OLHARES CONTEMPORÂNEOS SOBRE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA COMO POLÍTICA CURRICULAR DA FORMAÇÃO
DOCENTE1
CLAUDILENE MARIA DA SILVA23
Resumo
O artigo objetiva discutir os olhares de professoras e professores em formação sobre a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a
promulgação da Lei nº 10.639/03. Metodologicamente, trabalhamos com a produção
escrita de professoras e professores em formação inicial e continuada, elaboradas em
dois processos formativos vivênciados no estado de Pernambuco. O procedimento
metodológico realizado foi a análise documental. No tratamento e organização dos
dados adotamos a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2007). Na leitura dos
documentos das professoras e professores em formação inicial evidenciamos o
entendimento do grupo sobre o contexto de surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas
possibilidades de contribuir para a superação do racismo no espaço escolar; com o
grupo em formação continuada ganham destaque as dificuldades apontadas para a
implementação da temática em suas práticas docentes. Os resultados indicam que a
inclusão da temática nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento aos
docentes em formação inicial ou continuada, embora ainda enfrente dificuldades de
diversas ordens.
Palavras chave: Formação docente; política curricular; ensino de História; cultura afrobrasileira.
Abstract
The aim of this article is to discuss believe of teachers and student of the teacher
training college on the teaching of history and Afro-Brazilian culture in Brazil, 12 years
after enact Law 10.639/03. Methodologically, we had worked with the written
production of teachers in initial and continuing education, developed in two formative
processes experienced in the state of Pernambuco in Brazil. The procedure was the
documentary analysis. Treatment and organization of data, we adopted the content
analysis from the perspective of Bardin (2007). Reading the documents of the teachers
in initial training evidence understanding of the group of emerge the context of the Law
10.639/03 and their ability to contribute to overcoming racism in Brazilian school. The
group of teachers in continuing education has highlighted the difficulties pointed to
bring about the thematic in their teaching practices. The outcomes of the research
indicate include of the theme in school curriculum no longer causes so much
strangeness for teachers in initial or continuing education, although still face difficulties
of various orders.
1
Trabalho originalmente apresentado como comunicação oral no VIII Congresso Brasileiro de
Pesquisadores(as) Negros (as), na cidade de Belém do Pará – Brasil, entre 29 de julho e 02 de agosto de
2014.
2
Doutoranda em Educação; Programa de Pós -Graduação em Educação da Universidade Federal de
Pernambuco/ Núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica; Estudos financiados pela
FACEPE.
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Key words: Teacher training; curriculum policy; history teaching; African-Brazilian
culture.
Introdução
Aprendemos com Paulo Freire (2011), que sendo uma prática social, a educação
ou o agir educativo de cada povo ou nação, pauta-se pelas condições e necessidades
postas em seus contextos e em seu tempo. Estudos realizados por Gatti, Barreto e André
(2011) sobre as políticas docentes no Brasil apontam que as novas realidades
contemporâneas, preocupadas com a educação como um direito humano e entendendo o
direito à educação como o direto à diferença (inclusive curricular) solicitam um novo
perfil docente e incidem diretamente nos currículos que circulam tanto nas escolas,
como nas instituições formadoras.
Gatti, Barreto e André (2011) afirmam que os modos de gestão do currículo,
constitui uma das maneiras por meio das quais a política docente se efetiva, se
materializa, ganha vida. As autoras apontam indícios de que o currículo é um território
em disputa social, e que esta disputa pode ser percebida inclusive a partir da concepção
de currículo defendida por cada uma das partes interessadas. Nos referenciais nacionais,
embora se busque responder a demanda social de inserção de questões como pluralidade
cultural, gênero e sexualidade, meio ambiente entre outros temas atuais, o currículo
ainda é estruturado de forma dicotômica e hierárquica. De um lado estão as áreas do
conhecimento e de outro os temas transversais.
Ao contextualizar as questões sobre políticas curriculares da diversidade e
políticas da igualdade, no conjunto das políticas de formação docente do governo
federal, Gatti, Barreto e André (2011) põem em evidência, a tensão existente entre esses
dois campos e a predisposição do Ministério da Educação (MEC), em romper com o
dualismo e ofertá-las de forma articulada, em que pese o fracasso dessa articulação,
identificado na análise das autoras.
Todavia, a oferta de políticas focais para a população negra incide diretamente
na oferta de políticas universais, uma vez que esta população constitui a maioria da
população brasileira e que a literatura pertinente revela que as práticas racistas na escola
são um obstáculo para a aprendizagem de alunas e alunos negros/as, quando não os
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afasta desse espaço.
específicas não
Por outro lado, consideramos que a oferta dessas políticas
se destinam apenas as populações específicas que beneficiam
diretamente.
Sejam elas voltadas para as relações de raça, de gênero, de sexualidade, de
geração, de inclusão ou qual quer outra subjetividade humana, destina-se ao benefício
de toda a população brasileira. O que se busca é que se repensem as bases das relações
étnico/raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no
Brasil. O que caracteriza a importância da implementação dessas políticas curriculares,
portanto, da formação de professores sobre tais temáticas específicas.
Dentro desse contexto, a última década tornou-se palco do desencadeamento de
uma série de processos e ações educativas, de diversas ordens e nos diversos níveis de
ensino, com vistas à implementação da legislação educacional brasileira4 , no que se
refere à inclusão da educação para as relações étnico-raciais e do ensino de história e
cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares.
Algumas dessas
ações foram fomentadas, estimuladas e/ou financiadas pelo MEC por meio de editais5 .
Nas pesquisas e estudos que se preocupam com essa questão6 a formação de professoras
e professores ganha centralidade no debate, aparecendo em duas perspectivas: ora como
maior obstáculo a ser enfrentado, ora com uma estratégia relevante para garantir o
sucesso do processo de implementação da legislação. Os resultados dessas pesquisas
revelam a importância dos processos formativos na constituição da prática docente,
discente e gestora da instituição escolar, tanto na sua dimensão inicial, quanto na
dimensão continuada.
Diante da realidade descrita propomo-nos a refletir sobre a formação docente
referente à temática da história e da cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a
promulgação da Lei nº 10.639/03. Nosso interesse é conhecer os olhares de professoras
e professores em formação sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira na atualidade.
Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e
professores em formação inicial e continuada. O grupo em formação inicial é oriundo de
4
Em 2003 é promulgada a Lei nº 10.639 que introduz na Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da
educação Nacional, o Art. 26A que determina a obrigatoriedade do ensino do estudo de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Em 2008, a promulgação da Lei nº 11.645 altera o mesmo Art. 26A,
estendendo a obrigatoriedade para o ensino de histórias e culturas dos povos indígenas.
5
Ver Gomes (2009); Gatti, Barreto e André (2011).
6
Silva (2009a, 2009b); Oliveira (2011); Gomes (2012); Gonçalves e Silva (2013) entre outros.
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dois cursos de licenciatura (Educação Física e Ciências Biológicas) em uma instituição
particular, que seguindo as recomendações do MEC para garantir uma boa avaliação
conceitual dos cursos, incorporou em 2011 a matriz curricular das licenciaturas a
disciplina denominada “Educação e Cultura Afro-Brasileira”. As produções desse grupo
foram 19 avaliações dissertativas respondidas por esses sujeitos e utilizadas como
instrumento de verificação da aprendizagem dos conteúdos ministrados na referida
disciplina.
O grupo em formação continuada atua nas redes públicas de ensino de 05
cidades do estado de Pernambuco e participaram do curso de extensão “Educação das
Relações Étnico-Raciais”.
Brasileiros
da
O curso foi oferecido pelo Núcleo de Estudos Afro-
Universidade Federal Rural de Pernambuco
(NEAB/UFRPE) e
financiado pelo MEC. As produções desse grupo foram 05 diagnósticos da realidade das
escolas nas quais estão inseridos, sobre a temática das relações étnico-raciais. Escritos
em equipes, os documentos possuíram o objetivo de subsidiar o planejamento das aulas
do curso, no módulo “Metodologia para Educação das Relações Étnico-Raciais e o
Ensino da História e da Cultura afro-brasileira” e orientar as ações do grupo em suas
realidades.
O procedimento realizado foi a análise documental e utilizamos como fonte as
avaliações dissertativas e os diagnósticos produzidos em ambos os processos
formativos. Para o tratamento e organização dos dados adotamos a análise de conteúdo
na perspectiva de Bardin (2007), por meio da análise temática.
O artigo está organizado em três sessões: na primeira parte realizamos uma
discussão teórica por meio da qual buscamos enfatizar os 12 anos da Lei 10.639/03,
como construção de uma política de educação para as relações étnico/raciais no Brasil,
texto no qual as categorias política curricular e formação docente ganham relevo. Na
segunda e terceira partes trazemos os resultados da análise da percepção das professoras
e
professores
em
formação
inicial
e
continuada,
respectivamente,
sobre
a
implementação do ensino de história e cultura afro-brasileira na atualidade.
12 anos da Lei nº 10.639/03: construindo uma política de educação para as relações
étnico/raciais no Brasil.
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As
iniciativas
educativas
empreendidas
pelo
Movimento
Social
Negro
Brasileiro, ao longo da história do país, são indícios de que esse movimento social
sempre considerou a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de
seu povo. Além de promover os seus próprios processos de escolarização, reivindicou e
continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os
níveis de ensino. Entretanto, como se sabe, o espaço escolar é marcadamente
discriminatório
para essa população,
resultando num aproveitamento desigual e
exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o sucesso escolar
(PAIXÃO, 2008).
Ao perceber que o tipo de política educacional adotado no Brasil desconsiderava
a população negra, a atuação do movimento negro brasileiro no século XX elegeu a
educação como uma forte bandeira de luta e buscou evidenciar a necessidade de
introduzir o estudo da História da África nos currículos escolares; discutir o papel da
professora e do professor na descolonização do ensino; e considerar a aprendizagem
pela prática cultural como elemento importante para o sucesso do processo de
ensino/aprendizagem da população negra7 .
O início do século XXI é marcado pela transformação, ainda que lenta, das
antigas reivindicações dos movimentos negros em políticas públicas. No âmbito da
educação, a promulgação da Lei nº 10.639, em 9 de janeiro de 2003, é uma conquista
histórica desses movimentos (SILVA, 2009a).
A partir das reivindicações de acesso da população negra à instituição escolar e
da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares, os movimentos
negros brasileiros problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias na
escola, principalmente quando essa instituição nega a existência da diferença em seus
domínios. Revelou a
heterogeneidade da escola e enfatizou a história de luta e
resistência da população negra (uma vez que a escola apenas oferecia a história de sua
escravidão) e a centralidade da cultura nos processos educacionais do povo negro.
De acordo com Nilma Gomes (2010, p. 04):
Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos
os males, porém, ocupa um lugar importante nos processos de produção de
conhecimento sobre si e sobre “os outros”, contribui na formação de quadros
intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério
de seleção de uns e exclusão de outros.
7
Proposições resultantes dos debates realizados no VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste,
realizado no Recife, em julho de 1988.
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É
nesse
sentido
que
compreendemos
o
processo
de
instituição
da
obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira como parte do embate
histórico empreendido por este movimento em busca de caminhos possíveis para a
construção e o fortalecimento de uma identidade étnico-racial positiva para a população
negra no Brasil. Ou dito de outra forma, como resultado das lutas do Movimento Social
Negro contra o racismo existente na sociedade brasileira.
A alteração da LDB 9394/96 pela Lei nº 10.639/03, como lembra Gonçalves e
Silva (2013 p. 2) “trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de reparação
de desigualdades”. E não por outro motivo, 10 anos após a institucionalização da
política ainda são muitas as dificuldades elencadas pelos secretários de educação, como
anuncia Gomes (2010), para dar corpo à gestão da diversidade em seus sistemas de
ensino. Tais dificuldades embora sejam indicativas das disputas e negociações
permanentes em torno da construção do texto e das vivências das práticas curriculares,
também apontam para o desconhecimento dos documentos que regulamentam a Lei – o
Parecer nº 03/2004 e a Resolução nº 01/2004 –, ambos emitidos pelo Conselho Nacional
de
Educação
(CNE).
Neles
encontramos
orientações
fundamentais
para
a
implementação e consolidação da política curricular.
O Parecer CNE/CP 03/2004 foi elaborado sob a responsabilidade da professora
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva8 , a partir de ampla consulta a diversas pessoas e
grupos do Movimento Social Negro, Conselhos Estaduais e Municipais de Educação,
professores que desenvolvem trabalhos sobre a temática das relações étnico-raciais
(GONÇALVES E SILVA, 2006 apud GOMES, 2009). O documento oferece caminhos
possíveis para que os sistemas de ensino tenham parâmetros e condições de efetivar os
preceitos da Lei nº 10.639/03. Explicita os princípios orientadores da política
educacional e faz recomendações para a formação de professoras e professores, a forma
e os conteúdos que devem ser abordados, a necessidade de investimentos em pesquisas,
bem como a produção e aquisição de materiais didáticos.
8
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é reconhecida ativista e intelectual da causa negra. Pesq uisadora
das relações étnico-raciais e africanidades brasileiras, é professora titular de Ensino -Aprendizagem das
Relações Étnicorraciais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integra o Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros/UFSCar.
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Por sua vez, a Resolução CNE/CP 01/2004 fundamentada no referido parecer,
institui
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que devem ser
adotadas pelas diversas instituições de ensino, inclusive aquelas que atuam em
programas de formação inicial e continuada de professoras e professores. Destaca que o
cumprimento das referidas diretrizes será considerado na avaliação das condições de
funcionamento das instituições de ensino. Apresenta os objetivos de cada uma das
temáticas em questão, aponta as atribuições de cada ator dos sistemas de ensino e indica
possíveis
parceiros
para subsidiar e trocar experiências com os sistemas e
estabelecimentos de ensino na implementação da política, tais como: os grupos do
Movimento Social Negro (inclusive grupos culturais), as instituições formadoras de
professoras e professores e os núcleos afro-brasileiros de estudos e pesquisas.
Como é possível notar essa política curricular propõe-se a modificar a escola,
mexendo com a estrutura da instituição, uma vez que exige a mudança de atitude dos
atores da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de atuação.
Ainda segundo Nilma Gomes (2009, p. 40):
Com avanços e limites, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma
inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de política até
então pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação
afirmativa voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura negras.
Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui elemento estruturador das
relações sociais e institucionais que foram estabelecidas no Brasil, podemos concluir
que, por consequência, a política curricular do ensino de história e cultura afro-brasileira
propõe modificações para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse
princípio, não será difícil compreender o nascedouro das dificuldades vivênciadas e
enfrentadas no exercício de sua implementação. Como assinala Gonçalves e Silva
(2013, p. 2):
Uma sociedade cuja herança da colonização europeia é valorizada não como um dos
componentes da cultura nacional, mas como aquele em que todos deveriam
privilegiadamente se pautar, os descendentes de europeus estão convencidos de que os
valores, conhecimentos, tradições que herdaram de seus avós migrantes são universais.
E nesse sentido, a política põe em evidência o questionamento ao modelo único
de escola e dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos curriculares, bem
como as “dificuldades frequentes de pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais,
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notadamente brancos e negros, indígenas e não indígenas conviverem em relações de
igualdade e respeito” (GONÇALVES E SILVA, 2013 p. 2). Motivo pelo qual, como
sugere Oliveira (2011), ela é um instrumento que pode criar as condições para a
transformação das relações de subalternidade na educação brasileira, pois se propõe a
ampliar o foco dos currículos, assumindo novas abordagens interpretativas sobre a
identidade nacional, com alguns pressupostos não-eurocêntricos.
Nesse processo, a formação docente ganha papel relevante, uma vez que “o
desafio de contar e aprender uma história outra e fazer dela um elemento de novas
perspectivas políticas, epistemológicas e indenitárias nos processos educacionais”
(OLIVEIRA, 2011, p. 11) não está mais apenas a cargo dos movimentos negros, mas de
todos os profissionais da educação. Todavia, concordamos com o autor que este
continua sendo um campo de disputas, conflitos e negociações. E, portanto, “a produção
de novas enunciações e espaços de enunciações” dependerá durante muito tempo ainda
da capacidade de luta e organização coletiva da população negra brasileira para dar
materialidade à intencionalidade da Lei e suas diretrizes.
Gatti, Barreto e André (2011), afirmam que as preocupações com a educação,
com a formação de professores e suas condições de trabalho aparecem como uma
questão importante na sociedade atual, exatamente por que resultam das “demandas e
das pressões de variados grupos sociais” (p. 13). Ao lado do Movimento Social Negro e
do Movimento Social Indígena, os Movimentos Sociais do Campo, destacados no
trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), se constitui exemplos dessas demandas e
pressões.
Convidando-nos a refletir sobre os sentidos e significados de uma educação
contextualizada, Socorro Silva (2009) identifica e reconhece os Movimentos Sociais do
Campo como protagonistas da construção e desenvolvimento de práticas pedagógicas
voltadas para a educação do campo, inclusive no que se refere à elaboração de um
marco jurídico específico para essa educação, assim como dá visibilidade e audibilidade
às Escolas do Campo e suas práticas, temáticas como bem lembram Gatti, Barreto e
André (2011), ainda silenciadas no âmbito da formação de professores e da prática
pedagógica. Assim, uma das contribuições da autora para este campo de pesquisa é
exatamente o questionamento ao modelo único de escola que não mais condiz com a
realidade e as necessidades contemporâneas da educação brasileira, nem no campo e
nem na cidade.
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Todavia, as novas exigências ao trabalho docente e entre elas a obrigação de dar
conta das diferentes diversidades, ainda assustam e incomodam docentes e outros
profissionais da educação que habitualmente foram preparados para lidar com a
igualdade e não com a diferença. É nesse contexto que desejamos conhecer os olhares
das professoras e professores em formação sobre a implementação da política curricular
que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira.
A Lei Nº 10.639/03 na Percepção de Professoras e Professores em Formação Inicial
12 anos após sua Promulgação
Na leitura dos documentos produzidos pelas professoras e professores em
formação inicial buscamos evidenciar o entendimento do grupo sobre o contexto de
surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas possibilidades de contribuir para a superação do
racismo no espaço escolar.
Identificamos três dimensões de referência à compreensão do contexto que são
apresentadas pelo grupo em suas respostas: (1) o reconhecimento da luta do movimento
social negro;(2) a repetição do discurso legal sobre a temática; e (3) o reconhecimento
da diferença cultural entre os povos. Cabe ressaltar que estas respostas foram
produzidas em situação de avaliação, que tinha como fonte de inspiração as vivências e
os textos discutidos ao longo da disciplina. Portanto, tendem a refletir o entendimento
construído ao longo desse processo formativo.
Compreender o contexto de promulgação da obrigatoriedade do ensino de
história e cultura afro-brasileira como reconhecimento da luta do movimento social
negro, expressa o protagonismo desse movimento social, mas também revela a solidão
da população negra na luta antirracista no Brasil, como é possível notar nas falas que
seguem:
Uma conquista histórica para o Movimento Negro Brasileiro, que tanto lutou para ela
ser obrigatória no contexto da escola. (PFI 3)
O surgimento dessa lei partiu de muitas batalhas travadas pelos negros em busca de um
ideal, uma identidade, do reconhecimento histórico de seu povo e sua importância no
âmbito social, demostrando seus interesses para uma adequação antirracista nos s eus
direitos como qualquer cidadão. (...) É um marco que se faz necessário e de extrema
importância para o entendimento histórico que precisamos ter sobre essa realidade. (PFI
7)
Ainda que considerando a solidariedade e comprometimento de pessoas e grupos
antirracistas de outros pertencimentos raciais, que foram/são aliados do Movimento
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Negro nesse processo, como já afirmamos em trabalho anterior, não se pode negar que
as preocupações com as relações que se desenvolvem entre a educação e a questão
étnico-racial fora do âmbito do Movimento Social Negro são muito recentes (SILVA,
2009b).
Outra ideia importante que esta compreensão do contexto revela é o
entendimento de que a atuação do movimento social negro incidiu na construção da
política pública de educação, como mostra uma das professoras: “essas leis foram
formadas através de grupos, onde cada grupo tinha o objetivo de defender sua etnia.
Passam a vigorar no Brasil com o intuito de minimizar o preconceito, o racismo e a
discriminação” (PFI 1).
Uma ideia que dialoga com o trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), quando
em seus achados a autora reafirma a Educação do Campo como conquista de um direito,
originária dos movimentos sociais do campo, os quais conseguiram implementar
práticas pedagógicas local e nacionalmente, transformando-as em política educacional.
Aponta, portanto, para um contexto político/temporal no qual, por meio de suas diversas
formas de organização e luta, as demandas dos movimentos sociais específicos vão
ganhando contornos de política pública.
Uma segunda dimensão do contexto encontrada nas respostas do grupos em
formação inicial é a repetição do discurso legal sobre a temática. Aqui é importante
destacar que quando falamos em discurso legal, não estamos nos referindo apenas e
especificamente ao que diz a legislação sobre o assunto, mas também ao que pode ser
considerado como o “politicamente correto” sobre o contexto de surgimento da Lei,
como é possível verificar no texto que segue:
A lei aborda o contexto das relações étnico-raciais brasileiras, como política
educacional de promoção da igualdade racial, incluindo a questão étnico -racial nas
metas educacionais. Com uma abordagem de se ter um discurso sem distinção, chega -se
a escola onde tudo começa a ser distinguido para que sejam compensados processos
desiguais entre a população brasileira.
(PFI 6)
Em que pese nossa fonte documental tratar-se de uma avaliação, chama nossa
atenção o fato de algumas professoras e professores trazerem uma síntese sobre o
assunto tal qual os textos discutidos e utilizados para inspiração, sem demostrar suas
compreensões sobre o contexto, já que o instrumento avaliativo solicitava o seu
entendimento.
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Por fim, a terceira dimensão apresentada sobre o contexto de surgimento da
política curricular em questão indica o reconhecimento da diferença cultural entre os
povos, entendido como necessidade para possibilitar o diálogo entre culturas, conforme
os textos a seguir:
O contexto geral vem do pensamento de ensinar para combater o racismo dentro do
currículo escolar e mostrar, de forma geral, que podemos ter culturas diferentes, mas
não existem culturas superiores (PFI 4);
Surgiu a partir do interesse ao conhecimento histórico e cultural dos nossos ancestrais,
tornando mais claro a nossa miscigenação racial e cultural, valorizando mais o
conhecimento e estudo da nossa cultura (PFI 5);
Esta compreensão do contexto se aproxima do que o militante afro-equatoriano
Ruan García tem se referido como o conhecimento casa a dentro. Segundo Walsh
(2007), Garcia utiliza essa expressão para designar os processos internos das
organizações e comunidades para construir e fortalecer um pensamento e um
conhecimento próprios. Para o afro-equatoriano, sem conhecimentos próprios não
podemos construir a interculturalidade. Se não temos conhecimento casa a dentro, não
podemos dialogar com outros conhecimentos casa a fora9 .
No que se refere às possibilidades da obrigatoriedade do ensino de história e
cultura afro-brasileira contribuir para a superação do racismo no espaço escolar, as
professoras e professores em formação inicial são unanimes: acreditam que o
conhecimento sobre as culturas permite construir novas visões de mundo e, portanto,
construir novas visões sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial, ainda
que reconhecendo os limites e morosidade da Lei nesse processo, como é possível
notar:
Sim, as pessoas têm que entender que todos nós descendemos de alguma cultura, e a
diferença entre culturas não nos torna diferentes. A forma certa de tratar disso é
exatamente essa, ensinando as culturas . (PFI 4)
Creio que sim. Pois tendo um conhecimento de nossas culturas e origens, veremos que
nossa formação cultural, social, religiosa e “racial” parte de uma grande mistura de
povos e culturas. Com o estudo das culturas teremos um conhecimento cultural maior e
um respeito a mais com as diferentes culturas, “raças” e credos . (PFI 5)
Sim, pois os indivíduos passam a ter o conhecimento da cultura e sendo assim passa a
ter uma nova visão sobre o preconceito e o racismo. (PFI 1)
9
Alguns autores/as afro-brasileiros, como Célia Azevedo, têm se referido a esses mesmos processos com
os termos “da porteira pra dentro” e “ da porteira pra fora”.
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A lei é um excelente passo para o início da “extinção” do preconceito racial. (...) O
conhecimento é a chave para acabar com a ignorância. Entretanto, querendo ou não o
preconceito racial vai ser muito difícil de se extinguir. (PFI 2)
Consideramos importante destacar a ideia contida nesta última fala sobre a
implementação da política curricular como passo inicial. De acordo com a resposta do
professor, é possível inferirmos que embora o conhecimento seja importante nesse
processo, ele não conjuga todos os elementos necessários para a produção de práticas e
comportamentos antirracistas.
Compreensão que dialoga com os achados de nossa pesquisa (2009a), na qual as
professoras entrevistadas consideraram que as atividades por elas desenvolvidas no trato
às relações étnico-raciais na sala de aula contribuem para a superação do racismo no
espaço escolar, embora sejam mínimas considerando a grandiosidade do problema, e
necessitem de aprofundamento.
Parece-nos, portanto, que o que está em xeque quando se questiona a capacidade
de mudança a ser produzida pelo conhecimento sobre a cultura afro-brasileira é a forma
como ele está sendo oferecido. Ou seja, é a qualidade desse conhecimento que está
sendo disseminado no espaço escolar. Aspecto que podermos melhor aprofundar ao
analisarmos a percepção das professoras e professores em formação continuada sobre a
implementação da temática no espaço escolar.
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no Espaço Escolar: a percepção de
professoras e professores em formação continuada
Uma primeira leitura dos dados da realidade escolar produzidos pelas
professoras e professores em formação continuada logo nos revela as aproximações que
podem ser feitas entre os diagnósticos apresentados10 . Guardadas as devidas
singularidades, há semelhanças entre as realidades das escolas, que se localizam na
periferia de grandes cidades, na região central de cidades menores, ou em suas áreas
rurais. Os alunos são apresentados, em sua maioria, como sendo das camadas populares
ou de baixa renda, possuindo pouco acesso a atividades de lazer e em alguns casos
desenvolvendo tarefas para contribuir com o orçamento familiar ou compartilhando as
10
Documento escrito sobre a realidade escolar nas quais os profissionais estão inseridos. Produzido em
equipe e com a finalidade de apresentar um olhar diagnóstico sobre as relações étnico-raciais em cada
espaço. O roteiro de elaboração foi sugerido pelas professoras formadoras do curso e serviu para orientar
as suas aulas.
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responsabilidades domésticas com seus familiares. Em relação ao pertencimento racial,
são descritos, majoritariamente, como negros e negras (pretos/pardos), embora boa parte
não se percebam assim.
Para o aprofundamento da análise três temáticas ganharam destaque: (1) a
percepção dos docentes sobre as relações étnico/raciais na escola; (2) a existência ou
não de atividades relacionadas a história e cultura afro-brasileira e africana; e (3) as
dificuldades encontradas para a implementação do trabalho pedagógico.
No que se refere às relações raciais na escola, notamos que ainda existe
resistência para o enfrentamento a questão posta. É difícil para os profissionais
reconhecer a existência de manifestações de preconceito, discriminação e racismo em
seu espaço escolar. E quando há o reconhecimento, essa percepção aparece quase
sempre na relação entre os estudantes como indica o depoimento a seguir: “Entre eles
não percebo a discriminação direta, ou seja, nunca ouvi os chamarem de negros ou
soltar piadas, pelo menos em sua maioria” (D3). O conflito é quase sempre negado.
Quando aparece no texto, é como uma ação que excede a regra, conforme descrito no
diagnóstico 4: “Há um certo respeito às diferenças, em parte pelas regras estabelecidas
pela escola, mesmo assim acontece esporadicamente casos de preconceito (são
raríssimos)”.
De acordo com os diagnósticos, a maior parte das escolas não possuem um
trabalho sistemático em relação à implementação do ensino de história e cultura afrobrasileira e africana, ou mesmo sobre as relações étnico-raciais. Em uma instituição o
trabalho é realizado de forma pontual e solitária, dentro da sala da professora ou
professor, em outra a temática nunca foi discutida, conforme a afirmação a seguir:
“nunca houve um trabalho voltado para o tema das relações raciais. Não há profissional
que aparentemente se interesse pelo tema. A gestora não interfere e nem opina para que
a temática seja desenvolvida, embora apoie qualquer iniciativa de professores” (D2). Há
também o caso das escolas nas quais os profissionais afirmam a existência de algum
trabalho coletivo, conforme podemos ver:
Houve um projeto que envolveu alunos, pais, sociedade corpo docente etc. com o
objetivo de conscientizar e valorizar os elementos da cultura afrodescendente e
indígenas e também apresentar a Lei 10.639/03 fazendo valer seus direitos e valores.
(D1)
Durante o ano de 2012, além das discussões na disciplina Direitos Humanos, realizamos
oficinas com a temática, e um café filos ófico com o tema “racismo”, foram debates
muito interessantes. (D4)
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Nestes casos, as atividades são pontuais e as referências são feitas em relação ao
tempo passado, em que pese ambos os diagnósticos afirmarem que as escolas
desenvolvem um trabalho
que acontece periodicamente: “todos os profissionais
trabalham a temática bimestralmente nas salas de aula, com debates, pesquisas, mural
etc.” (D1); possuindo o envolvimento de todos os professores e em todas as áreas de
conhecimento: “a escola trabalha esse tema não somente nas ciências humanas, mas em
todas as áreas do conhecimento. O estudo desse tema está inserido no planejamento da
escola”. (D4) Todavia, não apresentam maiores detalhes que possam nos ajudar a
encontrar a consistência do trabalho em questão.
Existem ainda escolas que tiveram instituída uma disciplina específica sobre a
temática na matriz curricular de sua rede de ensino, mas que reconhecem que o trabalho
desenvolvido é ainda “inicial e tímido”. “A partir do ano de 2011, foi inserida na matriz
curricular a disciplina sob a denominação “História das Culturas Afro e Indígena”, e
vem sendo abordada sem o devido entusiasmo (...) infelizmente ainda não avançamos o
desejável na abordagem da temática” (D5).
No caso dessa rede de ensino o documento ainda acrescenta que a disciplina é
ministrada pelos professores de história do Brasil e estes profissionais “desde o início
reclamam a falta de ajuda pedagógica para melhor conduzir os conteúdos propostos”.
Embora apresentem algumas notícias de atividades desenvolvidas, a maior parte
dos diagnósticos: a) Não deixa evidente a existência de um trabalho sobre a temática; b)
Não traz os elementos da ação; e c) Não discute as circunstâncias nas quais a temática
foi, ou não foi inserida na escola.
Quando enfocamos as dificuldades encontradas para a implementação do
trabalho pedagógico. Os problemas apresentados são muito parecidos e alguns já bem
conhecidos e discutidos nesse contexto: falta de formação para os profissionais, falta de
material didático, falta de parceiros para a realização do trabalho, falta de apoio da
gestão escolar, entre outros.
Além desses problemas, o processo de construção identitária dos sujeitos que
compõem o espaço escolar é lembrado como uma dificuldade para a implementação da
temática, como é possível notar neste relato: “O tema não é facilmente desenvolvido
porque a escola tem professores e alunos (maioria) negros, mas que não se declaram
negros, não são receptivos com o assunto e não tentam desenvolvê- lo” (D2).
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Entretanto, um aspecto merece destaque: diz respeito à forma como as
professoras e professores veem a relação entre o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana e as religiões de matriz africana. De forma geral, a ligação
estabelecida entre estes dois campos aparece como sendo a grande dificuldade a ser
enfrentada na implementação de um trabalho sobre a temática. As professoras e
professores afirmam que:
[são dificuldades] A falta de aceitação dos educadores e educandos, a associação feita
entre a cultura afro e o candomblé e a rejeição por parte dos evangélicos. (D1)
As maiores dificuldades em trabalhar tal temática está no preconceito velado que ainda
existe na nossa sociedade como um todo, e também na formação cultural das famílias
que fazem parte da escola. Mas o ponto mais crítico dessa discussão é a religião. (D4)
Como já indicamos em trabalho anterior (SILVA, 2009a), as religiões de matriz
foram (e ainda são) sistematicamente apresentadas à população brasileira como práticas
demoníacas, associadas à bruxaria e à loucura, causando medo naqueles que não a
conhecem). A depreciação dessas práticas religiosas configura-se como uma forma de
manifestação do racismo, uma vez que é fundamentada pela classificação de “coisa de
nego”, que neste caso possui a conotação de “coisa do mal”.
Consideramos
que
esta
é
uma
situação
bastante
delicada,
pois
múltiplos são os casos de preconceito religioso que acontecem no espaço escolar. De
forma que a associação entre cultura afro-brasileira e religiões de matriz africana têm
servido como justificativa para a rejeição da abordagem da temática no espaço escolar.
Entretanto duas considerações merecem ser feitas: a primeira é que como destaca o
diagnóstico 2, “na prática, não se pode confirmar 100% a rejeição do assunto, uma vez
que nunca foi abordado nem desenvolvido por ninguém”. A segunda é que as
religiões de
para ensinar
matriz
africana
são a base da cultura afro-brasileira.
E
dessa
forma,
história e cultura afro-brasileira os profissionais da educação de fato
precisam se aproximar desse campo temático, não como sistema religioso,
mas como
manifestação cultural dos povos negros.
Considerações Finais
As aproximações da produção das professoras e professores em formação, seja
ela inicial ou continuada, apontam indícios de que 12 anos após a instituição da
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, a inclusão dessa temática
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nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento. Ou seja, parece-nos que esta
realidade é indicativo de que, embora a Lei ainda não esteja sendo implementada em
todas as escolas, ou aconteça de forma vulnerável em alguns contextos, existe um
debate público instalado sobre esta questão na sociedade brasileira.
Nenhuma professora ou professor que participou do nosso estudo questiona, por
exemplo, se existe ou não existe racismo no Brasil, como acontecia há alguns anos. Em
seus discursos aparece inclusive a cobrança em relação ao ensino de história e cultura
afro-brasileira ainda não ser vivenciado pela maioria das escolas. Em sintonia com uma
formação específica, esses docentes construíram um discurso sobre a importância da
inclusão da temática no espaço escolar, embora ainda apresentem dificuldades para
vivenciar esse currículo. O que é indicativo de que estamos vivenciando um momento
de mudança, de transição.
Tomando a grande quantidade de atividades, programa, projetos e ação que
foram desencadeadas pela legislação e pela política curricular para o ensino de história e
cultura afro-brasileira (entre as quais se encontram os processos formativos que
constituíram o universo desse estudo), parece-nos que não de forma tranquila, mas a
disputa curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das escolas.
Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações educativas nem sempre apresentam
distanciamentos significativos das práticas eurocêntricas que produziram a suposta
inferioridade da população negra no Brasil.
Situar a formação docente no mundo contemporâneo apresenta-se como uma
possibilidade
para
avançar
nesse
processo.
Um
mundo
que
se
caracteriza
fundamentalmente como um espaço de trocas, disputas e negociações permanentes
(entre pessoas e grupos), sejam elas políticas, econômicas, sociais ou culturais.
Um
mundo, como afirma Nestor Canclini (2009), que cada vez mais reconhece e afirma as
identidades, as subjetividades e/ou as diferenças, mas mantém intactas as desigualdades.
Nesse mundo, a problematização de questões conceituais vinculadas a prática docente e
a produção do conhecimento histórico acerca da temática, nos parece constituir desafios
atuais a serem enfrentados no campo da formação de professoras e professores, tanto
inicial quanto continuada.
Consideramos que não basta a incorporação de conteúdos relativos à temática
nos currículos escolares, sem uma ampla reflexão sobre para que ensinar, por quê
ensinar, o quê e como ensinar sobre educação das relações étnico-raciais e história e
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cultura afro-brasileira.
Uma questão fundamental para não corrermos o risco de
continuar reproduzindo a subalternização da população negra, nos parece ser a reflexão
sobre a perspectiva epistemológica que irá orientar a educação e o ensino. De qual
África, de qual afro-brasileiros, de qual cultura e de qual história falamos? Nesse
caminho, a explicitação e apropriação de princípios orientadores da atuação pedagógica
poderá constituir uma relevante estratégia.
Percebemos que a formação de professoras e professores (tal qual a vivenciamos
hoje) possui elementos que podem possibilitar uma incidência na prática docente, mas
não dá conta de incidir na inteireza da prática pedagógica, aqui concebida como define
Souza (2009): uma prática institucional, constituída pelas dimensões docente, discente,
gestora e epistemológica. A atuação docente, no que se refere à educação das relações
étnico-raciais e ao ensino de história e cultura afro-brasileira, ainda acontece de forma
voluntária e isolada, muitas vezes sem ultrapassar os limites da sala de aula. Investir em
estratégias que estimulem uma ação coletiva e institucional, além de fortalecer os
trabalhos individuais já existentes poderá evitar a descontinuidade e vulnerabilidade da
ação pedagógica.
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