Relacionamentos com vínculos superficiais ou profundos
José Moran
Educador e Pesquisador
www2.eca.usp.br/moran
Ampliação do tema Equilibrando aceitação e Mudança,
do meu livro Aprendendo a Viver, 6ª Ed. SP, Paulinas, 2011, p. 58-59
Os nossos relacionamentos vão se construindo com o tempo, em camadas cada vez
mais profundas, que exigem níveis de troca, de diálogo e acertos cada vez mais
delicados, na construção de vínculos progressivamente mais complexos. Numa
comparação simples, assemelham-se ao descascar de uma cebola: começamos pelas
folhas mais externas e visíveis, mas as consolidamos - ou não - nas mais internas e
profundas.
No começo de um relacionamento desejamos, percebemos, valorizamos e
interagimos com as camadas mais externas do outro: a sua aparência, cada pedaço do
seu corpo, as ricas sensações sensoriais que recebemos e expressamos por todos os
sentidos e linguagens, principalmente através do olhar, do ouvir e do tocar.
Isso nos leva a um segundo nível de interação em camadas que misturam o sensorial e
o emocional: paixão, prazer, o gosto de estar juntos, inebriados com a presença, o
toque, o prazer intenso de estar com quem amamos, de compartilhar cada detalhe da
vida e dos projetos de curto e médio prazo.
A convivência intensa desvenda níveis crescentes de intimidade, com a necessidade de
equacionar formas mais complexas de interagir, de negociar diferenças, de lidar com
divergências, com valores diferentes. Geralmente começamos fazendo esforços
intensos de contorcionismo diante das diferenças, evitando o confronto direto,
procurando mais o que nos aproxima do que o que nos separa, insistindo mais no que
nos une do que nos diferencia. Esforçamo-nos por encontrar o máximo denominador
possível: cedemos no que não nos parece essencial, acomodamos as visões
conflitantes de forma mais ou menos satisfatória ou tranquilizadora. Mas a tensão
pode permanecer incubada, se estiver mal resolvida, e vai aparecer em momentos de
confronto com tomadas de decisão conflitantes (profissionais, familiares, projetos
pessoais importantes).
Com o tempo, em alguns momentos, as diferenças aparecem mais claramente e cada
um explicita o que é realmente importante, fundamental no sua vida e que não quer
abrir mão. É o tempo das negociações profundas, das aproximações complexas, de
tentativas de acordos possíveis, cedendo um pouco de ambos os lados, para tentar
preservar a identidade pessoal e a relação a dois. É nesta etapa que se define de
verdade se o relacionamento será bem sucedido – evoluindo para um entendimento
mais pleno - ou tenderá a complicar-se, a radicalizar posições, a exigir mudanças no
outro sem contrapartida. Os relacionamentos duradouros bem sucedidos conseguem,
nesta etapa, equilibrar o que os diferencia e o que os une, estabelecendo pactos
conscientes/inconscientes de entendimento que são satisfatórios, viáveis e que
impõem o menor desgaste possível, apesar das diferenças existentes. Não mascaram
as divergências, mas procuram integrá-las ao máximo, preservando o vínculo afetivo, a
compreensão e o acolhimento, enfatizando mais as semelhanças do que as diferenças.
Aprendem a valorizar mais o que os une do que o que os pode separar.
Se este nível de acordos é mais satisfatório do que insatisfatório, se os dois lados se
sentem mais contemplados e aceitos do que, de alguma forma, com a sensação de
estar cedendo demais a contragosto, a tendência é a de conseguir manter o
relacionamento de forma mais sólida, consistente e duradoura. Esses acordos
profundos relativizam e compensam alguma diminuição da empolgação sensorial -do
intenso contato físico das primeiras etapas - valorizando a importância de equilibrar o
tempo juntos e os tempos pessoais, as atividades individuais e conjuntas, avançando
no aprofundamento dos laços em todas as dimensões da vida.
Quando um relacionamento se constrói só nos primeiros níveis ou camadas, e se
mantém pela paixão ou pela obrigação (filhos) ou por algum medo (da solidão, por
exemplo), a tendência é a de não investir tanto no entendimento profundo (“o outro é
que tem que mudar”), de não valorizar tanto tudo o que favorece a união e de
destacar mais o que nos incomoda no outro do que o que nos realiza. É a fase das
cobranças, dos desentendimentos, das acusações explícitas ou ressentidas ou da
indiferença progressiva.
Muitos não sobrevivem a essa falta de intimidade e confiança profunda e se separam;
outros tantos permanecem “amarrados” mutuamente, mas sentindo-se intimamente
insatisfeitos, percebendo um distanciamento íntimo progressivo, embora até possam
manter externamente as aparências de um casal bem sucedido (para muitos “parecer
felizes” é mais importantes do que sê-lo de verdade).
A vida nos oferece a possibilidade de aprender a construir relacionamentos que valem
a pena, que nos realizam além das aparências, que criam vínculos profundos. Mas,
como em outros campos, essa competência precisa ser desenvolvida com cuidado,
observação, atenção e avaliação. A grande vantagem de nosso tempo é que temos a
possibilidade legal e real de rever decisões de conviver com outro que pareciam
definitivas, mas que não se confirmam, e de começar novas experiências de
relacionamento diferentes das anteriores, que possam nos realizar muito mais, se
estivermos preparados.
Mas se não aprendemos com as experiências, erros e reavaliações, corremos o risco de
continuar repetindo modelos prontos de comportamento, de buscar as mesmas
pessoas e situações em novos relacionamentos e de repetir modelos que se revelarão
insatisfatórios com o tempo. Uns aprendem com os “fracassos”, outros repetem os
mesmos procedimentos com pessoas diferentes, aparentemente, e por isso reclamam
de que os relacionamentos são datados, que não dão certo no longo prazo e de que é
melhor estar sós do que mal acompanhados.
Uma das maiores realizações que a vida nos permite e desafia é a de poder evoluir
cada vez mais como pessoas em todas as dimensões para poder construir percursos
mais realizadores também na convivência com alguém em quem podemos, com o
tempo, confiar de verdade e com quem a convivência diária traz muito mais
realizações do que problemas.
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