TRADIÇÃO-TRAIÇÃO
Gabriela Hirschl1
Pois, sem dúvida, poesia, arte é sempre e, especialmente, tradição de que cada autor não representa
outra coisa que a de ser, como máximo, um simples elo de passagem para uma expressão estética
diferente; alguém cuja missão fundamental é, usando algo semelhante, transmitir uma tocha viva à
geração mais jovem, que há de continuar na árdua tarefa…
E se fomos revolucionários, se pudemos sê-los foi porque antes havíamos amado e absorvido, inclusive
aqueles valores contra os que agora íamos a reagir 2.
Vicente Aleixandre
A clínica atual nos leva, necessariamente, a nos perguntarmos sobre os eixos propostos neste
congresso; por isso, tomamos como base para nos interrogar sobre a problemática de uma paciente
que nos desafia a repensar o método, a clínica psicanalítica e, ao mesmo tempo, o processo que vai
sendo desenvolvido. O que acontece quando o que herdamos, incluindo a tradição, é um obstáculo
para a invenção? O que faz com que “o velho”, nesse caso, pese mais que “o novo”? Qual é a razão
pela qual não é possível apropriar-se do que é bom? Por que a recordação a impulsiona a rejeitar?
Que o tanático domine o construtivo trófico? “O velho” se refere a uma tradição que
operahttp://es.thefreedictionary.com/paralizado imobilizando, impedindo, obstruindo, sinônimos úteis para
ir palpando o clima gerado pela paciente. O acesso ao novo se encontrava impedido: é por isso que
propomos chamar a isto traição em vez de tradição, já que perverte, no nosso entender, seu
objetivo principal que é transmitir, às gerações subseguintes, o que é valioso para que depois elas
façam uso3 do que foi transmitido. Recordemos a Freud (1913) quando, parafraseando Goethe,
disse: “Aquilo que herdaste de teus pais, para possuí-lo, deve adquiri-lo”.
É importante estabelecer a diferença com a tradição, que sem dúvida constitui um capital que
não tem preço. Porém, neste caso em que o sujeito assume o papel de porta-voz de uma história
alheia, as perguntas anteriores passam a ser importantes, e um dos objetivos da análise seria tentar
recuperar o que está paralisado. Como conseguiremos isto? “Per via di levare” ou “per via di porre”?
Hierarquizando o intersubjetivo ou o intrapsíquico? A combinação de ambos, talvez? Deixa-nos de
surpreender o que vai acontecendo entre cada analista e seu paciente, co-criando uma “concepção
privada da cura” (Hirschl, 2011). Cada uma destas questões terá consequências na técnica e na
dinâmica de uma análise.
1
Asociación Psicoanalítica Argentina, [email protected]
O poeta Vicente Aleixandre destaca esta capacidade criadora da tradição ao escrever o seu discurso quando recebeu o
prêmio Nobel: Tradição e revolução. Eis aí duas palavras idênticas.
2
3
Uma das formas de pensá-lo é à maneira de Winnicott (1965)
Para nos aproximarmos a estas perguntas tomaremos a experiência do processo com uma
paciente chamada Amélia (37 anos), que chega perguntando, com um tom angustiante e muito
comprometido: “Há anos venho provando diferentes tipos de terapias, tenho medo de não conseguir,
não consigo arrancar, sinto tristeza, desolação, sempre tive isso…, isso tem cura?” Com uma voz
muito suave e infantil continua: “Não consigo me separar”, “eu me constituo através do outro”, (quase
um próprio diagnóstico).
Nas seguintes sessões, acrescenta mais uma palavra a cada frase: “Tenho medo de não
poder… avançar”. Ao dizer, “não posso me separar” vai desenvolvendo um “me sinto presa”. Ela
necessita das outras pessoas para “ser”, gradualmente se descrevem como amigas que só estão se
ela as contém ou se precisam dela (ou seja, quando ela lhes dá alguma coisa). Redobra a aposta
dizendo: “Não tenho esperança de que possa conseguir alguma coisa”. Só o fato de ir
acrescentando palavras que explicavam o seu sofrimento me proporcionava um discreto otimismo,
apesar do conteúdo do discurso que era bastante desalentador: parecia estar me dizendo que não ia
conseguir, como tantos outros.
“Necessito que me ajudes a resolver isso do meu namorado”, assim foi o começo da primeira
sessão, “não quero que termine, é um apoio ruim, mas é um apoio” 4. Trata-se de um vínculo onde
ele não a vê, não a escuta, quase não a reconhece. Amélia tem recursos materiais, mas se sente
uma “mendiga”, e assim se apresenta à primeira vista. “Sinto-me como o patinho feio, porque não
faço parte de nada”. De que ou de quem não faz parte? “Todos têm a sua vida, nunca sou a
escolhida!” (diz quase em prantos). Vai se desenvolvendo um bom vínculo transferencial: “Domingo
quase liguei pra ti (com muita aflição), sinto uma tristeza enorme, mas eu sempre tive esta dor, tenho
um peso que é uma chaga, não estou aguentando! Estou apenas suportando a vida!”.
Suportando a vida de quem? Penso no pai, que sofre de uma depressão crônica, mas ela
continua: “Discuti com a minha mãe (se queixa com mágoa), cheguei a empurrá-la” (a mãe tem 78
anos). Esse mesmo dia havia brigado com o seu namorado e, segundo ela, não podiam se separar
“assim, brigados”, então ela o seguiu até a parada de ônibus e ele acabou empurrando-a (este fato
com o namorado e depois com a mãe está ainda dentro de uma problemática dual, com tudo o que
isto implica de obturador).
Conta que se sentiu descuidada pelos seus pais, que teve um sentimento de “orfandade” que
sempre a acompanhou. Órfã de um pai (que hoje tem 80 anos) que devido a sua depressão crônica
4
Parece ter lido Green (1997) quando nos alerta que às vezes prevalece a necessidade de aferrar-se a um objeto interno
ruim quando a não existência do objeto primário tomou possessão da mente devido ao tempo de espera ter sido
excessivo.
nunca pôde “autorizá-la”, e órfã de uma mãe que sempre esteve muito ocupada e admite que Amélia
sempre “a excedeu” porque era muito inteligente. Órfã e depois, ao não concretizar-se a carreira que
havia escolhido (uma transação entre o que se esperava dela e o que ela realmente desejava) e ter
que cursar outra, para ter um “diploma”. Órfã se sentiu mais uma vez, ao ter uma relação com um
homem casado e, mais uma vez ela ficou em um lugar “não oficial”. Relata isso como algo
traumático que a deixou finalmente com um “não lugar”. É o lado tanático da paciente: ela “mata” os
seus pais e por isso também fica órfã? Ou uma tentativa, mesmo falida, de não ficar fixada aos seus
objetos primários? Em todo o caso, o sofrimento gerado por isto é muito intenso.
Lembra-se de uma cena-imagem da sua puberdade: ela na cama, tapada com os lençóis até os
olhos, vendo o que acontecia ao seu redor, sentindo a sua energia ferver, efervescer e não sabendo
como canalizá-la.5 O “não saber” é algo que retorna no seu discurso. O que é que “não tem que
saber”? É interessante relacioná-lo com um gesto que repete cada vez que lhe é mostrado alguma
coisa do qual ela não gosta: aperta os olhos ou pisca intensamente. Para não ver? Não ver para
continuar sem saber? Talvez o “não ver” é funcional à tradição-traição que lhe foi legada, já que na
cena dos lençóis, por exemplo, existe o perigo concreto do desborde pulsional em um contexto
incestuoso.
Em outra sessão mostra uma dificuldade para “denominar”. Que significa seu nome? Conta que
faz referência a uma ilha na qual a sua família paterna morou certo tempo, “mas ele (se refere ao
pai) odeia a sua origem e nunca me transmitiu nada” (isso demonstra que não pode receber o
legado). Referindo-se ao seu sobrenome, conta que no idioma de seus avós significa “deixar
impresso”. Ela faz um trabalho artístico que tem que ver com isso, o que é sumamente significativo,
já que é justamente o que Amélia não pode: já que, apesar de ter “tela” (ter elementos), vem com a
tela muito cheia. Seu trabalho, então, será poder apagar, talvez conformando uma tela mais branca,
menos cheia, para depois estampar, fixar, fazer alguma coisa própria e duradoura, garantia de uma
identidade. Realizar o trabalho de luto, próprio da adolescência, para um caminho exogâmico que dê
passagem ao novo, ao diferente.
Mas, Amélia continua encerrada, “presa”, em um mundo endogâmico, reclamando ao pai para
que a autorize (“necessito ser apreciada por um homem”, diz isso com anseio) e para a mãe, que a
autorize. Para quê? Para ter uma sexualidade, companheiro e uma vocação diferente daquela
5
Kancyper (1989) nos revela que, atrás da aparente inércia psíquica, mobiliza-se latente uma tumultuosa energia, a
serviço de sustentar e perpetuar essa viscosidade da libido.
esperada por eles (o pai a chamou de prostituta quando ficou sabendo que aos 21 anos havia
iniciado a sua vida sexual, opôs-se à vocação artística que ela havia escolhido, etc).
Aqui se apresenta uma encruzilhada clínico-teórica: uma montagem entre Édipo e Narciso.
Poder-se-ia pensar como um caso paradigmático deste modo de funcionamento? Por um lado,
esperando a autorização-liberação, o que se poderia pensar como uma aquisição desejável no final
do Édipo. Porém, por outro lado, diz: “É difícil acreditar que ¨exista algo para mim, não tenho
esperança, estou presa” (desespero).
Como trabalhar com uma paciente cujas manifestações clínicas mudam tanto? Parece estar em
um registro edípico e, no momento seguinte, a desesperança e o tanático imprimem um clima de
estancamento.
Na transferência se apoia quase se aferra, ao meu olhar que se refletia em um uso muito
particular do divã: colocava-se de lado olhando para trás, o que implicava uma maior aproximação.
Quando comentava sobre isso, dizia que precisava me ver e retomava a posição “face a face”.
Foi um desafio técnico: permitir que flutuara de acordo com a sua necessidade, transformando
o uso do divã em um elemento elaborador, reflexo de um trabalho psíquico. Havia momentos nos
quais prescindia do meu olhar-apoio e momentos em que voltava à posição sentada. Uma vez
quando se levantou me disse: “necessito conexão, necessito te enxergar, ver o que te parece, a tua
voz não me diz nada”.
O olhar foi hierarquizado por ela desde a primeira sessão: “Meu pai me olhava, há um limite
que às vezes lhe falhava”. Dava elogios que me incomodava, ele não fazia isso com a minha mãe
(sua voz adquire um tom baixo e mais infantil), quando lhe conto isto sinto vergonha (...). Aos 17 vim
para a capital morar com meu irmão, também me senti super invadida por ele, me olhava, até que
conseguiu uma namorada (…) em casa me sentia asfixiada (baixa o tom voz e parece uma menina),
era uma deprê (…). Para mim foi um desprendimento, eu tive que morar sozinha com o meu
irmão”.
Intrincado entrecruzamento entre o edípico e o narcisista, que nos obriga a levar em conta essa
complexidade.
Quanto a sua vocação, muitas vezes se perde entre seus múltiplos interesses: um deles é o
lado artístico, com possíveis tentativas de elaboração, mas com grandes dificuldades já que tem os
espaços muito impressos pela “tradição paralisada”. Tomemos como exemplo o desenho-collage6
que ela trouxe à sessão, onde, para garantir um espaço em branco, colocou um papel em cima como
se fosse uma prótese, mostrando o desejo e ao mesmo tempo a dificuldade para produzir um
6
Anexo material gráfico.
branco. É um movimento primário estruturante (a partir do processo analítico) ou é um ataque ao
próprio pensamento, no qual a desinvestidura ganha terreno? O problema é que a ausência é a
condição da possibilidade, tanto da busca como do encontro, tema central de seu padecer: “Não
existe nada para mim, não encontro nada”. O desafio que implica gerar um branco lhe exige a
“traição” ao que foi herdado.
Com Amélia, poderíamos pensar que a partir de um “enquadramento facilitador”7 se co-criou “o
jogo dos olhares” a partir do qual vai habilitando o que é novo. Olhares que permitam mostrar-se
sem sentir a ameaça do incestuoso que a levou a se cobrir com farrapos e mostrar-se feia, olhares
que habilitam e possam interiorizar-se para não necessitar a presença constante do objeto e possam
finalmente hierarquizar o som da voz.
O que existe de tradição nela é o que chamei no início “traição¨: seus objetos parentais8 a
“parasitaram”, ocuparam toda a sua “tela” e, ao mesmo tempo, apresenta um conflito, o demoníaco
do destino não deixa de ser ameaçante no umbral.
Para tomar a tradição herdada e torná-la própria acreditamos que é preciso traí-la no bom
sentido: sentir-se livre para se separar dela, embeber-se em outras, decompô-la em partes e
recompô-la à medida de cada um. Se isso não for possível, o herdado é a traição.
O escritor Hanif Kureishi (1998) resume estas ideias de maneira formidável:
Talvez cada dia deveria conter, pelo menos, uma infidelidade essencial ou uma traição necessária. Tratar-se-ia de um ato otimista,
esperançoso, que garantiria a fé no futuro…, uma afirmação de que as coisas podem ser, não só diferentes, senão melhores.
BIBLIOGRAFIA:
Aulagnier, P. (1997). El aprendiz de historiador y el maestro-brujo. Del discurso identificante al discurso delirante.
Editorial Amorrortu, Buenos Aires,
Freud, S. (1938) Esquema del psicoanálisis. En: Tomo 23, Obras Completas, Amorrortu, 1996.
García Badaracco, J. (2010). “Sobre la ‘mente cerrada’”. Revista de Psicanálise, 2010.
Green, A. (2001 [1972]). De locuras privadas. Amorrortu, Buenos Aires.
Hirschl, G. (2011). “El cambio psíquico y la estructuración del psiquismo¨.
Kancyper,L. (2006 [1989]). Resentimiento y Remordimiento. Estudio Psicoanaítico Ed. Lumen. Buenos Aires, Argentina.
Marucco, N. (1999 [1978]). “Narcisismo, escisión del yo y Edipo. Una introducción a manera de epílogo”. Em: Cura
analítica y transferencia. De la represión a la desmentida, Amorrortu, Buenos Aires.
Roussillon, R. (2008). “Configuración de los estados límites”. Em Revista de Psicanálise, Nº1, Marzo 2008, Asociación
Psicoanalítica Argentina.
7
Parafraseando o “ambiente facilitador” de Winnicott.
Ela tem um lugar ativo nessa “fidelidade”: “razões condicionadas pelas vicissitudes dos processos de idealização,
desmentida e de agressividade ao serviço de Tánatos” (Kancyper, 1989).
8
Winnicott, D.(2007 [1965]). Los procesos de maduración y el ambiente facilitador, estudios para una teoría del desarrollo
emocional. Ed. Paidós, Buenos Aires, Argentina
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