um dos mecanismos de transferência de recursos
financeiros, sendo fortemente afetado pelas políticas implantadas. Carvalho (2007, s/p) cita
como exemplo destas políticas:
as limitações estipuladas em relação ao número de internações passíveis de
apresentação pelos estados e municípios, para pagamento com recursos federais,
pelo SIH (equivalente a 9% da população residente ao ano) e em relação ao valor a
ser com elas despendido, definido pelo teto financeiro atribuído por portarias do
Ministério da Saúde. Outro exemplo é a indução à redução da proporção de partos
cesáreos ocorridos no país, operada por meio da Portaria GM /MS nº 2.816 de 1998,
que limitou o número de partos cesáreos a serem remunerados, a partir de sua
proporção no total de cada hospital, registrado pelo sistema.
Também, no sentido da redução de custos, outras iniciativas podem ser citadas. No
decorrer de 2004 e 2005, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) promoveu
encontros regionais com representantes do MS, das três esferas do governo, do Ministério
Público e demais entidades representativas do setor para construção de uma agenda comum
de modo a aperfeiçoar o sistema de saúde nacional. Entre outros acordos, houve consenso
sobre a necessidade urgente da construção de uma política de incorporação tecnológica e da
regulação da oferta e da demanda por serviços de saúde. Essas medidas passam por uma
política nacional de gestão de tecnologias (já em elaboração coordenada pelo MS) e pelo
planejamento e implantação de centrais de internação, consultas e exames, com utilização de
protocolos pré-determinados, de forma a evitar procedimentos desnecessários ou duplicados
(diretrizes de regulação de acesso já pactuadas pelas três esferas de governo9) (CARVALHO,
2007).
Em 2004, em resposta à crise crônica dos hospitais de ensino, pertencentes às três
categorias (pública, filantrópica e privada lucrativa), os Ministérios da Saúde e da Educação
criaram o Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino (Portarias Interministeriais nº
1000, 1005, 1006 e 1007 de 2004) que alterou a forma de certificação e de financiamento
desses estabelecimentos, prevendo a celebração de contratos em que são incluídas cláusulas
9
Diretrizes incluídas no “Pacto pela Saúde”, Portaria GM/MS nº 399 de 2006 (CARVALHO, 2007, s/p.).
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
relacionadas a metas e indicadores de qualidade e de produção de serviços, configurando a
modalidade de orçamentação global (CARVALHO, 2007). Esse Programa define como base
de cálculo para o repasse fixo mensal a série histórica de serviços produzidos, acrescida dos
valores do Fator de Incentivo ao Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa em Saúde (FIDEPS),
de novos incentivos e do impacto dos reajustes futuros dos valores da remuneração de
procedimentos
ambulatoriais
e hospitalares,
entre outros, constantes da Portaria
Interministerial 1006 de maio de 2004, art. 4º.
Além disso, o MS vem buscando formas alternativas de provocar as mudanças no
setor, em vez de Normas Operacionais foi concebido um novo acordo entre as instâncias, o
“Pacto pela Saúde”, publicado em 22 de fevereiro de 2006 pela Portaria GM/MS nº 399,
constitui-se como a somatória de três outros, quais sejam, o “Pacto pela Vida”, o “Pacto pelo
SUS” e o “Pacto de Gestão" 10.
Todas essas mudanças são resultado de um consenso entre os gestores das três
esferas de governo, que acreditam que a responsabilização pelo planejamento, regulação,
controle e avaliação de ações e serviços é requisito necessário para melhorar a eficiência na
utilização dos recursos na saúde e para tornar as ações de saúde quantitativa e
qualitativamente mais adequadas a cada realidade.
Falar de eficiência na utilização dos recursos é falar da integralidade regulada, por
ações de superação de ineficiências econômicas e alocativas e pela diminuição das
iniqüidades na alocação dos recursos financeiros do SUS.
3 A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE
A integralidade é um dos princípios do SUS, assim como a universalização. Todavia
difere em sua aplicação. A integralidade na saúde possibilita instituir, mediante consensos
fundamentados na evidência científica e em princípios éticos, validados socialmente, regras
claras e transparentes que imprimam racionalidade à oferta dos serviços de saúde (CONASS,
2006, p 75). Entendida dessa forma, a integralidade na saúde possibilita a racionalização na
oferta de serviços, transformando-se em um instrumento fundamental de melhoria e eficiência
dos gastos em saúde (VIANNA, 2005; CONASS, 2006).
Mas nem sempre a integralidade foi entendida dessa forma. Na Constituição Federal
(BRASIL, 1988), integralidade é definida como “atendimento integral, com prioridade para as
10
Mais informações sobre o Pacto pela Saúde ver CARVALHO, 2007.
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. Historicamente, foi assim
que se desenvolveu a assistência à saúde no Brasil. As ações de saúde foram divididas em
ações médico-assistenciais e preventivas. Atualmente busca-se oferecer assistência integral
por meio de uma maior articulação das práticas e tecnologias relativas ao conhecimento
clínico e epidemiológico (CAMPOS, 2003).
Segundo Vianna (2005, p. 146), o princípio constitucional da integralidade na saúde
é o que mais se aproxima da questão da atenção de alta complexidade, pois é na alta
complexidade que o SUS alcança total consistência aos princípios que lhes dão sustentação,
como a universalidade do acesso e a integralidade da atenção. Isso se deve a três fatores:
a)
ausência de inúmeros procedimentos de alto custo do menu dos planos de
saúde, inclusive dos contratados depois da regulamentação dessa modalidade;
b)
o custo de alguns serviços (transplantes, hemodiálise, medicamentos de
dispensação em caráter excepcional) são inacessíveis, fora do SUS, a quase
totalidade da população;
c)
a percepção do usuário quanto a melhor qualidade dos serviços SUS de mais
densidade tecnológica em comparação aos demais, conforme pesquisa do CONASS.
Resta saber identificar quais são os serviços considerados de alta complexidade. Para
o IBGE (2006, p. 20), os serviços de alta complexidade são “os serviços selecionados que
exigem ambiente de internação com uso de tecnologia avançada e pessoal especializado para
sua realização, como transplantes, cirurgias cardíacas, em queimados” etc. Uma conceituação
vaga e imprecisa, pois muitos procedimentos considerados de alta complexidade pelo MS,
não exigem internação.
Segundo Vianna (2005), o tratamento dado pelo próprio MS ao conceito de alta
complexidade, também dá margem a dúvidas. São considerados procedimentos hospitalares
de alta complexidade aqueles que demandam tecnologias mais sofisticadas e profissionais
especializados, definidos pela Portaria SAS/MS n.º 968, de 11 de dezembro de 2002.
Entretanto, alto custo e alta complexidade nem sempre são sinônimos, assim como não
significa que um procedimento considerado de alta complexidade tenha, necessariamente, que
ter alta densidade tecnológica.
Um procedimento de alta complexidade teria três atributos que o distingue dos
demais: a) alta densidade tecnológica e/ou exigência de especialistas e habilidades especiais
acima dos padrões médios; b) baixa freqüência relativa; de um modo geral procedimentos de
alta complexidade tem uma freqüência menor aos demais; c) alto custo unitário e/ou do
tratamento; nesse caso estão os transplantes múltiplos e o implante coclerar, entre outros
(VIANNA, 2005). O autor alerta ainda para o caráter dinâmico do conceito no tempo, como é
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
o caso dos equipamentos de raios X que já representaram uma tecnologia de ponta no passado
e, hoje, esse status é da ressonância magnética e da tomografia computadorizada.
Procedimentos estratégicos, no caso específico desta Portaria, significam prioritários;
procedimentos que recebem financiamento do MS por meio do Fundo de Ações Estratégicas e
Compensação (FAEC). Fundo criado pelo MS em abril de 1999 pela Portaria GM/MS n.º 531,
com o objetivo de garantir financiamento pelo gestor federal de procedimentos de alta
complexidade.
Após várias mudanças, a destinação dos recursos do FAEC pelo MS ficou dividida
em quatro blocos: a) ações assistenciais estratégicas: campanhas de cirurgia eletivas;
transplantes, medicamentos excepcionais etc. b) incentivos para estimular a parceria com o
sistema público ou a realização de ações assistenciais; Integrasus: adicional pago aos hospitais
filantrópicos; c) novas ações programáticas: humanização do parto; triagem neonatal etc. d)
Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC): financiamento de
procedimentos de alta complexidade para usuários do SUS provenientes de outros estados que
não dispõem desses recursos (VIANNA, 2005; OPAS, 2002).
No Quadro 1, observa-se a forma de financiamento dos procedimentos ambulatoriais
e hospitalares de alta complexidade pelo SUS em 2004. Todos os transplantes, assim como os
procedimentos associados, entre os quais está a captação de órgãos, são pagos pelo MS por
meio do FAEC, não afetando, portanto, o teto financeiro de estados e municípios.
Segundo Vianna (2005), a tendência ao aumento da demanda por serviços de alta
densidade tecnológica, leva a custos crescentes atribuíveis a fatores como:
a) aumento da população e da longevidade: entre as pessoas mais velhas, o gasto com
assistência médica tende a crescer, devido a taxas de internação mais elevadas, maior
complexidade e a freqüência dos procedimentos médicos utilizados;
b) crescente complexidade tecnológica: a incorporação de novas tecnologias é, em
geral, cumulativa e não substitutiva. A inclusão de um novo recurso terapêutico ou de
diagnóstico não substitui outros mais antigos;
c) modificações nos padrões de morbidade pela população: o surgimento de novas
doenças cresce ao mesmo tempo em que cresce a incidência de moléstias crônicas e
degenerativas e do trauma, problemas que, geralmente, demandam terapias complexas.
d) papel reduzido do mercado: alguns serviços e/ou procedimentos altamente
especializados já estão sendo providos quase que exclusivamente pelo setor público. Seja pelo
poder aquisitivo reduzido da população, seja pelo alto custo do tratamento. É o caso dos
transplantes, como os de fígado e de coração, e dos chamados medicamentos excepcionais;
279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
QUADRO 1 - SUS: PROCEDIMENTOS AMBULATORIAIS E HOSPITALARES DE ALTA
COMPLEXIDADE CONFORME A FORMA DE FINANCIAMENTO - 2004
PROCEDIMENTOS
AMBULATORIAIS
Hemodinâmica
Ressonância Magnética
Tomografia Computadorizada
Medicina Nuclear
Imunologia
Terapia Renal Substitutiva
Radioterapia
Quimioterapia
Hemoterapia
Radiologia intervencionista
Medicamentos “excepcionais”
HOSPITALARES
UTI
Transplantes
Polissonografia
Cirurgia Oncológica
Tratamento da Aids
Cardiologia
Hemoterapia
Ortopedia
Neurocirurgia
Tratamento Cirúrgico de Epilepsia
Gastroenterologia (Gastroplastia)
Deformidades Crânio-Faciais/Lábio-palatais
Implante Coclear
Órteses e próteses na AIH
FAEC*
FONTE: VIANNA, 2005, p. 20
* Fundo de Ações Estratégicas e de Alta Complexidade
TETO ESTADUAL**
** Limite Financeiro Estadual
e) aumento do grau de consciência de cidadania: a população está cada vez mais
exigente em relação ao atendimento de seus direitos entre os quais os de acesso a atenção
integral à saúde.
Esses fatores estariam exercendo pressão sobre o redirecionamento dos
investimentos em saúde, como mostra a Tabela 8. Em relação ao investimento total do MS
com ações e serviços públicos de saúde, o valor destinado à alta complexidade passou de
13,1%, em 1995, para 19,2% em 2003, um crescimento de 46,6% nesse período.
TABELA 8 – SUS: INVESTIMENTO DO MS COM AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE E COM
ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE 1995/2003
ANO
AÇOES E SERVIÇOS
1995
2003
INCREMENTO %
FONTE: VIANNA, 2005, p. 25
12.211,6
27.179,5
122
ALTA
COMPLEXIDADE
1.600,9
5.214,3
226
% (H/)*100
13,1
19,2
46,6
280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Esse incremento na participação da alta complexidade nos gastos do MS indica o
grau de prioridade da atenção de alta tecnologia na política nacional de saúde (CONASS,
2006). Em relação à média complexidade, os investimentos federais do MS caíram de 78,49%
em 1999 para 59,12% em 2005, uma queda muito acentuada num período muito curto. A
Tabela 9 mostra que, em termos absolutos, os valores nominais no período cresceram 2,6
vezes na média complexidade e 6,7 vezes na alta complexidade.
TABELA 9 – INVESTIMENTO DO SUS EM BILHÕES DE
PERCENTUAIS, NAS ALTA E MÉDIA COMPLEXIDADE, 1999-2005
ANO
REAIS
MÉDIA COMPLEXIDADE
ALTA COMPLEXIDADE
VALOR
%
VALOR
%
1999
3,28
78,49
0,89
21,51
2000
5,35
66,41
2,70
33,59
2001
5,59
63,83
3,16
36,17
2002
6,52
63,93
3,68
36,07
2003
7,71
63,45
4,44
36,55
2004
8,26
61,19
5,24
38,81
2005
8,68
59,12
6,00
40,88
FONTE: MS: SAI/SIH/SUS. In: CONASS, 2006, p.88
E
EM
TERMOS
TOTAL
VALOR
`%
4,17
100,0
8,05
100,0
8,75
100,0
10,20
100,0
12,15
100,0
13,50
100,0
14,68
100,0
Nesse ponto, talvez seja possível identificar um indício da presença da eqüidade na
saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente à classe média, mas
toda a população. Recursos destinados a custear demandas geradas tanto pelas características
de uma população em crescimento, que vive mais tempo e que tem vivenciado a redução de
seu poder aquisitivo, como pela complexidade tecnológica à disposição no atendimento a
novas doenças ou como nova alternativa para velhas e conhecidas doenças.
A distribuição interna do investimento em alta complexidade subdivide-se quanto ao
tipo de procedimento (diagnóstico, terapêutico e outros) e em relação à partição ambulatorial
ou hospitalar (Tabela 10).
TABELA 10 – SUS: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO INVESTIMENTO DO MS COM
PROCEDIMENTOS DE ALTA COMPLEXIDADE – 1995-2003
PROCEDIMENTOS
1995 1996 1997 1998
1999 2000 2001 2002 2003
I –AMBULATORIAIS
60,86 60,94 63,32 60,36
57,24 61,03 59,75 57,43 56,84
(a) Serviços/Procedimentos Diagnósticos
5,16 5,26
4,69
4,86
6,22
5,92
4,85
4,75
4,60
(b) Serviços/Procedimentos Terapêuticos 51,06 51,70 50,09 47,82
44,43 44,55 43,21 41,96 40,91
(c) Outros ambulatoriais
4,63 3,97
8,54
7,68
6,59
10,56 11,70 10,72 11,33
II – HOSPITALARES
39,14 39,06 36,68 39,64
42,76 38,97 40,25 42,57 43,16
(a) Serviços/Procedimentos
31,84 31,06 29,00 31,61
36,38 31,95 32,67 34,10 33,32
(b) Outros Hospitalares
7,31 8,00
7,68
8,03
6,38
7,02
7,58
8,48
9,84
TOTAL GERAL
100 100
100
100
100
100
100
100
100
FONTE: Assistência à Saúde no SUS: Média e Alta Complexidade (2003) e DATASUS (2003); In: VIANNA,
2005, p. 29
281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Observa-se uma redução relativa na participação do investimento ambulatorial de
60,86%, em 1995 para 56,84%, em 2003. Enquanto que a participação do investimento
hospitalar apresenta um crescimento relativo, passando de 39,14% em 1995 para 43,16% em
2003. Um comportamento inverso que se deve, “não só a adoção de tecnologias que exigem
menos internações, mas também ao crescimento de programas como os de atenção básica (...)
e os de assistência farmacêutica neste caso em função da pressão dos medicamentos de alto
custo” (VIANNA, 2005, p. 28).
Para 2001, o MS indicava uma oferta de serviços hospitalares de alta complexidade,
no SUS, composta por 2.256 centros credenciados, unidades com internação que atendiam os
requisitos técnicos específicos fixados pelo MS. Observa-se na Tabela 11, que os serviços de
alta complexidade mais numerosos são os de terapia intensiva (25,9%), seguidos pelos
serviços de transplante (12,9%). Serviços menos numerosos como o item “Outros” (na tabela)
correspondem a 4,4% do total. Desses serviços, 32% são de queimados e 26% são de
tecnologias de incorporação recente (1999) como a gastroplastia.
TABELA 11 –
SUS: FREQÜÊNCIA E PERCENTUAL DE SERVIÇOS HOSPITALARES DE ALTA
COMPLEXIDADE POR ESPECIALIDADE - 2001
ESPECIALIDADES
FREQÜÊNCIA
%
Terapia Intensiva (UTI)
585
25,9
Transplantes
292
12,9
Neurocirurgia
272
12,1
Oncologia
257
11,4
Gestação de Alto Risco
246
10,9
Cardiologia
207
9,2
Ortopedia
176
7,8
Urgência/ Emergência
121
5,4
Outros
100
4,4
TOTAL
2256
100
FONTE: Assistência à Saúde no SUS – Média e Alta Complexidade. In: VIANNA, 2005, p. 23.
De acordo com a pesquisa do CONASS (2006), a posição privilegiada dos
procedimentos de alta complexidade, nos repasses de recursos financeiros pelo SUS, pode ter
relação, dentre outros fatores, com:
a) a eficácia da articulação de interesses profissionais de saúde de mais prestígio
social, da indústria biomédica, da indústria farmacêutica, dos prestadores de serviços de maior
densidade e de grupos de usuários mais organizados; e,
b) com a oferta limitada de serviços de alta complexidade nos Sistemas de Saúde
Complementar, por apresentarem custos muito altos, impossíveis de serem cobertos por
desembolso direto.
282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O primeiro fator pode ser elucidado por uma frase de Biancarelli (2003, s/p.): “viver
ou morrer depende não só da doença que se pega, mas também do ‘lobby’ que se organiza em
torno dela”. E mais, “o nível de gravidade e de letalidade das patologias costuma depender
igualmente do grau de organização dos seus pacientes e familiares”. O autor relata diversos
casos de grupos de familiares articulados em torno de doenças graves, que conseguem
medicamentos específicos para garantir a sobrevida de seus filhos, mediante pressão sobre o
MS e ações na justiça. Essas diversas organizações populares, tais como, associações de
pacientes com fibrose cística, anemia falciforme, doença de Parkinson, diabetes, Aids etc.,
muitas vezes “chegam a ter mais força do que o Estado”.
Da mesma forma, dados do CONASS (2006) mostram que o incremento com
medicamentos de dispensação em caráter excepcional, vem repercutindo nos orçamentos
federal e estadual da Saúde. Medicamentos de alto custo, geralmente exclusivos de
determinados laboratórios ou indústrias farmacêuticas.
Entretanto, em sentido contrário, Coelho (1998, p. 126) alerta para possíveis fatores
institucionais na determinação destes resultados. A autora indica que “há um limite nas teorias
que interpretam o conteúdo e o resultado de certas políticas públicas como reflexo direto da
força e dos interesses dos atores em disputa”, nesse sentido, aponta a importância de se levar
em consideração políticas prévias e o próprio desenho institucional do SUS na determinação
desses resultados.
Com relação ao segundo fator, é fato que o custo de alguns serviços os tornam
inacessíveis mediante pagamento direto a quase totalidade da população, os transplantes são
um exemplo. Da mesma forma, esses procedimentos não estão previstos na cobertura de
diversos planos de saúde, favorecendo a demanda no SUS.
Essa exclusividade na oferta de serviços de alta complexidade aproxima o SUS da
eqüidade na saúde (RAWLS, 2002, p.80), pois essa situação pode ser benéfica a partir do
momento em que gerar ganhos para todos os demais usuários SUS. Repetindo, “não importa o
quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da diferença,
não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe”.
Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido
insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve,
também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem
constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais,
afastando o SUS de um ideal de universalização. Pois, além dos interesses, também as
políticas prévias e as instituições – que com suas regras, procedimentos normativos e
283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
capacidades administrativas acabam fortalecendo certos atores, enquanto fragilizam outros –
contribuíram para esse resultado (COELHO, 1998).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelos dados apresentados, o que tudo indica é que nos procedimentos de alta
complexidade o SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e
integralidade no acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. No
entanto, princípios como igualdade e universalidade na saúde tendem à homogeneização e
acabam por diluir as diferenças. Diferenças que aparecem no efetivo consumo de serviços de
saúde. Custos de transporte, de espera para o atendimento, de alimentação, de aquisição de
medicamentos etc., tendem a ser maiores para os grupos de menor renda, que, geralmente,
vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços é menor dificultando o acesso. Há oferta
de serviços a toda população, mas nem todos podem usufruir por dificuldades nem sempre
previstas no processo.
Sendo assim, a prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de
alta complexidade no SUS, indica uma proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na
medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a
população que necessite. Pode-se questionar, então, se essa política é justa. Na visão de Rawls
(2002, p. 26), “justas são aquelas instituições e ações que das alternativas possíveis retiram o
bem maior, ou pelo menos tanto bem quanto quaisquer outras instituições e ações acessíveis
como possibilidades reais”, nesse sentido, nem sempre o justo maximiza o bem. A justiça
como eqüidade é uma teoria deontológica no sentido de que não interpreta o justo como
maximizador do bem. Presume-se que as pessoas na posição original escolheriam um
princípio de liberdade igual e restringiriam as desigualdades econômicas e sociais àquelas do
interesse de todos, portanto, não há razão para pensar que instituições justas maximizarão o
bem.
Na justiça como eqüidade o conceito de justo precede o de bem, então, a prioridade
no financiamento dos procedimentos de alta complexidade juntamente com sua proximidade
aos princípios de universalização no atendimento e integralidade no acesso, pode ser
considerada uma política justa, no sentido de Rawls, embora não maximize o bem para todos.
284
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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2008.
286
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE
E A RESPONSABILIDADE DO CIDADÃO1
EL DERECHO FUNDAMENTAL SOCIAL DE LA SALUD
Y LA RESPONSABILIDAD DE LOS CIUDADANOS
Rogério Gesta Leal*
Daniela Menengoti Ribeiro∗∗
RESUMO
O presente ensaio aborda o infindável tema do Direito Fundamental Social à saúde, diante da
sua dimensão protetiva que ultrapassa interesses meramente individuais, e do consenso do
dever do poder público em organizar-se para fornecer a saúde a todos, visando o respeito a
dignidade humana e a fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e às garantias
fundamentais. Nesta perspectiva, questionará sobre a parcela de responsabilidade que o
cidadão (em suas demandas individuais) tem em face do direito à saúde, buscando defender, a
partir da análise de caso concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse
exame o próprio indivíduo, a família e as instituições privadas.
PALAVRAS-CHAVES:
Direito fundamental à saúde; Responsabilidades; Poder público
RESUMEN
Este ensayo aborda el tema de los derechos sociales fundamentales a la salud, antes su
dimensión protectora que pasa los intereses meramente individuales, y el consenso de la
obligación del gobierno de organizarse para proporcionar servicios de salud a todos, a fin de
respetar la dignidad humana y el fortalecimiento del respeto a los derechos humanos y
garantías fundamentales. Desde esta perspectiva, se pregunta sobre la responsabilidad que un
ciudadano (en sus demandas individuales) tienen frente al derecho a la salud, tratando de
defender que es un deber de todos garantizar este derecho a la salud, sin excluir el propio
individuo, la familia y las instituciones privadas.
1
Este trabalho é resultado dos estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais
Sociais do Programa de Mestrado em Direito da UNOESC.
*
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito. Professor Titular
da Universidade de Santa Cruz do Sul e da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma
Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direitos Fundamentais-REDIR,
do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da
Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho
Científico do Observatório da Justiça Brasileira.
∗∗
Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Mestre
em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e
pesquisadora do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa
Catarina (UNOESC).
287
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
PALABRAS CLAVE:
Derecho fundamental a la salud; Responsabilidades; Poder Público
1) OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE
NO BRASIL
A saúde é direito fundamental social assegurado no art. 6º, caput, da Constituição
Federal, e é tratada de forma específica no capitulo II do titulo VIII intitulada “Da ordem
social”. E, no momento em que a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art.196, que a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, não há como negar que tal
dever é relacional e condicionado a garantia de acesso universal e igualitário (a todos) das
ações consectárias nesta direção.
No mesmo sentido estabelece o artigo 2º da Lei 8.080/90, que dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, ao afirmar que “a
saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício”.
Por tais razões, pode-se afirmar que o tema da saúde pública envolve uma das
dimensões do mínimo existencial à dignidade da vida humana: a saúde. Enquanto princípio
fundante de todo o sistema jurídico – a iniciar pelo constitucional -, tem-se que a vida humana
digna espelha e se vincula ao ideário político, social e jurídico predominante no país, ao
mesmo tempo em que, na condição de princípio fundamental, em face de sua característica de
aderência, ele opera sobre os comportamentos estatais ou particulares de forma cogente e
necessária. Assim: (a) todas as normas do sistema jurídico devem ser interpretadas no sentido
mais concordante com este princípio; (b) as normas de direito ordinárias desconformes à
constituição e seus princípios fundacionais (dentre os quais destaco o sob comento), não são
válidas2.
Justifica-se tal postura em face de que a saúde como condição de possibilidade da
dignidade da pessoa humana, em verdade, passa a constituir o indicador constitucional
2
LEAL, 2006, p.1525. Ver também o texto de Rogério Gesta Leal sobre Condições e possibilidades eficaciais
dos Direitos Fundamentais Sociais, 2011 e a obra de Konrad Hesse. A força normativa da constituição, 1991.
288
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
parametrizante do mínimo existencial3, porque se afigura como uma das condições
indispensáveis à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garantia do
desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, bem como à
redução das desigualdades sociais e regionais; à promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Na verdade, estes postulados estão dispersos ao longo de todo o Texto Político,
consubstanciando-se nos direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, nos
direitos sociais, nos direitos à educação, à saúde, à previdência etc. Por sua vez, os Poderes
Estatais e a própria Sociedade Civil (através da cidadania ou mesmo de representações
institucionais dela) estão vinculados a estes indicadores norteadores da República, eis que eles
vinculam todos os atos praticados pelos agentes públicos e pela comunidade, no sentido de
vê-los comprometidos efetivamente com a implementação daquelas garantias.
De outro lado, as ações públicas voltadas à densificação material deste direito de
todos – à saúde – integram, de acordo com o disposto no artigo 198, CF/88, um sistema único
em todo o país, financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de outras fontes.
No âmbito do dever público para alcançar os meios necessários à preservação da
saúde, o que se deve ter em conta são os critérios utilizados para determinar quem
efetivamente necessita e quem não precisa do auxílio do Estado para prover suas demandas a
este título, o que de plano se sabe não existir ao menos em numerus clausulus, porque
impossível sua matematização em face da natureza complexa e mutável.
Assim, os casos envolvendo prestação de saúde pública submetido ao Estado são
merecedores de uma apreciação e ponderação em face de, no mínimo, duas variáveis
necessárias: (a) a variável normativa-constitucional e infraconstitucional, enquanto direito
fundamental assegurado à sociedade brasileira; (b) a variável da responsabilidade institucional
e familiar dispostas na estrutura normativa constitucional e infraconstitucional brasileira.
Daí porque aferir, primeiro, a natureza axiológico-constitucional do mandamento
normativo sob comento, tendo ciência que ele se dirige a toda a comunidade, e não uma
parcela dela (os mais doentes, ou somente aqueles que possuem enfermidades letais, ou
3
Esse argumento é desenvolvido no livro Estado, Sociedade e Administração Pública: novos paradigmas, 2005,
de autoria de Rogério Gesta Leal.
289
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
somente os que necessitam de farmacológicos curativos, etc.). E, em segundo, de que forma o
sistema jurídico atribui responsabilidades envolvendo esta matéria.
Significa dizer que, quando se fala em saúde pública e em mecanismos e
instrumentos de atendê-la, é importante que se visualize a demanda social e universal
existente, e não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional,
isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público
(Executivo ou Judicial), corre-se o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos
aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, muitas vezes pela
falta de recursos para fazê-lo.4
Para tal raciocínio, utiliza-se o que Konrad Hesse chama de princípio da
concordância prática ou da harmonização, o qual impõe ao intérprete do sistema jurídico que
os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser
tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se
alcança na aplicação ou na prática do texto.5 Tal princípio parte da noção de que não há
diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais; destarte, o resultado do ato
interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na
interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens
constitucionalmente tutelados.
A partir de tais elementos, mister é que se perquira se efetivamente é o Estado o
único garantidor/concretizante do direito à saúde para todos os cidadãos, independente de
precisarem ou não da prestação estatal para tanto.
Nas palavras de Canotilho, sobre tais direitos é preciso se dar conta de que:
Acresce que o facto de se reconhecer um direito à vida como direito positivo
a prestações existenciais mínimas, tendo como destinatário os poderes
públicos, não significa impor como o Estado deve, prima facie, densificar
este direito. Diferente do que acontece no direito à vida na sua dimensão
negativa – não matar -, e na sua dimensão positiva – impedir de matar -,
aqui, na segunda dimensão, positiva, existe um relativo espaço de
discricionariedade do legislador (dos poderes públicos) quanto à escolha do
4
Além disto, é preciso lembrar que “the Courts are not well positioned to oversee the tricky process of efficient
resource allocation conducted, with more or less skill, by executive agencies, nor are they readily able to rectify
past misallocations. Judges do not have the proper training to perform such functions and they necessarily
operate with inadequate and biased sources of information.” In: ALEINIKOFF, 1987, p. 982.
5
HESSE, 2001, p.119. O autor defende que na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou
pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a
atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência constante.
290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
meio (ou meios) para tornar efectivo o direito à vida na sua dimensão
existencial mínima.6
O autor português adverte com acerto que aquele espaço de discricionariedade não
é, todavia, total, haja vista que existem determinantes constitucionais heterônomas que
vinculam os poderes instituídos, como a dignidade da vida humana, por exemplo.
De
qualquer
sorte,
o
direito
à
saúde,
enquanto
direito
fundamental
constitucionalizado, dever do Estado, em primeiro plano, que é a todos garantido, configurase como verdadeiro direito subjetivo, outorgando fundamento para justificar o direito a
prestações, mas que não tem obrigatoriedade como resultado de uma decisão individual. Dizse direito subjetivo prima facie pelo fato de que, conforme Canotilho, não é possível resolvêlo em termos de tudo ou nada7, e também pelo fato de constituírem, numa certa medida e na
lição de Dworkin, direitos abstratos, isto porque representam:
Finalidade políticas gerais, cujo enunciado não de que maneira se tem
comparado o peso dessa finalidade geral, com a de outras finalidades
políticas, em determinadas circunstancias, ou que compromisos há de se
establecer entre elas. Os grandes direitos da retórica polítca são abstratos
neste sentido. Os políticos falam de direito da liberdade de expressão, à
dignidade e à igualdade, sem que isso implique qua tais direitos sejam
absolutos, e sem fazer referência a sua incidencia sobre determinadas
situações sociais complexas.8 (Tradução libre)
E por que não se pode resolver tal matéria em termos de tudo ou nada? Pelo fato
de que ela envolve outro universo de variáveis múltiplas e complexas, a saber: disponibilidade
6
CANOTILHO, 2004, p. 58.
Aduz Canotilho que: “A questão da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), da ponderação necessária a
efectuar pelos poderes públicos (Abwägung) relativamente ao modo como garantir, com efectividade, esse
direito (optimização das capacidades existentes, alargamento da capacidade, subvenções a estabelecimentos
alternativos) conduz-nos a um tipo de direito prima facie a que corresponde, por parte dos poderes públicos, um
dever prima facie” In: CANOTILHO, 2004, p. 66. Ver neste sentido a reflexão de SARLET, Ingo. Eficácia dos
Direitos Fundamentais, 2007, notadamente na p. 304, em que o autor sustenta estar esta reserva do possível
parametrizada por três variáveis, a saber: (a) dizendo com a efetiva disponibilidade fática dos recursos à
efetivação dos direitos fundamentais; (b) dizendo com a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e
humanos, que guarda íntima conexão à distribuição das receitas e competências federativas (tributárias,
orçamentárias, legislativas e administrativas); (c) dizendo com a proporcionalidade da prestação, em especial no
tocante à sua exigibilidade e razoabilidade.
8
“Finalidades políticas generales cuyo enunciado no indica de qué manera se ha de comparar el peso de esa
finalidad general con el de otras finalidades políticas, en determinadas circunstancias, o qué compromisos se
han de establecer entre ellas. Los grandes derechos de la retórica política son abstractos en este sentido. Los
políticos hablan de derecho a la libertad de expresión, a la dignidad o a la igualdad, sin dar a entender que
tales derechos sean absolutos, y sin aludir tampoco a su incidencia sobre determinadas situaciones sociales
complejas.” DWORKIN, 1989, p.162. Denomina o autor de direitos concretos son finalidades políticas
definidas con mayor precisión de manera que expresan más claramente el peso que tienen contra otras
finalidades en determinadas ocasiones. Num texto mais recente, Justice in Robes, de 2006, Ronald Dworkin
ratifica esta sua tese.
7
291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de recursos financeiros alocados preventivamente, políticas públicas integradas em planos
plurianuais e em diretrizes orçamentárias, medidas legislativas ordenadoras das receitas e
despesas públicas, etc. Todos estes condicionantes, por sua vez, encontram-se dispersos em
diferentes atores institucionais, com competências e autonomias reguladas também pela
Constituição.
Por tais razões é que o Superior Tribunal de Justiça no Brasil já teve oportunidade
de dizer que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se
pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um
inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal
modo que, “comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa
estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a
imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”9.
Vale aqui a advertência de Mario Jori, no sentido de que:
[...] o problema aqui não é só a falta de uma suficiente especificação
legislativa ou a falta de norma que institua o tribunal competente, analisado
corretamente a partir da teoria de Ferrajoli como a presença de uma lacuna
jurídica, mas a falta de estruturas materiais e organizacionais e materiais que
possam implementar o direito.10 (tradução livre)
Concorda-se com Canotilho na sua tese de que há em países de significa
desigualdade social e profundas demandas pela implementação de direitos sociais certa
introversão estatal da socialidade, ou seja:
1. os direitos sociais implicam o dever de o Estado fornecer as prestações
correlativas ao objeto destes direitos; 2. os direitos sociais postulam
9
É bem verdade que, nesta mesma decisão, manifestou-se o STJ no sentido de reconhecer que não se mostrará
lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade
financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável
propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos
cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da
'reserva do possível' - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada,
pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente
quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de
direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. REsp 811608/RS; Recurso
Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ
04.06.2007 p. 314.
10
“[...] qui il problema non è solamente la mancanza di uma sufficiente specificazione legislativa o la mancanza
della norma che istituisca il tribunale competente, visto correttamente dalla teoria di Ferrajoli come la presenza
di una lacuna giuridica, ma la mancanza di strutture materiali e organizzative che possano implementare il
diritto.” In: JORI, 2008, p.80. Adverte o autor em seguida que a perspectiva ferrajoliana trabalha com uma
noção de “garanzie sostanziali: ciò che manca in questi casi nell’ordinamento giuridico sono norme atte a
risolvere efficacemente questo tipo di problemi materiali.”
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
esquemas de unilateralidade, sendo que o Estado garante e paga
determinadas prestações a alguns cidadãos; 3. os direitos sociais eliminam a
reciprocidade, ou seja, o esquema de troca entre os cidadãos que pagam e os
cidadãos que recebem, pois a mediação estatal dissolve na burocracia
prestacional a visibilidade dos actores e a eventual reciprocidade da troca.11
Todavia, este modelo não se sustenta mais, sendo tempo de se descobrir os
contornos da reciprocidade concreta e do balanceamento dos direitos sociais, até porque tais
direitos envolvem patrimônio de todos quando de sua operacionalidade e concreção, e já que a
todos são dirigidas tais prerrogativas, deve-se perquirir sobre a quota parte de cada um neste
mister, sob pena de constituir-se o que o jurista lusitano denomina de uma aproximação
absolutista ao significado jurídico dos direitos sociais, ou seja, confiar na simples
interpretação de normas consagradoras de direitos sociais para, através de procedimentos
hermenêuticos, deduzir a afetividade dos mesmos direitos, produzindo resultados pouco
razoáveis e racionais.
Com base neste raciocínio que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
repercussão geral da questão constitucional suscitada em Recurso Extraordinário12, relativo ao
fornecimento de medicamento de alto custo a paciente do Estado do Rio Grande do Norte, às
expensas daquele Estado, questionando se a situação individual pode, sob o ângulo do custo,
colocar em risco a assistência global a tantos quantos dependem de determinado
medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de
certa doença, razão pela qual destacava a necessidade do pronunciamento do Supremo em
relação aos artigos 2º, 5 º, 6º, 196 e 198 da Constituição Federal, revelando o alcance do texto
constitucional.
Evidente que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não
pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à
saúde, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima, e
por isto sujeitos ao controle jurisdicional para fins de se aferir a razoabilidade dos
comportamentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados os
parâmetros, variáveis, fundamentos e a própria dosimetria de sua concretização.13
11
CANOTILHO, 2004, p.102.
Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte.
13
Na mesma linha de raciocínio John Rawls define a proteção do mínimo social com o objetivo de garantir uma
igualdade de oportunidades, dependendo do governo para “assegurar oportunidades iguais de educação e cultura
para pessoas semelhantemente dotadas emotivadas, seja subsidindo escolas particulares seja estabelecendo um
sistema de ensino público”. In: RAWLS, 1997, p. 213.
12
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Não se afigura simples, pois, trazer-se à colação argumentos do tipo princípio da
não reversibilidade das prestações sociais, ou o princípio da proibição da evolução
reacionária, como fórmulas retóricas e mágicas para poder garantir, a qualquer preço – que
nem se sabe o qual -, tudo o que for postulado por segmentos da comunidade (indivíduos) em
termos de saúde, pelo simples fato de que o Estado está obrigado a tanto, isto porque o desafio
da bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para a
insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social.14
Cristina Queiroz sustenta que a garantia de uma proteção efetiva do direito
jusfundamental não resulta criada a partir da legislação ou política pública aprovada, mas vem
posta através da atuação da legislação, daqui advindo a noção de dever de proteção jurídicoconstitucional – pressuposto quer do Legislador, quer do Administrador Público, quer do
Judiciário -, caracterizando-se como verdadeiro dever positivo do Estado em face do titular do
direito como um direito de defesa em sentido material. “Por sua vez, o dever de protecção do
Estado, uma vez dimanada a lei de protecção, converte-se, face ao titular do direito, num
direito de defesa em sentido formal.”15
Daí que se propõe uma leitura mais integrada deste dever estatal para com o
universo que ele alcança, ou seja, direito social da população como um todo que envolve,
inclusive, co-responsabilidades societais importantes (constitucionais e infraconstitucionais).
Neste sentido, pode-se citar, por exemplo: (a) do dever da família (da sociedade e do Estado)
em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão16; (b) os pais têm o
dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e
amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade17; (c) a família (a sociedade e o Estado)
14
CANOTILHO, 2004, p. 112. Ver no Brasil, uma boa abordagem do tema em DERBLI, Felipe. Proibição de
Retrocesso Social: uma proposta de sistematização à luz da Constituição de 1988, 2007, p.433 e seguintes.
15
QUEIROZ, 2006, p.70. Todavia, a própria autora reconhece no mesmo texto, quando trata do princípio do não
retrocesso social em termos de Direitos Fundamentais Sociais, que: “Mas haverá aí fundamentalmente de
distinguir entre uma reversibilidade fáctica, relativa a recessões e crises económicas, da proibição do retrocesso
social propriamente dito, isto é, a reversibilidade dos direitos adquiridos como ocorre, v.g., quanto se reduzem os
créditos da segurança social, o subsídio de desemprego ou as prestações de saúde.” p. 74. Na mesma direção,
SERNA; TOLLER, 2000.
16
Art. 227, da Constituição Federal de 1988.
17
Art. 229, da Constituição Federal de 1988.
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
tem o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida18.
Com tal perspectiva já se pôde asseverar que a prestação alimentar não deva
subsistir até os 21 anos, mas estender-se, com base no princípio da solidariedade familiar,
além da maioridade19. Como o Novo Código Civil Brasileiro reduziu para dezoito anos o
começo da maioridade, com maior razão este entendimento se justifica.20
Mesmo no plano da infraconstitucionalidade, temos como deveres familiares –
notadamente entre os cônjuges –, dentre outros, a mútua assistência e o sustento dos filhos,
sendo que eles são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do
trabalho, para o sustento da família, qualquer que seja o regime patrimonial21. Ao lado disto,
ainda é de se ressaltar que podem os parentes, os cônjuges ou companheiros, pedir uns aos
outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição
social, nos termos do art.1.694, do novo Código Civil Brasileiro. Veja-se que, quando faltam
neste dever, os familiares podem ser enquadrados inclusive nas disposições do art.244, do
Código Penal, que disciplina:
Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho
menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente
inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os
recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia
judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de
socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.22
Mesmo nas situações em que as famílias se desconstituem, fenômeno acelerado
em nossa época, a legislação infra-constitucional confirma o disposto no Texto Político de
1988, ao assegurar que o cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se
18
Art. 230, da Constituição Federal de 1988.
In RT, 698/156; 727/262.
20
Neste sentido, ver o texto de SANTOS, 2003, p. 12. Neste texto, o autor lembra que a extensão e a
característica da reciprocidade da obrigação alimentar encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que
repetem, ipsis litteris, o que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação alimentar,
pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos,
assim germanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente,
não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada
linha, sempre os mais próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigação alimentar
dos parentes mais remotos subsidiária e complementar. Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a
completar o valor que por estes possa ser prestado.
21
Consoante as disposições dos arts.1566 e 1568, ambos do novo Código Civil Brasileiro. Ver o texto de José
Lamartine Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz. Direito de família (direito matrimonial), 1990.
22
Redação dada pela Lei nº 10.741, de 01.10.2003, DOU de 03.10.2003, com efeitos a partir de 90 dias da
publicação. A pena prevista aqui é detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior
salário mínimo vigente no País, consoante a redação dada pela Lei nº 5.478, de 25.07.1968.
19
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
dela necessitar, a pensão que o juiz fixar, sendo que para manutenção dos filhos, os cônjuges,
separados judicialmente, contribuirão na proporção de seus recursos. Para assegurar o
pagamento da pensão alimentícia, o juiz poderá ainda determinar a constituição de garantia
real ou fidejussória, ou mesmo que a pensão consista no usufruto de determinados bens do
cônjuge devedor. Ainda, a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do
devedor.23
De certa forma a doutrina e jurisprudência brasileiras têm operado muito bem na
direção de demarcar um conceito de alimentos conforme à Constituição, ou seja, atenta para o
fato de que “o direito a alimentos deve corresponder não somente ao indispensável para a
subsistência, mas também ao que for necessário para o alimentando viver de modo compatível
com sua condição social”24.
Veja-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul há muito
tempo já teve oportunidade de dizer que:
o deve a obrigação alimentar ser fixada de modo a incluir, também, valores
gastos pela alimentada com saúde, não se mostrando possível a escolha do
plano de saúde que será pago pelo alimentante, bem como devendo ser
retirada a condenação do alimentante ao pagamento de multa pela sua não
inclusão em referido plano.25
A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu artigo 241, que
dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de
1988, determina que:
Art. 241 - A saúde é direito de todos e dever do Estado e do Município,
através de sua promoção, proteção e recuperação.
Parágrafo único - O dever do Estado, garantido por adequada política social
e econômica, não exclui o do indivíduo, da família e de instituições e
empresas que produzam riscos ou danos à saúde do indivíduo ou da
coletividade. (grifou-se)
Ou seja, o Estado do Rio Grande do Sul introduziu em sua Constituição a
participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo que, com base
23
Consoante disposições dos arts.19, 20, 21 e 23, da Lei nº 6.515/77.
TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003. Na mesma direção os
trabalhos clássicos de Luiz da Cunha Gonçalves na obra Princípios de direito civil luso-brasileiro, 1951, p.
1.287; Guilhermo Borda A. em Manual de derecho de família, 2002, p. 403. De igual forma as decisões
jurisprudenciais antigas e recentes no país: RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984;
REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001.
25
Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos
Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004.
24
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determinando que o Poder Público
estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos, desde que
comprovem o seu estado de carência e também de sua família:
Art. 2º - O beneficiário deverá comprovar a necessidade do uso de
medicamentos excepcionais mediante atestado médico.
Parágrafo único - Além do disposto no "caput" deste artigo, o beneficiário
deverá comprovar por escrito e de forma documentada, os seus rendimentos,
bem como os encargos próprios e de sua família, de forma que atestem sua
condição de pobre.
Mas como se fará a aferição de quem efetivamente necessita e quem pode
contribuir para o atendimento da demanda de saúde no caso concreto? Por via simétrica –
respeitada sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que
instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares,
oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade
de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como
referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico, a saber:
A extensão e a característica da reciprocidade da obrigação alimentar
encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o
que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação
alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes,
depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos, assim germanos como
unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou
descendente, não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta
limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada linha, sempre os mais
próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a
obrigação alimentar dos parentes mais remotos subsidiária e complementar.
Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a completar o valor que
por estes possa ser prestado.26
Postos estes contornos, passa-se a analisar a decisão do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, por seu Segundo Grupo Cível, dos Embargos Infringentes de nº70049198310,
versando sobre o tema proposto.
26
SANTOS, 2003, p. 12.
297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
2)
O
DIREITO
À
SAÚDE
NA
DIMENSÃO
INTERNACIONAL
DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Atualmente é quase que universalmente aceito que o sucesso de um país ou o
bem-estar de um indivíduo não podem ser avaliados somente pelo poder econômico. O
rendimento é, obviamente, elemento crucial para se alcançar o progresso, contudo, é preciso
também avaliar se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se têm oportunidades
para receber educação e se são livres de utilizarem os seus conhecimentos e talentos para
moldarem os seus próprios destinos.
Sobre esta abordagem, cumpre destacar o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início da década de 1990 que
propõe verificar o grau de desenvolvimento de um país utilizando alguns indicadores de
desempenho.
Visando enfatizar a necessidade de constantes aplicações de medidas
socioeconômicas mais abrangentes, que incluam também outras dimensões fundamentais da
vida e da condição humana, o IDH combina três componentes básicos do desenvolvimento
humano:
a) a longevidade, que também reflete, entre outras coisas, as condições de saúde
da população; medida pela esperança de vida ao nascer;
b) a educação, medida por uma combinação da taxa de alfabetização de adultos e
a taxa combinada de matrícula nos níveis de ensino fundamental, médio e superior;
c) a renda, medida pelo poder de compra da população, baseado no PIB per capita
ajustado ao custo de vida local para torná-lo comparável entre países e regiões, através da
metodologia conhecida como paridade do poder de compra (PPC) 27.
Segundo o IDH, a nuclearidade deste terceiro elemento (rendimento) é
reconhecida pela sua inclusão como uma das três dimensões básicas do IDH, juntamente com
a saúde e a educação.
A abordagem do desenvolvimento humano reconhece o contributo do
rendimento para um maior domínio dos recursos e o efeito que isso tem no
27
Em economia a paridade do poder de compra (PPC) ou paridade do poder aquisitivo (PPA) é o método
alternativo à taxa de câmbio para se calcular o poder de compra de países. A PPC mede quanto uma determinada
moeda pode comprar em termos internacionais (dólar), já que bens e serviços têm diferentes preços de um país
para outro, ou seja, relaciona o poder aquisitivo de tal pessoa com o custo de vida do local, utilizando como
parâmetro seu salário.
298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
alargamento das capacidades das pessoas através da nutrição, do abrigo e de
oportunidades mais amplas.
Ou seja, é necessário que os economistas e os cientistas sociais compreendam
melhor as interligações entre essas três dimensões, criando uma sensibilização mais ampla
daquilo que conduz ao desenvolvimento humano, dando destaque para a elementos que
ultrapassam a esfera do crescimento econômico e atingem a saúde e a educação das
populações nacionais.
De acordo com o Relatório do IDH,
Muitos países obtiveram grandes ganhos na saúde e na educação apesar de
um modesto crescimento no rendimento, enquanto que outros países com um
forte crescimento económico ao longo de décadas não conseguiram
progressos igualmente impressionantes na esperança de vida, na educação e
nos padrões de vida em geral.28
A título de exemplo,
Em Timor-Leste, mais de 70% dos alunos no final do primeiro ano não
conseguiam ler uma única palavra quando confrontados com um excerto de
texto simples. Estas dificuldades na melhoria da qualidade da educação
ilustram a oscilação da eficácia do envolvimento do Estado.29
O que conduz a reflexão de que os países conseguem melhores desempenhos no
IDH quando realizam mais progressos na saúde e na educação:
Embora na saúde a influência principal fosse a transmissão de inovações
tecnológicas, como as vacinações e as práticas de saúde pública, na educação
foram os ideais acerca do que as sociedades – e os governos – devem fazer e
quais as metas a que os pais aspiram para os seus filhos.30
O RDH de 1990 recorria a uma definição clara do desenvolvimento humano como
um processo de “alargamento das opções das pessoas”, realçando a liberdade para ser
saudável, receber instrução e desfrutar de um padrão de vida digno31, mas também sublinhava
que o desenvolvimento e o bem-estar humanos vão muito para além dessas dimensões,
abrangendo um leque muito mais vasto de capacidades, incluindo as liberdades políticas e os
direitos humanos.
28
PNUD, 2010, p. v.
PNUD, 2010, p. 43.
30
PNUD, 2010, p. 57.
31
“La verdadera riqueza de una nación está en su gente. El objetivo básico del desarrollo es crear un ambiente
propicio para que los seres humanos disfruten de una vida prolongada, saludable y creativa. Esta puede parecer
una verdad obvia, aunque con frecuencia se olvida debido a la preocupación inmediata de acumular bienes de
consumo y riqueza financiera.” In: PNUD, 1990, p. 29. (tradução livre)
29
299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O desenvolvimento humano tem a ver com a sustentação regular de
resultados positivos ao longo do tempo e o combate contra os processos que
empobrecem as pessoas ou estão subjacentes à opressão e à injustiça
estrutural. Princípios plurais como a equidade, a sustentabilidade e o respeito
pelos direitos humanos são, por conseguinte, fulcrais. [...] O
desenvolvimento humano tem também a ver com a abordagem das
disparidades estruturais – deve ser equitativo. E tem a ver com a habilitação
das pessoas para que exerçam escolhas individuais e participem, definam e
beneficiem dos processos aos níveis familiar, comunitário e nacional – para
que fiquem capacitadas.32
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
o desenvolvimento humano é aquele que integra aspectos de desenvolvimento social,
desenvolvimento econômico (incluindo desenvolvimento local e rural) e desenvolvimento
sustentável. O conceito situa as pessoas no centro do desenvolvimento, tratando da promoção
do potencial das pessoas, do aumento de suas possibilidades e o desfrute da liberdade de viver
a vida que eles valorizam.
A realidade brasileira no Relatório do IDH que, vale lembrar, considera as
condições de saúde, educação e renda de cada local, é ainda preocupante. Mesmo que o
relatório tenha apontado que a maioria das pessoas no mundo tem vidas mais longas, mais
educação e maior acesso a bens e serviços do que nunca, e que o IDH médio mundial
aumentou 18% entre 1990 e 2010 e 41% desde 1970, o Brasil ainda ocupa a 84ª posição entre
os 187 países avaliados no estudo.
Esta realidade, se comparada com a posição do país no ranking do PIB mundial,
no qual possui a sexta posição33, conduz a conclusão de que os níveis de educação e saúde do
Brasil ainda são muito baixos, e, portanto, merecedores de atenção e esforços por parte do
Estado.
3) A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR
DE UM CASO CONCRETO
O recurso de apelação sob o nº 70041057480, da Terceira Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, oriundo da comarca de Caxias do Sul-RS
32
PNUD, RDH, 2010, p. 2-3.
Dados extraídos do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, abril de 2012:
Nominal GDP list of countries. Dados para o ano de 2011.
33
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
(julgado em dezembro de 2011), em face da sentença de primeiro grau que julgou
improcedente o pedido de fornecimento de medicamentos formulado na ação originária.
A situação envolve a pretensão em receber do Estado medicamentos de advogado
com 70 anos de idade34 e que está aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social,
percebendo proventos no valor de R$1.708,21 mensais. Refere que sua esposa é professora
estadual aposentada, auferindo mensalmente R$ 791,82, sendo estas as duas únicas fontes de
rendimentos da família, tendo juntado os comprovantes de rendimentos.
Dentre outras razões adotadas pelo juízo de improcedência, restou registrado na
decisão e provado nos autos que o postulante detinha patrimônio que montava em R$
212.639,97, entendendo ele que não se afiguraria razoável exigir-se que se desfizesse de seus
bens para arcar com despesas de saúde. No entanto, está consignado que, em 2004, a
movimentação financeira do demandante foi de quase R$ 60.000,00, o que seria incompatível
com uma renda anual de cerca de R$ 10.000,00.35
Consta dos autos que os familiares do postulante, bem empregados e situados
socialmente, prestam-lhe assistência financeira na medida do possível, todavia.
De forma acurada, a magistrada de primeiro grau que julgou o pedido, a par da
realidade dos membros da comarca em que vive, referiu expressamente que:
A família do autor possui condições de arcar com o seu tratamento, sendo
constituída de filha que detém o cargo de procuradora do Município de Porto
Alegre e genro que detém o cargo de Juiz do Trabalho. Ainda, na
impugnação ao pedido de AJG, houve a quebra de sigilo bancário que
demonstrou movimentação financeira anual de R$ 59.764,73, bem como
um patrimônio que atinge o montante de R$ 212.639,97. Em acórdão
proferido à apelação interposta à procedência da referida impugnação, bem
narrado que é incompatível uma renda anual de R$ 10.000,00, afirmada pelo
autor e a declaração de imposto de renda apresentada; incompatibilidade esta
demonstrada com a comprovação da existência de movimentação financeira
superior a cinquenta e nove mil reais.36 (grifou-se)
34
O postulante é portador de diabetes mellitus tipo 1 e necessita fazer uso dos medicamentos insulina glargina
(lantus®), rosiglitisona (avandia®), insulina lispro (humolog®) e cloridrato de tamsulosina (ominic®), cujo
custo mensal alcançava aproximadamente R$ 400,00 em julho de 2005, quando ajuizada a demanda.
Posteriormente o demandante informou a interrupção do tratamento com o fármaco cloridrato de tamsulosina e,
em apelação, referiu que o valor atualizado da medicação, considerando-se a substituição do medicamento
avandia por actos, em novembro de 2010, seria de R$ 759,61.
35
Esta discussão toda se deu em sede de incidente de impugnação do valor da causa, quando negado o pedido de
gratuidade judiciária, constatando-se que a movimentação anual do postulante referente ao ano de 2004,
diversamente da constante da declaração de imposto de renda, em R$ 11.529,64 (fls.152-4), na realidade
importou no numerário de R$ 59.764,73, conforme apurado em procedimento de quebra de sigilo bancário,
utilizando-se dados fornecidos pela Receita Federal – fls.194/196.
36
P. 267 do Apelo.
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
De outro lado, para esmorecer a prova colhida no tocante à sua suficiência
econômica, o apelante se limitou a sustentar que:
[...] cumpre destacar que a aferição da capacidade financeira [...], procedida
no ato da prolação da sentença no ano de 2010, não pode se sustentar
exclusivamente na movimentação bancária verificada nos idos de 2004. Tal
não pode ocorrer quer porque o referido documento está absolutamente
desatualizado, quer porque, fundamentalmente, a renda a ser considerada
para fins de análise de capacidade financeira é àquela que o indivíduo
acrescenta ao seu patrimônio por força do seu trabalho e/ou da aplicação do
seu capital. Na conta-corrente de um indivíduo podem passar valores
significativos sem que com isso tenha havido qualquer apropriação ou
acréscimo patrimonial.37 (grifou-se)
No caso em análise, o cotejamento daquele patrimônio do postulante, aliado ao
fato de não ter vindo aos autos cópias das suas declarações atuais de imposto de renda para
que se pudesse confrontá-las com a renda mensal recebida de aposentadoria, bem como a
existência de filha e genro com posições de destaque na carreira jurídica, ratificaram a ideia
de que “o fornecimento gratuito de medicamentos deve se limitar àquelas pessoas que,
efetivamente, não possuem condições financeiras de adquirir os medicamentos”38
A possibilidade de restrição do acesso aos tratamentos, em face da existência de
condições financeiras, corresponde a outras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70025999046, SÉTIMA CÂMARA
CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: VASCO DELLA
GIUSTINA, JULGADO EM 24/09/2008
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS.
INDEFERIMENTO
DA
ANTECIPAÇÃO
DA
TUTELA.
HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA PELA PARTE AGRAVANTE.
AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (SEGREDO DE JUSTIÇA)
APELAÇÃO CÍVEL Nº 70025959289, OITAVA CÂMARA CÍVEL,
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ ATAÍDES
SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM 22/10/2008
APELAÇÃO CÍVEL. ECA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO.
DEVER DA FAMÍLIA DE CUSTEIO DO TRATAMENTO MÉDICO.
SUFICIÊNCIA FINANCEIRA DOS GENITORES DA MENOR.
Comprovado, fartamente, que a família da menor possui condições
econômicas para suportar, sem prejuízo de seu sustento, o custeio do
tratamento de que necessita, pois portadora de retardo mental leve (CID
37
P. 277 dos autos do Apelo.
Apelação Cível e Reexame Necessário nº70028464881, Sétima Câmara Civel, TJRS, relator des. Ricardo
Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009.
38
302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
F70) e transtorno invasivo do desenvolvimento (CID F84.9), é sua
prioridade o fornecimento da terapêutica. Inteligência do art. 4º do ECA. A
garantia do direito à saúde compete ao Estado, apenas quando demonstrada
a insuficiência financeira dos responsáveis pela menor. Recurso desprovido.
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70023322217, SEGUNDA CÂMARA
CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DENISE
OLIVEIRA CEZAR, JULGADO EM 13/08/2008
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
DIREITO
PÚBLICO
NÃO
ESPECIFICADO.
FORNECIMENTO
DE
MEDICAMENTOS.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. ACESSO
À SAÚDE. IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA DE ARCAR COM O CUSTO
DO MEDICAMENTO. NÃO-DEMONSTRAÇÃO. As normas de
organização, funcionamento e gestão do Sistema Único de Saúde são
internas, de natureza administrativa, não alterando a legitimidade para
responder ao direito exercido, sendo solidariamente responsáveis no dever
de fornecer medicamentos os entes federativos acionados. Necessidade de
demonstração de carência para que possa ser caracterizada a obrigação
estatal de fornecimento gratuito de medicamentos. Carência não
comprovada nos autos. Ausência de verossimilhança quanto à
hipossuficiência financeira que não autoriza a concessão da antecipação de
tutela. AGRAVO DESPROVIDO. DECISÃO MANTIDA.
Por tais razões é que entende-se que inexistam elementos que autorizassem a
condenação do Município ao fornecimento dos fármacos, sob pena de subversão a toda a
disciplina que deve nortear o acesso à saúde, restando vencido na Terceira Câmara Cível do
Tribunal de Justiça, o que ensejou a interposição dos Embargos Infringes de nº70049198310
(julgado em 13/07/2012), ao Segundo Grupo Cível da mesma Corte.
O Relator dos Embargos Infringentes, em seu voto condutor, dentre outros
argumentos para julgá-los improcedentes, manteve a decisão da maioria na Câmara de
origem, sustentou que:
(1) Do ponto de vista abstrato, é possível afirmar que a jurisprudência vem
entendendo imperiosa a comprovação de carência financeira para que o
pretendente faça jus ao custeio de medicamentos e tratamentos por parte do
Estado; (2) Tal entendimento é corroborado pelo artigo 1º da Lei nº 9.908, de
16 de junho de 1993, segundo o qual “o Estado deve fornecer, de forma
gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover
as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recursos
indispensáveis ao próprio sustento e de sua família” [...].
Após isto, o Relator emitiu juízo de valor sobre as provas carreadas aos autos
envolvendo a condição financeira do postulante, nos seguintes termos:
O patrimônio do autor, por sua vez, não serve necessariamente para
comprovar que disponha de condições financeiras para arcar com o custo dos
303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
medicamentos necessários porque não significa liquidez que possa custear o
tratamento. Aliás, esse patrimônio não representa ou constitui verdadeira
fortuna, estimado em R$212.639,97, abarcando um apartamento, 20 hectares
de terra em Nova Petrópolis, 101 hectares de terra no município de
Mampituba, um automóvel Corsa, ano 1996, um telefone residencial e uma
conta poupança com depósito de R$839,97. Ademais, o fato de ter o autor
uma movimentação financeira de aproximadamente R$60.000,00 no ano de
2004, não lhe desnatura a renda mensal, inclusive porque não há
comprovação de que se tenham repetido movimentações desse jaez nos anos
seguintes. Portanto, a existência de movimentações financeiras em sua conta
há cerca de oito anos, assim como a existência de patrimônio abrangendo
apartamento de valor razoável e carro popular com mais de dez anos, não é
suficiente para afastar o dever do Estado em fornecer os medicamentos.
De igual sorte, no que tange à responsabilidade parental em face das demandas do
postulante, ponderou o Relator que: “Por outro lado, entendo inaceitável a tese de que a filha
e o genro do autor, por exercerem cargos jurídicos relevantes, deveriam prestar assistência
familiar relativa a sua saúde”.
4) REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO
A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu art.241, que
dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de
1988.
Diante da implementação, pela Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, da
necessidade da participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo
que, com base nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determina que o Poder
Público estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos,
desde que comprovem o seu estado de carência e também de sua família, questiona-se: a) se a
prestação de medicamentos excepcionais, pode servir para regulamentar o fornecimento de
medicamentos normais, e b) o que distingue um fármaco normal em face de um excepcional.
A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul deve ser interpretada conforme a
Constituição Federal, no sentido de ratificar este sentido solidarístico que chama à
responsabilidade a família para contribuir na mantença do sistema republicano e federativo de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
saúde, dando sua quota-parte, seja ela qual for, na medida de sua possibilidade e diante da
necessidade do parente enfermo.
No entanto, como se fará isto em nível de demandas judiciais que envolvem a
prestação de medicamentos, internações hospitalares, etc.? Por via simétrica – respeitada
sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que
instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares,
oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade
de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como
referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de tratar deste assunto no âmbito
da Adin nº 2.435/200239, quando asseverou, a latere, que cabe à família, à sociedade e ao
Estado o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida. O argumento central da proponente da ADIN contra a Lei
estadual do Rio de Janeiro que determinava que farmácias e drogarias praticassem descontos
de medicamentos para idosos era no sentido de que:
Entende que essa norma, ao obrigar as farmácias e drogarias a conceder
descontos no preço dos remédios, viola os princípios da livre concorrência e
da livre iniciativa (art. 170, caput e inciso IV da CF), consistindo em
indevida intervenção do Estado na ordem econômica.
Aduz que a intervenção do Estado só se pode dar de 02 (duas) formas: direta
e indireta. Diretamente, quando o Estado explora, ele mesmo, determinada
atividade econômica, nas hipóteses expressas na Constituição, ou seja,
quanto tal intervenção é necessária aos imperativos da segurança nacional ou
a relevante interesse coletivo (art. 173, caput). Indiretamente, atuando como
agente normativo e regulador, exercendo, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado (art. 174, caput).
O autor da ação, de forma equivocada, argumentava que a legislação feria o
princípio da isonomia garantido constitucionalmente, eis que dava tratamento diferenciado ao
idoso, em detrimento de outras camadas da população.
A dimensão e o eixo contemporâneo de referência do princípio da igualdade
substituiu a ideia de não-discriminação formal pelo ideal da não-discriminação material, em
que o postulado da isonomia não mais se refere tão somente à proibição de tratamento
39
Neste feito, pretendia-se obter liminar para suspender os efeitos desta Lei do Estado do Rio de Janeir.
Entendeu por bem a Corte não deferir a liminar exatamente em face dos danos que isto poderia causar – como
retrocesso social – aqueles que já vinham contando com tal subsídio, bem como aos demais idosos que poderia
disto se beneficiar. Relatora Ministra Ellen Gracie. Pendente de julgamento o mérito.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
discriminatório, mas inclui considerações metas-jurídicas atinentes ao tratamento desigual
historicamente prevalecente entre determinados grupos sociais. Em tal circunstância é que
políticas públicas de inclusão social despontam como mecanismos de justiça distributiva,
destinadas a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais.40
Nesta direção vai Flávia Piovesan, ao sustentar que se afigura insuficiente, desde
uma perspectiva dos Direitos Fundamentais, tratar hoje o indivíduo – sujeito de direito – de
forma genérica, geral e abstrata, impondo-se considerá-lo em face de suas particularidades e
peculiaridades, o que vai gerar, por conseqüência, tratamento específico e diferenciado diante
das violações de direitos atinentes a estes sujeitos. Em tal cenário, mulheres, crianças,
população afro-descendente, imigrantes e migrantes, pessoas portadoras de deficiências,
dentre outras categorias potencial e efetivamente vulneráveis, devem ser vistas nas
especificidades e particularidades de suas condições sociais.41
O Tribunal Regional Federal da 4º Região já teve oportunidade de deliberar sobre
matéria similar, sustentando, em sede de Agravo de Instrumento, que o Princípio
Constitucional da Igualdade tem, em verdade, uma dupla faceta:
[...] supõe, ao lado de uma “proibição de diferenciação”, em que
“tratamento como igual significa direito a um tratamento igual”, também
uma “obrigação de diferenciação”, em que tratamento como igual
“significa direito a um tratamento especial”, possibilitando “disciplinas
jurídicas distintas” ajustadas às desigualdades fáticas existentes.42
Um Estado que se queira Democrático e de Direito tem de lançar mão de
iniciativas pró-ativas da igualização material de categorias sociais que se encontram em
estado de discriminação, aqui entendido como condição de separado, distinguido, segregado
contextualmente de seu tempo e espaço.43 Tal comportamento estatal evidencia aquilo que
Antonio E. Pérez Luño chama de dupla dimensão constitutiva do princípio da dignidade da
pessoa humana: (a) a negativa, que busca impedir a submissão da pessoa humana a
40
CASTRO, 2005, p. 364.
PIOVESAN, 2003, p.252. Decorre destes argumentos a afirmação acertada de Piovesan no sentido de que ao
lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade, eis
que, considerando o processo que a autora chama de feminilização e etnização da pobreza, percebe-se que as
maiores vítimas de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, são as mulheres e os afro-descendentes,
decorrendo daí a necessidade de adoção, além de políticas universalistas, algumas específicas, capazes de dar
visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício dos seus direitos.
42
Agravo de Instrumento nº 2008.04.00.005863-3/RS, em que figurou como Agravante a Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, discutindo o tema da reserva de cotas. Relatora Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz
Leiria, despacho dado em 25/02/2008.
43
DA MATTA, 1997. No mesmo sentido o trabalho de Lynn Huntley e Antonio Sergio Alfredo Guimarães,
Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil, 2000.
41
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
degradações; e (b) a positiva, que impõe a garantia de condições para o pleno
desenvolvimento da personalidade deste homem (enquanto gênero).44
É a chamada justiça redistributiva que ganha espaço de pertinência, no sentido da
promoção de oportunidades por meio de políticas públicas para aqueles que não conseguem se
fazer representar de maneira igualitária, operando o Estado – no âmbito legislativo, ações
executivas e mesmo jurisdicionais – como redistribuidor de benefícios aos cidadãos, de
maneira a tentar compensar as desigualdades que o preconceito e a discriminação efetuaram
no passado e continuam a efetivar no presente.45
É bem verdade que, nesta mesma ADIN, o Ministro Marco Aurélio, destacou fato
interessante que releva os impactos econômicos potencialmente unilaterais na espécie, a
saber:
Há um outro aspecto – por isso aludi à proporcionalidade: é que, na hipótese
concreto, não se distingue quanto á possibilidade de aquisição dos remédios,
considerado o preço, por aqueles que, estando aquém das faixas etárias
referidas, não têm condição de comprar, só o fazendo com o sacrifício da
própria alimentação. Na lei não se cogita, sequer – aí, eu diria que o
legislador acabou cumprimentando com chapéu alheio –, de uma
compensação, tendo em vista a postura do próprio Estado, na condição de
credor do Imposto sobre circulação de Mercadorias e Serviços.
Simplesmente, na lei impõem-se os descontos, sem se atentar para a situação
financeira do adquirente do remédio, bastando o fator objetivo “idade”, e,
ainda, prevê-se, em caso de desobediência, multa pesada no importe de
5.000 UFIR’s.
Poderia efetivamente a legislação ter levado em conta os impactos econômicos
que iria provocar no mercado de medicamentos no Rio de Janeiro, como ônus social imposto
às atividades sob comento, para estabelecer melhores critérios seletivos fundados na
necessidade material do idoso em obter tais benefícios, uma vez que o pressuposto fático
fundador da medida é a de que todos os idosos do Estado do Rio de Janeiro necessitam de
fomentos desta natureza para exercerem um direito fundamental que é a vida digna, no âmbito
da saúde, o que pode não ser verdade, uma vez que tais custos são suportados pelos demais
consumidores.
Daí a razão da aplicação, quando possível, da ponderações materiais exaustivas na
tomada de decisões que envolvem tantos e tão diversificados interesses sociais e
institucionais, sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em benefício de poucos.
44
45
LUÑO, 2000, p.321.
FISCUS, 2002, p.11.
307
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Assim com Canotilho, é possível concluir que efetivamente é chegada a hora dos
constitucionalistas se darem conta dos limites da jurisdição e reconhecer, com humildade, que
a Constituição já não é o lugar do superdiscurso social, levando em conta que a eventual
colisão de discursos reais de aplicação da Constituição terão de ser supervisionados a partir de
colisões de valores ideais (a vida, a segurança, a integridade física, a liberdade, a saúde de
todos e não de alguns) que integram o justo de uma comunidade bem- ou mal – ordenada. 46
Partindo do pressuposto de Boaventura de Souza Santos47, que tanto a sociedade
democrática como o Estado democrático só se justificam a partir do reconhecimento de suas
naturezas multiformes e abertas, constituindo-se ambos num campo de experimentação
política emancipadora, permitindo que diferentes soluções institucionais e não-institucionais
coexistam e compitam durante algum tempo, com caráter de experiências-piloto, sujeitas à
monitorização permanente de organizações sociais, com vista a proceder a avaliação
comparada dos seus desempenhos48, tenho que, levando em conta aquelas políticas
constitucionais, o envolvimento de toda a comunidade se faz necessário à concreção dos
direitos em geral, e do direito prestacional à saúde em especial.
Esta nova forma de um possível Estado e Sociedade democráticos deve se
assentar em dois princípios de experimentação laboratorial:
O primeiro é de que o Estado só é genuinamente experimental na medida em
que às diferentes soluções institucionais são dadas iguais condições para se
desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, o Estado experimental
é democrático na medida em que confere igualdade de oportunidades às
diferentes propostas de institucionalidade democrática. Só assim a luta
democrática se converte verdadeiramente em luta por alternativas
democráticas. Só assim é possível lutar democraticamente contra o
dogmatismo democrático. Esta experimentação institucional que ocorre no
interior do campo democrático não pode deixar de causar alguma
instabilidade e incoerência na ação estatal e pela fragmentação estatal que
dela eventualmente resulte podem sub-repticiamente gerar-se novas
exclusões.49
O segundo princípio adotado pelo pensador português, com o qual concordo e
aqui quero aplicar, deixa muito clara a importância que o Estado tem ainda na constituição de
46
FISCUS, 2002, p.129. Ver igualmente o texto de Robert Burt, A. The constitution in conflict, 2002, p.81 e
seguintes.
47
SANTOS, 1999, p.126.
48
Criando, por exemplo, mecanismos de acompanhamento e avaliação permanente das instituições (Executivo,
Judiciário, Legislativo), tanto no âmbito do controle interno (a ser maximizado com estratégias e instrumentos de
visibilidade plena de suas ações), como do externo (com conselhos corporativos e populares, mais os tradicionais
já existentes).
49
SANTOS, 1999, p.127.
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
uma gestão pública compartida do direito à saúde (e dos direitos fundamentais em geral), pois
que deve servir de garante não só da igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de
institucionalidade democrática, mas também garantir padrões mínimos de inclusão, que
tornem possível a cidadania ativa participar, monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho
dos projetos alternativos. Esses padrões mínimos de inclusão são indispensáveis para
transformar a instabilidade institucional em campo de deliberação democrática.
Neste ponto está certo Tribe50, ao afirmar que:
[...] a Constituição não é um espelho em que cada um vê o que quer, nem um
documento confiado as mudanças políticas de seus intérpretes. Seu trabalho
é criar uma nação através das palavras e, portanto, deve desfrutar o mais
amplo apoio entre os cidadãos. (tradução livre)51
Em face de tudo isto, é preciso encontrar uma forma de contemporizar tão
diferentes desafios no âmbito do direito à saúde, partindo do pressuposto de que tal tarefa
cabe a todos e não somente a alguns.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos fundamentais não são estáticos, mas acompanham o processo
histórico, que conhece avanços e retrocessos, e são radicados em uma série de direitos
naturais do homem, reconhecidos pela sua própria condição humana. E, o direito fundamental
à saúde está inserido nesse processo, que, ao longo dos últimos 40 anos têm sido assimétrico,
em especial em termos de qualidade diante da escassez de recursos público.
Sabe-se que a insuficiência de recursos dos cofres públicos não deve ser
argumento para se permitir o esvaziamento de tal direitos fundamentais, já que reconhecidos
como elementos responsáveis pelo desenvolvimento humano e pelo aumento da capacidade
das pessoas para provocarem a mudança nas famílias, comunidades e países.
No entanto, a proteção da saúde deve atualmente interpretada não somente como
um direito em sua dimensão coletiva e até mesmo difusa, e decorrente de grandes esforços das
50
TRIBE; DORF, 2005.
“la Costituzione non è uno specchio in cui ognuno vede quello che vuole, né un documento affidato alle
sempre mutevoli suelte politiche dei suoi interpreti. È suo compito creare una nazione attraverso le parole e,
pertanto, debe godere del più ampio consenso fra i cittadini consociati.”
51
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
políticas públicas, mas também exercido e protegido individualmente, seja no âmbito da
responsabilidade institucional ou familiar, levando em conta a própria estrutura normativa
constitucional e infraconstitucional brasileira.
Nesta perspectiva, Assim, o direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo
menos não se concretiza somente através de uma política constitucional, eis que esta é, prima
facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado das contingências de
várias esferas da sociedade, e sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em
benefício de poucos.
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Agravo de Instrumento nº2008.04.00.005863-3/RS, em que figurou como Agravante a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discutindo o tema da reserva de cotas. Relatora
Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, despacho dado em 25/02/2008.
Apelação Cível e Reexame Necessário nº70028464881, Sétima Câmara Civel, TJRS, relator
des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009.
Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984;
Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte.
REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001.
REsp 811608/RS; Recurso Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux,
julgado em 15/05/2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314.
TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003.
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS
NO BRASIL
Rogério Luiz Nery da Silva1
Thuany Klososki Piccolo2
RESUMO
Tema dos mais visitados no meio jurídico-político-administrativo, as políticas
públicas ganharam a cena nos anos setenta do século passado e vem aos poucos
se fazendo reverberar por diversos ramos do conhecimento acadêmico e da prática
política governamental e administrativa. Pode-se estudar o tema das políticas de
forma teórica generalizada ou pelo viés prático. Pode-se ainda fazê-lo com foco em
determinado serviço público ou necessidade prestacional específica dos cidadãos. O
presente estudo visa a abordar o direito à moradia vem sendo cada vez mais
mencionado nas discussões jurídicas e sociais, em função dos altos índices de
déficit habitacional nas cidades e da dificuldade de acesso a uma moradia digna
para as parcelas mais pobres da sociedade. O direito à moradia foi incorporado pelo
direito brasileiro em função, principalmente, dos tratados internacionais de direitos
humanos, dos quais o Brasil é signatário. Expressamente, o direito à moradia
passou a fazer parte da Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda
Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo 6º, que trata dos direitos
fundamentais sociais. Por se tratar de um direito fundamental, o direito à moradia
deve ter aplicação imediata e eficácia plena. No entanto, tendo em vista a questão
orçamentária do Estado, a realização desse direito de forma plena para todos os
cidadãos é, praticamente, impossível. O histórico das políticas públicas habitacionais
no Brasil mostra como os principais programas não conseguiram obter êxito entre as
camadas sociais mais baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as
classes média e alta, contribuindo diretamente para o alto deficit habitacional
brasileiro.
1
Rogério Luiz Nery da Silva é professor pós-doutor em Direito Constitucional pela New York
Fordham University (EUA); Doutor em Direito Público e Mestre em Direito e Economia. Professordoutor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito e pesquisador líder de
grupo em Direitos Fundamentais Sociais, na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC),
orientador da segunda autora.
2
Thuany Klososki Piccolo é universitária da graduação em Direito, bolsista de Iniciação à Pesquisa
na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientanda do primeiro autor.
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
PALAVRAS CHAVE: direito à moradia, dignidade da pessoa humana, direito
fundamental social, políticas públicas habitacionais.
ABSTRACT
Public policies is now a matter considered one of the most discussed themes in the
administrative, judicial and political circles. The increasing of its attention has started
in the nineteen seventies of the last century and it has been gradually reverberating
over many branches of the academic knowledge, governmental practices and
administrative policy. It is possible to study the policies’ issue under a view of general
theory or under a sight of its practical doing. Another alternative option is to focus the
politics under an individual public service sight or under a collective citizen’s
provisional need. This essay aims to establish a connection to the theme of the right
to housing, from its conception grounded in human dignity, passing by the evolution
of its historical recognition and remarkable obstacles materialized by the lack of
housing, noted for lower-income population, e.g., the difficulty for condign housing
access for the poorest part of the society. The right to housing was incorporated into
Brazilian law largely due to international human rights treaties signed “by the
country”, but it was on account of the Constitutional Amendment No. 26 from 2000
that the right to housing was inserted expressly in the body of the Constitution, in the
social rights’ specific chapter. Considered as a fundamental human right, the social
right to housing should have immediate applicability and full effectiveness,
supposedly, on account of the constitutional structure. However, such assumptions
are so far away from becoming real, though appearing implicitly as formal objectives
of the Federative Republic of Brazil, established by Article 3 of the Brazilian
Constitution – “to eradicate poverty and social marginalization”, whose provision
collides with several personal financial difficulties and state budgetary barriers; the
analyses of the Brazilian housing public policies indicates very moderate results,
mainly among the poorer people, aggravating the severe national housing deficit.
KEY WORDS: social rights; right to housing; human dignity; housing public policies.
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
I – INTRODUÇÃO
A moradia é uma necessidade básica de qualquer pessoa, enquanto
elemento basal de sua existência, seja tomada como locus da sobrevivência, seja
como ponto de repouso físico, área de proteção contra a ação agentes externos ou
centro das atividades familiares ou, ainda, mero santuário de meditação, criação
intelectual ou mesmo procriação. Daí compreender-se como fundamental zelar pelo
reconhecimento, garantia e efetivação desse especial direito fundamental.
O conceito de moradia transpassa a singular e, por vezes utópica figura do
“sonho da casa própria”, para alastra-se por extensa área léxica compreendendo
para além da idéia de propriedade, também a noção de posse, ou de mera detenção
ou até ocupação. Ultrapassado resta também o conceito material de casa enquanto
imóvel pura e simplesmente – tal como delimitado por um dado endereço e
qualificado por sua extensão métrica ou número de cômodos –, para alcançar outros
critérios, vinculados ao acesso a serviços públicos essenciais conexos com a ideia
de “habitar”, tais como a prestação de serviços básicos de abastecimento de água e
energia, além de boa rede sanitária e outros serviços que possam ensejar noção
complementar, assim compreendidas os desdobramentos em redes de transporte,
segurança e suporte de facilidades públicas, sempre abertas à admissão de novos
conceitos jurídicos (GUERRA, 2008, p. 8).
Singular a contribuição de Gomes (2005, p. 75-78), segundo a qual,
habitação, casa, domicílio, residência, assentamento, moradia, lar e abrigo são
termos que têm em comum o fato de representarem o local em que alguém vive.
Todos abrangem um plexo de interesses e necessidades básicas vocacionadas à
proteção, segurança e bem-estar do morador. Moradia, portanto, compreende o
espaço onde há a possibilidade de exercer o direito de viver com segurança, paz e
dignidade, sendo um elemento essencial ao ser humano.
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A habitação, tomada como moradia constitui-se em direito fundamental do ser
humano, a garantir-lhe a concretização de sua dignidade como pessoa, razão pela
qual se classifica como direito social – de índole coletiva prestacional, mas pode ser
exercido tanto na esfera individual ou como na familiar.
Os problemas envolvendo a efetivação do direito à moradia são os mais
diversos e, sob alguns aspectos dotados de notada complexidade. Sob a ótica das
políticas públicas, pode-se relacionar – como ponto central da agenda – o elevado
déficit de oferta de unidades habitacionais, em especial para pessoas de média e
baixa renda.
Embora haja considerável volume de recursos em fundos especiais
destinados ao financiamento de imóveis residenciais, muitos são os requisitos
exigidos e nem sempre os potenciais candidatos reúnem qualidades aptas a lograr
preenchê-los, especialmente, aqueles provenientes das camadas mais pobres.
Ademais, a desordenada urbanização contribui para uma ocupação pouco
racional do espaço físico, com insuficiente aproveitamento, somando-se ao mesmo
quadro. O número de pessoas que vivem em condições inadequadas de moradia é
alarmante; segundo Marra (2010, p. 6353) estima-se que, somente nos centros
urbanos, existam mais de um bilhão de pessoas sem moradia.
II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA
Sarlet (2011, p. 687-688) destaca que, sob a ótica da evolução histórica, o
direito à moradia – como instituto autônomo – não logrou ser reconhecido até a
Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos
da
ONU
(1958)
declará-lo
expressamente na cláusula XXV (1):
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe,
e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito
à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de
seu controle.
Desde cedo estabeleceu-se frequente discussão em torno da efetividade dos
direitos assentados na Declaração Universal, que enfrentaram resistências diversas,
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
no sentido de negar-lhes a executoriedade, fosse ao atribuir-lhes natureza
meramente “declaratória” – em razão do título “Declaração” adotado –, fosse em
função da ideia de força meramente principiológica, como simples valor inspirativo,
mas sem condão de coagir os Estados-Membros (Altas-partes Contratantes) a sua
observância, atendimento ou cumprimento.
Por essa razão, a ONU identificou a necessidade e conveniência de editar um
novo diploma que pudesse lhes ratificar a força originalmente desejada com a
“Declaração”, mas sob outro enfoque; desta feita o esforço se daria como
compromisso voluntário adotado pelos Estados por meio de um “Pacto”, que, depois
de assinado, se tornaria dever obrigacional: o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, no artigo 11, § 1º (1966), de elaboração
determinada ao Conselho de Direitos Econômicos o qual foi ratificado pelo Brasil
apenas em 1992,:
Os Estados-partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa
a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria
contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas
apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo,
nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada
no livre consentimento.
Outros textos internacionais dos quais o Brasil é signatário dão garantias ao
direito à moradia direta ou indiretamente (MILAGRES, 2011, p. 92-95), fazendo-se
digno de nota, no magistério de Sarlet (2011, p. 690) que, hoje, sessenta e cinco
anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cerca de
cinquenta constituições reconhecem o direito à moradia em seu texto legal.
Milagres (2011, p. 105-106) assevera que, no contexto da América Latina,
grande parte dos países prevêem o direito à moradia em seus textos constitucionais,
tal como se verifica nas Cartas do Uruguai, México, Paraguai, Colômbia, Honduras e
Nicarágua, em cujos textos figura a previsão de que – de uma forma ou de outra –
“todos têm direito a uma moradia digna”. A constituição do Equador se refere ao
“direito a uma moradia adequada e digna”; a da Bolívia, refere-se ao “direito a uma
moradia adequada”; as da Guatemala e da Costa Rica tratam da proteção e do
incentivo à construção de moradias populares, respectivamente.
Tem-se, portanto, a assunção em sede constitucional de compromisso
expresso e explícito com a promoção de políticas públicas e ações de governo e
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
sociais, públicas e privadas voltadas a garantir o direito social à moradia; é de se
destacar que no caso específico de Argentina, Costa Rica, Paraguai e México a
tutela se projeta mais além, ao ponto de atribuir à moradia a natureza jurídica de
bem de família (MILAGRES, 2011, p. 106).
No Brasil, a Constituição permite correlacionar o direito social à moradia direta
ou indiretamente com muitos dos princípios fundamentais da República, com lócus
topológico nos quatro primeiros artigos de seu texto. O princípio da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III), assim como com os objetivos fundamentais da
República (art. 3º) de “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (Inc. I),
“erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e
regionais” (Inc. III) e, de certa forma, na opção pela prevalência dos direitos
humanos fundamentais (art. 4º, inciso II), que, muito embora direcionada às relações
internacionais, traduz uma opção incondicional pela dignidade dos seres humanos.
O direito à moradia foi incorporado ao artigo 6º da Constituição Federal, que
faz parte do capítulo II do título I, intitulado “Dos princípios fundamentais”, por meio
da Emenda Constitucional nº 26, de 2000. É importante ressaltar que tal direito já
era mencionado em outros dispositivos constitucionais, tais como no artigo 7º, IV, o
qual define que o salário mínimo é aquele capaz de atender às necessidades vitais
básicas do trabalhador e de sua família, dentre outros elementos, como moradia; e
no artigo 24, IX, quando dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios para promover programas de construção de
moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico
(SARLET, 2011, p. 690.
Na visão de Campos (2010, p. p.49), ar ser considerado um direito
fundamental, o conteúdo material da norma que o disciplina seria de aplicação
imediata e eficácia plena, À inteligência do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição
Federal. Rangel et Silva (2009, p. 67-68) apóiam-se sobre o princípio da
aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, para
sustentarem dispensável regulamentação legislativa ulterior para lograr eficácia
social.
Ao nosso sentir, em que pese a superior relevância do direito à moradia e sua
indeclinável natureza de direito fundamental social, faz-se necessário distinguir que
os conteúdos dos princípios de aplicabilidade imediata e de eficácia plena compõem
318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
conceitos jurídicos eminentemente distintos, que não se igualam, nem se
sobrepõem, tampouco se confundem: a aplicabilidade imediata, decorre de previsão
constitucional, que ratifica e recepciona a opção pelo efeito imediato – de
retroatividade mínima adotado desde a histórica Lei de Introdução ao Código Civil,
hoje, Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, a conceber a vigência imediata, “no que
couber” a qualquer dispositivo veiculador de direitos fundamentais.
Como é de todos sabido, a limitação do que é “cabível” em termos de
aplicação imediata, se dará a partir da própria arquitetura adotada em cada
dispositivo do texto constitucional, consagrada por diversos modelos de classificação
de normas constitucionais, em torno das ideias de eficácia plena, eficácia contida e
eficácia limitada, com suas nuances, caso a caso, conforme os doutrinadores.
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) refere-se explicitamente ao direito
à moradia a partir da adoção de princípios e diretrizes, fundados no que denomina
princípio instrumental do planejamento (RANGEL et SILVA, 2009, p. 72), voltado a
conferir contornos de sustentabilidade ao direito à moradia no espaço urbano, com o
intuito de regulamentar a política urbana nacional.
III – POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL
O processo de habitação no Brasil se mostrou deficitário desde o início da
colonização, quando o sistema de Capitanias Hereditárias dividiu o território nacional
de forma desigual, contribuindo para o surgimento de latifúndios e a centralização de
terras nas mãos de poucos (NOGUEIRA, 2010, p. 7).
De acordo com Motta (2011), no primeiro quartel do século XX, fruto da
abolição da escravatura e do grande número de imigrantes, o problema da habitação
foi agravado em muitas cidades brasileiras, pois o poder público não se via
preparado estrategicamente para a nova realidade do país. Botega (2008, p. 4)
apresenta dados dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) demonstradores da influência do período de industrialização no
Brasil para o aumento significativo da população urbana.
Depreende-se que em 1920 a carga urbana representava cerca de 11,3% e,
já em 1950, superava a população rural em 55,9%. Assim, a falta de alternativas
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
habitacionais, o intenso processo de industrialização e a baixa renda das famílias
contribuíram para que uma grande parcela da população brasileira buscasse
alternativas precárias e informais para morar, caracterizadas pela falta de acesso a
serviços, assistência de infra=estrutura, informalidade na posse da terra, entre
outros (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 36)3.
Segundo Nogueira (2010, p. 7), por muito tempo, as moradias foram resultado
de ações da iniciativa privada e do autofinanciamento, até a criação da Fundação da
Casa Popular (FCP) em 1946, órgão federal responsável pelo financiamento da
construção de habitações e que, ao mesmo tempo, apoiava a indústria de materiais
de construção e a implementação de projetos de saneamento4. A FCP tinha o
compromisso de prover residências para a população de baixa renda, mas, seus
resultados foram modestos, tendo criado apenas 17 mil moradias, no espaço
temporal de vinte anos de atuação (MOTTA, 2011).
Em 1964, a Fundação da Casa Popular foi extinta e substituída pelo Sistema
Financeiro de Habitação (SFH) – marco significativo da intervenção do Estado
(governo) no setor habitacional (NOGUEIRA, 2010, p. 7)5. Segundo Motta (2011), o
Plano Nacional de Habitação ou Sistema Financeiro de Habitação foi o primeiro
plano do governo militar e suas ações visavam outros objetivos além da questão da
habitação, como a dinamização da economia, o desenvolvimento do país e o
controle das massas. De acordo com Nogueira (2010, p. 8) e Medeiros (2010, p. 4),
suas fontes de recurso se baseavam na arrecadação do Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimos (SBPE), por meio da captação das letras imobiliárias e
cadernetas de poupança, e a partir de 1967 passou a contar também com o Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), resultado das contribuições
compulsórias com base em 8% (oito pontos percentuais) dos salários dos
trabalhadores empregados formalmente no mercado de trabalho6.
3
Dados do período de 1940 a 2000.
A Fundação da Casa Popular foi a primeira ação do governo destinada à questão da habitação,
promulgada pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, por meio do Decreto-Lei nº 9.777, de 6 de
setembro de 1946.
5
O Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH) foram criados
pela Lei nº 4.380/64 e modificada dois anos depois pela Lei nº 5.049/66, ambas promulgadas pelo
presidente Humberto de Alencar Castello Branco.
6
A arrecadação do FGTS, no início, era destinada apenas para a construção de casas de interesse
social, como conjuntos populares, porém, posteriormente foi canalizada também para os setores de
saneamento e desenvolvimento urbano.
4
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Segundo Arrectche (1990); Andrade e Azevedo (1982) citados por Medeiros
(2010, p. 4), o montante arrecadado pelo FGTS deveria ser destinado para financiar
obras para a população de baixa renda, enquanto que a arrecadação do SBPE
financiaria obras direcionadas às classe média e alta.
Entre 1964 e 1965 foram criadas as Companhias de Habitação Popular
(COHABs), que eram empresas públicas ou de capital misto, cujo principal objetivo
era atuar na criação e execução de políticas para reduzir o déficit habitacional por
meio do financiamento de moradias para o mercado popular (MOTTA, 2011).
Segundo Nogueira (2010, p. 9), o BNH não possibilitava o acesso da
população de baixa renda aos empréstimos, facilitando o crescimento do número de
habitações informais, o que teria motivado a criação dos programas habitacionais:
PROFILRUB, PRO-MORAR e João de Barro, destinados à população de renda
inferior a três salários mínimos.
O Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), criado
em 1975, teve por objetivo atender aos extratos de renda mais baixa, numa especial
tentativa de erradicar favelas e de incentivar o financiamento de lotes urbanizados,
ou seja, com infra-estrutura básica dotada de ponto de água, luz e ligação de coleta
de esgoto, com ou sem a unidade sanitária (BUENO, 2000, p. 30 - 31). Segundo a
mesma autora, o programa financiava lotes entre 80 e 370 m2, num prazo máximo
de 25 anos, com juros entre 2% e 5% (dois e cinco pontos percentuais) ao ano e,
assim, visava facilitar o acesso à terra e atribuir aos mutuários a construção da
moradia.
Ainda de acordo com Bueno (2000, p. 31), o Promorar (Programa de
erradicação da sub-habitação), implementado em 1979, tinha a finalidade de conter
o crescimento de favelas nas grandes cidades, por meio do financiamento de
unidades habitacionais de até 24 m2, num prazo máximo de 30 (trinta) anos e com
juros de 2% (dois pontos percentuais) ao ano. Medeiros (2010, p. 5) ressalta que foi
a primeira ação em que não se buscou remover os moradores, mas fixá-los no
núcleo originalmente invadido de terra. Realizado por construtoras, esse programa
financiou cerca de 206 (duzentos e seis) mil moradias em todo o país até 1984,
contabilizando o triplo de unidades a mais que o Profilurb (BUENO, 2000, p. 31).
O Programa João de Barro, criado em 1982, no contexto do “processo de
abertura política” e diante de severa crise econômica, propugnou pelo acesso à
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
moradia, financiando o terreno e o material de construção, contando com a
participação da coletividade, focando com prioridade as cidades do interior e
destinando-se às famílias com renda de até 3 salários mínimos.
De acordo Bueno (2000, p. 31), o programa disponibilizou financiamentos em
prazo máximo de 30 (trinta) anos, com juros de 2% (dois pontos percentuais) ao
ano, mas obteve pouca eficiência, com apenas 7 (sete) mil unidades produzidas até
1984, principalmente em cidades do interior do Nordeste.
No contexto do Sistema Financeiro de Habitação, o Banco Nacional da
Habitação foi o principal órgão da política habitacional, cabendo-lhe orientar,
disciplinar e controlar a atuação do SFH na construção e aquisição da casa própria
para população de baixa renda (MOTTA, 2011).
Medeiros (2010, p. 3) afirma que, além de ter um objetivo social, o BNH
também buscou incentivar a economia por meio da aumento da mão de obra na
construção civil. Já Nogueira (2010, p. 8) atribui aos índices de inflação
extremamente elevados na década de 1980 a derrocada do Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimo e principalmente do Banco Nacional de Habitação (BNH)
pela intensa e insustentável inadimplência.
O fenômeno se caracterizou por um reajuste superior nas prestações dos
financiamentos imobiliários das classes média e alta em comparação com seus
índices de reajuste salarial. Nesse contexto, em 1986, deu-se a extinção do BNH,
pelo Decr. nº 2.291. Suas atribuições e funções foram transferidas para a Caixa
Econômica Federal (BOTEGA, 2008, p. 10). A Política Nacional de Habitação, a
crise do SFH e a extinção do BNH criaram um hiato na política habitacional no país,
com significativa redução dos recursos destinados a investimentos na área de
construção civil e consequente fragmentação institucional por perda da capacidade
decisória.
Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC) criou o Programa Nacional
de Mutirões Habitacionais (1987), destinado a financiar habitações para famílias com
renda inferior a 3 (três) salários mínimos e coordenar programas de obras de infraestrutura, regularização fundiária em favelas, construção de habitações em regime
de mutirão e instalação de equipamentos comunitários em favelas (BUENO, 2000, p.
32).
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Nogueira (2010, p. 10) menciona que nos anos de 1990 e 1991, a gestão de
políticas públicas habitacionais foi reestruturada, ampliando-se significativamente o
controle social e a transparência da gestão de programas por exigir a participação
comunitária. O que se deu por meio de conselhos e dos governos municipais (de
poder local), além de uma contrapartida financeira.
Botega (2008, p. 12) demonstra que, pelos dados do IBGE, de 1991, o
número de moradores de rua chegava há 60 (sessenta) milhões de pessoas e que
cerca de 55,2% (cinquenta e cinco pontos percentuais e dois décimos) das famílias
se encontravam em déficit habitacional.
Bueno (2000, p. 33) explica que a década de 1990 se caracterizou como
período de grande conturbação política e de muitas mudanças na estrutura
institucional da gestão da problemática de estrutura urbana, habitacional e social.
O período de 1990 a 1992 representou a implementação de diveros
programas habitacionais, mas o que teve alguma expressão foi o Plano de Ação
Imediata para a Habitação (PAIH), que previu o financiamento de 245 (duzentos e
quarenta e cinco) mil casas em 180 (cento e oitenta) dias, por meio da contratação
de construtoras (BUENO, 2000, p. 33). Botega (2008, p. 12), entretanto, adverte que
o prazo inicial se estendeu por mais de dezoito meses, aumentando o custo médio
inicialmente previsto e diminuindo o número de moradias construídas para 210
(duzentos e dez) mil.
No período de 1992 a 1994, foram criados dois programas voltados à questão
da habitação, o “Habitar Brasil” e o “Morar Município”, que buscavam financiar obras
e ações nos municípios e capitais de estados ou integrantes de regiões
metropolitanas e aglomerados urbanos voltados para a população de baixa renda
com renda familiar de até 3 (três) salários mínimos (MOTTA, 2011); nesse contexto,
entretanto, o excesso de exigências legais restringiu em muito a captação de
recursos postos à disposição dos municípios. Bueno (2000, p. 33) registra que,
apesar dos resultados pouco expressivos (aproximadamente 18 mil unidades
construídas até 1994), os referidos programas tiveram sua importância no sentido de
reformular o pensamento nacional quanto à política habitacional.
Entre 1994 e 2002, várias reformas do setor habitacional se mostraram
efetivas, promovendo uma reorganização do aparato institucional referente à Caixa
Econômica Federal,com sua atuação limitada a agente operador dos recursos do
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
FGTS e agente financeiro do SFH. À Secretaria de Política Urbana (SEPURB) restou
o papel de formular e coordenar ações relativas ao saneamento e infra-estrutura
(SOUZA, 2005, p. 75 - 76). Criaram-se novas linhas de financiamento, baseadas em
projetos dos governos estaduais e municipais.
Criou-se o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que atuou na
construção
de
novas
unidades
para
arrendamento,
utilizando
recursos
principalmente formados pelo FGTS e de origem fiscal (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, 2009, p. 42). Deu-se, ainda, o surgimento do programa Construcard
(Caixa Econômica Federal), voltado à compra de materiais de construção, por meio
de financiamento direto, a juros menores que os praticado no mercado bancário
(BUENO, 2000, p. 34).
Souza (2005, p. 81) relata a criação do Ministério das Cidades, em 2003,
voltado à política urbana e às políticas setoriais de habitação, saneamento e
transporte. O óbice anterior caracterizou-se pela descontinuidade e ausência de
estratégias para buscar garantir o direito a moradia. O Ministério das Cidades
passou a ser o órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, da Política Nacional de Habitação.
Segundo Azevedo (2012, p. 3), a lei federal nº 11.124/2005, que trata do
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criou o Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a fim de garantir o acesso à habitação
digna para população de menor renda, pela implementação de políticas e programas
de investimento e subsídios. A lei nº 11.888/2008, que assegurou às famílias de
menor poder aquisitivo assistência pública para a construção de moradias de
interesse social (AZEVEDO, 2012, p. 10).
De acordo com Motta (2011), o programa “Minha Casa, Minha Vida” em
7
2009 , cuja meta era de construir um milhão de casas, num total de R$ 34 bilhões de
subsídios para atender famílias com renda entre 0 a 10 salários mínimos, pretendeu
estimular também a criação de empregos e de investimentos no setor da construção
civil.
Nogueira (2010, p. 2) o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi,
juntamente com o anterior, considerado um dos motivos para a queda do déficit
7
Programa decorrente da Medida Provisória (MP) nº 459/2009, convertida na Lei nº 11.977/2009, a
qual foi alterada pela MP nº 514/2010, convertida na Lei nº 12.424/2011(IPEA, 2012, p. 3).
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
habitacional urbano. O PAC teve como prioridade atender as regiões metropolitanas,
aglomerados urbanos e cidades com mais de 150 mil habitantes.
Como se pode verificar, muitas foram as iniciativas governamentais, sob a
forma de políticas públicas, voltadas a suprir o déficit de oferta de moradia de baixo
custo e mesmo à classe média. Entretanto, verifica-se, também, que via de regra, os
objetivos foram supra-estimados e deixaram de ser alcançados.
Identifica-se, pois, um misto de otimismo, com irresponsabilidade e,
possivelmente, certa pirotecnia eleitoral, voltada a objetivos menos eficazes que o
da redução do déficit de moradias. Também não se viu falar eficazmente de
programas de desestímulo à migração interregional no país – certamente um dos
fatores responsáveis pela grande concentração populacional nos grandes centros e
fator de pressão social habitacional, a expandir as moradias subhumanas. A
incapacidade de pagamento dos financiamentos, em razão dos altos custos e da
baixa renda da população também se fez fator de pressão negativa. A história
brasileira demonstra que o Estado não tem sido capaz de garantir a igualdade
habitacional, como o direito social à moradia, seja por meio de suas intervenções
operativas, seja por meio de reformas pontuais. Como se constatou, os interesses
da população, em especial, a de baixa renda, tem sido atendidos sistematicamente
de forma parcial, incompleta e, por vezes, injusta, disponibilizando benefícios que se
concentraram nas mãos da classe média e, por vezes, até beneficiaram a classe
mais alta, sem, contudo, resolver o problema das classes subalternas.
IV - VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA
Sarlet (2011, p. 703) critica a desatenção com a referida política, fenômeno
responsável pela carência de ações e resultados no espaço público e privado das
metrópoles brasileiras, onde o problema se mostra mais caótico, com o
desenvolvimento de soluções informais desumanas, como o direcionamento quase
que natural das populações carentes à opção por instalar-se em modelos de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
concepção perversa, como as favelas, os cortiços e moradias precárias, em áreas
de risco, como também destaca Azevedo (2012, p. 2).
Almeida (2009, p. 83) informa que a Constituição atribuiu ao Estado a
responsabilidade de defender o direito à moradia em termos de garantia, tutela e
efetivação, vinculando-o à noção de conteúdo mínimo existencial, vale dizer,
complexo de tutelas materiais voltadas a conferir condições mínimas essenciais de
vida digna, que, por sua vez, não se confunde com a noção subexistencial do
“mínimo vital” ou “mínimo de sobrevivência”, por sobrepor-se à mesma tanto em
alcance quanto em intensidade, por ir alem da mera sobrevivência para abarcar a
noção de vida digna. O certo é que a noção de mínimo existencial tem comportado
as mais diversas, severas e acaloradas discussões em torno de seu conteúdo
material e processual, não se podendo sustentar que qualquer direito possa ser
incluído nesse especial rol, dado o risco de vulgarização de classe criada e
destinada
a
justificar
tratamento
diferenciado,
materializador
da
igualdade
substancial, o que não se coaduna com generalizações irresponsáveis, dada a sua
dimensão essencial inalienável (TORRES, 2009, p. 13).
O mínimo existencial se vincula sobremaneira ao princípio da dignidade da
pessoa humana, constituindo-se pressupostos existenciais mútuos (RANGEL et
SILVA, 2009, p. 65). Nesse jaez, ninguém pode se ver privado do que se considera
o mínimo necessário à conservação de sua vida, em termos de prestações sociais
asseguradas pelo Estado (ALMEIDA, 2009, p. 85) e mesmo pela sociedade – pelo
princípio da solidariedade universal.
Sarlet (2011, p. 696) menciona o pensamento de Hegel (1981) no sentido de
que a propriedade constitui o espaço de liberdade da pessoa (SphäreihrerFreiheit),
ou seja, a pessoa não terá a sua dignidade garantida se residir em um local que não
lhe garanta a mínima segurança para si e sua própria família ou que não assegure
um espaço para se viver com condições mínimas, com qualidade de vida, segundo
os parâmetros de exigência da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A dignidade da pessoa humana é um valor próprio da essência do ser
humano, serve de fundamento para qualquer reflexão que o envolve e sua
conceituação é difícil em função de sua evolução e transformação histórica
(TORRES, 2009, p. 13).
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Sarlet (2010, p. 70) elabora um conceito de dignidade da pessoa humana
tomando por base a evolução histórica desse princípio:
a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido
respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Sarlet (2010, p. 68-89), com muita propriedade, adverte que a dignidade da
pessoa humana determina que os direitos e as garantias fundamentais devam ser
prestados na medida do possível, sem olvidar dos limites das possibilidades fáticas
e jurídicas, por isso tem-se a relação desse princípio com os direitos fundamentais
como vínculo indissociável, já que todos esses são fundamentados direto e
imediatamente ao princípio da dignidade da pessoa humana. A ausência de respeito
à vida e o desconhecimento dos direitos fundamentais reconhecidos e assegurados,
expõe as pessoas a arbitrariedades, injustiças e excessos pelo Estado e por
particulares.
Do exposto, conclui o autor (2010, p. 109 e 119), que diante de uma violação
a um direito fundamental, viola-se também o princípio da dignidade da pessoa
humana, pois o processo de humilhação ao qual alguém passa por se encontrar em
um estado de exclusão social ou de falta de condições ao mínimo existencial é
totalmente degradante.
Também conexo com a presente discussão, pode-se remeter ao problema de
carência habitacional dos denominados desplazados8. A Lei colombiana nº 387 de
1997, em seu artigo 1º, denomina como desplazado toda pessoa forçada – por meio
de violência - a abandonar sua residência ou atividade econômica habitual e migrar
dentro do território nacional por ocasião de conflito armado interno, disputa por
territórios geoestratégicos, áreas para prática de pecuária extensiva e agricultura
comercial, entre outros motivos.
8
OLIVEIRA (2006) recomenda o emprego do termo desplazados em espanhol – sem tradução, por
não encontrar terminologia adequada em português a definir essa categoria jurídico-social. VIANA
(2009) e também JUBILUT et APOLINÁRIO (2010) preferem empregar o termo deslocados internos
para referir-se aos “refugiados” que se vêem expulsos de suas terras por narcotraficantes ou por
força da guerra civil colombiana entre forças legais e guerrilheiros.
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
De acordo com dados recentes do Alto-Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (Agência da ONU para Refugiados – ACNUR), estima-se que há
mais de 43 milhões de pessoas em todos os continentes, que se encontram na
condição de refugiados, apátridas, repatriados e desplazados. Dos 13,5 milhões de
desplazados que o ACNUR estima existir no mundo, cerca de 3 milhões encontramse na Colômbia.
Viana (2009, p. 145) explica que mesmo sendo um problema extremamente
delicado, já que essas pessoas deixam suas residências e precisam procurar outras
localidades para viver, perdendo muitas vezes entes queridos em função da
violência e deixando para trás valores culturais, e que data da década de 1980, o
Estado colombiano só iniciou medidas para combater essa questão no final dos
anos 1990 com a Lei 387/1997, citada anteriormente, a qual transfere para o Estado
a responsabilidade na formulação de políticas e adoção de medidas para amparar a
população de desplazados. Tal situação mostra o desafio que os países afetados
por esse fenômeno precisam enfrentar para tentar possibilitar à essas pessoas a
recuperação do sentimento da dignidade da pessoa humana.
Segundo Sarlet (2011, p. 698), o fato da nossa Constituição se referir ao
direito a moradia no artigo 6º de forma genérica, ou seja, sem nenhum adjetivo, não
justifica que tal direito tenha seu conteúdo esvaziado e fique aquém dos critérios
estabelecidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana e do mínimo
existencial.
Nesse sentido, cabe mencionar a iniciativa das prefeituras em implantar o
auxílio do “aluguel social”, que consiste na concessão de benefício financeiro
destinado ao pagamento de aluguel de imóvel de terceiros para famílias que não
possuam outro imóvel próprio, visando ampará-las nas situações em que perdem
suas casas por ocasião de catástrofes naturais ou por viverem em áreas de risco9.
Em seu texto, Sarlet (2011, p. 702) cita que a Comissão da ONU criou um
padrão internacional para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, enunciando uma
série de elementos básicos a serem atendidos em termos de direito a moradia, tais
como a segurança jurídica para a posse; disponibilidade de infra-estrutura básica
para a garantia da saúde e saneamento básico; acesso em condições razoáveis à
moradia, especialmente para pessoas com deficiência e acesso ao emprego.
9
(Lei nº 1.101/2010, Art. 1º, REGISTRO – SP). 328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Todo cidadão tem a prerrogativa de recorrer ao Poder Judiciário para ter uma
resposta à violação de seus direitos, como preconiza o princípio da inafastabilidade
da jurisdição previsto em nossa Constituição no inciso XXXV do artigo 5º. Porém os
direitos fundamentais não são absolutos, por isso é necessário que sempre seja feito
o sopesamento dos bens constitucionais, princípios e direitos em questão para
chegar a uma decisão justa (ALMEIDA, 2009, p. 88). Nesse sentido, Campos (2010,
p. 50) afirma que é preciso interpretar os direitos sociais com clareza e coerência,
pois se o Estado provesse todos os direitos de forma plena, toda a sua condição
orçamentária seria afetada, levando-se em consideração a realidade e os limites do
mesmo. Tratar sobre a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais é um tema
complexo e que ainda carece de respostas, inspirando debates e estudos sobre o
assunto, mas que não será objeto de discussão nesse presente trabalho.
Piovesan (2010, p. 55) afirma que, com relação ao aspecto constitucional
pátrio, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a incluir os direitos sociais como
direitos fundamentais. No mesmo sentido, Gallo (2007, p. 1551-1552) explica que
essa categoria de direitos tem caráter coletivo, dependem de decisões tomadas pelo
Poder Público e sua eficácia depende da ação conjunta dos três poderes e da
criação e implementação de políticas públicas.
Além disso, os objetos dos direitos sociais são bens públicos e coletivos, seus
conflitos são distributivos e plurilaterais, sendo que as perdas e ganhos dos conflitos
são divididos entre todos os cidadãos (MARINHO, 2009, p. 5).
Para Dias (2012, p. 4), a maior dificuldade para a eficácia dos direitos
fundamentais sociais é a prestação dos serviços sociais básicos pelo Estado, os
quais estão diretamente relacionados com a criação, execução e o gerenciamento
das políticas públicas.
A mesma autora questiona a viabilidade orçamentária e a responsabilidade de
planejar o desenvolvimento nacional, buscando condições para o exercício dos
direitos sociais pelos cidadãos.
Piovesan (2010, p. 67- 68) empresta o pensamento de Asbjorn Eide e Allan
Rosas (1995, p. 17-18) :
Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério
implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração
social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e
culturais incluem como preocupação central a proteção aos
grupos vulneráveis. (...) As necessidades fundamentais não
devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas
estatais, mas devem ser definidas como direitos.
Embora se possa sustentar que a partir da inclusão do direito a moradia no rol
de direitos fundamentais sociais, todos os cidadãos teriam esse direito subjetivo, em
termos práticos e objetivos, Campos (2010, p. 50) ressalta que não é possível se
desprender da realidade, das limitações e condições orçamentárias e da escassez
de recursos do Estado, tornando a efetivação do direito à moradia, algo ainda
carente de grandes elaborações e construções jurídicas e econômicas.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito a moradia vem sendo cada vez mais mencionado nas discussões
jurídicas e sociais, em função dos altos índices de déficit habitacional nas cidades e
da dificuldade de acesso a uma moradia digna para as parcelas mais pobres da
sociedade.
O direito a moradia foi incorporado pelo direito brasileiro em função,
principalmente, dos tratados internacionais de direitos humanos, tais como a
Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), dos quais o Brasil é signatário.
Expressamente, o direito a moradia passou a fazer parte da Constituição Federal de
1988 por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo
6º, que trata dos direitos fundamentais sociais.
Por se tratar de um direito fundamental, de acordo com o parágrafo 1º do
artigo 5º da Constituição, o direito a moradia deve ter aplicação imediata e eficácia
plena. No entanto, tendo em vista a questão orçamentária do Estado, a realização
desse direito de forma plena para todos os cidadãos é, praticamente, impossível.
Ter uma moradia que possibilite viver em segurança e em condições mínimas
de qualidade de vida é pressuposto básico fundamentado no princípio da dignidade
da pessoa humana e no mínimo existencial, sendo, por isso, de extrema relevância
a participação do Estado na proteção desse direito.
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O histórico das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra como os
principais programas não conseguiram obter êxito entre as camadas sociais mais
baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as classes média e alta,
contribuindo diretamente no alto déficit habitacional brasileiro.
331
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL É COMPATÍVEL COM A GLOBALIZAÇÃO?!
THE WELFARE STATE IS COMPATIBLE WITH GLOBALIZATION?!
JOSÉ VAGNER DE FARIAS1
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Liberalismo, socialismo e as origens
do “Estado do bem estar social”; III. Neoliberalismo e
globalização; IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar
social”, globalização e reformas; V. Conclusões; X. Referências
Bibliográficas.
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo uma análise da possível compatibilidade de “modelo de
estruturação de Estado” conhecido como “Estado de bem estar social” em relação à proposta
de organização de Estado oriunda do fenômeno mundial da globalização. Para tanto, como
pressuposto para se compreender as raízes históricas e políticas da origem daquele,
inicialmente faz-se uma análise das contradições e da dialética das propostas de organização
estatal feitas pelo liberalismo e pelo socialismo. Depois, tenta-se demonstrar a ligação
existente entre globalização e neoliberalismo. Numa crítica reflexão sobre uma suposta crise
deste modelo especificadamente, sem levar as contradições maiores do capitalismo, constatase como o ideário neoliberal globalizante procura justificar uma série de reformas nos
Estados, estabelecendo-se um paralelo dessas possíveis modificações com o modelo estudado.
Por fim, na conclusão, procura-se responder a indagação feita no título do artigo.
Palavras-chave: Estado de bem estar social. Globalização. Compatibilidade.
Abstract
This works aims to analyse the possible compatibility of the “model of State organization”,
better known as “Welfare State” regarding to the one proposed after the phenomenon of
globalization. For that, as a fundamental to the comprehension of the origin´s historical and
political roots of the that one, initially its made an analysis of the contradictions and of the
dialectic that exists in both liberal and socialist proposes. Than, it will be attempted to
demonstrate the connexion between globalization and neoliberalism. In a critical observation
about a supposed crisis of that last model, forgetting the largest constradictions of the
Capitalism, it turns evident how the neoliberal ideas of globalisation try to justify a serie of
reforms in the States´ organization, establishing a paralel between this possible changes and
the studied model. Finally, at the conclusion of this paper, will seek to answer the question
proposed in the title of this article.
Keywords: Welfare State. Globalization. Compatibility.
1
Defensor Público do Estado do Ceará, Aluno da Pós-Graduação em Direito da UNIFOR, no mestrado em
Direito Constitucional.
336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
I. Introdução.
Para se tentar responder a relevante indagação, tema desse trabalho, a qual, atualmente,
tem gerado inúmeros debates e análises na academia, em forúns econômicos, na imprensa
mundial e que está relacionada com atuais e cada vez mais polêmicas reformas que têm sido
realizadas nas estruturas administrativas dos Estados pelo planeta, principalmente em setores
tradicionamente considerados como políticas de “Estado de bem estar social”, alterações estas
motivadas pela ideologia neoliberal muitas vezes não perceptível no fenômeno da
“globalização”, torna-se indispensável, antes mesmo de uma análise do quem vem a ser tal
fenômeno econômico-político na atualidade e se compreender o próprio conceito de “Estado
de bem estar social”, um breve esboço sobre os antecedentes sócio-econômicos de três
importantes perspectivas ideológicas que influenciaram direta ou indiretamente a organização
do Estado Moderno Ocidental, sob pena de não se compreender as razões de tais reformas: o
liberalismo, o socialismo e o “Estado do bem estar social”.
Isso ocorre porque a concepção ideológica neoliberal que é utilizada para tentar
justificar as reformas propostas aos Estados “para não serem empecílho à Globalização”, e,
por conseguinte, das recentes modificações dos ordenamentos jurídicos nacionais, em
matérias previdenciárias, trabalhistas, por exemplo, devem ser investigadas, inicialmente, a
partir do estudo das chamadas “fontes materiais”, que são o complexo de fatores sociais,
econômicos, históricos que contribuem para o surgimento, extinção e alteração das normas
jurídicas, e por conseguinte, de alterações legislativas e alterações das constituições dos
Estados a fim de se chegar a determinado objetivo. Para isso, a análise dessas concepções é
fundamental, se não indispensável, tendo em vista que não é plausível e, muito menos,
compreensível, analisar o surgimento de qualquer mudança jurídica tendo como ponto de
partida apenas as “fontes formais” do Direito, através de uma concepção artificial e afastada
da influência direta dos aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos que os
ensejaram. No que pese a concepção de muitos juristas positivistas que entendem ser
relevante apenas o estudo das fontes formais, relegando o estudo daquelas à Sociologia
Jurídica, tal não pode prevalecer neste trabalho, sob pena de se estar tornando
incompreensível o tema.
“[...] A questão jurídica é, como se vê, apenas uma parte de realidade social,
política e econômica do país. Não há como se entender todos os retrocessos nos
últimos anos na seara do Direito, sem se atentar para as condições políticas e
econômicas mundiais.” (PEREIRA SILVA, 2001, p. 86)
337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Tentar compreender as raízes dos processos de reformas oriundas da Globalização que
ocorreram ou estão ou estão em trânmite nos ordenamentos jurídicos pátrios, relegando a
relação fundamental do Direito com os embates histórico-econômico-políticos mundiais é
tarefa impraticável, ainda mais quando possuem repercussão mundial, isto porque os
esquemas formalistas não resistem frente a uma crítica que tenha por base esses pressupostos.
Por isso, deve-se entender a relação do chamado “Estado do Bem Estar Social”, de uma forma
geral, com essas três importantes bases ideológicas que serviram ou servem, direta ou
indiretamente, para as estruturações no campo sócio-jurídico dos Estados modernos
ocidentais. A interdisciplinaridade, como se vê, é fundamental.
“[...] Não houve uma importante alteração do quadro jurídico de uma dada
sociedade que não tivesse tido, em suas raízes, um capital de interesse de ordem
econômica.” (MACHADO NETO, 1987, p. 244)
II. Liberalismo, socialismo e as origens do “Estado de Bem Estar Social”.
Cabe destacar, inicialmente, que a expressão “liberalismo” está longe de ser um termo
unívoco, tendo como paradigma os campos filosófico, econômico e político, tendo
diversidade de significados, inclusive, por exemplo, politicamente, dependendo da localidade
em que a expressão é utilizada. Nos EUA, por exemplo, a expressão “liberal” tem uma
conotação progressista, enquanto que no Brasil, carrega um sentido conservador. Pode-se
estabelecer, entretanto, que todas as suas ramificações estão historicamente relacionadas entre
si pelo avanço do “liberalismo econômico”, que consiste, basicamente, em uma doutrina
segundo a qual o ente estatal não deve, de maneira geral, intervir nas relações econômicas
entre os indivíduos, cabendo ao mesmo apenas exercer suas funções “típicas” de Estado,
como o exercício da justiça e do poder de polícia.
Não chega a ser reducionismo afirmar que o liberalismo econômico consiste, em sua
essência, na base ideológica do sistema capitalista. Para que se compreenda essa premissa, é
necessário analisar o contexto histórico em que se desenvolveu. Trata-se de uma perspectiva
com repercussões nos campos filosófico, econômico e político que possui suas origens ainda
no século XII. Suas premissas vão radicalmente de encontro às concepções predominantes do
sistema de produção feudal, destinando-se primordialmente a desenvolver uma “economia de
mercado”:
“[...] Na concepção liberal, mercado é o conjunto de relações sociais onde se
efetuam as trocas de mercadoria. É um sistema econômico onde as quantidades
produzidas e os preços praticados dependem da confrontação da oferta e procura,
não de um planejamento.” (HOLLANDA, 1995, p. 30)
338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Uma característica marcante do liberalismo é dar grande destaque ao individualismo,
uma vez que recorre à psicologia individual como maneira de explicar o interesse geral, de
maneira que defende essencialmente a tese de que a potencialidade do indivíduo não deve ser
“molestada pelo Estado”. Prova disso é que:
“[...] O liberalismo era avesso às intervenções da autoridade política na atividade
econômica, de forma a mitigar a liberdade individual. O Estado deveria ficar
restrito àquelas atividades indispensáveis, prevista no quadro constitucional. As
funções dos poderes públicos deveriam, por isso, estar minuciosamente previstas, a
fim de que não houvesse ofensa aos direito essenciais: propriedade, liberdade,
segurança. Qualquer desvio significaria uma usurpação de poder.” (PEREIRA
SILVA, 2011, p. 124)
Não é sem razão, entretanto, o fato de ser o liberalismo critico severo da atuação estatal
na esfera econômica. O seu surgimento está ligado aos questionamentos feitos por seus
defensores à maneira e as razões da intervenção do Estado na economia principalmente
durante o período do absolutismo monárquico, uma vez que, na maioria das vezes, esta foi de
encontro aos interesses da classe burguesa, em ascensão. Os altos impostos e os monopólios
impostos pela nobreza eram medidas que, geralmente, iam de encontro aos seus interesses,
limitando o direito de propriedade e o exercício da atividade econômica. Dessa maneira, a
concepção liberal vai trabalhar o ideário de que o Estado deve se restringir às suas atividades
básicas, defendendo a tese de que “a proteção social”, anteriormente pregada pela doutrina
cristã durante o feudalismo, seria o mercado, dentro de sua lógica de atuação. No modelo de
Estado que partisse dessa premissa, a burguesia poderia fazer prevalecer seus interesses sem
grandes riscos ou ameaças de forma mais tranquila. É nesse momento que entra a importância
do liberalismo clássico como ideologia, já que a conquista do poder econômico pela burguesia
foi fundamental para sua prevalência no campo político, que, de acordo com Raimundo
Falcão, (1986, p. 109), “[...] teve o cuidado de se armar de um conveniente embasamento
filosófico, político e religioso.” para atender seus interesses. Ela queria, na realidade, um
“Estado seu”, de acordo com Paulo Singer (1996, p.19).
Trata-se esse ideário do liberalismo econômico, a premissa que deveria prevalecer na
organização de um “Estado Liberal” em contraponto ao Estado Absolutista, tendo em vista
que sua diretriz fundamental seria a delimitação das funções estatais em relação aos planos
econômico e político, prevalecendo a figura individual em face do Estado. Consequência
disso é o caráter excepcional da intervenção da economia. Essa só poderia ocorrer para
garantir a permanência do mercado e a concorrência entre seus agentes. Caso contrário,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
haveria o receio de que o Estado restringisse, de qualquer modo, a acumulação do capital e o
direito de propriedade. O mercado, em seu livre funcionamento, seria o remédio para qualquer
conflito humano, pois a concorrência individual criaria os pressupostos para o bem geral.
Dentro desse contexto, em 1776, Adam Smith (1723-1790) publica a obra prima do
liberalismo clássico na seara econômica: Investigação sobre a natureza e as riquezas das
nações. Livro este que vai trabalhar de maneira sistemática as bases teóricas liberais, como
concepções de que a busca do interesse individual, por cada um, permite, em situação de
concorrência, atingir o bem geral e de que a “mão invisível do mercado” permite a
conciliação do interesse individual com o interesse geral. Outros pensadores que ocuparam
lugar central no pensamento clássico foram Jean Say (1767-1832), que dedicou seus estudos a
importância do papel do empresário e o lucro, tornando famosa a tese de que a oferta cria a
procura equivalente (Lei de Say); Thomas Malthus (1766-1834), que, embora liberal, se opôs
ao otimismo exagerado dos dois pensadores anteriores, tendo em vista que procurou colocar
suas concepções românticas dentro de uma visualização sólida empírica, destacando-se,
dentro dessa concepção, a famosa teoria da população, que se preocupou com a fome; David
Ricardo (1772-1823), considerado relativamente pessimista, já que defendeu a tese de que, a
prazo mais longo, qualquer população é ameaçada por um Estado estacionário, além de ter
trabalhado três conceitos vitais na organização capitalista: a análise de valor, a renda
diferencial e a lei das vantagens comparativas; e Stuart Mill (1806-1873), que mesmo
prolongando as análises de Smith e Ricardo, deu atenção especial aos problemas sociais que
acompanham o capitalismo liberal, fazendo parte de uma corrente reformista, que será melhor
compreendida posteriormente.
Para o o modelo clássico de Estado capitalista liberal, o Direito é uma estrutura para a
conservação da ordem e da segurança indispensáveis à reprodução das relações sociais e
econômicas. O papel do Estado deveria ser, fundamentalmente, garantir a liberdade
econômica, a propriedade e as relações mercantis. Dentro desse paradigma, é que se
compreende o caráter sintético das primeiras constituições do Estado moderno, pois é nesse
momento que se fortalece o movimento liberal, mostrando-se um instrumento de defesa que
favorecia a nova classe ascendente.
O principal fato histórico ocorrido como consequência da implantação de organização
estatal liberal foi a Revolução Industrial, que ocorreu devido, principalmente, ao grande
acúmulo de riquezas pela burguesia, favorecida pelo modelo estatal de pouca intervenção na
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
economia e a exploração sobre as classes proletárias. Com isso, grandes transformações
sociais ocorreram na Europa ocidental e América do norte, possibilitando a formação de uma
sociedade urbana, em que os trabalhadores eram submetidos a uma disciplina desumana de
produção.
Dentro desse contexto, outro fato histórico da prevalência do modelo de Estado Liberal
foi empobrecimento cada vez maior das massas, o que propiciou o surgimento de ideologias
que começaram a questionar seus fundamentos como modelo que contemplasse os interesses
maiores de qualquer sociedade .
O modelo liberal resultou em altíssimas jornadas de trabalho para os trabalhadores,
habitações insalubres, explorações sobre mulheres e crianças nas fábricas, salários
insignificantes, altos índices de mortalidade, o que motivou o insurgimento
da classe
trabalhadora. A principal reação ideológica desta foi o surgimento do socialismo, ideologia
que pregou uma opção de modelo de sociedade em relação não só ao liberalismo
especificamente, mas ao próprio sistema capitalista.
Os franceses Saint-Simon (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837) e o inglês Robert
Owen (1771-1858), foram chamados de “socialistas utópicos”, pois ao almejarem uma
sociedade mais solidária daquela em que viviam, caracterizaram-se por não saberem como ela
se originaria e nem sua estruturação. Ao tentaram colocar suas idéias em prática, não
obtiveram êxito devido ao caráter “sonhador” de seus projetos. Eram autênticos idealistas, por
isso a designação que receberam. Posteriormente, surgiram os “socialistas cientificistas” que
se destacaram por terem trabalhado no sentido de organizar suas idéias em dimensões
sociológicas, econômicas e filosóficas como fundamento para ruptura do sistema capitalista.
O pensador mais importante dessa corrente foi o alemão Karl Marx (1818-1883), criador
do chamado “socialismo científico”, posteriormente chamado de “marxismo”. Em seus
trabalhos, foi indispensável a ajuda dada pelo seu companheiro Friedrich Engels (1820-1895),
que também foi autor de diversos livros relacionados ao tema.
A principal análise de Marx em relação à compreensão da História e o funcionamento
da sociedade (incluindo-se, aí, também o modelo de organização política de um Estado) é o
funcionamento de sua produção econômica, já que o modo como os homens se relacionam
socialmente no processo produtivo determina o tipo de sociedade que existirá.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Merece destaque sua famosa “teoria da mais-valia”, trabalhada de forma minuciosa no
livro O capital, em que tenta demonstrar, de maneira cientifica, que o capitalismo sempre
promoverá injustiça social, tendo em vista que a única maneira de alguém ficar rica é
explorando economicamente outras pessoas (trabalhadores), pois um capitalista não paga pelo
“trabalho de um trabalhador”, mas pela sua força de trabalho (capacidade de trabalhar),
auferindo daí o lucro.
Após a análise dessa premissa, é razoável a concepção marxista de que não existe
“Estado neutro”, pois, para esta, a organização estatal é o espaço por excelência dos
representantes das classes que dominam a economia. Apesar de não se poder cair em um
determinismo de que a economia traça toda a história do homem, sendo esse o maior
problema do pensamento marxista: o reducionismo, é lógico que a preponderância econômica
prevalece na organização econômico e política de qualquer Estado. O fator econômico é,
entre as forças modeladoras do direito, o que exerce a influência mais decisiva e mais
palpável. Apesar dessa premissa, não se pode radicalizá-la a um ponto de se cair em uma
visão simplista de que a toda história é movida pelo aspecto econômico, já que são vários os
acontecimentos históricos que o economicismo reducionista marxista não explica. Mesmo
assim, a análise marxista tem seu valor porque é inovadora ao levar em consideração as
ligações estruturais sócio-econômicas, tendo em vista o caráter indissociável do aspecto
econômico e análise da sociedade.
“[...] Sob o Socialismo temos o planejamento, a execução e o controle da economia
centralizados pelo poder político, sendo o Estado detentor, em sua forma mais
ideologicamente estruturada, de todos os meios de produção.” (MAGALHÃES
FILHO, 2001, p.127)
Tal radical concepção socialista contribuiu para a emergência de idéias por parte de
alguns capitalistas no sentido de revisar as bases do Estado liberal. Eram necessárias
mudanças, tendo em vista que o “avanço vermelho”, com greves, revoltas e manifestações,
colocava em risco seus maiores interesses, já que pregavam o fim de acúmulo de riqueza pela
burguesia atráves do fim da exploração do proletariado, por ser aquela detentora dos meios de
produção, e do Estado Capitalista, que atuava para manter tal situação.
Diversas manifestações isoladas contra o quadro de injustiça do Estado liberal
ocorreram, porém só com o fortalecimento do movimento operário, em virtude da
organização e do crescimento de seu número, ficou insustentável a necessidade de ampliação
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
de direitos sociais. Os trabalhadores, portanto, conseguiram melhores condições sociais
porque lutaram por tais, dentro de uma lógica dialética de luta de classes, o que ratifica que
um direito social é uma conquista, e isso não ocorre sem luta. Essa questão é indispensável
para compreensão das mudanças ocorridas nos ordenamentos jurídicos dos Estados modernos
que não aderiram ao socialismo. As idéias revolucionárias espantavam a burguesia, diante da
possibilidade de que tais concepções se expandissem cada vez mais, sob pena de perder todos
os seus privilégios no Estado Liberal. Para essa, também não foi tarefa extremamente onerosa
a concessão de alguns direitos de impacto social, devido ao grande excedente de riquezas
propiciadas pelo mesmo.
O ápice desse movimento dentro do Estado capitalista ocorreu com o surgimento da
chamada corrente reformista, que se caracteriza por ser uma doutrina que critica alguns
aspectos do funcionamento do sistema capitalista, sem, contudo, ter como finalidade a sua
extinção, utilizando diversos meios para reduzir seus inconvenientes.
Como foi mencionado, no capitalismo praticado sob a tutela do Estado liberal, não
existe reconhecimento natural de direitos sociais, primeiro porque o liberalismo é pensando
dentro de uma visão individual, e principalmente pelo fato de que suas concessões repercutem
diretamente nos interesses econômicos da burguesia, seja através do pagamento de impostos,
seja pela intervenção direta ou indireta na propriedade. Direitos sociais, assim começaram a
ganhar destaque a partir do quadro revolucionário socialista que colocava em risco a sua
própria existência. Para a classe detentora do poder econômico e político, restou a alternativa
de promovê-los, sob pena de perder seus privilégios de maneira total dentro do sistema
capitalista.
"Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam são direitos históricos, ou
seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma
vez e nem de uma vez por todas" (BOBBIO, 2004, p.05).
A repercussão prática das correntes reformistas capitalistas na esfera jurídica foi a
ampliação dos direitos sociais nos ordenamentos jurídicos estatais. Relações previdenciárias,
trabalhistas e assistencialistas começaram a ser criadas e regulamentadas com objetivo de
apaziguar os conflitos decorrentes das lutas de classes. A emergência de movimentos sociais
foi o fator fundamental para tais mudanças. É no momento desses avanços que Bismarck
(1815-1898), na segunda metade do século XIX, ao chegar ao poder na Alemanha, amplia os
direitos sociais da carta magna desse recém criado Estado após sua unificação de tal maneira
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
que passa a ser um marco inicial de um constitucionalismo bastante diferente do modelo
pregado no liberalismo, com diversas normatizações de direitos sociais e econômicos, até
então, praticamente ausentes: o chamado “constitucionalismo social”, com regulamentações
de temas sociais que antes não eram sequer objeto de debates por juristas e políticos, passando
a se voltar para a sociedade geral e não apenas para o indivíduo.
Porém, mesmo com tímidos avanços sociais, o estopim de todas as contradições do
sistema econômico capitalista liberal veio com a grave crise mundial de 1929. Uma
superprodução provocou estagnação econômica, tendo em vista que se produzia bens, mas
não havia quem consumi-los.
Dentro do contexto da “grande depressão”, surge, dentro dos próprios defensores do
capitalismo, a proposta keynesiana. Mesmo não se afastando inteiramente das teorias do
liberalismo, Keynes (1883-1946) faz sua crítica ao mesmo quando radicalmente exercido
baseando-se na teoria geral do emprego (Theory of employment, interest and Money) e da
função estatal na economia, afirmando que o mercado não produz, por si só, uma demanda
efetiva dos fatores de produção, sendo necessária a ação estatal e de agentes econômicos. Seu
estudo inova porque, antes dele, a análise da economia de cunho liberal baseava-se quase
inteiramente à micro-economia, do ponto de vista de uma empresa. Keynes criou um novo
ramo da teoria econômica, chamada de macro-economia.
Keynes foi um fiel defensor que seria o próprio Estado o agente capaz de controlar os
excessos do liberalismo econômico, cabendo ao mesmo a intervenção econômica no sentido
de promover o desenvolvimento em setores estratégicos da economia. Estaria ali os
fundamentos que inspirariam o chamado “Estado de bem estar social”.
“[...] O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural
por que passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos.
Mas algo, no ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o
socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem
capitalista, princípio cardeal a que ele não renuncia.” (BONAVIDES, 1980, p. 205).
A intervenção econômica estatal a fim de implantar políticas sociais a favor das classes
menos favorecidas não surgiu como fruto de uma mera evolução natural dentro do capitalismo
liberal ou simples liberalidade daqueles que detinham o poder no Estado liberal. Ao contrário,
foi uma necessidade, inclusive para sua sobrevivência.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
No campo jurídico, ocorreu a consagração definitiva de direitos econômicos e sociais
nas constituições e em legislações infraconstitucionais nas áreas relativas à saúde, segurança,
higiene, moradia, previdência e outras. Consolidava-se o chamado “Estado de bem estar
social.”
III. Neoliberalismo e globalização.
A principal consequência da implantação do modelo de Estado de bem estar social foi
o refortalecimento do capitalismo, que chegou a um patamar de grande desenvolvimento, com
taxas de crescimentos industrial e comercial superiores a qualquer outro momento capitalista
visto na história. Durante as décadas de 1950 e início da década de 1970, viveu-se o chamado
“período de ouro” do capitalismo contemporâneo. Entre 1945 e 1975, ocorreram os "30
gloriosos" da França, ou "wirtschaftswunder" (milagre econômico) alemão. O crescimento
econômico com desenvolvimento social é o traço marcante nesse período.
Contudo, a partir do fim da década de 1970, esse modelo econômico-social começou a
se questionado por começar a enfrentar suas primeiras crises. Crises, ressalta-se, que são
inerentes ao próprio sistema capitalista, concentrador de riquezas por excelência.
A diminuição do rendimento de capital por parte da burguesia, a redução dos avanços
tecnólogos de produtividade, a luta contra a inflação, o crescimento das despesas sociais, a
“crise do petróleo”, a profunda instabilidade monetária são alguns fatores que contribuíram
para o fortalecimento do ataque contra o Estado de bem estar social. Contudo, o motivo
principal, mais razoável e causa principal de todos os outros problemas, foi, mais uma vez, a
superprodução.
O consumo, essência do sistema capitalista, já não crescia como antes, pois as pessoas,
nos países em que tal doutrina de Estado de bem estar social, prevaleceu, seja em maior ou
menor grau, estavam, de maneira geral, satisfeitas por terem chegado a um limite natural de
consumo de bens, já que, devido aos salários dignos, os bens de consumo mais importantes
estavam em suas residências. Como a produção continuou crescendo mais rápido do que o
consumo, estourou, consequentemente, mais uma crise de superprodução.
Os programas sociais keynesianos, então, começaram a ser apontados como os causadores
do abrandamento do crescimento dos rendimentos nacionais, por parte dos detentores do
poder econômico e político dos Estados capitalistas.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A compreensão da dialética histórica e econômica mencionada até aqui nesse trabalho, é
fundamental para que se compreenda a tese de que a burguesia nos Estado de bem estar
social não aceitou tal modelo por simples vontade ou caridade, mas por necessidade, tendo em
vista que, a partir do momento que os planos sócio-conômico keynesianos começaram a
corroer, por contradições do próprio capitalismo ressalta-se, a tendência seria de um
retrocesso liberal, pois a função primordial da intervenção estatal social foi mitigar os
conflitos existentes no Estado liberal. Isso foi fortalecido, posteriormente, com o fracasso da
primeira tentativa prática do modelo socialista, principal símbolo de alternativa ao modelo
capitalista em geral, apesar de suas imensas contradições entre o defendido por Marx e o
exercido na prática pelas Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde o
dirigismo estatal acabou provocando ineficiência econômica e despotismo político, chegando
a um extremo patamar de violência em muitos países e que, para muitos, descaracterizaram o
modelo teórico marxista.
“[...] De tal sorte que, verificada a queda do Muro de Berlim e a dissolução da
União Soviética, instalou-se a crise do socialismo e uma suposta neutralidade do
campo ideológico, a qual vem sendo exibida, com ares triunfais, pelo capitalismo e
sua recente ideologia “sem ideologia”, cifrada no neoliberalismo da globalização.”
(BONAVIDES, 1999, p.19)
Sem o “perigo vermelho” e com as crises do capitalismo baseado na linha de política
econômica do modelo keynesiano, o resultado foi que os pensadores de
um
“novo
liberalismo” passaram a ganhar força e coesão, sendo considerados os salvadores para a crise
econômica predominante, contando com o apoio do poder ideológico da classe dominante.
Tais crises deram voz ao pensamento de economistas como Friedrich Hayek (1899-1992) e
Milton Friedman (1912 - 2006). A maior parte dos países do mundo ocidental passaram a
seguir suas teorias e tentar implantá-las, de maneira mais moderada ou radical, acatando ao
chamado “Consenso de Washington”, realizado em 1989 nos Estados Unidos da América
(EUA), reunião esta que fortaleceu o debate de “reenquadramento” dos Estados ao modelo
neoliberal. Isto, sem dúvidas, está relacionado às reformas ocorridas e que estão sendo
propostas baseados no ideário da Globalização.
Apesar da aparente contradição, as origens do movimento neoliberal, ideologia
sustentáculo da globalização, estão relacionadas com a decadência do “antigo liberalismo
clássico” (pode-se afirmar que o mesmo representou a figura mitológica grega Fênix, a qual
“ressurgiu das próprias cinzas”). Após o fortalecimento inicial, dentro do sistema capitalista,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
do modelo de organização estatal do “Welfare State”, diversos pensadores, principalmente
aqueles oriundos do chamado grupo da Universidade de Chicago, tentaram restabelecer uma
tese de defesa da ordem econômica anterior, que era, comparativamente ao keynesianismo,
mais favorável aos interesses das classes proprietárias. Para isso, tais intelectuais, autênticos
liberais, procuraram promover alterações, mais profundas, na concepção clássica com o
intuito de reverter o liberalismo econômico, tendo em vista a dificuldade de sua sustentação
devido a já comentada decadência de tal modelo em se tratando de reverter o quadro de crise
de 1929.
“[...] A crise do Liberalismo e o triunfo das políticas de intervenções estatais de
orientação Keynesiana e Socialista, não foram motivo suficiente para inibir sua
produção teórica e nem o desenvolvimento de uma militância política—embora
restrita aos meios acadêmicos e aos institutos de pesquisa privados—a seu
favor.”(HOLANDA FRANCISCO URIBA, XAVIER DE; ABU-EU-HAJ,
JAWDAT. 1995. P3)
A diferença básica histórica do liberalismo clássico para o neoliberalismo é que aquele
representa a defesa da sociedade burguesa contra as sociedades pré-capitalistas, enquanto que
este procura legitimar os interesses burgueses contra às tendências keynesianas e socialistas
existentes. Outra distinção é que o liberalismo clássico é trabalhando dentro da lógica de
Estados nacionais, a fim de que a não intervenção econômica favoreça uma “burguesia
nacional”, já o neoliberalismo, também objetiva
contemplar os interesses da burguesia,
porém sem aspecto de nacionalidade, por isso a importância da noção de globalização,
afastando-se qualquer noção de capital nacional. A globalização, nesse sentido, representa a
superação do Estado nacional nesse aspecto.
A concepção do intervencionismo estatal é o outro importante divisor de águas entre o
“antigo” e o “novo liberalismo”. Se para os clássicos, existe uma rejeição teórica à ação do
Estado agindo na economia de maneira quase absoluta, excetuando-se a sua legitimidade na
questão de manutenção do mercado, no neoliberalismo isso não ocorre. De acordo com esse, o
Estado não deve sair por completo da economia, já que o que é necessário ocorrer é uma
mudança de orientação da interferência estatal: deve-se deixa de impor limites e restrições ao
capital, estimulando e subsidiando, contudo, as grandes empresas. Os neoliberais são
autênticos defensores de um Estado forte para aniquilar os sindicatos, controlar o orçamento
público e realizar reformas fiscais para incentivar os chamados “agentes econômicos”, tudo
isso sobre o pretexto de se garantir crescimentos econômicos a partir de uma interação
econômica global.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
“É por esse motivo que fica superado o debate acerca do chamado “Estado
Mínimo” que é pregado pelos teóricos neoliberais, tendo em vista que o Estado
neoliberal, como qualquer outro, sempre desenvolveu atuações no campo
econômico, porém a partir de diferentes motivações. A questão que o caracteriza
está na resposta da indagação: deixar de intervir em quais áreas e para favorecer
quem? Neoliberalismo é orientação estatal intervencionista para favorecer aos
grandes grupos econômicos e não-intervencionista naquilo que não é de seus
interesses, pois o capitalismo não prescinde a intervenção, já que qualquer política
de desregulamentação sempre está calçada sobre a construção de um novo modelo
genérico de regulação. “[...] Para a teoria neoliberal a dicotomia entre intervenção
ou não intervenção do Estado é totalmente desprovida de sentido. Está claro que
todo o Estado tem que agir; ao agir implica intervir nisto ou naquilo.”(HOLANDA,
1995, p.32)
Esse tipo de intervenção atende aos interesses burgueses, já que estimula a sobrevivência
do capital, sobretudo dos grandes monopólios e do capital financeiro. Por isso é que se
defende que o neoliberalismo e a globalização nunca objetivaram, e nunca objetivarão,
“Estado mínimo”. É pura retórica para aqueles que querem reduzir políticas e direitos sociais.
Como se pode concluir, o neoliberalismo só é benéfico a uma parcela reduzida da sociedade
(as grandes empresas e os especuladores financeiros), sendo nocivo à produção de riquezas e
sua distribuição, já que fortalece, ainda mais, dentro do sistema capitalista, a concentração de
renda na mão de poucos, seja dentro de uma esfera nacional seja em esfera internacional. Esse
aspecto que retifica o intervencionismo neoliberal ocorre quando se tem movimentos que
representam ameaça ao status quo, já que o Estado neoliberal deixa de lado a doutrina do
laissez-fair e age de forma direta em nome dos interesses burgueses.
“[...] Até poucos anos as grandes empresas e os grandes grupos capitalistas viam a
participação do Estado nas atividades econômicas e sociais como um fator de
restrição à liberdade. Entretanto, essa participação acabou por ser altamente
benéfica para os detentores de capital e dirigentes de empresas, pois o Estado
passou a ser grande financiador e um dos principais consumidores, associando-se
com muita freqüência aos maiores e mais custosos empreendimentos.”(DALLARI,
2002, p. 236)
Com a chegada ao poder de Margaret Thatcher (1925) , “a Dama de ferro”, na Inglaterra
entre 1979 e 1990, e Ronald Reagan (1911-2004) entre 1981-1989, nos Estados Unidos da
América, o neoliberalismo se consolidou como uma reação política prática veemente contra o
Estado intervencionista e de bem-estar. O Consenso de Washington realizado em 1989 é
também outro marco histórico no que tange à propagação e compromissos oficiais dos
dirigentes estatais em executar a “nova cartilha liberal” ou neo-liberal, pois a nova pauta
defendida eram as de idéias desreguladoras a fim de se facilitar a globalização. Sob a
alegativa de crescimento da interdependência de todos os povos e países da superfície
terrestre, o discurso que objetiva legitimar a globalização é o de reduzir as barreiras
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
alfandegárias e facilitar as trocas comerciais e financeiras das entidades em qualquer país,
tornando cada vez mais livres a circulação de bens e serviços entre os países envolvidos, isto
é, evitar ingerências sobre a propriedade privada agora em um processo supranacional, com
privatizações, alterações de regime de aposentadorias, liberalização das transações
financeiras, e pelo desprezo ao estado de bem-estar social.
A expressão "globalização", portanto, é utilizada em um sentido ideológico, no qual
observa-se no mundo inteiro um processo de integração econômica sob a égide do
neoliberalismo. A globalização tem forçado o Estado a abdicar de sua soberania e autonomia
em nome de uma internacionalização neoliberal, onde, cada país para legislar precisa estar ao
encontro desta para saber o que realmente podem regular ou intervir.
[…] Do prisma econômico, a globalização representa pelo menos um brutal
esvaziamento da territorialidade. Do ponto de vista político, a formação de grandes
blocos e os organismos supranacionais relativizam a soberania. Finalmente, do
prisma jurídico, o direito do mercado globalizado flexibiliza o direito positivo em
todos os planos (direitos individuais, políticos e sociais).”(CAMPILONGO, 2002,
p.29)
IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar social”, globalização e reformas.
.A originalidade do “Estado do bem estar social” é, em sua essência, a de uma doutrina
de moderação, isto é, uma linha reformista em relação ao socialismo e, portanto, a rejeição da
revolução proletária como o único meio de ação. Contudo, tal modelo econômico não nega a
doutrina liberal, já que aceita a existência do mercado, porém com uma preocupação que visa
garantir uma melhor distribuição da riqueza.
Afora os interesses dos grandes grupos econômicos em promover a globalização impondo
o modelo neoliberal aos países, deve-se ressaltar que diversas contradições nos Estados de
bem estar social facilitam cada vez mais a sua propagação e implantação. Inicialmente,
porque a perspectiva de redistribuição econômico-social não impediu o
aumento das
desigualdades e o surgimento de novas formas de exclusão, isso, logicamente, consequência
do capitalismo e, também, devido ao aumento da carga fiscal sobre as famílias, havendo
questionamentos sobre qual o nível máximo que o setor produtivo e parcela da sociedade
aceitam financiar os gastos sociais.
Outro grande dilema é que, a população dos países centrais do capitalismo, principalmente
os europeus, tiveram o envelhecimento de sua população, aumentando os gastos sociais com
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aposentadoria e saúde, estimulando ainda mais demandas sociais e, consequentemente,
diminuindo a mão de obra, cada vez mais cara.
Até os anos de 1940, a economia sempre foi enfocada, em grande parte, dentro de uma
realidade nacional, uma vez que seu desenvolvimento predominava dentro das fronteiras do
Estado. Isso mesmo no auge do liberalismo, nos Estados que se denominavam socialistas, e,
obviamente, com a expansão do modelo de Estado de bem estar social. A partir deste período,
entretanto, vem ocorrendo uma inversão gradual desta perspectiva econômica, uma vez que os
Estados estão, cada vez mais, incorporado-se aos mercados, deixando de haver, pelo menos
para os neoliberais, as barreiras estatais para o desenvolvimento do mercado, com um
enfoque, desta vez, mundial. Essa inversão é a própria concretização da "globalização"e seu
fortalecimento tem, portanto, um impacto cada vez mais significativo sobre a sobrevivência
do Estado do bem bestar.
Os países centrais capitalistas então, principalmente os da Europa e os Estados Unidos da
América, diante dessa crise interna, começaram a usar veementemente seu controle sobre as
instituições financeiras internacionais com o fito de impor reformas neoliberais para
enquadrar os demais países periféricos a essa lógica de “mercado sem barreiras”, para com o
peso de suas economias conquistarem novos mercados, ao mesmo tempo que, internamente,
faz fortes cortes de políticas sociais, fortalecendo o mito do “livre mercado”. Supõe-se que,
com o avanço da globalização, seguindo o seu curso programado, vai-se enfraquecer cada vez
mais a noção de “Estados nacionais” oriundos há cinco séculos atrás, ou dar-lhes novas
formas e funções, fazendo com que novas instituições supranacionais gradativamente os
substituam.
Entretanto, longe de resolver a questão do financiamento das políticas sociais, tal solução
só adia o problema, pois a lógica de concentração de riqueza e as demandas sociais não
desaparecerão. Deve-se ressaltar que os defensores da globalização e do neoliberalismo
revitalizam, de certa maneira, a tese do liberalismo clássico ao defenderem que as moléstias
sociais, em um contexto mundial, só serão sanadas com o livre mercado. Consequência disso
é que as políticas de promoção do emprego, de melhoria de vida, de condições de trabalho,
proteção e do diálogo social e de luta contra a exclusão só vem ser permitidas dentro de uma
concepção restritiva, isto é, na medida em que não vão de encontro ao mercado livre, um vez
que não pode haver distorções na livre concorrência.
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A história demonstrou que essa lógica de não atuação no mercado/economia a fim de
aparar arestas sociais não foi suficiente em promover desenvolvimento social à humanidade,
pelo contrário, levou a maior crise econômico-social da história no ano de 1929 . E, mesmo,
onde essa lógica neoliberal básica da globalização começou a ser implantada com rigor, as
respostas às demandas sociais pelo mercado não foram tão animadoras assim. O principal
exemplo desse modelo são os Estados Unidos da América:
“What thinking about such a policy? In the U.S., it encouraged the
return of full employment; but at the cost of the emergence of a
"working poor class", a class of sub-wage labor or workers living
below the poverty level. In doing so, it increased inequalities between
the richests and poorests. After having first resisted to this evolution,
the European countries finally took the same path.” (BOTTINI, 2012,
p.07)
Ressalta-se que não há questionamentos que na atualidade vive-se uma crise que atinge
o capitalismo e consequentemente os Estados, sejam eles mais liberais, como os EUA, sejam
eles mais sociais, como na Europa. Outro questionamento é se o neoliberalismo e a proposta
da globalização de reorganização dos sistemas econômico e de proteção social será capaz de
fazer retornar o crescimento econômico com desenvolvimento social, compartilhando os
ganhos do crescimento econômico.
A proposta neoliberal globalizante tende a fazer o caminho contrário do keynesianismo,
pois o ciclo vicioso econômico tenderá a diminuir seu crescimento, já que, com corte de
gastos e menos distribuição de riquezas, a tendência é haver menos consumo e menos
crescimento, e isso resultará em novos déficits.
Política e economicamente enfraquecido, o Estado do bem estar social, dando-se destaque
aos provedores europeus, passam por testes de resistência que colocam seu futuro em
perspectivas obscuras, uma vez que toda a sua concepção de política está sob ataque.
A expressão "globalização" tem sido, na realidade, utilizada num sentido
predominantemente ideológico, em que se constata no mundo inteiro a um processo de
interação econômica sob a égide do neoliberalismo, caracterizado, primordialmente, pelo
predomínio dos interesses financeiros da burguesia, pela desregulamentação dos mercados,
pelas privatizações das empresas estatais, e, por assim dizer, pelo abandono do estado de bemestar social.
351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A globalização, entretanto, ao contrário de seus defensores, tem sido a responsável pela
intensificação da exclusão social, com o aumento do número de miseráveis e de
desempregados, e de provocar crises econômicas sucessivas, arruinando milhares de
poupadores e de pequenos empreendimentos.
Tal acontecimento é um claro retrocesso, porque a experiência do Estado do bem estar
social, pela primeira vez, no capitalismo, em vez de simplesmente propagar a ideia liberal de
igualdade de direitos para todos os cidadãos, tornou cada vez mais possível. Entretanto, o
desenvolvimento da atual crise por que passa o capitalismo, e a ascensão do neoliberalismo,
está na contramão desse progresso.
Inegável que o intervencionismo do Estado reflete uma demanda social. Se o Estado do
bem-estar social deve ser reformado por conter alguns equívocos, devido às novas concepções
econômicas resultantes da globalização, a sua existência não pode ser ameaçada, uma vez que
o intervencionismo do Estado é necessário uma vez que a auto-regulação do mercado sempre
foi um mito.
"[...] A proposta do chamado Estado mínimo é apenas, quando feita de boa fé, uma
das tantas ilusões do neoliberalismo. O Estado não tem de ser mínimo, nem
máximo; tem de ser suficiente para assegurar o exercício de suas responsabilidades:
a soberania do país, o desenvolvimento de sua economia e a justiça social. O
Estado mínimo que nos tem sido proposto não atende a essas responsabilidades; ao
contrário, aprofundará e perpetuará o quadro de desigualdades sociais em que
vivemos. Esse Estado mínimo, portanto, é uma forma de neocolonialismo."
(CABRERA, 2012.)
Nesses primeiros anos de expansão da globalização alicerçada no neoliberalismo, é
possível destacar alguns fatos. Apesar de se destacar a diminuição da inflação, o avanço
tecnológico, o crescimento da taxas de desemprego e o aumento significativo das
desigualdades, tais medidas não promoveram, até o momento, a “reanimação” do capitalismo
pregada por seus defensores, tendo-se obtido taxas de crescimento muito inferiores aos anos
anteriores aos anos 70.
“[...] Para fazer-lhe o balanço, reúnem-se, desde 1970, em Davos, na Suíça, chefes
de Estado, banqueiros, financistas, dirigentes de grandes empresas transnacionais,
buscando auferir os avanços da economia de mercado, do câmbio-livre, da
desregulamentação.”(AZEVEDO, 2000. p, 120).
V. Conclusões.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Através do presente estudo pode-se concluir que a globalização é incompatível com o
Estado de bem estar social.
O neoliberalismo, base ideológica da globalização, vem avançando em nível global e vem
sendo o fator mais importante no que diz respeito à “reorganização” dos Estados. É, sem
dúvidas, o modelo econômico que os governos vem mais se pautanto, seja de suposta
dogmática ideológica de esquerda ou de direita.
Aqueles países que, anteriormente, implementaram, seja qual for o nível, políticas
relacionadas ao Bem estar social estão revertendo suas bases para atender ao modelo imposto
pela globalização, seja pela imposição política dos grandes grupos econômicos, seja pelos
grandes países capitalistas. O impacto disso no Direito é inevitável, por se tratar de um dos
meios, se não o principal, que o Estado utiliza para alcançar seus fins.
“[...] A desestruturação e mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduzem
destarte, inevitavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamente o
interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o próprio interesse social.”
(GRAU, 1991, p.52)
Está claro, portanto, de que o objetivo principal do neoliberalismo é reverter o quadro
jurídico-estrutural keynesiano, que ainda não está totalmente desmantelado. Esta realidade é
um dos fatores que mais influenciam a atual crise por que passa a questão jurídica, através da
quebras de suas unidades, não obstante muitos juristas e setores da sociedade não estarem
atentas à relação existente entre esses fatos. Em lugar de regulamentação econômica, ocorre a
desregulamentação e flexibilização, no lugar de aumento de previsão constitucional de
direitos sociais, ocorre um processo no sentido contrário, com a “desconstitucionalização” dos
mesmos.
“[...] Não se pode aceitar o discurso, tão em voga nesses tempos neoliberais, de que
o papel do Estado é apenas garantir as liberdades básicas, cabendo à iniciativa
privada a prestação dos direitos sociais e econômicos. Na verdade, se não houver
uma intervenção estatal no sentido de promover a distribuição da riqueza, buscando
a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF/88), através da
concretização dos direitos sociais e econômicos, sobretudo para as pessoas mais
carentes, a prometida “neo-liberdade” não passará de instrumento de escravização
branca.”(MARMELSTEIN LIMA, 2004, p. 13.)
VI. Referências Bibliográficas.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
O SISTEMA JUDICIAL DE PROTEÇÃO À CULTURA NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO, POLÍTICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO PARA A CULTURA:
ASPECTOS GERAIS DE UM SISTEMA JURÍDICO CULTURAL
THE JUDICIAL SYSTEM TO PROTECTION OF CULTURE IN BRAZILIAN LEGAL
ORDER, PUBLIC POLICY AND LEGISLATION TO CULTURE: GENERALITIES OF A
CULTURAL JURIDICAL SYSTEM
Gustavo Rosa Fontes1
RESUMO
O direito à cultura é protegido no ordenamento jurídico brasileiro por instrumentos jurídicos,
judiciais e legislativos. Trata-se de um direito de caráter eminentemente coletivo, e, por isso
mesmo, merece uma proteção especial, em consideração a esta característica. Além disso, o
direito à cultura exige a elaboração de políticas culturais, voltadas à proteção, promoção e
universalização do acesso aos bens e serviços culturais, de modo que existem mecanismos e
programas próprios voltados a este objetivo, tais como o Programa Nacional de Apoio à
Cultura (lei n. 8.313/1991), o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema
Nacional – PRODECINE (lei n. 8.685/1993), o Programa de Cultura do Trabalhador (lei n.
12.761/2012), além de incentivos via renúncia fiscal para apoio à cultura. Cabe observar
também que a estrutura administrativa brasileira dispõe de diversos órgãos voltadas à questão
cultural, como o Ministério da Cultura e entidades a ele vinculadas. Passamos por um
momento chave para a discussão do tema, haja vista que recentemente foi acrescentado o
artigo 216-A, à Constituição Federal, introduzindo em nível constitucional o Sistema
Nacional de Cultura.
Palavras-chave: Cultura; Direitos Culturais; Tutela judicial coletiva; Políticas Culturais;
Emenda Constitucional n. 71.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do
Amazonas/AM; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.
356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
ABSTRACT
The right to culture is protected in the Brazilian legal order, by, juridical, judicial and
legislative instruments. It is a right eminently collective, and, therefore, deserves special
protection, in consideration of this feature. Moreover, the right to culture requires the
development of cultural policies aimed at protecting, and promoting universal access to
cultural goods and services, so that there are mechanisms and programs geared themselves to
this purpose, such as the National Program Support to Culture (Law n. 8.313/1991), the
National Development Support of National Cinema - PRODECINE (Law n. 8.685/1993), the
Program of Culture for Workers (Law n. 12.761/2012), plus incentives via tax breaks to
support culture. It should be noted also that the Brazilian administrative structure have
several organs, focused on cultural issues, such as the Ministry of Culture and entities linked
to it. We pass through a key time for discussion of the topic, considering that recently was
added the article 216-A, to the Federal Constitution, introducing, in constitutional level, a
Culture National System.
Keywords: Culture; Cultural Rights; Collective law suit protection; Cultural Policies;
Constitutional Amendment 71.
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1 INTRODUÇÃO
O direito à cultura desponta neste ano como um importante tema a ser debatido, não
somente nos meios políticos, no âmbito da administração pública, mas também no âmbito
jurídico. Isso em consideração à profunda alteração que se pretende implementar no cenário
jurídico cultural, diante da Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012. Difícil
afirmar, a esta altura, qual o alcance desta, modificação legislativa, especialmente em relação
aos âmbitos judicial, político e administrativo, no sistema brasileiro. Entretanto, vislumbra-se
uma maior preocupação quanto ao assunto nestes meios.
O direito à cultura, pois, possui conteúdo demasiado impreciso, da forma que é
delineado nos artigos 215, 216 e o recém-criado artigo 216-A, todos da Constituição Federal,
dado seu caráter coletivo, que de um lado se revela um direito social (direito fundamental de
segunda geração), e de outro, coletivo ou difuso (direito fundamental de terceira geração).
Assim, como direito social, é possível observar as normas que o instituem possuem caráter
geral, amplo, cuja eficácia depende de diversos atores e fatores, tal como uma política pública
adequada, bem como instrumentos judiciais eficazes a lidar com a natureza destes direitos.
Portanto, nem sempre é claro identificar a natureza de determinados direitos,
especialmente quando se trata de diversas facetas (coletiva e individual) de um mesmo
fenômeno (cultura). Por isso, é preciso realizar uma análise cuidadosa, de modo a permitir
uma proteção mais eficaz, e a consequente maior efetivação do direito à cultura.
Nesse contexto, a defesa judicial do direito à cultura envolve a aplicação de
mecanismos normativos e processuais. Ao mesmo tempo em que o direito à cultura constitui
um direito pertencente à coletividade – demonstrando, nesse caso, sua natureza difusa; –
também é possível vislumbrar direitos afetos à cultura pertencentes a determinados grupos
sociais, unidos por uma relação jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito – e,
ainda, outros em que se revela em seu aspecto individual, mas derivados de uma origem
comum, e, por isso, homogêneos. Por isso, a defesa judicial do direito coletivo à cultura pode
tomar sentidos diversos, submetendo-se a normas e mecanismos processuais próprios a cada
caso.
Além disso, é preciso lembrar que o direito à cultura depende em grande parte da
atuação da Administração Pública, ou seja, da formulação de programas e políticas públicas
358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
voltadas ao tema, sempre tendo em vista o contexto social, político e cultural de sua
aplicação. É nesse âmbito, em especial, que a Emenda Constitucional n. 71 provoca grandes
mudanças, o que instiga especial atenção ao tema.
Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será delinear as nuances deste
sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento jurídico brasileiro,
aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, em especial a Constituição Federal;
em um segundo momento, este esforço se dará em abordar os principais mecanismos judiciais
de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo coletivo; e, por fim,
quais as diretrizes gerais a respeito da formulação de uma política cultural, tendo a legislação
como parâmetro.
Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será abordar os principais
mecanismos judiciais de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo
coletivo; em um segundo momento, buscaremos delinear diretrizes a respeito da formulação
de uma política cultural, tendo a legislação como parâmetro; e, por fim, analisaremos as
nuances deste sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento
jurídico brasileiro, aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, bem como a
Constituição Federal.
Para isso, os métodos utilizados nesta pesquisa foram, quanto aos fins, exploratóriodescritivo e, quanto aos meios, o bibliográfico, utilizando do corpo normativo do
ordenamento brasileiro, envolvendo legislação, jurisprudência, com apoio da doutrina jurídica
e estudos sociais. Assim, buscamos estabelecer as linhas gerais do sistema cultural brasileiro,
identificando seus princípios e dificuldades.
2 O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA
JUDICIAL
O Direito à Cultura pode ser encarado sob a perspectiva subjetiva, ou seja, como um
direito exigível individualmente; também de caráter social (segunda dimensão dos direitos
fundamentais), inserido, pois, no Título destinado à Ordem Social na Constituição Federal. A
par disso, o direito à cultura é encarado como um direito coletivo ou difuso (terceira dimensão
dos direitos fundamentais). Isso significa que sua efetivação depende da consideração deste
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
caráter coletivo, sem o que restará impossível a efetivação do direito subjetivo que daquele
decorre.
É interessante que, a partir disso, é possível perceber a relação que se desenvolve, de
modo cada vez mais próximo, entre Meio Ambiente (artigo 225, CF) e Cultura (arts. 215, 216
e 216-A, CF). É a ideia de Meio Ambiente Cultural, ou seja, a perspectiva de que não é
possível a concepção de meio ambiente afastada do aspecto sociocultural. A formação do
Patrimônio Cultural depende, pois, também da proteção dos aspectos ambientais, que envolve
a própria cultura, e vice-versa.
Exemplo dessa percepção é a chancela da Paisagem Cultural do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, lançada pela Portaria n. 127/2009 deste
órgão. Segundo o artigo 1º deste regulamento, Paisagem Cultural Brasileira é “uma porção
peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com
o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram
valores” (IPHAN, 2009). Percebe-se nesta definição o esforço conceitual que por tantos anos
os doutrinadores do denominado “Direito Ambiental Cultural”.
Estes parênteses são importantes para a compreensão da ampliação dos instrumentos
de formação do patrimônio cultural, e consequentemente, maior efetividades dos direitos
relacionados à cultura. Por isso é possível afirmar que também o artigo 225, da Constituição
Federal, se estende de forma a alcançar a proteção à Cultura, se ligando de forma visceral ao
que dispõem os artigos 215, 216 e 216-A. Como consequência, servirá de apoio à
interpretação das normas relacionadas a cultura, em consideração à noção de sistema que
paira sob as normas do ordenamento jurídico, em especial a própria Constituição. In verbis, o
artigo 225, da Constituição Federal:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.
Como já se ventilou acima, o direito à cultura não pode ser encarado sob uma única
perspectiva, em relação à sua titularidade: o que se quer dizer é que, levando em consideração
sua natureza coletiva – tal como em outras questões, como o Meio Ambiente – o direito à
Cultura é, por um viés, um direito pertencente à coletividade (art. 215, CF: o Estado
garantirá a todos (...)), e, por outro, também é um direito que pode ser exercido por
360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
determinados grupos ou pelos indivíduos separadamente, mas derivados de uma situação em
comum.
No primeiro caso, trata-se de um típico direito difuso, segundo a classificação
comumente adotada doutrinariamente em relação aos direitos coletivos, e inserida no
ordenamento jurídico de maneira inovadora pelo Código de Defesa do Consumidor; no
segundo caso, o direito à cultura pertencente a um determinado grupo, unidos por uma relação
jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito; por fim, é um direito individual
homogêneo, quando deriva de uma origem comum, mas pertence ao patrimônio jurídico de
cada indivíduo, separadamente. Cabe observar, porém, que em qualquer desses casos, o
direito à cultura revela um interesse social coletivo. Estas noções levam à adoção de
mecanismos de proteção próprios, especialmente em consideração aos aspectos processuais
atinentes a sua defesa judicial.
O artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do consumidor, in verbis, traz as
referidas definições:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas
poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.(grifos nossos)
Zavascki (2005, p. 03 e 04) lembra que o Código de Processo Civil passou por um
ciclo de mudanças, transformando-se da ideia de uma tutela jurídica voltada aos direitos
subjetivos individuais, e, a partir 1985, a uma nova fase com a introdução de novos
instrumentos de tutela de demanda coletiva, tutela de direitos transindividuais, e, finalmente, a
própria ordem jurídica abstratamente considerada. A isso se seguiu o aperfeiçoamento destes
instrumentos, com o surgimento de leis específicas à tutela coletiva dos direitos e a ampliação
do papel do Ministério Público, nesse contexto, como legitimado extraordinário na defesa dos
interesses difusos e coletivos se revela decisivo, especialmente com a Ação Civil Pública.
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A par da discussão a respeito da distinção entre interesses e direitos coletivos2, o
código consumerista traz ao ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, um ponto de
vista de proteção ampla dos direito coletivos. Ao lado deste diploma, é possível encontrar
outros mecanismos de importante alcance na proteção de direitos coletivos, formando um
microssistema processual coletivo (cf. DIDIER, 2009, p. 49 e ss.), tais como: a Ação Civil
Pública (art. 129, III, da CF e lei n. 7.347/85), a Ação Popular (art. 5º, LXXIII da CF e lei n.
4.717/65), o Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX, CF e Lei n. 12.016/09), as Ações
Diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade (art. 103, CF e lei n. 9.868/99).
Vale lembrar que estas ações próprias à tutela coletiva não excluem outras formas de
defesa judicial destes direitos, especialmente as que estão vinculadas ao direito material
objeto de proteção, tais como: a ação de Improbidade Administrativa, as ações civis
tradicionais, especialmente as fundadas em legislação própria à proteção de interesses difusos,
como o Código de Defesa do Consumidor (parágrafo único do art. 81, 91 e ss., da lei n.
8.078), o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069, arts. 208 e ss.), o Estatuto do
Idoso (lei n. 10.741, arts. 78 e ss.), a lei n. 7.853/1989, destinada à proteção e apoio às pessoas
com deficiência (art. 3º), entre outros.
Não se deve esquecer que o tema que tem tomado repercussão nos meios acadêmicos,
no que diz respeito à elaboração de um “Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos
Coletivos” – coordenado pela professora Ada Pellegrini Grinover – cuja pretensão é
consolidar os avanços do pensamento processual mais progressista, em relação aos direitos
coletivos (LEONEL, 2006, p. 185). É importante se ter em mente que, independente de um
código de processos coletivos, é inquestionável que há no ordenamento jurídico brasileiro um
sistema processual coletivo, formado pelo conjunto de normas acima mencionadas, entre
outras.
2.1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA
2
Em geral, a doutrina alude à distinção entre interesses públicos primário e secundário. O primeiro diz respeito
ao interesse da coletividade, segundo o qual deverão atuar os órgãos da Administração, bem como dos Poderes
Legislativo e Judiciário; o segundo se identifica com os interesses imediatos da administração pública, que
devem se delinear aos limites daquele: “o interesse coletivo primário ou simplesmente interesse público é o
complexo de interesses coletivos prevalente na sociedade, ao passo que o interesse secundário é composto pelos
interesses que a Administração poderia ter como qualquer sujeito de direito, interesses subjetivos, patrimoniais,
em sentido lato, na medida em que integram o patrimônio do sujeito (...)” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p.
650).
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A ação civil pública tem previsão constitucional no artigo 129, inciso III, da Carta
Maior, onde se consagra a legitimidade do Ministério Público a sua propositura em defesa dos
“interesses difusos e coletivos”:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos;
Além disso, é regulamentada pela lei n. 7.347/85, que a criou, e teve seu objeto
ampliado pela Constituição Federal de 1988, para a defesa de interesses difusos e coletivos,
do meio ambiente e do patrimônio público e social. Também foi modificada por diversas leis
posteriores, adicionando-se novas hipóteses: a proteção das pessoas portadoras de deficiência
(Lei n. 7.853/89), dos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei n. 7.913/89), das
crianças e adolescentes (ECA — Lei n. 8.069/90), dos consumidores (CDC — Lei n.
8.078/90), das pessoas atingidas por danos à ordem econômica (Lei n. 8.884/94) (MAZZILI,
2001, p 109).
Zavascki (2005, p. 48) explicita que a Ação civil pública é composta por diversos
mecanismos voltados à tutela preventiva, reparatória e cautelar de quaisquer direitos e
interesses difusos e coletivos. De fato, o artigo 1º da lei n. 7.347 provê grande alcance às
ações de responsabilidade por danos morais e materiais causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração à
ordem econômica, à ordem urbanística e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Indica
o autor, por isso, que as leis que posteriormente vieram a regulamentar de forma específica
direitos de natureza coletiva seguiram, na essência, a linha procedimental desta lei, adotandose sua aplicação de forma subsidiária.
Um aspecto de maior importância da Lei de Ação Civil Pública é a institucionalização
legislativa do acesso à justiça, atribuindo a legitimidade de propor esta ação ao mesmo tempo
a organismos públicos e privados, em conjunto ou separadamente (cf. MIRRA, 2004, p. 137).
Ainda, cabe mencionar que é atribuída a legitimidade às associações civis promoverem esta
ação, desde que constituídas há pelo menos 1 (um) ano e “inclua, entre suas finalidades
institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. O juiz
poderá dispensar a pré-constituição “quando haja manifesto interesse social evidenciado pela
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido” (art.
5º, §4º, da lei n. 7347/85) e, também, é garantida a gratuidade do acesso à justiça, exceto no
caso de comprovada litigância de má-fé (art. 17 da lei n. 7.347/85). Além das associações,
também estão legitimados o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o
Distrito Federal, e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de
economia mista, nos termos do artigo 5º da lei da ação civil pública.
Percebe-se, portanto, haver uma ampla legitimação ativa, de forma a conferir uma
maior proteção aos direitos difusos e coletivos. Nesse contexto, a participação da sociedade
civil se revela decisiva como instrumento de racionalização do poder:
Trata-se de uma tentativa de gestão racional de determinados setores da vida
coletiva, que tem a seu favor não apenas a fé iluminista no valor educativo
da participação, mas ainda a convicção da necessidade de busca de novas
formas de democracia, adequadas aos progressos e aos riscos da revolução
técnico-científica (GRINOVER apud MIRRA, 2004, p. 143)
Cabe acrescentar que o Ministério Público se destaca como um órgão da sociedade,
embora formalmente um órgão do Estado (id., p. 147). Além de figurar como legitimado ativo
destas ações, o parquet deverá atuar como fiscal da lei (custus legis). Também deverá assumir
a titularidade ativa no caso de desistência infundada de associações (art. 5º, §1º, da lei n.
7.347).
Importante mencionar, em relação aos legitimados ativos, que estes poderão habilitarse como litisconsortes (art. 5º, §2º), bem como os Ministérios Públicos da União, Estados e
Municípios (art. 5º, §5º). Por fim, instrumento importante de solução de controvérsias e
proteção efetiva a direitos difusos é o compromisso de ajustamento, tomado dos interessados
pelos órgãos públicos legitimados, tendo força de título executivo extrajudicial (art. 5º, §6º).
A decisão promulgada na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, em caso de
procedência ou improcedência por pedido infundado. No caso de improcedência, vale lembrar
que não fará coisa julgada material no caso de deficiência de provas, possibilitando a qualquer
dos legitimados renovar a demanda, trazendo novos elementos (art.16). Mirra lembra que
estas disposições têm por objetivo evitar submeter o réu a reiteradas ações infundadas,
diminuindo, também, os inconvenientes aos co-titulares do interesse em causa e, ainda,
impedir “o conluio entre o autor legitimado e o réu para a propositura de ações simuladas, as
quais, devido à atuação insatisfatória do demandante na produção de provas, poderiam ser
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julgadas improcedentes, com a garantia da coisa julgada fraudulentamente obtida” (id., p.
139).
O art. 13 da lei n. 7.347 prevê a destinação das indenizações em dinheiro decorrentes
das ações em defesa dos direitos difusos a um fundo, gerido por Conselhos federal ou
estaduais, devendo estes recursos ser destinados à reconstituição dos bens lesados. Discussão
importante neste respeito é a vinculação dos recursos às respectivas áreas (espacial e material)
cujos direitos foram violados. Por exemplo, se a violação de direitos culturais ensejaria a
destinação dos valores à manutenção ou promoção do sistema nacional de cultura, ou
formação de patrimônio cultural, etc..
Em relação à vinculação por localidade, o Decreto Federal n. 1.306/1994, que
regulamenta o Fundo de Direito Difusos (FDD) no âmbito federal, impõe a obrigatoriedade de
aplicação dos recursos no mesmo local onde ocorreu o dano (art. 7º e parágrafo único do
Decreto n. 1.306/1994). Merece atenção as considerações de Silva (2006), argumentando que
tal vinculação ensejaria a destinação de grande parte dos recursos de forma bastante restritiva,
já que há concentração em poucas áreas, em especial referente às multas aplicadas pelo
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Dessa forma, “se os valores
revertidos ao Fundo fossem afetados de acordo com a origem (matéria e localidade), a maior
parte dos recursos disponíveis seriam aplicados em prol da defesa da concorrência” (SILVA,
2006, p. 91).
Ainda que pairem dúvidas sobre a efetividade do FDD, com maior sucesso se dá a
reparação via Fundo dos direitos individuais homogêneos, pelo mecanismo denominado fluid
recovery. A “recuperação fluida” é um instrumento de liquidação e execução verdadeiramente
coletiva. Os valores arrecadados deverão ser objeto de liquidação pelos interessados (titulares
dos direitos individuais homogêneos lesados) que deverão se habilitar na demanda. Este
dispositivo evita com que os agentes causadores do dano saiam impunes, possibilitando que
demandas que seriam excessivamente custosas consideradas individualmente, sejam reparadas
no processo coletivo, de maneira mais econômica e célere.
Ainda, caso os interessados não se habilitem, o artigo 100 do Código de Defesa do
Consumidor admite que um dos entes legitimados extraordinariamente promova a liquidação
do direito reconhecido em sentença coletiva, em nome dos titulares de direitos individuais
homogêneos. Ou seja, no caso em que, decorrido o prazo de um ano sem que estes
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
interessados promovessem, individualmente e em número compatível com a gravidade do
dano, a liquidação e execução do valor que lhe é devido, qualquer um daqueles legitimados
(art. 82, CDC) poderia fazê-lo de forma coletiva. E, assim, o produto da execução seria
revertido ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), previsto no artigo 13 da lei de
Ação Civil Pública (lei n. 7.437/85). Nesse caso, há uma legitimação extraordinária residual,
pois surge somente após o lapso temporal de um ano do trânsito em julgado, e devidamente
chamados à habilitação os interessados (cf. ABELHA apud DIDIER, 2009, p. 378).
2.2 A AÇÃO POPULAR
A Ação Popular está prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, e é
regulamentada pela lei n. 4.717/65. Sua característica de maior relevo é a ampla legitimação
atribuída, ou seja, o fato de que é possível a qualquer cidadão manejá-la, de maneira gratuita.
Trata-se de ação que tem por objetivo a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou
entidade de que o Estado participe. Além disso, é instrumento hábil à proteção da moralidade
administrativa, do meio ambiente, e do patrimônio histórico e cultural. É o que se depreende
do texto constitucional, in verbis:
Art. 5º.
(...)
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que
vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o
Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
Segundo Zavascki (2005, p. 69), a ação popular surge no ordenamento jurídico
constitucional a partir da Constituição de 1934, perdurando até a atual – com exceção da
Carta de 1937, outorgada pelo Estado Novo. É um remédio de tradição consolidada, mas que
ao longo da evolução legislativa e constitucional ganha maior detalhamento, adquirindo
sentido mais amplo, até culminar na atual conformação acima citada.
O autor destaca entre seus principais avanços a alteração do conceito de patrimônio,
dada pela lei n. 6.513/77, incluindo os “bens e direitos de valor econômico, artístico. estético,
histórico ou turístico" (id., p. 70), e, com a Constituição Federal de 1988, acrescentando aos
bens tuteláveis por esta via o meio ambiente e a moralidade administrativa. Importante
ressaltar que a característica de maior realce da ação popular é seu exercício por qualquer
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
cidadão, para a defesa de direitos coletivos (id., p. 71), e por isso mesmo, alinhando-se ao rol
de direitos políticos fundamentais.
Além de instrumento típico de cidadania – entendido o cidadão como aquele que não
apresente pendências cívicas, militares e eleitorais exigíveis por lei – é também, pois, voltado
principalmente à defesa do interesse público, ainda que possa gerar reflexo em posições
subjetivas (cf. MENDES, 2009, p. 590). Nesse sentido, a defesa do interesse público pelo
cidadão revela o aspecto transindividual do objeto da ação popular, como argumenta
Zavascki:
A transindividualidade dos interesses tutelados por ação popular fica
evidenciada, não apenas quando seu objeto é a proteção do meio ambiente
ou do património histórico e cultural (direitos tipicamente difusos. sem
titular determinado), mas também quando busca anular atos lesivos ao
patrimônio das pessoas de direito público ou de entidades de que o Estado
tenha participação (2005, p. 72).
Lenza (2009, p. 746), elenca os seguintes requisitos referentes à propositura da ação
popular: a lesividade ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente
ou ao patrimônio histórico e cultural e a legitimidade, ou seja, a qualidade de cidadão. O que
é imprescindível, portanto, ao jurista e ao juiz, é a delimitação do que se entende por
lesividade.
A lesividade não estará presente sempre que houver a diminuição do patrimônio
público, pois esta constatação em si não pressupõe uma lesão. Na verdade, esta ocorrerá ou
em razão de violação à moralidade administrativa – que é, em si, uma ilegalidade –ou por
uma redução do patrimônio decorrente de ato ilegítimo. Para Zavascki (op. cit., p. 75), não há
que se falar em lesividade quando se trata de ato legítimo. Isso porque a lesividade pressupõe
a ilegalidade ou ilegitimidade do ato, porquanto a simples redução do patrimônio público não
enseja a lesão.
Ainda, este ato não pode ser suscetível de convalidação, lembrando que a nulidade se
trata de uma sanção jurídica. Por isso que “opera em plano exclusivamente jurídico, pois
decorre (= tem como causa necessária) da injuridicidade (= ilegitimidade, ilegalidade) do ato,
e não dos efeitos materiais que ele acarreta” (id., p. 76).
Em relação à violação à moralidade ou princípio da moralidade administrativa (art. 37,
CF), sua problemática exige a consideração de que se trata de uma cláusula normativa aberta,
367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
o que exige uma delimitação de seu conteúdo. Deve-se ter em conta que a sua força
sancionadora supõe os princípios da tipicidade e da irretroatividade das normas.
O conteúdo do princípio da moralidade deve necessariamente ser extraído de
um sistema normativo previamente existente, conhecido e acessível a todos
os seus destinatários e determinado democraticamente, isto é, por quem tem
o poder de produzir regras de conduta (= normas jurídicas) (id., p. 78).
Os vícios dos atos administrativos por quebra da moralidade se revelam, portanto, de
causas subjetivas. Há um descompasso entre sua expressão formal e sua expressão formal,
pois a intenção do agente não se compatibiliza com os fins próprios à função que ele exerce
(id. P. 79).
2.3 O MANDADO DE SEGURANÇA E O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO
O mandado de segurança tem previsão constitucional no art. 5º, LXIX, e sua
modalidade coletiva, no art. 5º, LXX. Trata-se também de remédio constitucional que visa à
proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, contra
ato ou omissão ilegal de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de
atribuições do Poder Público. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por
partidos políticos e a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída há, no mínimo, um ano, em defesa dos interesses de seus membros.
Interessante observar que o artigo 21 da lei n. 12.016/2010 consagrou a posição
dominante na jurisprudência, em relação ao mandado de segurança movido por partidos
políticos, associações e organizações sindicais, na defesa de direito líquido e certo de seus
membros, no sentido da desnecessidade de autorização especial. Segundo Mendes (2009, p.
580), não se trata de uma nova modalidade da ação constitucional, mas de uma forma diversa
de legitimação ad causam, por substituição processual – enquanto a hipótese do art. 5º, LXX,
é caso de representação processual.
Além disso, o parágrafo único do referido artigo afirma que esta ação coletiva se
destina à proteção de direitos coletivos ou transindividuais e de direitos individuais
homogêneos. Não é destinado, pois, à defesa de direitos difusos strictu sensu, pois nesse caso
não há uma legitimidade daquelas entidades à utilização desta via para direitos desta natureza,
como o meio ambiente, e, no caso da cultura, se considerada abstratamente como bem de toda
a coletividade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Isso significa que o objeto de tutela do mandado de segurança são aqueles direitos
transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular “grupo ou categoria de pessoas
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”, ou ainda, “os
decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte
dos associados, ou membros do impetrante” (art. 21, parágrafo único, I e II).
Vale observar que estes conceitos claramente derivam da definição dada no parágrafo
único, I e II, do artigo 81 do Código de Defesa do consumidor, supramencionado, que serve
de parâmetro em relação às outras leis que tratam da tutela coletiva de direitos.
Percebe-se, por fim, que a lei n. 12.016/2010 veio a esclarecer dúvidas e fortalecer a
segurança jurídica, especialmente no que se refere ao mandado de segurança coletivo, já que a
legislação anterior não tratava especificamente desta modalidade. Coube à doutrina e à
jurisprudência delinear os contornos deste mecanismo, até a atual configuração legislativa,
que o consagrou em nível infraconstitucional.
2.4 AS AÇÕES DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE E DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE
A par de todo o regramento e de profunda discussão doutrinária acerca do instituto do
Controle de Constitucionalidade de atos normativos, aqui o que se busca é destacar o caráter
de proteção a direitos coletivos dado por estas ações constitucionais de controle, notadamente,
neste caso, o direito à cultura, em seu aspecto coletivo. Trata-se, indubitavelmente, de
instrumentos do mais amplo alcance, especialmente em razão da extensão de seus efeitos.
Além disso, possibilita a discussão de lei em tese, o que não é possível por outras vias de
tutela coletiva, como a própria ação civil pública.
Dessa forma, cumpre asseverar que a ação declaratória de constitucionalidade e a ação
direta de inconstitucionalidade são instrumentos do chamado controle concentrado de
constitucionalidade, em contraposição ao controle difuso – este realizado nas ações comuns,
sejam individuais ou coletivas, a partir do caso concreto. O que diferencia as primeiras neste
ponto é justamente o seu caráter abstrato, a discussão de constitucionalidade de ato normativo
em tese. Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 49), o controle difuso ou jurisdição
constitucional difusa é o exercício do controle constitucional reconhecido a todos os
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
componentes do poder judiciário. O controle concentrado, por sua vez, é deferido ao tribunal
de cúpula ou a uma corte especial – no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal.
O artigo 103 da Constituição Federal traz o rol de legitimados à propositura destas
ações – o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a
Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de
Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil. partido político com representação no Congresso Nacional, a confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Prevê a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão – modalidade que se relaciona com o mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF), outra
forma de controle de constitucionalidade por omissão, nesse caso, pela via concreta.
Cabe afirmar, então, que o controle de constitucionalidade deriva do chamado
princípio da supremacia das normas constitucionais. É um princípio basilar do ordenamento
jurídico, de forma que todas as normas do ordenamento devem estar em conformidade à
normas da Constituição, ou devem ser extirpadas deste ordenamento, formando a ideia de
sistema jurídico.
Zavascki (op. cit., p. 249) acentua que o traço distintivo do controle abstrato de
constitucionalidade é justamente o seu caráter objetivo. Isso significa que neste processo “fazse atuar a jurisdição com o objetivo de tutelar, não direitos subjetivos, mas sim a própria
ordem constitucional, o que se dá mediante solução de controvérsias a respeito da
legitimidade da norma abstratamente considerada”. Complementa o autor que, neste caso,
não existem partes no processo, mas entes legitimados.
Além disso, as ações de controle de constitucionalidade concentrado possuem natureza
dúplice: a aptidão de formular juízos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade das
normas, em seu julgamento de mérito. Isso quer dizer que a procedência da ação direta de
inconstitucionalidade enseja a declaração de nulidade da norma atacada, obtendo efeitos
retroativos e erga omnes e vinculantes. De outra forma, sua improcedência acarreta a
declaração de constitucionalidade da norma atacada, com os mesmos efeitos. Mutatis
mutandis, à ação declaratória de constitucionalidade se observa as mesmas assertivas (cf.
ZAVASCKI, p. 252).
Quanto aos efeitos da sentença, como se mencionou, muito se assemelham aos efeitos
próprios da ação civil pública (art. 16 da lei n. 7.347/85), atuando: de forma retroativa (ex
tunc), ou seja, desde a data em que a norma inconstitucional começou a produzir efeitos ou
desde o momento em que deveria ter produzido efeitos a norma constitucional; erga omnes,
370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
ou seja, seus efeitos valem contra todos, mesmo os que não fizeram parte da relação
processual; e vinculante, ou seja, em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à
Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28, da lei n. 9.868/99).
3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS
A efetivação aos direitos culturais, tendo em vista a análise acima exposta, depende
essencialmente da elaboração e planejamento de políticas públicas e programas voltados à
efetivação destes direitos, constituindo-se em prestações positivas incumbidas aos órgãos e
agentes do Estado. Segundo Canotilho,os direitos sociais possuem, de um lado, uma dimensão
inerente à existência do cidadão, à sua dignidade (dimensão subjetiva); e, de outro, um
aspecto impositivo, voltado ao legislador, ou “deveres de prestações aos cidadãos”
(CANOTILHO, 2003, p. 476).
Neste sentido, Freire Júnior, dando enfoque à necessidade de efetivação dos direitos
fundamentais, se propõe a conceituar a expressão “políticas públicas”: “(...) de um modo
geral, a expressão pretende significar um conjunto de ou uma medida isolada praticada pelo
Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado
Democrático de Direito” (2005, p. 47). Acrescenta, ainda, que é possível se falar na existência
de um direito constitucional à efetivação da Constituição, aduzindo que “a abstinência do
governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes,
constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente,
de violação de direitos subjetivos dos cidadãos” (id., p. 49)
Para Bucci, a expressão “Políticas Públicas” deve ser entendida como “programas de
ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados
(...) são ‘metas coletivas conscientes’(...)” (BUCCI, 2002, p. 241). A autora ressalta, ainda,
que há uma interpenetração entre as esferas jurídica e política, argumentando que a
comunicação entre Direito e Política é necessária, no sentido de permitir a interação entre os
atores sociais, de modo que seja possível inferir deste relacionamento uma ação política
coordenada e socialmente útil (ibidem).
Na formulação de uma política pública eficiente deve-se buscar, portanto, o diálogo
constante entre os diversos atores sociais, de forma que seja possível propiciar o alcance dos
371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
fins instituídos pela Constituição – ou seja, a busca de um Estado igualitário, pautado nos
princípios da justiça social. É interessante notar também que esta troca de informações torna
possível auferir as técnicas mais adequadas, de acordo com a atividade social que se quer
efetivar,“que determinadas atividades sociais são mais propícias a uma ou outra técnica” (id.,
p. 246).
Em relação ao caráter programático de grande parte das normas definidoras de direitos
sociais, cabe afirmar que muitas vezes acarreta na necessidade ulterior legiferante, ou seja, a
elaboração de instrumentos normativos que regulamentem as formas de efetivação de tais
direitos. Por outro lado, estas mesmas normas diversas vezes conferem a incumbência de
efetivar os direitos sociais a outros agentes, que não o legislador.
De fato, há uma correspondência entre a formulação da constituição
dirigente, especialmente a partir da obra de José Joaquim Gomes Canotilho,
e a ideias de um direito administrativo voltado para a concretização, pela
Administração Pública, dos ditames constitucionais e, em decorrência, de
políticas públicas. A ideia da Constituição programático-dirigente, cuja
atualização deve ser feita pelo legislador, com base no conceito de reenvio
dinâmico, é bastante pertinente à abordagem adotada neste trabalho. Assim
como Canotilho trata da cooperação do legislador infraconstitucional na
‘determinação’ e ‘conformação material’ da Constituição, o enfoque das
políticas públicas destaca o papel da administração na ‘determinação e
conformação’ material das leis e das decisões políticas a serem executadas
no nível administrativo. (BUCCI, 2002, p. 246)
A eficácia das políticas públicas depende do grau de articulação entre os poderes e
agentes públicos envolvidos na promoção destas ações. Mas também a própria sociedade civil
deve trabalhar em conjunto aos atores estatais quando da elaboração de planos de governo,
especialmente em relação às áreas mais sensíveis de cada população. Deve-se, então, atentar à
forma de aplicação destes programas, bem como a correta aplicação dos recursos a eles
destinados.
Sob estas considerações, é necessário a estabelecimento de uma política cultural.
Marilena Chauí defende que a política cultural deve se basear sob o aspecto de uma
democracia cultural. Assim, esta seria fundada em uma definição alargada de cultura,
identificando-a com símbolos, valores, ideias, objetos, práticas e comportamentos pelos quais
uma sociedade define para si as relações com o espaço, a natureza, o tempo e o homem. A
cultura deve ser vista como um trabalho de criação, buscando a inovação, a criatividade, como
resultado de reflexão e crítica. Os sujeitos da cultura são os sujeitos históricos da sociedade,
que articulam o trabalho cultural e a memória social. (CHAUÍ, 2006, p. 72)
372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Para Silva, “A questão da política cultural está exatamente no equilíbrio que há de se
perseguir entre um Estado que imponha uma cultura oficial e a democracia cultural” , sendo
garantido pela própria Constituição a liberdade de criação, expressão e de acesso às fontes de
cultura nacional. O autor caracteriza a ideia de democracia cultural sob os seguintes aspectos:
a) não tolher a liberdade de criação, b) expressão e de acesso à cultura; criar condições para a
efetivação dessa liberdade num clima de igualdade; c) favorecer o acesso à cultura e o gozo
dos bens culturais à massa da população excluída (SILVA, 2001, p. 209).
Ademais, conseguimos identificar, no âmbito das políticas públicas relacionadas à
cultura, alguns aspectos especificamente ligados a esta, destacando-se no contexto
constitucional e de efetivação dos direitos aí inscritos. Entre eles, se destacam a valorização
das culturas populares em face das indústrias culturais de massa; a questão da distribuição de
equipamentos culturais, de modo a proporcionar o acesso aos bens culturais; a formação do
gosto, com apoio da Educação, de forma a ampliar o interesse da população em geral pelos
variados bens culturais, desvinculando-a à imposição das indústrias; e, por fim, a questão do
financiamento cultural, especialmente em relação às leis de incentivo à cultura.
A par disso, a política cultural está indissociavelmente ligada a uma política
educacional. A formação do gosto possibilita não só a criação de indivíduos capazes de
fruição estética, mas também com capacidade de compreensão e crítica, de percepção de
diferenças, e de relativização das próprias crenças e gostos (SILVA, 2007, p. 29).
Bastos ressalta o papel da educação na proteção do patrimônio cultural,afirmando que
é através dela que são transmitidos os conhecimentos básicos do indivíduo, possibilitando seu
desenvolvimento intelectual, sua inserção na sociedade a qual pertence e sua formação como
cidadão. “As escolas devem incentivar as manifestações culturais e artísticas dos educandos,
e, sobretudo lhes ensinar o valor da preservação do patrimônio nacional cultural” (BASTOS,
1998, p. 702).
No entanto, vale também lembrar a opinião de Teixeira Coelho, que afirma que há um
grupo que “de boa fé, por ignorância ou descuido, confunde cultura com educação e quer
transformar o teatro, o cinema, a biblioteca ou o centro de cultura em substitutivos para um
sistema educacional” (COELHO, 1989, p. 10).. E, por isso, cabe a afirmação de que “a
Educação ensina e faz conhecer as obras, a função da cultura é a de as fazer amar”(CAUNE,
apud SILVA, 2001, p. 208)
373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Garcia Canclini, em consideração à formulação de políticas públicas para o
fortalecimento da América Latina no âmbito global, defende que para atingir este objetivo
deve-se proceder à consolidação do patrimônio histórico material (monumentos, sítios
arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial ((línguas, tradições e conhecimentos
socialmente benéficos). Aduz, ainda, que muitos países europeus sem grande expressividade
no âmbito global conseguem proteger sua produção de conteúdo cultural por meio de leis de
proteção, valorizando seu cinema e televisão.
É impensável fortalecer o que ainda existe em termos de cultura e sociedades
nacionais [...] sem empreender projetos como região que a permita crescer e
relocalizar-se no mundo. Essa perspectiva significa colocar no centro as
pessoas e as sociedades, não os investimentos nem indicadores financeiros
ou macroeconômicos, que articulam, de forma difusa, a América Latina. A
pergunta-chave não é com o que ajustes econômicos internos vamos pagar
melhor as dívidas, mas que produtos materiais e simbólicos próprios (e
importados) podem melhorar as condições de vida das populações latinoamericanas, e potencializar nossa comunicação com os demais (GARCIA
CANCLINI, 2003,p. 33-34).
Nesse sentido, o autor defende que deve se proceder à consolidação do patrimônio
histórico material (monumentos, sítios arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial
((línguas, tradições e conhecimentos socialmente benéficos). Afirma, ainda, que muitos países
europeus sem grande expressividade no âmbito global conseguem proteger sua produção de
conteúdo cultural por meio de leis de proteção, valorizando seu cinema e televisão.
4 A
ESTRUTURA
ADMINISTRATIVA,
LEGISLAÇÃO
DE
PROTEÇÃO,
PROMOÇÃO E INCENTIVO À CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL
N. 71/2012
A estrutura administrativa da cultura é o conjunto de órgãos que, em maior ou menor
grau, aplica as políticas voltadas à preservação, promoção e acesso à cultura. Dessa forma,
estes órgãos são responsáveis pela criação de programas, prêmios, bolsas, editais, e outros
instrumentos para a concretização do direito à cultura, tal como ele é delineado na
Constituição Federal, bem como nas legislações federais, estaduais e municipais. Fazem parte
deste conjunto, no âmbito federal, o Ministério da Cultura, as Secretárias estaduais e
municipais da cultura, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, as
fundações, agências voltadas à cultura, e outras organizações de terceiro setor, podendo
incluir entre estas entidades como o SESC, SENAI, SESI, e outras, que possuem, em alguns
estados, importante papel na produção cultural.
374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A estrutura organizacional do Ministério da Cultura é regulamentada, atualmente, pelo
Decreto n. 7.743/2012. Segundo o Anexo I deste diploma, ao Ministério da Cultura compete a
Política Nacional da Cultura e a proteção do patrimônio histórico e cultural. Sua estrutura
organizacional é descrita pelo art. 2º do Anexo I do Decreto n. 7.743/2012, dividindo-se em
órgãos de assistência direta e imediata ao Ministro de Estado; órgãos específicos singulares;
órgãos
descentralizados:
(Representações
Regionais);
órgãos
colegiados;
entidades
vinculadas. Dentre estas últimas, vale mencionar que estão incluídas as autarquias, como o
IPHAN, a ANCINE e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e as fundações, como a
Fundação Casa de Rui Barbosa – FCRB, a Fundação Cultural Palmares – FCP, a Fundação Nacional
de Artes - FUNARTE e a Fundação Biblioteca Nacional - FBN.
Portanto, a estrutura do Ministério da Cultura é modelada de acordo com os seus
objetivos, quais sejam, a formulação de uma política nacional da cultura e a proteção do
patrimônio histórico e cultural. É importante mencionar que estas atribuições são decorrentes
do disposto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Além disso, a legislação
infraconstitucional forma um sistema legal da cultura, criando mecanismos para
implementação e efetivação destes direitos.
A lei n. 8.313 de 1991, conhecida como lei Rouanet, configura um dos mais
importantes diplomas legislativos neste âmbito. Ela estabelece os princípios de políticas
culturais no âmbito federal, bem como institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura
(PRONAC), com o objetivo de captar e canalizar recursos para o setor. Além disso, prevê a
implementação do PRONAC, através do Fundo Nacional da Cultura (FNC), dos Fundos de
Investimento Cultural e Artístico (FICART) e dos incentivos a projetos culturais.
É nesse sentido que Silva (2007, p. 173), destaca que o sistema de financiamento
cultural se dá por três mecanismos: os recursos orçamentários, compostos por recursos
destinados ao FNC, somados aos recursos orçamentários das Instituições Federais de Cultura
(MINC, entidades vinculadas e Fundações); os incentivos fiscais, direcionados às pessoas
físicas e jurídicas, mediante dedução de parcelas de impostos para doação e apoio direto a
375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
atividades culturais; e os fundos de investimentos, FICART e FUNCINE3, ainda de pouca
efetividade.
A modalidade do incentivo fiscal implica na renúncia de parte da receita fiscal pelo
Estado, possibilitando a alocação de recursos para a cultura por meio do patrocínio ou do
mecenato. Os incentivos fiscais são parte do sistema de financiamento que se constituem em
instrumento do poder público par direcionar recursos privados a seguimentos estratégicos (id.,
p. 199).
Vale observar que o artigo 4º da lei n. 8.313 fixa critérios aos quais deverão obedecer
os projetos culturais submetidos à análise do Ministério da Cultura, para que possam receber
recursos do Fundo Nacional da Cultura. Além disso, as Instrução Normativa n. 1 de 2012 do
Ministério da Cultura, em conformidade com a lei n. 9.874, estabelecem procedimentos para
apresentação, execução, acompanhamento e prestação de contas das propostas culturais,
relativos aos mecanismos de incentivos fiscais do PRONAC.
A lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida
Provisória n. 2.228 de 2001, cria o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do
Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) e o Fundo de
Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE). O objetivo principal
desta lei é a criação de mecanismos de fomento à produção audiovisual no Brasil,
especialmente na forma de renúncia fiscal do Estado, via dedução fiscal do imposto sobre a
renda de particulares. A aprovação de propostas de projetos de produção audiovisual será
submetida à ANCINE, e a agência cuidará da destinação dos recursos via fomento direto ou
indireto.
O Plano Nacional da Cultura (PNC), previsto no 3º do artigo 215, da Constituição
Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010, que cria, também o Sistema
Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC. Em conformidade ao referido
dispositivo constitucional, que exige a duração plurianual do PNC, o artigo 1º da lei n. 12.343
prevê sua duração pelo período de 10 (dez) anos, revisado periodicamente, tendo sua primeira
3
Lei n. 8.685 de 1993 (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida Provisória n. 2.228 de 2001, cria o
Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema
(ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE) (SILVA, 2007, p. 173).
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
revisão a ser realizada após 4 (quatro) anos da publicação da lei (art. 11). Este Plano
estabelece os princípios, objetivos e atribuições do poder público na elaboração de políticas
culturais, em âmbito nacional, e tem por finalidade o planejamento e implementação de
políticas públicas de longo prazo, voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural. O
SNIIC é um instrumento de controle, monitoramento e gestão de políticas culturais, obrigando
a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal à sua atualização permanente (arts. 9 e 10).
Outro recente diploma legislativo para a cultura é a lei n. 12.761/2012, que institui o
Programa de Cultura do Trabalhador, criando também o “vale-cultura”. Trata-se de uma
tentativa de ampliação do acesso à cultura, para permitir, estimular e incentivar o uso dos bens
culturais pela população. Nesta lei, o sentido que se dá à cultura é o vinculado às atividades de
cunho artístico e cultural, em especial às artes visuais, artes cênicas, audiovisual, literatura,
humanidades e informação, música e patrimônio cultural.
O vale-cultura é destinado aos trabalhadores que perceba até 5 (cinco) saláriosmínimos mensais, e para os que percebam além deste limite, desde que garantido à totalidade
daqueles outros. Além disso, o valor despendido para aquisição do vale-cultura poderá ser
deduzido do imposto de renda pela pessoa jurídica beneficiária tributada com base no lucro
real, no limite de 1% do imposto sobre a renda devido; poderá deduzir também como despesa
operacional neste mesmo caso, desde que inscrita no Programa de Cultura do Trabalhador.
Estas deduções serão aplicadas em relação ao valor distribuído ao usuário (art. 10, §§1º a 4º,
da lei n. 12.761).
Finalmente, a Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012 acrescentou o
art. 216-A à Constituição Federal, cria a previsão do Sistema Nacional de Cultura, instituindo
um “processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e
permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo
promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos
culturais” (Art. 216-A, caput, CF). Trata-se de um sistema descentralizado e organizado em
regime de colaboração, fundamentado nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura.
O §1º do referido artigo elenca os princípios estruturantes do Sistema Nacional de
Cultura, destacando de forma central a diversidade das expressões cultura e a universalização
do acesso aos bens e serviços culturais. A principal característica destes princípios,
sobressaindo-se especialmente por sua consagração em nível constitucional, são a
377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
democratização dos processos decisórios, com participação e controle social (inciso X), a
descentralização (inciso XI), e a ampliação progressiva dos recursos dos orçamentos públicos
para a cultura (inciso XII). O §2º estrutura o Sistema Nacional da Cultura em cada nível
federal, devendo, por isso, cada ente observar esta estrutura na elaboração dos respectivos
Sistemas. Os §§3º e 4º, finalmente, preveem a edição de leis em cada nível da Federação,
portanto, em âmbito federal, estaduais, municipais e no Distrito Federal, por leis próprias.
Nesse sentido é que o Ministério da Cultura publicou o Guia de Orientações para os Estados
(2011) e o Guia de Orientações para os Municípios (2011), para implementação dos
respectivos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, disponibilizando, inclusive, modelos
para projetos de lei.
5 CONCLUSÃO
O Direito à Cultura possui um caráter eminentemente coletivo, o que não exclui o
direito subjetivo individual a que faz jus cada cidadão. Desta característica sobressalente,
deriva um regramento especial para a sua proteção: de um lado, um sistema judicial de
proteção a direitos coletivos, que possui instrumentos próprios a defesa destes direitos,
assegurando maior efetividade na sua tutela. De outro, a estrutura administrativa e legal
voltada à cultura sustenta um sistema jurídico de proteção à cultura.
No referido sistema, incluímos o Ministério da Cultura, bem como as entidades a ele
vinculadas, como o IPHAN, a ANCINE, as Fundações, já referidas acima; os instrumentos
previstos na legislação cultural, como: o Plano Nacional da Cultura previsto no 3º do artigo
215, da Constituição Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010; o Programa
Nacional de Apoio à Cultura, implementado pelo Fundo Nacional da Cultura, bem como
pelos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) (lei n. 8.313/91); o Programa de
Cultura do Trabalhador, criado pela lei n. 12.761/2012; o Programa Nacional de Apoio ao
Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema
(ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE),
todos criados pela lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela
Medida Provisória n. 2.228 de 2001.
Finalmente, o Sistema Nacional da Cultura, que ganha relevo especial em razão da
Emenda Constitucional n. 71/2012, que incluiu à Carta o art. 216-A. Vale observar que o que
se pretende é a implementação de um sistema descentralizado e organizado em regime de
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
colaboração, que visa a promoção e gestão conjunta da cultura por todos os entes federados.
Além disso, pode-se notar um intuito maior de universalização do acesso aos bens e serviços
culturais.
Observe-se que, até o presente momento, alguns estados e municípios já elaboraram a
legislação específica prevista neste dispositivo constitucional, tais como: o Sistema Estadual
de Cultura do Acre, criado pela lei estadual n. 2.312, de 25 de outubro de 2010; o Sistema
Estadual de Cultura de Rondônia, instituído pela lei n. 2.746, de 18 de maio de 2012; a
Política Estadual de Cultura, da Bahia, prevista na lei n. 12.365 de 30 de novembro de 2011; o
Sistema Estadual de Cultura do Ceará, instituído pela lei n. 13.811, de 16 de agosto de 2006;
o Sistema Municipal de Cultura de Ananindeua (PA) – SMC, de instituído pela lei municipal
n. 2.518, de 1º de julho de 2011; o Sistema Municipal de Cultura de Santa Bárbara D’oeste
(SP), criado pela lei municipal n. 3.373 de 13 de março de 2012; o Sistema Municipal de
Cultura de Rio Branco (AC), instituído pela lei n. 1.676 de 20 de dezembro de 2007; o
Sistema Municipal de Cultura de Boca do Acre – SMC, pela lei n. 003 de 28 de junho de
2012; o Sistema Municipal de Cultura de Belém, pela lei n. 8.943, de 31 de julho de 2012.
Portanto, o cenário brasileiro atual promete uma nova perspectiva em relação aos
direitos culturais, da mesma forma que outros direitos coletivos e sociais têm ganhado espaço
– o que se pode notar, por exemplo, em relação ao meio ambiente (art. 225, CF), objeto de
atenção especial em 2012, quando da realização da Conferência Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável (CNUDS) no Rio de Janeiro (Rio +20). Vislumbra-se, assim,
oportunidade à discussão e questionamentos a respeito das políticas e programas com aquele
objetivo, ou seja, uma democracia cultural, e a consagração dos objetivos previstos nos
artigos 215 e 216 da Constituição Federal.
379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
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O
TRABALHO
PENOSO
DOS
BANCÁRIOS:
ADOECIMENTO,
GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES LABORAIS
José Ricardo Ceatano Costa1
Liane Francisca Hüning Birnfeld2
RESUMO
Este artigo busca contribuir na construção da configuração do trabalho penoso, inscrito
no rol dos direitos do art. 7º, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, ainda não
regulamentado. Busca-se inserir, entre as muitas atividades que podemos, na atualidade,
considerarmos como penosas, o trabalho dos bancários e similares. Esta atividade,
diante das condições de trabalho que se apresentam na nova configuração do mercado
de trabalho e na fase atual do capitalismo, passa a apresentar contornos ainda não
vislumbrados, os quais pretende-se investigar. Exemplo disso são as lesões por esforços
repetitivos (LER/DORT), as doenças psicossomáticas e, especialmente, as diversas
síndromes trazidas pela organização do trabalho nesse novo momento do capitalismo,
tais como a síndrome de esgotamento profissional, conhecida como Síndrome de
Burnout, do pânico, do humor etc). Além disso, vislumbram-se crescentemente os casos
de assédio (moral e sexual) no ambiente do trabalho, pouco ainda investigado.
PALAVRAS-CHAVE: Mundo do Trabalho; Trabalho Nocivo; Direitos Sociais.
THE DIFFICULT OF BANK EMPLOYEES JOBS: SICKNESS, SEVERITY AND
INSTABILITY IN LABOR RELATIONS
ABSTRACT
This article pretends to contribute on building the painful work scenario, that is
mentioned on Federal Constitution of 1988, at article 7º, XXIII, that is still unregulated.
It intends to consider bank employees jobs and similar as one of the difficult activities
we can find nowadays. In front of the new work conditions at the labor market and
against the actual capitalism scenario, those activities start to present not glimpsed
shapes, that we pretend do study. To exemplify there are Repetitive Strain Injuries,
1
Professor da FADIR/FURG, Mestre em Direito (UNISINOS), Mestre em Serviço Social (PUCRS), Pósdoutor em Educação Ambiental no PPGEA/FURG. Endereço Eletrônico: [email protected].
2
Professora da FADIR/FURG e da Faculdade de Direito da UCPel. Mestre em Direito pela UFSC e
Doutoranda em Direito na PUCRS, com Bolsa da CAPES, Endereço Eletrônio: [email protected].
383
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
psychosomatic illness and especially the work syndromes originated by work
organization on the actual capitalism period, like Burnout Syndrome. Furthermore , it is
increasing the cases of sexual harassment or bullying in the workplace, that is still
poorly investigated.
KEYWORDS: Workplace; Injurious Jobs; Social Rights.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
I - O Ambiente do Trabalho como Parte do Meio Ambiente Como um Todo
II – Gênese da Aposentadoria Especial
III – Labor e Nocividade: aproximações com o conceito de trabalho penoso
IV - A Penosidade Vista pela Ótima do Trabalhador Bancário
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende investigar as condições (e limites) de possibilidade
da aposentadoria especial aos trabalhadores em estabelecimentos bancários lato sensu,
daquilo que podemos denominar de “trabalho penoso”.
A possibilidade da proteção ao trabalho penoso, por sua vez, constou do
catálogo dos direitos do art. 7º, em seu inc. XXIII, da Constituição Federal de 1988.
Ocorre que esse direito ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (após
duas décadas da vigência do Texto Maior).
Registre-se, por oportuno, que a aposentadoria especial, como um todo,
foi a mais afetada nas últimas reformas previdenciárias.
As profundas alterações no/do mundo do trabalho conduzem a uma
sociedade cada vez mais complexa e automatizada, fato que pode ser constatado se
384
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
analisarmos a distribuição do trabalho nas agências bancárias antes e após a denominada
“terceira revolução industrial”.
O medo, o sofrimento e as pressões do mundo do trabalho passaram a
desencadear patologias até então não conhecidas, conduzindo os trabalhadores à crise
psíquica e a doenças mentais (DEJOURS, 2007, p. 141).
Neste passo é que se entende a dicção primeva do artigo 202, inc. II, da
Carta Magna de 1988, em que o legislador constituinte quis proteger a aposentadoria
por tempo de serviço reduzido daqueles misteres sujeito a condições especiais, sejam
elas periculosas, insalubres ou penosas.
Pretende-se demonstrar que mesmo após as alterações introduzidas pelas
Emendas Constitucionais nº. 20/98 e 41/03, de cuja constitucionalidade torna-se no
mínimo questionável, mantém-se a possibilidade da aposentadoria especial para todas as
atividades que são nocivas à saúde dos trabalhadores. No caso específico dos bancários,
defende-se a tese da presença do agente nocivo - penosidade - em seus labores
habituais. Para tanto, buscou-se pesquisas científicas já publicadas que demonstram a
existência desse elemento nocivo à saúde dos trabalhadores bancários.
I - O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM
TODO
A Constituição Federal de 1988, na dicção dos artigos 225, caput, e 200,
incisos II e VIII, ofereceu um norte até então inusitado: a compreensão do ambiente do
trabalho como parte integrante do meio ambiente ou simplesmente do "ambiente" como
parece ser o mais correto.
No primeiro artigo citado o legislador garantiu a todos os cidadãos um
ambiente ecologicamente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da sociedade
como um todo os esforços para alcançar esse objetivo. Já no artigo 200 da CF/88,
destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), este passa a ter a incumbência de executar
as ações de vigilância sanitária epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador,
enquanto no sétimo expressamente encontramos que é seu mister "colaborar na proteção
385
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho". Estes dispositivos, conjugados
com outros de natureza trabalhista e de proteção ao trabalhador, determinam o sistema
jurídico de tutela do meio ambiente do trabalho. (GARCIA, 2011, p. 19).
Não deve pairar nenhuma dúvida, a partir do Texto Constitucional, do
pertencimento do ambiente do trabalho ao ambiente como um todo. Socorrendo-se à
clássica classificação do ambiente ou meio ambiente, podemos dividi-lo em: a)
NATURAL ou FÍSICO; b) CULTURAL; c) ARTIFICIAL e, d) MEIO AMBIENTE
DO TRABALHO, sendo este o próprio local em que é realizada as atividades do
trabalhador (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 29).
Como aponta Raimundo Simão de Melo, "a definição geral do meio
ambiente abarca todo cidadão e, a de meio ambiente do trabalho, todo cidadão que
desempenha alguma atividade, remunerada ou não ... porque realmente todos recebem a
proteção constitucional de um ambiente de trabalho adequado e seguro, necessário à
sadia qualidade de vida." (MELO, 2008, p. 27). Logo, segundo este mesmo autor, o é
fundamental que tenhamos um meio ambiente do trabalho sadio, edificante, respeitoso,
salubre, cuja não observância destas condições levam ao desrespeito à toda a sociedade
(MELO, 2008, p. 28).
A Organização Internacional do Trabalho - OIT, também apontou a
importância da saúde e segurança dos trabalhadores quando, na Convenção 155 de
1981, focaliza em seu artigo terceiro como meio ambiente do trabalho "todos os locais
onde os trabalhadores devem permanecer ou para onde têm que se dirigir em razão do
seu trabalho, e que se acham sob o controle direto ou indireto do empregador."
(FERREIRA, 2004, p. 50).
Com efeito, se não há dúvidas no enquadramento do ambiente do
trabalho como parte do meio ambiente no sentido amplo, não paira dúvidas de que este
ambiente se apresenta de forma nociva, com efeitos deletérios, aos trabalhadores em
geral.
Trazemos, nesse trabalho, o caso específico dos trabalhadores bancários,
mas certamente vários dos aspectos aqui abordados podem servir de análise também
para tantas outras categorias profissionais: trabalhadores da saúde, motoristas, entre
tantos outros.
386
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
É com esse intuito, portanto, que passamos à análise das condições que
julgamos penosas, no dia a dia dos trabalhadores bancários.
II – GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL
A previsão da aposentadoria ordinária por tempo de serviço, cujo
desdobramento originou a aposentadoria especial sob análise, resultou de longa luta dos
trabalhadores na busca deste benefício. Despontam, nesta perspectiva histórica,
justamente os bancários que, na greve histórica de 1933. Na pauta de reivindicações
encontramos a aposentadoria ordinária com 30 anos de serviço ou 50 anos de idade,
além de outros pontos reivindicatórios (COHN, 1980, p. 23).
Em setembro de 1934, o governo assina decreto criando o Instituto de
Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB), contemplando não somente esta
modalidade de benefício como a aposentadoria por idade.
Registre-se, por oportuno, que o IAPB despontava como um dos
principais Institutos Previdenciários neste período, pois além de reivindicar e garantir
estes benefícios fornecia a todos os seus associados serviços médicos. Fato este que não
é de pequena grandeza, tendo-se em conta que o maior Instituto, o dos Industriários
(IAPI), somente garantia a assistência médica a 30% dos seus sócios.
Pela sistemática da LOPS de 1960, o benefício da Aposentadoria por
Tempo de Serviço foi garantido a todos os trabalhadores que tivessem 30 e 35 anos de
labor (mulheres e homens, respectivamente), embora restasse um limitador de idade de
55 anos (para homens e mulheres).
A Aposentadoria Especial, por sua vez, igualmente restou assegurada aos
15, 20 ou 25 anos de labor em atividade considerada nociva à saúde dos trabalhadores,
dependendo do mister que se ocupassem, contendo, igualmente, o requisito etário de 50
anos de idade (para ambos os sexos, conforme previsto no art. 31, da LOPS de 1960).
387
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
A subcomissão de seguro social que elaborou a Lei Orgânica da
Assistência Social – LOPS, neste particular, assim justificou a redução do tempo de
labor para esta modalidade de benefício:
“Dúvida não paira que as profissões por sua natureza
penosas (como a de ferroviários, propriamente dito) ou
insalubres demandam uma idade limite inferior à que
normalmente é adotada nos planos de seguro-velhice. Tais
misteres sujeitam o segurado a um desgaste bem mais
acentuado que no comum das profissões, tornando as mais
das vezes praticamente inatingível o limite normal de
sessenta e cinco anos. É justo, indubitavelmente, que para
tais misteres se institua um seguro velhice de caráter
excepcional, com a idade limite reduzida, como terminada
o artigo 2º da Lei nº. 593.” (ROSA, s/d, p. 60/61).
No Decreto nº. 48.949-A, de 19 de setembro de 1960, que aprovou o
Regulamento da LOPS de 1960, restou igualmente assegurado o direito à Aposentadoria
Especial (art. 65 e 66), referendo no Quadro nº. II, deste Decreto, as atividades que
seriam insalubres, periculosas ou penosas.
A discussão acerca das atividades que devem ser consideradas nocivas à
saúde dos trabalhadores sempre foi objeto de controvérsia, na qual o Judiciário foi
chamado, historicamente, a pronunciar-se.
Frise-se, por oportuno, que os agentes periculosos, insalubres ou penosos
não são ilididos pelo uso dos IPI e IPC, muito embora sirvam os mesmos para evitar
acidentes do trabalho, eis que não ocorre a sua neutralização, o que virá ocorrer somente
com a eliminação do risco3
O entendimento de que o rol das atividades nocivas deva ser exaustivo, e
não meramente exemplificativo, extrapola a exegese que deve ser feita da legislação,
sempre quando esta visa abordar a totalidade de uma determinada realidade. Isso
porque, como é sabido, a realidade nunca se dá ou aparece em sua totalidade, sendo
necessário uma busca constante e profunda para que se possa, paulatinamente, a
3
No mesmo sentido a Súmula n. 9. da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados
Especiais Federais, que assim dispôs: “O uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), ainda que
elimine a insalubridade, no caso de exposição a ruído, não descaracteriza o tempo de serviço especial
prestado”.
388
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
(des)cobrindo. Como poderia, neste entendimento, o legislador ter abrangido, quando da
montagem do rol das atividades especiais, a sua totalidade diante da complexidade que
se apresenta? Como poderia ter contemplado no ínsito do rol das atividades especiais as
novas atividades e funções que surgem diuturnamente? Isso, na verdade, é totalmente
impossível.
Neste passo a importância das decisões judiciais, que buscam, na análise
de cada caso em sua concreticidade e faticidade, preencher as lacunas constantes na
legislação. É assim que a jurisprudência, especialmente a construída em primeiro e
segundo graus, vem construindo a história dos direitos sociais no Brasil, como é o caso
da aplicação das atividades especiais para os trabalhadores que laboram em telefonia.
Com a possibilidade da transformação do tempo especial em comum,
significativa parcela dos trabalhadores em telefonia passou a ter direito à aposentadoria
por tempo de serviço (se preencherem os critérios pré-Emenda Constitucional n. 20/98)
ou por tempo de contribuição (após a referida EC), amenizando as agruras pelas quais
passou a enfrentar, mormente quando, pela idade considerada avançada, sob o prisma
do mercado, como se viu, não mais conseguiu emprego formal, ou, como também se
verificou, passou a fazer parte da gama imensa dos trabalhadores informais ou
precarizados.
Frise-se que o STF, em se tratando de casos concretos que buscam a
aposentadoria especial, está julgando conforme a Constituição, neste diapasão da
fundamentalidade da aposentadoria especial. Isso porque a Constituição Federal de
1988, na redação original do seu artigo 202, inciso II, assegurava aposentadoria “após
trinta e cinco anos de trabalho ao homem e após trinta à mulher e em tempo inferior se
sujeitos ao trabalho sob condições especiais, que prejudicassem a saúde ou a integridade
física definidas em lei.”
Recentemente, tanto a EC n° 20/98 como a EC n° 47/05 alteraram
significativamente a existência material deste benefício, não com o intuito de
aperfeiçoá-lo, pelo contrário, de tornar inviável a sua concessão.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 30 de agosto de 2007, ao
julgar o Mandado de Injunção n° 721, em que uma servidora pública da área da saúde,
389
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que trabalha sob condições especiais (insalubres), requer a aposentadoria especial, com
fulcro no art. 202, inc. II da CF/88, assim entendeu:
“Não há dúvida quanto à existência do direito
constitucional para a adoção de requisitos e critérios
diferenciados para alcançar a aposentadoria daqueles que
trabalham sob condições especiais, e em funções que
prejudiquem a saúde e integridade física”. 4
Na decisão supra que foi julgada por unanimidade, o Ministro-relator
ressaltou ainda que “há de se conjugar o inciso 71 do artigo 5º da Constituição Federal,
com o parágrafo 1º do citado artigo, a dispor que as normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais constantes da Constituição têm aplicação imediata”,
reconhecendo o caráter de fundamentalidade do direito ao benefício da aposentadoria
especial quando atendidos os critérios de nocividade.
Neste contexto, tornam-se questionável, sob o ponto de vista
constitucional, as alterações neste benefício advindas com a EC 20/98 e 47/05, em
virtude dos limites impostos ao legislador constituinte reformador.
Desse modo, se o benefício da aposentadoria especial é um direito
fundamental social5, de cunho prestacional, implica reconhecer que nenhuma Emenda
Constitucional ou lei infraconstitucional poderá dispor no intuito de desconfigurá-lo
enquanto tal. Aliás, o critério de penosidade, inscrito no Catálogo dos direitos do art. 7,
em seu inc. XXIII, ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (passada duas
décadas da vigência do Texto Maior)6.
4
Conforme asseverou o Min. Marco Aurélio Mello. Conf. página do STF na Internet:
<http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=241160&tip=UN>acessado
em
27/08/08.
5
Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm
aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao
rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se
tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p.
209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista,
retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional.
6
Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm
aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao
rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se
tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p.
209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista,
retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional.
390
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Além deste aspecto, é notável a intenção sempre presente, em cada
processo de reforma constitucional ou infraconstitucional, de descaracterizar a
aposentadoria especial em sua existência material e concreta.
É neste passo que se compreende a alteração de paradigma introduzida
pela Lei nº. 9.032/95 quando deu nova redação ao artigo 55 da Lei nº. 8.213/91,
terminando com o critério de categoria profissional, até então vigente, instituindo um
novo critério em que caberá aos trabalhadores a prova do exercício de seus misteres
enquanto nocivos. O que vale dizer que, a partir desta lei, caberá ao “segurado
comprovar o tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, exposto
aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais
à saúde ou à integridade física” dos trabalhadores. SALIBA; CORRÊA, 2000, p. 181).
Pontuam-se, no próximo item, as razões e fundamentos nos quais se
ancora a compreensão da penosidade do labor das atividades exercidas pelos bancários.
III – LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE
TRABALHO PENOSO
Se a configuração dos agentes insalubres7 e periculosos8 foram de fácil
compreensão, eis que tomados da Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, a idéiabase do que sejam estas atividades, o labor penoso não restou assim configurado.
Por óbvio, que a natureza dos agentes supra possuem uma conotação no
Direito Laboral diferentemente do Direito Previdenciário, não havendo uma relação
necessária, ou pelo menos direta, entre ambos: o que significa dizer que o fato de um
trabalhador receber de seu empregador um dado adicional não implica, tacitamente, no
reconhecimento de mister ensejador à aposentadoria especial. Ou vice-versa.
7
Conforme o art. 189 da CLT, “serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por
sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde,
acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de
exposição aos seus efeitos”.
8
No artigo 193, também da CLT, encontramos a seguinte disposição: “São consideradas atividades ou
operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por
sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em
condições de risco acentuado”.
391
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
De outro lado, ninguém duvida de que o fato de o segurado/empregado
perceber um adicional de insalubridade (independente do grau) ou de periculosidade
(em grau único, de 30% sobre o seu salário) já seja um indício da existência de algum
elemento nocivo à saúde do trabalhador.
Com isso, afirma-se que tanto a insalubridade como a periculosidade
sempre foram mais fácil de ser avaliadas, o que não ocorre com a penosidade, seja no
aspecto trabalhista ou previdenciário, do que seja e consista esse tipo de labor.
Com efeito, no próprio Quadro II, em seu segundo item, da LOPS de
1960, encontra-se uma amostra incipiente do trabalho penoso como sendo aqueles
serviços que demandam excessivo esforço físico em relação a condições normais de
trabalho ou que exigem posição viciosa do organismo.
De outro lado, a doutrina e a jurisprudência estão preenchendo esta
lacuna, no sentido de definir o que é trabalho penoso. Neste passo, vale citar a definição
de Wladimir Novaes Martinez, para quem:
“Penosidade é área avara em doutrina, não sendo fácil es
miuçar seu significado, embora comuns as funções onde
presente. Pode ser considerada penosa a atividade produto
produtora de desgaste no organismo, de ordem física ou
psicológica, em razão da repetição dos movimentos, con
dições agravantes, pressões e tensões próximas do indivi
duo. Dirigir veículo coletivo ou de transporte pesado, habi
tual e permanentemente, em logradouros com tráfego in
intenso é exemplo de desconforto causador de penosida
de.” (MARTINEZ, 2001, p. 30).
Nesse sentido, podemos afirmar que a penosidade geralmente é uma
"doença invisivel", não necessariamente deixando seqüelas aparentes, o que dificulta
deveras a sua configuração aparente, sendo velada e sorrateira. As suas conseqüências,
tal como se mostra nos casos de LER/DORT, somente o tempo deixará à mostra. Mas
seus efeitos são implacáveis.
Destaca-se que a melhor definição do que seja a penosidade dada pela
doutrina, ancora nos estudos de Wladimir Novaes Filho, quando afirma:
“Estar-se-á diante da penosidade quando atividade
laborativa exigir por parte do exercente um empenho
392
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
físico ou psicológico que gere desgaste acima do normal
de todo trabalhador. Aliás, esse raciocínio deriva da
própria finalidade da aposentadoria especial, qual seja
entender que o ser humano submetido ao trabalho penoso
tem um desgaste maior; deverá em contraposição
aposentar-se mais cedo. Percebe-se, assim, que o trabalho
penoso é aquele que subtrai, exclusivamente, as energias
do trabalhador, repetindo-se, tanto física como
psicologicamente. Não existe, como no caso da
periculosidade, definição legal a respeito. Cabe à
jurisprudência e à doutrina esmiuçar esse conceito.”
(NOVAES FILHO, 2005, p. 148).
Quiçá nenhuma atividade reúna, hodiernamente, tantos atributos que
caracterizam o labor penoso como a atividade dos bancários. A saber, alguns destes
atributos: a) processos de LER/DORT9 devido à utilização intensa do computador e
similares; b) precariedade das condições de trabalho, com ruídos elevados, temperatura
desagradável, parca iluminação, somente para citar alguns dos problemas mais
frequentes; c) exposição do organismo a jornadas de trabalho saturantes, com acúmulo
de funções e de responsabilidades etc.; d) forte pressão psíquica, seja pelas metas que se
exige seja por assédio moral, pelas pressões oriundas da concorrência ou pela
introdução de novas tecnologias, tudo isso aliado ao medo constante dos assaltos cada
vez mais constantes; e) ambiente de trabalho inapropriado, sem obediência do disposto
na NR 17, que ordena alguns procedimentos necessários a um ambiente saudável,
ergonomicamente correto, com mesas, escrivaninhas e guichês com bordas
arredondadas, com altura regulável, com apoio completo do antebraço ou sobre o braço
da cadeira, além do monitor regulável, preferencialmente em nível dos olhos; f)
Doenças pisicossomáticas, fruto de uma organização social e cultural deletéria ao
organismo dos trabalhadores, conduzindo ao adoecimento mental; g) o esgotamento
Entende-se por Lesões por Esforços Repetitivos ou Distúrbios Osteomusculares Relacionados
ao Trabalho (LER/DORT) uma série de doenças interconectadas, mormente as afecções
ocasionada nos músculos, fáscias musculares, tegumentos, tendões, ligamentos, articulações,
vasos e nervos sanguineos. Este quadro pode variar do Grau I, em que o trabalhador sente uma
sensação de peso e desconforto no membro afetado, até o Grau IV, em que sente uma forte dor,
sempre contínua, perdendo a força e os movimentos, com comprometimento das atividades da
vida diária. (Conf. Saúde do Trabalhador Bancário: conhecer para Transformar. Federação dos
Bancários do RGS. Porto Alegre, 2007.
9
393
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
profissional, denominado atualmente como Síndrome de Burnout, doença esta que
ultrapassa o estresse devido a cronicidade com que se apresenta, entre outros.
Como constata Mayte Amazarray, no caso dos bancários, seus trabalhos
implicam em um desgaste mental provocado por suas atividades, cuja execução das
tarefas exigem alto esforço cognitivo, de atenção, memorização e de responsabilidade,
além de físico, devido aos esforços repetitivos, posturas estáticas, acuidade visual, razão
pela qual, historicamente, esta categoria teve sua jornada laboral reduzida para seis
horas diárias (AMAZARRAY, 2011, p. 102).
Diante do exposto, pelo que se observa do trabalho dos bancários, como
se verá alhures, suas atividades não podem ser consideradas essencialmente insalubres
ou periculosas, como já vem decidindo a jurisprudência pátria, mas sim penosas.10
IV - A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO
Registram-se, destarte, alguns destes indicativos cuja cientificidade é de
todo comprovada, em virtude dos métodos de pesquisa e seriedade com que foram
organizadas.
10 10
Conf. neste sentido, a ementa do julgado que segue: Previdenciário. Processo Civil.
Atividade Especial. Bancário. Não Comprovação de Exposição a Agentes Agressivos.
Manutenção Integral da Sentença Recorrida. (...) 4. Infere-se da conclusão do laudo pericial
realizado que a atividade exercida pela autora no período aludido “não é considerada como
insalubre tampouco periculosa”, considerando a inexistência no local de trabalho de quaisquer
agentes químicos, biológicos, poeiras, aerodispersóides e demais agentes insalubres catalogados
pela NR 15, a existência de ruído de 66/74 decibéis e, ainda, mobiliários próprios dotados de
assentos e encostos ajustáveis (fls. 280/288), sendo, portanto, irreparável a sentença. 5.
Apelação da parte Autora improvida. BRASIL. Tribunal Regional Federal (3ª Região). AC nº.
1111705-SP (2003.61.83.001074-0). 7ª Turma. Relator Rosana Pagano. Decisão Unânime. São
Paulo, 28 de abril de 2008. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região de 13 de agosto de
2008.
394
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Primeiramente, analisam-se alguns dos resultados obtidos pela Federação
dos Bancários do Rio Grande do Sul, publicados em março de 2007, cujos dados
qualitativos foram organizados por Mayte Raya Amazarray.
Segundo esta publicação, denominada “Condições de Trabalho e Saúde
da Categoria Bancária”, a começar pela excessiva jornada laboral, cerca de 85% dos
entrevistados trabalham mais de seis horas, sem nenhum respeito aos intervalos para
descanso, em virtude do longo período destinado à digitação (FEDERAÇÃO DOS
BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 03). Nesta mesma linha, 56% dos entrevistados consideram
que seu volume de trabalho é excessivo.
Em relação ao estabelecimento de metas para serem cumpridas pelos
trabalhadores bancários, a exigência de seus superiores é, no mínimo, reveladora: 92%
dos entrevistados responderam que existem exigências em virtude das denominadas
“metas”, assim distribuídas em decorrência dos bancos pesquisados: Banco do Brasil
39%; Caixa Econômica Federal 72%; BANRISUL 83%; Bancos Privados (diversos)
65%.(FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 07)
Outro índice que se apresenta revelador se refere ao elevado número de
acidentes do trabalho ocorridos nos bancos pesquisados, chegando a um percentual de
30%, embora somente 21% destes tiveram suas CAT’s emitidas. ((FEDERAÇÃO DOS
BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09). Este dado comprova, na prática, a tese de que os Bancos
estão resistindo na emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT).
Quando perguntado sobre a sintomatologia em virtude das doenças que
apresentam, 61% dos entrevistados consideram que o trabalho afeta a sua saúde,
nomeando as principais conforme segue: Estresse 76%; Irritação 62%; Ansiedade 62%;
LER/DOR 52%; Cansaço visual 52%; Cansaço Freqüente 42%; Problemas Digestivos
36%; Insônia 36%; Dores de Cabeça 33%; Dificuldade de Memorizar 31% e Depressão
com 29%. ((FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09).
Em outra pesquisa enfocando um banco privado, o BANCO REAL ABN
AMRO, publicada pelo Instituto Observatório Social, em julho de 2008, organizada
pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, restam
apontados os mesmos problemas, em termos de saúde e caracterização de trabalho
395
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
penoso, constatados na pesquisa realizada no Rio Grande do Sul. Abaixo, observam-se
alguns dados expostos nesta Pesquisa.
Tendo um universo de 73 entrevistados (sendo 59 mulheres e 14
homens), foi constatada a presença de LER/DORT em 54 dos entrevistados, além de
doenças mentais em mais 13 deles. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO
TRABALHO, 2008, p. 18).
Além de LER/DORT, sem dúvida a principal doença que afeta os
trabalhadores, segundo a pesquisa ora analisada, há o assédio moral (em decorrência das
metas exigidas), bem como o estresse pós-traumático, devido aos freqüentes assaltos
ocorridos nas agências. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p.
23)
Mostra-se interessante a análise feita na PESQUISA na atividade,
predominantemente, exercida por mulheres, denominada “Call Center – Programa Total
View”, do ABN. Isso porque esse programa é tido como exemplar devido ao serviço de
boa qualidade em termos de atendimento prestado ao público pelos funcionários. O que
o programa esconde é o alto nível de controle e pressão sobre o trabalho dos
funcionários, resultando no fato da metade deles (50% dos entrevistados) apresentar
depressão e doenças mentais devido ao ambiente de trabalho.
Conforme registra nesta pesquisa realizada em Osasco, SP, “os
atendentes do Call Center seguem um script para conscientizar os clientes a usar
internet para pagar contas, caixa eletrônico e o auto-atendimento. Essa é uma tarefa
contraditória para os funcionários, pois quanto maior for a adesão ao auto-atendimento e
à internet, menos pessoas serão necessárias para atendimento, o que provocaria mais
demissões.” Aliás, o processo de fusão, ocorrido pela incorporação do BANCO
SANTANDER, segundo avaliado, reduziu o número de trabalhadores, intensificando
ainda mais o trabalho dos bancários, com um aumento considerável do nível de
exigência e produtividade. Logo, aumentam o número de doenças relacionadas ao
ambiente do trabalho. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p.
30)
Em outra pesquisa realizada, entre os anos de 2001 a 2004, pelo
Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, restou confirmada a nova realidade trazida
pelas inovações tecnológicas e pela mudança do “mundo do trabalho”. Constatando que:
396
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
“Os bancários estão praticando jornadas acima de 8 horas,
e as formas de organização do trabalho (exigência de
esforço mental, volume de trabalho excessivo,
inadequação numérica, prolongamento de jornada) e as
condições
psicossociais
(trabalho
estressante,
desvalorização do trabalho, insegurança no emprego) são
destacadas pelos trabalhadores como fatores de
adoecimento.” (NETZ; MENDES, 2006, p. 27/28)
Registre-se, por oportuno, que os trabalhadores bancários estão
vivenciando um outro modelo de gestão em que:
“Merece destaque o papel dos programas de qualidade, na
medida em que tais estratégias modulam, de forma sutil, a
subjetividade dos trabalhadores, cooptando-os a serem
produtivos, flexíveis, motivados etc. Além disso, a
introdução da remuneração variável, atrelada à
produtividade e ao alcance de metas, também se constitui
em um elemento responsável pela intensificação do
trabalho e extensão da jornada laboral. (...) Destaca-se,
também, que as metas comumente são estabelecidas por
escalões hierárquicos superiores, de forma autoritária e
unilateral, e não raramente são consideradas inatingíveis
pelos trabalhadores.” (JACQUES; AMAZARRAY, 2006, p. 97)
De outro lado, a própria legislação previdenciária já avançou no sentido
de resguardar os direitos dos segurados que forem acometidos de LER/DORT. A
Instrução Normativa INSS/DC nº. 98, de 05 de dezembro de 2003 (DOU em 10/12/03),
é prova desse movimento.
Esta importante Portaria Administrativa reviu a OS INSS/DSS nº.
606/98, bem como uniformizou e buscou simplificar o trabalho médico-pericial no
âmbito da Previdência Social.
Segundo esta IN, a LER/DORT deve ser entendida como um problema
de saúde pública, sendo fruto da intensificação da tensão imposta pela organização do
trabalho, deixando explícito que a extensa lista das doenças do sistema osteomuscular e
do tecido conjuntivo relacionadas ao trabalho não é exaustiva, mas somente
exemplificativa.
397
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
Por outro lado, as denominadas LER/DORT estão, paulatinamente, sendo
superadas por outras síndromes ligadas ao ambiente do trabalho, tais como as síndromes
do pânico, do esgotamento (Burnout), as doenças psicossomáticas, as tensões
traumáticas e outras tantas pressões relacionadas com o ambiente nocivo e deletério das
relações laborais vigentes.
Essas constatações passaram a ser mais visíveis quando pesquisas
realizadas pelos Sindicatos dos Trabalhadores Bancários apontaram sua ocorrência. No
Rio Grande do Sul, por exemplo, em uma campanha denominada "Tudo tem Limite!
Tolerância Zero com a Violência dos Bancos", realizada de 29/10/09 a 24/10/11, foram
registradas 94 ocorrências denunciando irregularidades no ambiente de trabalho
(excesso de trabalho, almoço reduzido, entre outros), e um número significativo de
assédio moral, no total de 68 ocorrências11.
Em relação às tensões pré e pós-traumáticas, devido aos crescentes
números de assaltos às agências bancárias, foram registrados, de 2006 a 2009, em Porto
Alegre e Região, um número alarmente de 228 assaltos e 3 sequestros de bancário.
Estes conjuntos de elementos, acreditamos, que confluem para o
esgotamento e adoecimento destes trabalhadores, tudo em conformidade com os novos
rumos trazidos pela reestruturação produtiva.
CONCLUSÃO
Pelo visto e exposto podemos concluir, preliminarmente, que a
caracterização do trabalho bancário como penoso é tarefa árdua, a ser construída
paulatinamente. A favor de sua não caracterização, milita o intento nada velado na
desconstituição da aposentadoria especial. (COSTA, 2009).
De outro lado, a realidade concreta teima em superar a ficção: cada vez
mais o mundo do trabalho se complexifica, o próprio capitalismo transmuta-se e o
trabalho ganha outras e novas dimensões. O mundo do trabalho já não é mais o mesmo,
Esta pesquisa, realizada no período apontado alhures, consistia em um estímulo aos
trabalhadores bancários em denunciar as práticas abusivas ocorridas em seus ambientes de
trabalho, por meio de ligações telefônicas ou de comunicados virtuais. O Sindicato checava as
informações e, a partir dessa constatação, passava a organizar as ações sindicais.
11
398
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II
como não são as infindáveis exigências feitas aos trabalhadores, mormente em se
tratando dos bancários, justamente estes que permanecem/padecem no ínsito das
instituições financeiras que sustentam o capital.
As pesquisas que ora colacionamos, mesmo que incipientes, apontam
para a existência de novas patologias associadas às diversas síndromes até então
desconhecidas ou pouco estudadas, tais como a de burnout, do pânico, entre outras. O
assédio moral no trabalho, por sua vez, ganha proporções até então desconhecidas.
A exigência das metas, bem como o assalto crescente às agências
bancárias, agravam esse quadro. Registre-se que as metas deixaram de ser cobradas
somente às agências para, além delas, serem cobradas de forma individual, gerando uma
competição interna que viola os mínimos princípios da solidariedade e da vivência em
grupo. O resultado dessa política, ora institucionalizada, é o adoecimento dos bancários
devido às doença que se desencadeiam devido à esse processo.
Não há dúvidas que o ambiente de trabalho dos bancários está em
dissonância com o disposto no art. 225 da Carta Política de 1988, ou seja, um ambiente
equilibrado, saudável e construtor dos direitos mínimos de cidadania. O adoecimento,
cada vez mais frequente, os auxílios-doenças e as aposentadorias por invalidez
precoces, que oneram o sistema previdenciário como um todo, são indícios desta
realidade.
Todas estas questões, a nosso ver, confluem no conceito de penosidade,
conforme vem sendo construído pela doutrina. Não há dúvidas que o labor dos
bancários implica em um desgaste, psíquica e fisicamente, que conduzem a doenças
mentais e físicas. Esse desgaste, ao que indicam as pesquisas, é paulatino, cumulativo,
esparso. Seja a LER/DORT, que já perdeu espaço para outras doenças psíquicosomáticas, sejam as outras síndromes nominadas neste estudo, são "doenças invisíveis",
o que dificulta a sua constatação.
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DE INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO
BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA.
THE LABOR AND SOCIAL SECURITY SOCIAL RIGHTS AND THE ECONOMIC
AND SOCIAL INCLUSION PROCESS IN BRAZILIAN DEMOCRATIC STATE:
THE IMPORTANCE OF PUBLIC POLICIES FOR THE DEVELOPMENT OF
MINIMUM WAGE AND INCOME TRANSFER.
Érica Fernandes Teixeira1
Palavras-chave: direitos sociais; trabalho digno; inclusão econômico-social; dignidade
humana; políticas públicas.
Keywords: social rights; decent work; economic and social inclusion; human dignity; public
policies.
Resumo: A exclusão social consiste num dos principais problemas a ser enfrentado pelas
nações de todo o mundo, em especial o Brasil. Para combater esse problema tão caro aos
sistemas ultraliberais, necessário efetivar os instrumentos para dignificação do cidadão. Os
ramos jurídicos sociais possuem papel essencial na promoção dos direitos humanos,
atenuando as forças do capital perante o indivíduo. A relação de emprego formal, regida pelo
Direito do Trabalho, e o Direito Previdenciário são analisados como instrumentos de
dignificação do cidadão. Os reais instrumentos de que dispõe o cidadão para promover, como
verdadeiro protagonista, uma sociedade mais justa, menos desigual e mais humana devem ser
efetivados e amplamente incentivados. O ramo justrabalhista é, em grande medida,
responsável pela desmercantilização do labor humano, beneficiando o trabalho com regras
distintas dos meros ditames do mercado, objetivando sempre atenuar o conflito entre capital e
trabalho. E, juntamente com o Direito Previdenciário compõem o rol de fundamentais direitos
sociais do cidadão, estabelecidos, solidificados e potencializados no Estado Democrático de
Direito. Neste trabalho são analisados alguns relevantes programas sociais de distribuição de
renda, assim como, as políticas de valorização do salário mínimo, como instrumentos de
1
Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas, Professora de Direito e Processo do Trabalho (IEC/ PUC/MG).
Advogada.
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justiça social, distribuição de renda e efetivação da dignidade humana. No sistema capitalista
contemporâneo, os direitos sociais assumem um papel crucial, definindo os novos atores
sociais, permitindo a inclusão econômico-social dos cidadãos e, enfim, instrumentalizando a
Democracia.
Summary: social exclusion is one of the major problems to be faced by Nations around the
world, especially Brazil. To combat this problem so expensive to ultra-liberal systems,
necessary to make the instruments for citizen's dignity. The social legal branches have key
role in promoting human rights, weakening the forces of capital before the individual. The
formal employment relationship, governed by the labour law and social security law are
examined as tools of citizen's dignity. The real instruments available to the citizen to promote,
as real protagonist, a fairer society, less unequal and more human should be enforced and
widely encouraged. The justrabalhista branch is largely responsible for the human labor,
decommodification enjoying working with distinct rules of mere market dictates, always
aiming to mitigate the conflict between capital and labor. And, along with the pension law
make up the catalogue of fundamental social rights of the citizen, established, solidified and
enhanced in the democratic State of law. In this work are reviewed some relevant social
programs of income distribution, as well as the enhancement of minimum wage policies, as
instruments of social justice, income distribution and completion of human dignity. In the
contemporary capitalist system, social rights assume a crucial role by setting the new social
actors, allowing for economic and social inclusion of citizens and, anyway, actually
Instrumenting the Democracy.
Índice: 1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social. 2 O
papel das políticas de transferência de renda. 3 As políticas públicas de valorização do salário
mínimo. CONCLUSÃO. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
DESENVOLVIMENTO:
1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social
O surgimento dos direitos sociais na ordem jurídica marcam o início do processo de
inclusão dos indivíduos.Verifica-se que tal concepção se perfaz através da proteção do
cidadão que despende força laborativa para prover uma melhor qualidade de vida, atrelado,
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pois, ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e à própria definição subjetiva do Direito
do Trabalho. (DELGADO, 2012).
Silva afirma:
Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são
prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas
em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais
fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.
São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como
pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições
materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez,
proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.
(SILVA, 2006, p. 229).
O estado social é aquele que efetiva os direitos trabalhistas e previdenciários do
cidadão, além de promover educação e saúde com qualidade, distribuir de riquezas, efetivar
políticas públicas sociais, dentre outras ações. Consoante Bonavides, a partir do momento em
que o Estado:
[...] coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do
quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional e fora deste, os
direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como
distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o
desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria,
controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito,
institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises
econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de
seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase
todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa
individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de
Estado social (BONAVIDES, 1993, p. 182).
Conforme entendimento de Araújo e Nunes Júnior:
[...] os direitos sociais, como os direitos fundamentais de segunda geração, são
aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minorizaçao das
desigualdades sociais. Nesse sentido, o art. 6 do texto constitucional, embora ainda
de forma genérica, faz alusão expressa aos direitos sociais: a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. (ARAUJO; NUNES
JUNIOR, 2010, p. 218).
Os direitos sociais buscam a igualdade material entre os seres integrantes do Estado
Democrático de Direito, repelindo privilégios e discriminações, integrando-os ao sistema
produtivo e distribuidor de riquezas, a fim de efetivar a justiça social. Nesse sentido, os
direitos sociais devem ser compreendidos em uma dimensão retificadora, no sentido de
reduzir as desigualdades existentes entre os cidadãos, e também em uma função provedora,
para atender às demandas das populações referentes à dignidade da pessoa humana.
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A relação entre direitos sociais e igualdade é bem expressada por Fortes, in verbis:
A igualdade na dignidade, resumida enquanto cidadania é exatamente a condição
atribuída aos que são membros integrais da comunidade, isto é, os que partilham de
seus valores e são, a um só turno, por ela responsáveis e beneficiados. Nesse sentido,
os direitos sociais encontram-se situados no Estado Democrático de Direito como
garantias iguais para todos os membros da comunidade política, sem
estabelecimento de privilégios e distinções, portanto construídos sobre a idéia de
Justiça Social. (FORTES, 2005, p. 173).
A denominação “diretos sociais” passou, a partir da segunda metade do século XIX, a
ter relação com os ramos jurídicos engajados com o processo inovador de democratização real
das sociedades. O Direito do Trabalho foi um ramo pioneiro com matriz jurídica social, de
natureza interventiva, gerindo interesses de caráter social. Mas, nas últimas décadas do século
XIX, e ao longo de todo século XX, houve o surgimento e estruturação do Direito
Previdenciário. Ainda nesse processo democratizante, ao longo do século XX, consolidou-se
também o Direito Consumeirista e o Direito Ambiental.
Em todos esses ramos, há larga prevalência de normas imperativas objetivando a
inclusão social. É inegável que, tão mais democrática é uma sociedade quanto mais includente
ela se caracterizar, por meio de normas imperativas que impliquem garantias para os
indivíduos, a fim de atribuir papéis ativos a todos os cidadãos.
Segundo entendimento de Maior, o conceito de “direitos sociais” extrapola a
hipossuficiência socioeconômica do obreiro, predominante no Direito do Trabalho e do
Previdenciário. Assim, seus princípios e postulados atingem ramos jurídicos tradicionalmente
vinculados tanto ao direito privado (como em algumas relações de consumo ou em pequenos
contratos vinculados ao sistema financeiro de habitação), quanto ao direito público (Direito
Previdenciário, concessão de remédios ou tratamentos pelo Direito Sanitário ou mesmo no
Direito Tributário). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 29).
O autor também destaca a amplitude das hipóteses de direitos sociais previstas no art.
6º da Constituição brasileira de 1988. Essa norma elenca ser direito social desde o direito à
moradia, quanto o direito ao lazer, incluindo o Direito ao Trabalho e à Previdência Social.
Certamente, outros direitos essenciais para a dignidade humana também estão aqui
abrangidos, devendo as hipossuficiências a eles relacionadas serem tuteladas pelo legislador
ou, até mesmo, pelo intérprete2. Os direitos e as garantias fundamentais, juntamente com os
2
Necessário destacar o entendimento de Jorge Luiz Souto Maior, do qual comungamos, de que as normas de
Direitos sociais não possuem caráter programático. Tal caráter as faria dependente de norma infraconstitucional
reguladora, além de reduzir sua efetividade, já que, em primeiro lugar, estariam vinculadas ao respeito às
possibilidades econômicas e as políticas públicas eleitas pelo legislador constituinte. (SOUTO MAIOR;
CORREIA, 2007, p. 29).
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direitos individuais (artigo 5º) e a previsão do artigo 170 da referida Carta, compreendem os
direitos sociais. Por tudo isso, as regras inerentes aos direitos sociais possuem:
[...] caráter transcendental, que impõe valores à sociedade e, consequentemente, a
todo ordenamento jurídico. [...] Os valores são: a solidariedade (como
responsabilidade social de caráter obrigacional), a justiça social (como consequência
da necessária política de distribuição dos recursos econômicos e culturais
produzidos pelo sistema), e a proteção da dignidade da pessoa humana (como forma
de impedir que os interesses econômicos suplantem a necessária respeitabilidade à
condição humana). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 26).
Conforme ensinamentos de Lobo, que reforçam a necessidade de ampliação e
valorização dos direitos sociais:
A fixação de políticas sociais produz o efeito, nem sempre desejado, de reduzir a
dependência do trabalhador em relação ao empregador e termina por se transformar
em fonte potencial de poder (Heimann apud Esping-Andersen, 1990:89),
desencadeando um círculo virtuoso que tende a alimentar o processo de construção
da cidadania baseada em direitos sociais e na desmercantilização da força de
trabalho. Em outros termos, a desmercantilização fortalece o trabalhador e
enfraquece a autoridade absoluta do empregador. Os direitos sociais, a igualdade e a
erradicação da pobreza que um Estado de Bem-Estar universalista busca constituem
pré-requisitos importantes para a força e a unidade necessárias à mobilização
coletiva de poder. Na presença de mecanismos de proteção referentes ao conjunto da
sociedade, tais como seguro-desemprego, seguro-velhice, seguro-doença, seguroacidente etc., trabalhadores emancipados em relação ao mercado se habilitam com
mais facilidade à ação coletiva, fortalecendo a solidariedade de classe e ampliando
as chances para o estabelecimento de uma sociedade menos desigual. Ao contrário,
quando os trabalhadores se encontram em situação de inteira dependência em
relação ao mercado, o custo da adesão à ação coletiva se eleva, inibindo o potencial
mobilizador das organizações do trabalho. (LOBO, 2010, p. 12).
Os direitos sociais nasceram “abraçados ao princípio da Igualdade" (BONAVIDES,
2001, p. 562) e umbilicalmente ligados ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da
Cidadania, já que têm, como um dos seus principais objetivos, a intenção de atenuar a
desigualdade entre cidadãos e proporcionar-lhes melhores condições de vida.
Bobbio (1992), ao analisar a instituição do direito social, afirma que tanto a
preocupação com o meio ambiente quanto a busca por uma melhoria na qualidade de vida dos
cidadãos foram tendências que ganharam grande importância na sociedade mundial após a
Segunda grande Guerra. Segundo o autor, assim foi vivenciada a “Era dos direitos”. Ele
assevera:
Com o nascimento do Estado de direito, ocorre a passagem final do ponto de vista
do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos
singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos
possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o
indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. (BOBBIO, 1992, p. 69).
A garantia de um mínimo para sobrevivência dos indivíduos assegurada pelo Direito
Previdenciário, associada à “melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na
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ordem socioeconômica”, inerente ao Direito do Trabalho, acaba por restringir “o livre império
das forças do mercado na regência da oferta e da administração do labor humano”. A ligação
entre ambos os ramos jurídicos, como exposto, tem origem no processo de intervenção do
Estado no mercado de trabalho, a partir da segunda metade do século XIX na Europa
Ocidental. Tal vinculação preserva-se estreita, inclusive em razão de considerável parcela da
arrecadação da Previdência Oficial no sistema brasileiro originar-se da folha de salários das
empresas, conforme as verbas de natureza salarial auferidas pelos empregados. (DELGADO,
2012, p. 58; 80). Direito do Trabalho e Direito Previdenciário caminham juntos na busca pela
plena dignidade do cidadão numa sociedade mais igualitária.
É inegável afirmar que uma sociedade capitalista pautada pelo pleno respeito dos
direitos sociais é uma sociedade cujo princípio da Dignidade Humana deve estar em vigor
desde a essência, buscando ampliação do mercado de consumo, aumento da produção,
redução do desemprego e do informalismo, concedendo igualmente aos cidadãos uma ordem
crescente e efetiva de direitos trabalhistas e previdenciários. Nesse sentido, as políticas
públicas de valorização do salário mínimo e, também, de transferência de renda assumem um
papel fundamental na promoção da inclusão social e econômica de cidadãos.
Os reflexos da desigualdade provocada pelo sistema capitalista são claramente
verificados na seara da previdência social. A tendência de diminuição dos salários sentida no
bolso do trabalhador reduz sua capacidade contributiva. E, como se trata de um sistema cujo
objetivo é manter níveis de dignidade na velhice ou em casos de infortunística, com menores
contribuições, certamente, será mantido o tímido padrão de dignidade experimentado por
grande número de trabalhadores de baixa renda, o que indica a perpetuação da desigualdade
social.
Por sua vez, a assistência social possui caráter mais abrangente, caracterizando-se
como um sistema universal, que independe de contribuição (art. 203 e 204 da CF/88). Os
indivíduos desempregados que integram um exército constante de mão de obra disponível no
sistema capitalista3 geram indubitável ampliação dos gastos públicos, sejam através de
benefícios assistenciais ou mesmo programas sociais para população de baixa renda, sem os
quais nem mesmo a dignidade mínima do cidadão poderia ser mantida. Nesse aspecto, o
objetivo deste trabalho não é de discutir a extensão da fundamental responsabilidade do
Estado, mas, sim, de alertar que o sistema capitalista, ao lançar diversos indivíduos à margem
da sociedade em razão do desemprego, é absolutamente dependente da assistência social para
3
Expressão usada por Karl Marx. (MARX, 1988).
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prover a subsistência desses cidadãos. Assim é possível afirmar que tão mais desenvolvida é
uma nação quanto melhor e mais inclusivo for seu sistema de previdência social, apto a
garantir melhor qualidade de vida a todos os indivíduos contribuintes. Esses contribuintes e
segurados são também consumidores, o que, sem dúvida, é um grande catalisador para o
aquecimento do mercado e para o desenvolvimento do capitalismo.
No que se refere à precarização dos direitos trabalhistas em evidência no século XX,
trata-se do resultado da difusão dos ideais neoliberais, que pregaram a mínima atuação estatal
na regulação das relações econômico-sociais, associados à tentativa de flexibilização de
direitos, reduzindo a necessária tutela imperativa estatal, conduzindo para um quadro crítico
de desigualdade e concentração de renda. Os ataques às proteções e às garantias impostas pela
relação de emprego formal, regida pelo Direito do Trabalho, e também a tentativa de
desconstrução do primado do trabalho e emprego afetam “o mais importante veículo de
afirmação socioeconômica da grande maioria dos indivíduos componentes da sociedade
capitalista”. (DELGADO, 2005, p. 29).
Os indivíduos que vendem sua força de trabalho para prover sua subsistência precisam
contar com a rede de proteção e garantias imperativas instituídas pelo ramo justrabalhista.
Trata-se de uma condição essencial até mesmo à própria dinâmica do sistema capitalista, que
tem no Direito do Trabalho valioso instrumento de perpetuação (DELGADO, 2005, p. 29).
Ainda diante das desigualdades e exclusões promovidas pela essência desse sistema, através
da relação de emprego formal e dos direitos previdenciários, todos os cidadãos têm acesso a
uma das formas de inserção na sociedade em níveis cada vez mais dignos, contribuindo de
forma consistente para a distribuição de renda e para a promoção da justiça social. Nas
palavras de Delgado, cabe ao Direito do Trabalho:
[...] estruturar, impelir e organizar o mercado interno de absorção dos próprios bens
e serviços gerados pela economia, mantendo-o renovado e dinâmico, por suas
próprias forças de sustentação. Ora, ao elevar as condições de pactuação da força de
trabalho, esse ramo jurídico não só realiza justiça social, como cria e preserva
mercado para o próprio capitalismo interno, devolvendo a este os ganhos materiais
socialmente distribuídos em decorrência da aplicação de suas regras jurídicas.
(DELGADO, 2005, p. 123).
Em sua obra, Cardoso alerta para seguinte questão: “se o discurso neoliberal se
efetivasse em sua plenitude, não estaríamos diante do risco de dissolução dos laços sociais
mais estáveis do capitalismo, aqueles garantidos, justamente, pelo Direito do Trabalho?”
(CARDOSO, 2003, p. 119). E continua:
Em nenhum lugar se fala a sério sobre essa diluição do direito do trabalho, exceto,
no terceiro mundo e certamente no Brasil da década de 1990. Talvez porque no
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mundo desenvolvido se tenha alguma noção dos riscos de profunda crise social
decorrente da diluição dos laços de solidariedade associados ao direito do trabalho.
[...] O direito do trabalho cumpriu exatamente esse papel para o trabalhador diante
do capitalista, fazendo-o ainda mais, como resultado universal, e por isso mesmo,
social. [...] Apenas aqui não se reconheceu que o mercado, deixado a si mesmo, o
mercado sem o Estado, é a guerra, a selva ou a máfia, ou tudo isso junto.
(CARDOSO, 2003, p. 120-121).
O trabalho humano tutelado pelo Direito do Trabalho provém sustento para as
camadas significativas da população, dignificando o cidadão, além de distribuir riqueza,
implementar a democracia e realizar a justiça social. Assim, destaca-se aqui a relevância do
trabalho digno como um dos pilares do estado democrático. (DELGADO, 2011, p. 1167).
Quanto ao Direito Previdenciário, cabe ao Estado provedor ampliar sua rede tuitiva, a
fim de garantir um mínimo existencial a todos os cidadãos. Assim, além de garantir condições
mínimas de subsistência frente aos riscos sociais, é necessário que o Estado garanta níveis
cada vez maiores de cidadania, incluindo novos segurados ou mesmo garantindo qualidade de
vida àqueles que guarnecem em sua tutela.
A intervenção do Estado na regulação das relações de trabalho, dos processos de
dispensa, bem como na proteção àqueles que se encontram fora do mercado de trabalho,
através da legislação trabalhista e securitária, é fundamental para aumentar a segurança do
trabalhador e até mesmo o poder sindical. Quanto maior for a abrangência das políticas
sociais, menos mercantilizada será a força de trabalho. Dessa forma, no processo de
desmercantilização, são importantes não só a crescente efetivação das leis trabalhistas e
previdenciárias, mas também a criação de consistentes políticas sociais inclusivas objetivando
a justiça social.
2 O papel das políticas de transferência de renda
O processo de inclusão de cidadãos coincide, como exposto, com o fortalecimento da
democracia. A Constituição Federal de 1988 forneceu os fundamentos necessários para
inauguração de um período de desenvolvimento da proteção social em nosso país.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao Idoso e ao Deficiente estão previstos
no artigo 203 da Constituição Federal de 1988. Apesar de ser um benefício de assistência
social, de caráter não contributivo, necessário destacar aqui seu exponencial papel com
instrumento de redução de desigualdades. Consiste na garantia de um salário mínimo de
benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de não tê-la provida por sua família, conforme
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dispuser a lei. A regulamentação de tal regra está na lei nº 8.742 de 07/12/1993 (Lei Orgânica
da Assistência Social - LOAS) (BRASIL, 1993a) e no Decreto nº 6.214 de 26/09/2007
(BRASIL, 2007a). Tais regras foram alteradas pelas leis 12.435/2011 (BRASIL, 2011d) e
12.470/2011 (BRASIL, 2011e) e pelo Decreto 7. 617/2011. (BRASIL, 2011b).
A LOAS estabelece que é dever do Estado e direito do cidadão prover os mínimos
sociais, por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, a
fim de garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão.(CASTRO; LAZZARI,
2012, p.714).
Os artigo 21 e 22 da LOAS contêm os requisitos para a concessão do Benefício de
Prestação Continuada (BPC). Para fins do referido diploma, idoso é o cidadão com 65
(sessenta e cinco) anos ou mais e que deve comprovar não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família. A família, nesse caso, é composta pelo
requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o
padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que
vivam sob o mesmo teto.
A LOAS caracteriza o deficiente como o cidadão que tem impedimentos de longo
prazo (com efeitos pelo prazo mínimo de 2 anos) de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. A concessão
do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, composta por
avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do
Instituto Nacional de Seguro Social - INSS.
Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a
família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. Porém,
a remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para
fins desse cálculo.
Um dos grandes méritos do BPC é o amparo às pessoas idosas ou deficientes que não
poderiam, no âmbito do mercado de trabalho, buscar uma renda para prover sua
sobrevivência.
O gráfico abaixo expressa a evolução dos recursos da assistência social na União,
indicando um incremento significativo, partindo de R$ 10,7 bilhões em 2002 para R$ 31,5
bilhões em 2008 (valores corrigidos pelo IPCA-IBGE até 31/08/2009). Nos anos de 2004 e
2006, houve considerável elevação do montante de recursos destinados à assistência social.
Em 2004, o aumento deve-se principalmente ao aporte de recursos para o programa bolsa
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família (PBF) e para o benefício de prestação continuada (BPC).
Em outubro de 2003, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 132, convertida
na Lei nº 10.836/2004, que criou o PBF para atender as famílias em situação de pobreza e
extrema pobreza, aportando R$ 5 bilhões ao programa, o que possibilitou o aumento de 1,2
milhão de famílias beneficiárias em 2003 para 6,5 milhões de famílias em 2004. O aumento
dos recursos destinados ao BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei
nº 10.741/2003, que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de
67 para 65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do
benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2009a).
Gráfico 2 Evolução financeira dos recursos da União na assistência social
Fonte: BRASIL, 2009a.
A referida lei 10836/2004 (BRASIL, 2004), que criou o programa de bolsa família, de
responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, unificou ações
de transferência de renda do Governo Federal, em especial, o programa nacional de renda
mínima vinculado à educação - bolsa escola, instituído pela Lei nº 10.219/2001 (BRASIL,
2001a), o programa nacional de acesso à alimentação - PNAA, criado pela Lei nº 10.689/2003
(BRASIL, 2003a), o programa nacional de renda mínima vinculada à saúde - bolsa
alimentação, instituído pela Medida Provisória nº 2.206-1/2001, o programa auxílio-gás,
instituído pelo Decreto nº 4.102/2002 (BRASIL, 2002a), e o cadastramento único do Governo
Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877/2001 (BRASIL, 2001b).
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Pelo programa de bolsa família, as famílias pobres (definidas como aquelas que
possuem renda per capita de 70 até 140 reais) e extremamente pobres (com renda per capita
menor que 70 reais) recebem ajuda financeira, devendo, para tanto, manter seus filhos ou
dependentes na escola e vacinados. Os valores dos benefícios pagos por família variam entre
32 e 306 reais, conforme dados oficiais do governo. Em 2006, mais de 11,1 milhões de
famílias de todo o Brasil, o que corresponde a cerca de 45 milhões de pessoas, receberam 8,2
bilhões de reais, referente a 0,4% do PIB brasileiro. O aumento dos recursos destinados ao
BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003 (BRASIL,
2003b), que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de 67 para
65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do
benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2012b).
O benefício de superação da extrema pobreza na primeira infância é um novo
benefício que integrou o programa bolsa família, incluído pela Medida Provisória nº 570, de
2012 (já incorporado na lei nº 10836/2004), e tem como objetivo erradicar a extrema pobreza
entre as famílias que possuem crianças entre 0 e 6 anos. Por esse programa, que foi batizado
por Brasil carinhoso, as famílias já beneficiárias do PBF com crianças de até 6 anos que
permaneçam em situação de extrema pobreza, mesmo após o recebimento dos benefícios do
PBF, farão jus ao novo benefício, que elevará sua renda mensal per capita para acima de R$
70,00. Seu valor será correspondente ao montante necessário para que a renda mensal por
pessoa da família supere os R$70,00, conforme disposto no § 15 do artigo 2º da lei nº
10836/2004.
Os recursos destinados ao bolsa família são verdadeiros investimentos. Ao garantir
acesso à renda aos segmentos mais vulneráveis da população, o programa gera retornos para
toda a sociedade. Com a complementação das suas rendas, as famílias tornam-se novos
consumidores, o que fomenta a economia. Ademais, os gastos do govern
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DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS II