A ESCUTA CINEMATOGRÁFICA DA CANÇÃO
Distant Voices/Still Lives
Rodrigo Fonseca e Rodrigues
RESUMO
A integração entre a canção e o cinema fornece um manancial expressivo para a
exploração de diferentes imbricações entre a ficção dramatúrgica, os ritmos pictóricos e
o universo cancional. Este artigo examina a consubstanciação criativa entre a canção e a
dramaturgia cinematográfica, apoiado pelas ideias de Michel Chion acerca da natureza
da canção e como ela diversifica o escopo expressivo do cinema - e vice-versa. A título
de corpus empírico, será abordado o filme Distant Voices/Still Lives (1988), de Terence
Davies, no intento de se demonstrar que a escuta cancional pode se transmutar
criativamente por razões cinematográficas.
PALAVRAS-CHAVE: cinema; canção; visualidade.
1. INTRODUÇÃO
A canção no cinema coexiste criativamente com muitas sonoridades: verbais,
ruidísticas, musicais ou mesmo com o silêncio. Quando incorporada ao filme, torna-se
partícipe de uma complexa rede de ritmos. Por esta razão, ela potencializa a própria
estruturação narratívica de um filme, fato que faz confluírem, na sua experiência, a
escuta musical e a escuta linguística. Algumas ideias pensadas por Michel Chion (2010)
apontam para certas distinções entre o imaginário e a imaginação, entre o ver/ouvir e o
imaginar/escutar em nossa experiência com o cinema. Esta será a condição conceitual
para nossa abordagem acerca da “escuta cinematográfica” da canção. À guisa de
ilustração, pela mútua intermitência entre o drama e o universo expressivo do canto,
elegemos o filme inglês Distant voices/Still Lives, dirigido por Terence Davies.
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2. A CANÇÃO CINEMATOGRÁFICA
O cinema é uma arte na qual todas as sonoridades e vocalidades possuem direito
de cidadania. No fluxo de impressões e ritmos da vida que se recriam nos filmes, a
canção, por sua forma simples e sintética, torna-se um elemento cinematográfico que
tem a prerrogativa de passear por toda a narrativa: cantarolada, entoada, individual ou
coletivamente, performática ou amadora, com ou sem palavras, que nasce ou se
interrompe por diversas formas, consoante as ideias da narrativa. No cinema, a canção é
um recurso totalmente específico e diferente de qualquer outra forma de música ou de
som articulado, já que pode se inserir em planos, ações, diálogos e não necessita de
pretextos complicados para se tornar presente numa cena. Uma canção pode ser
assimilada a uma pausa da ação ou como contraponto para uma outra ação paralela.
Cantada ou dublada, como performance artificial, realista, profissional ou amadora,
como “música de cena” (diegética), meta-diegética (cantada mentalmente, lembrada ou
sonhada), extradiegética (offscreen: escutada apenas por nós, espectadores), ela pode ser
editada para soar de diferentes maneiras, inclusive em aberturas ou durantes os créditos
finais. Mesmo se considerada kitsch, por exemplo, uma dada canção pode ser, por
razões cinematográficas, muito interessante num filme.
A importância e o papel da canção em relação aos outros elementos da ação, do
diálogo, do ruído são moduláveis e não raramente desligados de qualquer regra de
coerência diegética. Tal como a música, ela pode atuar como um elemento temático,
como um meio expressivo ou como um núcleo dramático e intenso no interior do filme,
podendo inclusive coincidir numa mesma película. A canção pode determinar o ritmo
formal de um filme ou mesmo criar uma “bolha de liberdade” que a desprende de suas
funções de concatenação entre cenas. No interior da duração fílmica, a canção pode
introduzir uma espécie de estilização do roteiro, por contrações ou dilatações dos
tempos da narrativa e da ação. A canção simboliza, no tecido do filme, algo finito,
passageiro e, por isso mesmo, susceptível de encerrar, em seus compassos e sua letra,
outras persistências mnemônicas. Os cineastas, de fato, não cessam de multiplicar e
explorar situações fílmicas que dão lugar à canção, porque o canto pode ressoar como
uma voz que se eleva afetiva ou expressivamente onde não alcançam isoladamente as
palavras ou a música. Daí a importância de se compreender a presença das canções e de
sua integração com a narrativa e os ritmos do cinema, tratando de se perguntar: por
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quais motivos a afetividade pelo canto encontra um meio receptivo e flexível no
universo cinematográfico.
3. DISTANT VOICES/STILL LIVES: O CANTO COMO EXPRESSÃO
NARRATÍVICA
Para além dos números musicais encenados, o cinema também aprendeu a
empregar expressivamente o “canto amador”, como designa Claudia Gorbman (2012).
São personagens que cantam em certas cenas dos filmes, da mesma forma como as
pessoas o fazem normalmente na vida. O canto amador é, para a autora, uma maneira
fácil de revelar ou sugerir a vida introspectiva, as motivações e identificações de uma
personagem, a conexão entre duas personagens ou a ligação comum entre um grupo de
personagens. Uma personagem cantando “sem treino” está, para Gorbman,
exteriorizando uma singularidade subjetiva.
Distant Voices/Still Lives, filme realizado entre 1988 e 1990 por Terence Davies,
evoca a vida de uma família de classe operária em Liverpool durante os anos quarenta e
início dos cinquenta. O filme é urdido e rodado em dois momentos, separados por dois
anos. Nestes trabalham basicamente o mesmo elenco. A primeira parte, Distant Voices,
relata as crônicas dos primeiros anos da família (o casal, duas meninas e um garoto),
sob um regime patriarcal opressor. A segunda parte, Still Lives, apresenta as crianças da
família agora já adultas, que perseveram nos seus dramas, vivendo episódios ora
fugazes, ora marcantes de suas existências. A ênfase dada à força comunal do canto e da
canção, num momento em que indústria fonográfica está estreitamente ligada à
cinematográfica (em especial, a hollywoodiana), constrói o núcleo principal do filme.
Este contexto é um dispositivo que delineia o perfil dos personagens e lhes dá a voz que
os ajuda a ultrapassar o confinamento de suas vidas parcas e reprimidas. O cineasta
optou por instaurar atmosferas íntimas, pessoais, passionais, de relações de poder e de
afeto, de encontros comemorativos, tencionando dramas individuais e sociais (no caso,
a Segunda Guerra, principalmente). A canção ganha outra intensidade quando é cantada
em comunhão, trespassando os achaques, o rancor, a humilhação, a nostalgia, a
esperança ou a saudade. Em certas circunstâncias, opera-se a performance do canto
como algo perfeito, com vozes profissionais. Noutras ocasiões, a canção soa terna,
apesar de tecnicamente imperfeita, com vozes de diferentes idades e timbres. Muitas das
canções foram cantadas à capela pelos próprios atores, individualmente, em dupla ou
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em grupo; outras soavam dos rádios ou vitrolas, conforme o repertório em voga pela
mídia da época. O filme captura a prática familiar da canção e dá um valor emocional
àqueles momentos nos quais uma canção é repetida em coro, sublinhando a dimensão
de um frágil equilíbrio, de harmonia efêmera. Os paradoxos de suas vidas se
potencializam em cenas nas quais há um “contraponto” entre a canção Taking a chance
on Love, cantada por Ella Fitzgerald, e uma cena de violência doméstica.
Desde o início da película, a canção se faz onipresente. O recurso do emprego da
voz off, ora como diálogos, ora como canto amador, amplia o espectro imaginativo do
espectador sobre a atmosfera onde vivem os personagens. A execução radiofônica,
também fora de campo, sobrepõe-se às imagens da chegada do carro fúnebre e do plano
fotográfico da família, aproximando-se até um close up no antigo retrato na parede,
seguindo-se a uma aparição posterior nesta mesma sala, numa ocasião festiva,
intercalando comentários diegéticos (onscreen) e metadiegéticos (em off), indicando que
a narrativa irá recorrer aos flashbacks e flashforwards para contar a história da família.
As situações comemorativas (bodas, natal, aniversários), cotidianas ou esdrúxulas
(durante um bombardeio sobre Londres) são todas permeadas pelo canto, a ponto de
percebermos uma intermitência do drama subjacente à latência das canções. São estas
que dão a liga afetiva aos liames de empatia entre os convivas. As tensões passionais se
amortecem durante o canto, que evoca memórias, saudosismo, como panaceias a
mitigarem as pequenas misérias inelutáveis, sob a pacata e frágil normalidade da vida
dos personagens. A opção estética de Davies aponta para a sugestão do poder da
melodia entoada e para a comunhão da memória comunal da canção, que abrem um
parêntese de superação dos dramas existenciais, algo como um hiato analgésico de
conforto perante as vicissitudes da vida comesinha. Nos momentos em que se canta,
instala-se um alento paliativo sobre o aspecto dramático da rotina e da condição de
classe social vivida pelos personagens: em meio ao trivial e inexorável destino, um
discreto fulgor de alegria irradia desse universo cancional.
4. CONCLUSÃO
A respeito dos problemas que envolvem a escuta e a visualidade conjunta nas
artes, o conceito de “audiovisão”, desenvolvido por Michel Chion (2010) e
posteriormente expandido para “audio-logo-visão”, assinala o processo cultural que
gerou nossas disposições simultâneas em ouvir/ver algo integrando não apenas os
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sentidos, mas os trabalhos da memória (lembranças, anamnese e reminiscências),
sensações, afetos ou experimentações do pensamento. No caso das formas de integração
entre a canção e o cinema, criam-se atividades muito específicas de escuta imaginativa.
A natureza imagética e dramatúrgica de Distant Voices/Still Lives provoca uma
infinidade de disposições da escuta face às canções, consoante às experimentações que
o cineasta realiza no movimento de sua expressão poética. Mais do que uma relação
combinatória entre som, música, voz, ficção, performances, imagem, a concepção de
modos de consubstanciação entre a canção e um filme parte da premissa de que o canto
nos faz visualizar a imagem de maneira diferente e que, em contrapartida, esta nova
visualidade nos faz escutá-la também diferentemente. Isto pode permitir-nos, como
afirma Chion, ver algo a mais na imagem – imaginar - ou ouvir algo a mais no som escutar.
THE CINEMATOGRAPHIC LISTENING OF THE SONG
Distant Voices/Still Lives
ABSTRACT
The connection between the song and the cinema provides a significant source
for the exploration of different imbrications between drama, pictorial rhythms and the
universe of singing in the movies. This article examines the creative consubstantiation
among the song and the cinematographic drama, supported by the ideas of Michel
Chion about the nature of the song and how it diversifies the expressive scope of the
cinema - and vice versa. As empirical corpus, we’ll discuss the film Distant Voices/Still
Lives (1988), directed by Terence Davies, in an attempt to show that listening to the
song can transmute under cinematographic reasons and, in turn, the visual qualities of
the performances originate from the singing can also promote different affects in
"audio-logo-visual " experience.
KEYWORDS: cinema; song; visuality.
REFERÊNCIAS
CHION, Michel. La musica en el cine. Madri: Espasa Libros, 2010.
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DOANE, Mary Ann. “A Voz no Cinema: a articulação de corpo e espaço” in: XAVIER,
Ismail (org.) A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
GORBMAN, Claudia. O canto amador. In: SÁ, Simone Pereira de; COSTA, Fernando
Morais da. Som + imagem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
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