Revista de Teatro
PORTO CÊNICO
ISSN 2177-0115
Edição nº 03 - ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
Dramaturgia
Pedagogia – Linguagem - Panorama
EXPEDIENTE
Revista Porto Cênico | Ano III | 2014
Uma revista de circulação nacional do Grupo Porto Cênico
Editoração Geral: Porto Cênico
Coordenação Editorial: Afonso Nilson de Souza
Jornalista responsável: Karoline Gonçalves
Conselho Editorial: Afonso Nilson de Souza (Dramaturgo), Aline Carolina
Barth (Porto Cênico), Fernanda Marcon (UFSC), Karoline Gonçalves (Porto
Cênico) e Valéria de Oliveira (Univali).
Colaboradores nesta edição: Afonso Nilson de Souza, Caroline Carvalho,
Gregory Haertel, Luís Alberto de Abreu, Lucienne Guedes, Marcelo
Romagnoli, Stephan Baumgartel e Valéria de Oliveira.
Projeto gráfico e capa: Leandro Maman
Foto da capa: Ana Beatriz de Oliveira
Produção de imagem: Porto Cênico
Editora: Casa Aberta
Revisão Geral: Janete Bridon
Agradecimentos:
SESC-Itajaí
Grupo Porto Cênico – www.portocenico.com.br
Fones: (47)9963-6530 | (47) 9954-9566
[email protected]
Valéria de Oliveira – Caroline Carvalho – Aline Barth
Karoline Gonçalves - Ana Beatriz de Oliveira Angelo.
SUMÁRIO
Apresentação
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ARTIGOS
Artigo 01 – Porto Cênico: uma década de expressão e trabalho
Caroline Carvalho e Valéria de Oliveira
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Artigo 02 - Breve Panorama da Dramaturgia Catarinense Contemporânea
Afonso Nilson Souza e Stephan Baumgartel
Artigo 03–O desafio do teatro para crianças e jovens
Marcelo Romagnoli
Entrevista
Com Luís Alberto de Abreu, por Lucienne Guedes
Dramaturgia
Texto “O último”, de Gregory Haertel
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
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APRESENTAÇÃO
Apresentação
A publicação da terceira edição da nossa revista representa um esforço focado em
registrar e promover questões acerca da dramaturgia, lugar tão discutido no ambiente
contemporâneo da produção teatral. Manter publicações como esta é participar da
construção de um arcabouço teórico que dinamiza, provoca reflexões e dá suporte às
diversificadas práxis de nossa profissão, como tantos outros registros, que se mantém
pelo país, organizados por coletivos teatrais, que estabeleceram dentro de seus planejamentos a importância da pesquisa e do próprio registro, bem como as excelentes
contribuições realizadas por acadêmicos do teatro. É nessa preocupação, observando
essa via de duas mãos, atuando com responsabilidade, que o Porto Cênico estabelece
como um de seus pilares de trabalho a produção da revista.
Nesta edição, tivemos o privilégio de contar com a parceria de Afonso Nilson de
Souza como coordenador. Como dramaturgo que é, ele soube fazer o recorte necessário para o nosso tamanho. Assim sendo, ele nos traz uma revista sobre dramaturgia
que aborda a pedagogia, com uma belíssima entrevista com Luís Alberto de Abreu. E,
ainda, nos outros recortes de linguagem e panorama, Afonso traz-nos uma leitura sobre
a dramaturgia feita para a infância, duas vozes sobre a dramaturgia pensada e realizada
em Santa Catarina - esse Estado que insiste de maneira brava e consistente em entrar
no mapa cultural do Teatro do Brasil. E, também, nossa revista preza pela publicação de
novas dramaturgias como é o caso do dramaturgo Gregory Hartel, além de apresentar
uma brevíssima história do Porto Cênico.
Manter uma publicação por um Grupo de Teatro, sem as devidas estruturas de financiamento, não é tarefa fácil, mas é igualmente um desafio que nos faz ir para frente!
Além disso, ela nos deixa orgulhosos por sabermos da nossa contribuição. Desejamos
que nossa experiência possa contribuir com o meio teatral e entusiasmar outros Grupos
do Brasil a promoverem diversificados saberes por meio de publicação, bem como de
suas próprias histórias.
Sim, nós existimos!
Sim o teatro existe aqui na cidade de Itajaí na bela e Santa Catarina!
Boa leitura!
Grupo Porto Cênico: Vale / Carol / Aline / Karol Riso / Ana.
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Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
Porto Cênico 2014:
Uma década de expressão artística e trabalho
Caroline Carvalho e Valéria de Oliveira
Precisamos de você
Aprende - lê nos olhos,
lê nos olhos - aprende
a ler jornais, aprende:
a verdade pensa
com tua cabeça.
Faça perguntas sem medo
não te convenças sozinho
mas vejas com teus olhos.
Se não descobriu por si
na verdade não descobriu.
Confere tudo ponto
por ponto - afinal
você faz parte de tudo,
também vai no barco,
“aí pagar o pato, vai
pegar no leme um dia”.
Aponte o dedo, pergunta
que é isso? Como foi
parar aí? Por quê?
Você faz parte de tudo.
Aprende, não perde nada
das discussões, do silêncio.
Esteja sempre aprendendo
por nós e por você.
Você não será ouvinte
diante da discussão,
não será cogumelo
de sombras e bastidores,
não será cenário
para nossa ação
Bertold Brecht
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
Salve as palavras de Brecht! São nelas que nos inspiramos
para falar sobre grupo. Sobre o nosso Grupo. Grupo, este
local de pertencimento que reúne um número de pessoas, com os mesmos sentimentos, que apresentam comportamentos diversos, que, por sua vez, são pertencentes
e próprios do teatro, procurando efeito sobre o espectador. Um grupo de pessoas que se mostra entendido e
pertencente a um único e mesmo lugar, o fazer teatral, de
forma artística, ética e estética e na compreensão de seu
papel de sociedade e como parte artística.
Nessa finalidade e para essa finalidade, formou-se o GRUPO TEATRAL PORTO CÊNICO, quando, há 10 anos, um
primeiro núcleo de pessoas desejou encontrar um lugar
não somente de fazer e pensar teatro, mas um local de
pertencimento e de permanência, onde o teatro se permite fazer parte e estar na vida desse coletivo. Definiu-se
o grupo, e junto dele construiu-se um Porto, local de chegadas e de partidas em que os artistas puderam e podem
aportar, contribuir com seu trabalho, acrescentar saberes
e práticas. Mas, como todo Porto, é possível que partam
conforme percebam ter finalizado seu trabalho por ali. Foi
assim, então, que nesses 10 anos, o Porto Cênico segue
acolhendo chegadas e partidas de pessoas, não perdendo
seu foco, o de ser parte de um coletivo que pensa, faz,
forma e promove teatro.
O Grupo busca por meio de experiências, nos campos
do fazer artístico e formativo, aplicar os conhecimentos já
adquiridos, bem como explorar novas possibilidades artísticas e estéticas para compor e provocar seu fazer teatral
e compor uma zona de contaminação. Como dinâmica
o grupo preza pela participação e efetiva integração de
todos que o compõem, possivelmente percebemos que
é natural que, dentre os envolvidos no grupo, tenhamos
essa percepção de um todo, um coletivo que caminha
para o mesmo lugar abrigando os desejos coletivos e individuais. Em uma estrutura de quatro pilares, o grupo
tem realizado nesses 10 anos: trabalho artístico, formativo, registro e produção. Para que os leitores saibam um
pouquinho de como foram esses 10 anos, descrevemos
uma breve, brevíssima linha do tempo com algumas de
nossas realizações.
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Fizeram parte efetiva dessa história: Valéria de Oliveira, Juliana Kuehn, Juliana Correa, Leandro Maman, Kavita Soares,
Mônica Longo, Sidnéia Kopp, Caroline Carvalho, Guilherme Peixoto, Osmar Domingos de Oliveira Neto, Paula Viena,
Priscila Demarch, Samara Sukoski, Victor Hugo de Oliveira Schoepping, Ana Beatriz de Oliveira Angelo, Aline Barth,
Karoline Gonçalves. Foram colaboradores: Pépe Sedrez, Roberto Morauer, Adair de Aguiar Neitzel, Marcelo de Souza,
Afonso Nilson de Souza e Magú Light.
Brevíssima Linha do Tempo: 10 anos de História
2014
•Estreia do espetáculo Bolsa Amarela (para infância) com
direção de Marcelo F. de Souza.
•Realização do IV Projeto de Formação Estética e Poética, oferecendo formação continuada em teatro, prática e
teórica aos artistas locais.
•Produção e lançamento da 3ª edição da Revista Porto
Cênico – Coordenação Afonso Souza.
•7ª edição do curso Princípios para atuação.
•Apresentação do espetáculo Bolsa Amarela na 1ª Feira do livro de Pouso Redondo, Feira do
livro de Timbó, Feira do
livro de Joinville, Aldeia
Palco Giratório – SESC Itajaí, 8º Itajaí em Cartaz (Itajaí/SC), e escolas do Vale do
Itajaí.
•Comemoração dos 10 anos
do Grupo Porto Cênico – Teatro Municipal de Itajaí.
•7ª edição do curso regular de
teatro Princípios para atuação.
2013
•Manutenção da Sede Espaço Teatral Porto Cênico.
•Estreia da Leitura Dramática e apresentações Boca de
Ouro (para adultos), projeto em parceria com o SESC e
Sua Cia de Teatro. Diretor: Osmar Domingos Neto.
•Produções da Revista Porto Cênico 2ª edição – Editora
Casa Aberta.
•Orientação para Leitura Dramática para a Universidade
do Vale do Itajaí.
•Realização do III Projeto de Formação Estética e Poética.
•7º Itajaí em Cartaz (Itajaí/SC), espetáculo Devoradores
de Livros.
•Realização do Circuito SESC Baú de Histórias – Turnê
por Santa Catarina, com o Espetáculo Devoradores de
Livros.
•II Seminário do Proler – Apresentação da Leitura Dramática Boca de Ouro.
•Lançamento da 2ª edição da Revista Porto Cênico Pensamentos sobre teatro.
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2012
•Coordenação do 6º Itajaí em Cartaz pela atriz do grupo
Valéria de Oliveira.
•Realização do projeto aprovado pela Lei de incentivo
Municipal, Porto Cênico: Circuito e Formação, em que o
grupo circulou com 40 apresentações de 4 espetáculos de
seu repertório por escolas de regiões periféricas de Itajaí para cerca de 3.000 pessoas, contemplando crianças,
adolescentes e adultos.
• Assessoria ao Projeto do SESC
Santa Catarina Leitura Dramática
com ênfase à dramaturgia para infância, com a atriz do grupo Valéria
de Oliveira.
•Oficinas de Contação de Histórias para o SESC de Rio do Sul.
• Curso de direção e de criação
para cena para o SESC Criciúma.
• 6º Itajaí em Cartaz (Itajaí/SC),
apresentação do espetáculo
Noite.
• Orientação para a II edição do
projeto Formação Estética e Poética com o grupo Ilustríssimos Senhores com a participação de Sérgio
Carvalho, André Carreira, Fernando Vilar, Bia Braga.
• 6ª edição do curso regular de teatro Princípios para atuação.
• Aulas de teatro do projeto Arte nos Bairros.
2011
•Manutenção da Sede Espaço Teatral Porto Cênico.
•Estreia de Blábli...bláblá com roda de leitura - Contação
de histórias para infância. Criação Coletiva. Apoio da editora Brink Book.
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
•Estreia do espetáculo Folhetim (para adultos). Diretora:
Valéria de Oliveira.
•Circulação dos espetáculos de repertório: Noite, Devoradores de Livros, pelo Vale do Itajaí.
•II Festival Brasileiro de Teatro: Toni Cunha (Itajaí/SC),
apresentação do espetáculo Noite.
•Manutenção da Sede Espaço Teatral Porto Cênico.
•Estreia e apresentações do Espetáculo Rounin (para
rua). Diretor: Leandro Maman.
•Coordenação do 3º Itajaí em Cartaz pela atriz do grupo Caroline Carvalho.
•3º Itajaí em Cartaz, com os espetáculos Rounin, Devoradores de Livros e Noite.
•2º Festival Ipitanga de Teatro (Lauro de Freitas/BA),
com o espetáculo Devoradores de Livros.
•II Festival de Teatro Estudantil e Universitário da Unisul (Tubarão/SC), espetáculo Noite.
•14º Festival Catarinense de Teatro (Joinville/SC), espetáculo Noite.
•Prêmio de melhor espetáculo infantil e melhor cenografia com Devoradores de Livros, no Festival Ipitanga
de Teatro (Lauro de Freitas, BA).
•5º Itajaí em Cartaz (Itajaí/SC), apresentações dos espetáculos Devoradores de Livros e Folhetim.
•5ª edição do curso regular de teatro Princípios para atuação.
2010
•Circulação do espetáculo Devoradores de Livros pelas
escolas do setor privado e rede pública de SC.
•Circulação do espetáculo Devoradores de Livros.
•Manutenção da Sede Espaço Teatral Porto Cênico.
•Circulação dos espetáculos de repertório pelo Vale do
Itajaí.
•4º Itajaí em Cartaz, com os espetáculos Folhetim e Devoradores de Livros.
•III Festival de Teatro Estudantil e Universitário da Unisul
(Tubarão/SC), espetáculo Folhetim.
•3º Festival Ipitanga de Teatro (Lauro de Freitas/BA), espetáculo Noite.
•Prêmio de melhor direção com Espetáculo Noite, no
Festival Ipitanga de Teatro (Lauro de Freitas, BA).
•4ª edição do curso regular de teatro Princípios para atuação.
•3ª edição do curso regular de teatro Princípios para
atuação.
•Lançamento da 1ª edição da Revista Porto Cênico.
2009
•Circulação do espetáculo Devoradores de Livros pelas
escolas do setor privado e rede pública de SC.
•Temporadas do espetáculo Noite na Cidadela Cultural
de Joinville e Temporada Blumenauense de Teatro.
•Apresentações do espetáculo Noite nos SESCs de Jaraguá do Sul, Joinville e Florianópolis e Rio do Sul.
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
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2008
•Circulação do espetáculo Devoradores de Livros pelas
escolas do setor privado e rede pública de SC.
•Realização do Projeto I Formação Estética e Poética,
projeto aprovado pela Lei de incentivo Municipal, oferecendo formação continuada em teatro, prática e teórica
aos artistas da região.
•2º Itajaí em Cartaz, espetáculos Noite e Devoradores
de Livros.
•Circuito Cênico 2008 (Rio do Sul/SC), com o espetáculo
Noite.
•2ª edição do curso regular de teatro Princípios para atuação.
2007
•Estreia do espetáculo Devoradores de Livros (para infância). Diretor: Leandro Maman.
•Estreia do espetáculo Noite (adulto). Diretor: Pépe Sedrez.
•1º Itajaí em Cartaz, com intervenções teatrais.
•I Festival Brasileiro de Teatro (Itajaí/SC), apresentação
do espetáculo O Defunto.
•Primeira edição do curso regular de teatro Princípios
para atuação.
2006
•Processos de Montagem dos espetáculos Noite e Devoradores de Livros.
•Circulação do Espetáculo O Defunto por Itajaí e região.
2005
•Desvinculação do Grupo da Universidade, criação da
missão do Grupo e seu nome. Circulação do espetáculo
O Defunto por Itajaí e região. Participação no Festival de
Teatro de Ibirama.
2004
•Formação do Grupo no ambiente da Universidade do
Vale do Itajaí com o projeto de extensão. Estreia do espetáculo O Defunto (adulto). Diretora: Valéria de Oliveira.
Podemos perceber, pelo histórico aqui transcrito, que o
grupo não somente carrega em seu nome o Porto, mas
faz desse espaço uma possibilidade, assim sendo é um lugar de chegadas e de partidas de outros profissionais, pois
sempre foram compostos grupos de trabalho com outras
pessoas que não fazem parte do núcleo do Grupo. São
eles diretores, formadores, provocadores, músicos, entre
outros. Cada pessoa que por aqui passou deixou um pouco e carregou também um bocado daquilo que se pretende neste coletivo. É na contribuição de cada passante
deste porto que se construiu essa história de 10 anos, de
desejos, de sonhos e de motivações, na perspectiva da
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Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
construção de um teatro que venha ao encontro das ânsias dos que ali estavam e estão, e, sobretudo, no fazer contagiar-se, pois o teatro necessita do contágio, daqueles que o fazem e promovem e daqueles que o assistem e o vivenciam.
Assim, o Grupo Teatral Porto Cênico tem, em sua história, não somente o conceito de grupo teatral, mas também de
um coletivo de pessoas que desejam ser parte do fazer teatral, e que carregam nesses 10 anos o desejo de comunicar-se, uma trajetória de procurar presença junto da comunidade e do seu público, o que não é pouco, mas sim grande
e corajoso. Segundo Pavis, ter presença é “saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser dotado de
um ‘que’ que provoca imediatamente a identificação do espectador, dando-lhe a impressão de viver em um outro lugar, num eterno presente”. Percebemos em 10 anos de trajetória um grupo que se mantém em um eterno presente,
fazendo-se e refazendo-se em sua arte e na sua relação com o público.
Em 2014, o núcleo central do Grupo é composto por: Valéria de Oliveira, Caroline Carvalho, Aline Barth, Karoline
Gonçalves e Ana Beatriz de Oliveira.
Caroline Carvalho, Valéria de Oliveira, Aline Barth, Karoline Gonçalves e Ana Beatriz de Oliveira
Valéria de Oliveira: Atriz fundadora do Grupo Porto Cênico, Mestre em Teatro e Docente da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Caroline Carvalho: Atriz e contadora de histórias do Grupo Porto Cênico e Mestre em Educação.
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
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Breve panorama da dramaturgia
catarinense contemporânea
Afonso Nilson Souza
Stephan Baumgartel
A dramaturgia em Santa Catarina tem tido, ao longo dos
últimos anos, um crescente número de novos autores e
textos inéditos encenados e publicados. Essa efervescência não apenas representa o aumento de grupos profissionais em atuação no estado, mas a demanda crescente
que o país tem por profissionais de texto criativo, seja
dramático, literário ou cinematográfico. Nesse contexto,
traçamos um rápido panorama desse movimento, citando, brevemente, obras e autores que constituem um movimento de ampliação e diversificação do número e da
qualidade da dramaturgia catarinense recente.
Gregory Haertel, em parceria com a Cia Carona de Teatro, de Blumenau, é o dramaturgo com maior número de
textos encenadosem Santa Catarina nos últimos anos. São
de sua autoria: A parte doente, Volúpia, Passarópolis, Sujos, Das águas, entre outros com considerável penetração
nos circuitos de festivais e mostras de teatro nacionais.
Convém também destacar que o processo colaborativo
de construção dos textos é uma constante no trabalho
do autor em parceira com a Cia Carona, sendo um dos
únicos autores que trabalha continua e sistematicamente
com esse procedimento no estado.
Max Reinert, a partir de sua formação no Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, sob orientação de Roberto Alvin,
vem desenvolvendo uma série de experiências dramatúrgicas utilizando a fragmentação da narrativa, ambivalência
temporal e outros recursos contemporâneos de composição textual. Seu texto Meteoros, por exemplo, lida com
uma espécie de incompletude dialógica entre os personagens, aproximando-se pela estrutura ao clássico Na Solidão dos Campos de Algodão, de Bernard Marie Koltès. Já,
em Pequeno Inventário de Impropriedades, o dramaturgo
utiliza não apenas uma narrativa aos saltos, fragmentada,
mas também quebra da diegese em direção a universos
surreais e esquizofrênicos.
O texto Maria, a Louca, de Antônio Cunha, após encenação em São Paulo com direção do pesquisador e diretor
Jairo Maciel, teve uma montagem portuguesa com direção de Maria do Céu Guerra, também apresentada em
Florianópolis em 2011. O autor, um dos mais atuantes do
estado, estreou em 2014 seu mais novo texto, o monólogo Eu Confesso, sob sua direção e atuação do veterano
Édio Nunes.
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Alguns textos nem tão recentes receberam novas montagens, como,por exemplo,Urano Quer Mudar, de Rogério
Christofoletti. A montagem dirigida por Brígida Miranda,
com atuação de Ronaldo Faleiro e Margarida Baird, oxigenou o texto que além de sua estreia no Festival Internacional de Teatro de Blumenau, em 2005, não havia tido
novas montagens. Os textos Mulheres Nuas e Quatro, de
Marlio Silveira da Silva, receberam novas montagens pelo
Grupo Círculo de Teatro em 2011 e 2012, com direção
de Christiano Scheiner, que, além das atividades como
produtor e diretor, mantém ativa sua produção dramatúrgica, tendo encenado recentemente os textos Pequeno
Monólogo de Julieta e O Açougueiro, além de terpublicado
textos teatrais em periódicos.
Novos nomes também começam a despontar no cenário. André Felipe, de Florianópolis, recebeu duas vezes
o prêmio Rogério Sganzerla, da Editora da Universidade
Federal de Santa Catarina, pelos textos Suéter Laranja em
Dia de Luto e Não Sempre. De Jaraguá do Sul, Paulo Zwolinski teve a peça Como Se Eu Fosse O Mundo encenada no
Festival de Curitiba em 2010, com direção de Roberto
Alvim; a peça Os Pássaros foi encenada em 2013 pelo Edital Novelas Curitibanas, com direção de Don Correa. Em
2014, também com direção de Don Correa, o texto Gafonhoto estreou no Festival de Curitiba. Também oriundo
do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, Zwolinki teve
o texto Como se eu fosse o mundo publicado pelo selo do
projeto em 2010. Nascido em Lages, mas radicado agora
em Curitiba, temos o autor Andrew Knoll, cujos textos
Fatia de Guerra e Devastidão, foram publicados pelo referido Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, recebendo
também o primeiro uma montagem de Roberto Alvim em
seu teatro Club Noir em São Paulo.
A publicação de textos de teatro em livros permanece
bastante rara, mas com algumas honrosas exceções. Max
Reinert lançou, em 2013, o livro Primeiras Obras, pelo
selo Questão de Crítica. Paulo Zwolinski lançou pelo
selo do Núcleo de Dramaturgia do Paraná o livro Como
Se Eu Fosse O Mundo. Almilcar Neves, que já havia publicado o polêmico No Tempo de Eduardo Dias em 2005,
não tão recentemente publicou Se te Castigo é Porque te
Amo, em 2010, pela Letras Contemporâneas. Em 2014,
o Erro Grupo lançou Poética do Erro: Dramaturgias, uma
coletânea com nove textos de autoria de Pedro Benaton
e Luana Raiter.
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
Cabe mencionar uma autora catarinense veterana que,
recentemente, viu dois de seus textos teatrais publicados
pela editora Giostro em uma obra intitulada Otto. Edla
van Steen, nascida em 1936 em Florianópolis, pode ser
mais reconhecida como autora de contos e romances,
mas seus textos teatrais sempre visaram um acabamento formal cuidadoso dentro de sua proposta realista. Um
cuidado que lhe rendeu, em 1989, os prêmios Moliére e
Mambembe pelo texto O último encontro, bem como o
Trofeu APCA de Revelação de autor, algo inusitado para
uma escritora de então 53 anos.
Outro dramaturgo premiado nacionalmente é Carlos
Eduardo Silva, que, em 2000, ganhou o prêmio de dramaturgia da MINC com sua comédia de costumes A Filha
da..., e, em 2004, o prêmio da Funarte com sua comédia
Hemp. Desde então,Carlos escreveu outros textos teatrais, mas nenhum deles ganhou uma montagem de destaque, o que aponta para um desafio estrutural ainda não
solucionado pelos dramaturgos e pelos órgãos de fomento teatral do Estado de como concretizar uma produção
dramatúrgica contínua e de qualidade.
Se comparamos os textos dos autores aqui citados (aos
quais poderíamos juntar também os dramaturgos e os
diretores Sulanger Bavaresco, Afonso Nilson, Daiane
Dordete Steckert bem como resultados dos processos
coletivos do Dionisos Teatro), podemos constatar que
a maioria apresenta um diálogo bastante solidário com
os preceitos dramáticos de um realismo ilusionista que
nos apresenta uma situação ficcional reconhecível em sua
verossimilhança empírica e que desemboca em diálogos
intersubjetivos que façam a ação ficcional desenvolver-se por meio de um conflitoa ser resolvido. Exceções são
principalmente os textos criados pelos novos autores influenciados pelas propostas do diretor Roberto Alvim no
Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná, mas também os
trabalhos monológicos de Daiane Steckert. Nesses textos, o foco desloca-se de um conflito intersubjetivo para
um conflito interno das figuras, muitas vezes figuras que
aglutinam diversas vozes dissonantes em um único discurso. Mais do que isso, são textos que nos apresentam
um enfoque composicional em uma meta-textualidade
pelo qual o conflito não se situa apenas no nível ficcional,
mas, sobretudo, em relação ao material apresentado: sua
instância autoral problematiza sua relação (seu domínio
e objetividade); sua apresentação fragmentada (que não
raramente nos apresenta tempos e lugares distintos como
se fossem simultâneos) desafia as capacidades de compreensão e interpretação do leitor.
Desse modo, encontramos como voz autoral presente
no texto não apenas aquela já conhecida de um narrador
explícito, que pode ser incorporada e até escondida em
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
um conjunto dramático, mas também uma voz mais sub-reptícia que se apresenta nas frestas da composição e
precisa ser detectada pelo leitor. Ela configura o conflito
não mais num eixo narrativo, como conflito intersubjetivo
entre personagens ficcionais, mas como conflito articulado tematicamente na composição do trabalho, como, por
exemplo, nos textos de Max Reinert, Paulo Zwolinski e
Andrew Knoll.
Encontramos, aqui, uma membrana linguística entre a
percepção humana e o mundo percebido que evidencia
o tecido da linguagem como um filtro que tinge nossa
consciência daquilo que chamamos de “mundo”. Ao evidenciar criticamente esse filtro, tais textos participam em
uma crítica da percepção humana bem como da construção dramática como imitativa de uma realidade supostamente objetiva. Na medida em que a dramaturgia catarinense afasta-se de uma apresentação dramática ingênua e
incorpora procedimentos críticos ao drama, ela consegue
participar desse propósito contemporâneo de apresentar
uma imagem textual do mundo ao mesmo tempo em que
esse texto apresenta uma (auto)crítica de seus procedimentos de criar essa imagem. Desse modo, a dramaturgia catarinense contemporânea – que difere daquela que
apenas está sendo escrita hoje em dia –, apresenta aos
seus leitores e espectadores um projeto literário no qual
se indaga não só as características, contradições, medos e
esperanças de uma vida humana no mundo atual, mas, sobretudo, a capacidade performativa da linguagem de criar
essa vida e esse mundo para nós seres humanos. Com
esse foco, ela desafia também os diretores e seus modos
de encenação para que eles encontrem novas poéticas cênicas para esse tipo de textualidade teatral.
O grande desafio poético (e social, na medida em que a
forma de uma obra é seu conteúdo social) será provavelmente mediar essa metatextualidade com o horizonte de
expectativa do público catarinense impregnado em grande parte pelos preceitos do realismo. Ao conseguir essa
mediação, tais textos estabeleceriam um contexto realista que insiste na realidade empírica como uma realidade
compartilhada por todos, mas abririam frestas nessa imagem realista pela qual um senso de possibilidades outras
pode se manifestar na imaginação coletiva dos leitores
e dos espectadores. Tomara que a renovação formal da
dramaturgia catarinense e seu crescimento quantitativo
ganhem o apoio das diversas instituições de fomento (municipais, estaduais e público-privadas) para que ela possa
consolidar-se e exercer essa força formadora cultural no
Estado.
Afonso Nilson Souza: é dramaturgo, produtor cultural, mestre em teatro e
analista de programação social do SESC Santa Catarina (Florianópolis).
Stephan Baugartel: É doutor em teatro, professor na UDESC (Florianópolis),
desenvolve pesquisas na área de dramaturgia
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O desafio do teatro para crianças e jovens
Marcelo Romagnoli
Teatro é um só. Pode ser aqui ou na Ásia, para crianças
ou adultos, com ou sem texto. Seu sentido maior não faz
diferença entre culturas, idades, gêneros ou classes. Ele
acontece quando um diálogo sensível, pensado e ensaiado
se estabelece entre palco e plateia. Acontece quando a
arte consegue pensar o mundo, o homem e suas relações.
E, além de pensar, consegue se comunicar efetivamente
com a audiência. É uma arte sem fronteiras, que atinge a
sensibilidade do espírito humano. E esse espírito nos é comum, carimbado
por genes que formam nossa inteligência.
O teatro é um. Contudo, não
podemos negar que existem
algumas especificidades que
devem ser levadas em conta se
quisermos aproveitar ao máximo o seu poder. Falar para adultos ou jovens têm diferenças, e
elas não podem representar mais
ou menos importância para este
ou aquele. A linguagem do teatro infantil é a mesma do teatro
adulto? Os temas que interessam
à criança são os mesmos que interessam ao adulto? Claro que não.
Entretanto, o teatro para crianças é
composto pelos mesmos elementos
do que aquele feito para adultos. Sua
estrutura narrativa, as técnicas dramatúrgicas, a representação; enfim, tudo
o que caracteriza um bom espetáculo
d e v e
estar lá, em cena. A dramaturgia para jovens no Brasil –
e também o trabalho dos atores - vem se aprofundando
muito nestes últimos anos. Existe um novo conceito no
ar, mais sólido, afirmando diretrizes e vontades não só paralelas às necessidades da criança moderna, mas também
à própria criação artística. É preciso lutar contra a ideia
aparentemente generalizada de que é “mais fácil” realizar
um espetáculo infantil. Muitas vezes esse gênero é tratado como sub-produto, talvez pela ignorância de alguns,
talvez pelo conceito difundido – e errôneo - de que o
público mirim é mais simples. Pelo contrário. Esse público
está ávido por boas histórias. Está descobrindo o mundo
e atento a portais que ajudem a entendê-lo. A responsabilidade de educar sensivelmente uma criança acompanha
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os que se dedicam ao teatro infantil. Isso é muito e merece cuidado. Além do seu inegável caráter educacional – e
existem tão poucas pesquisas sobre isso – o teatro para
crianças e jovens tem a difícil tarefa de formar plateias. E
reformar, muitas vezes, pais e mães. Tem a difícil missão
de lidar com crianças e suas sutilezas, suas sensibilidades
e seus espíritos recentes.
O teatro para crianças em São Paulo, que
é, de certa forma, uma cidade impulsora
de tendências para o Brasil, parece que
vai bem. Todo final de semana cerca de
80 espetáculos acontecem pela cidade.
Existe um público interessado. Existem
espaços. Existem grupos e artistas sérios. Existem talentos de sobra. Faltam,
porém, políticas culturais que atendam
a esse segmento. Faltam, aos programadores, às instituições ou apoiadores, fé e disposição real – isso inclui
orçamentos - de atender à efervescência e à necessidade que rondam
o teatro jovem. E falta, sobretudo,
formação sólida para artistas interessados em produzir. Nos cursos
profissionalizantes é raro existir
uma matéria que se dedique ao
arela
m
A
teatro jovem. O que se aprende
a
ls
Bo
culo A orto Cênico
Espetá
P
vem da prática. Grupos recém-saídos de faculdades optam
por montar espetáculos infantis acreditando ser menos “complicado” produzi-los, encená-los e vendê-los. Muitas vezes apegam-se a adaptações de
eternos clássicos com efeitos morais e repetem a fórmula
de sucesso imediato com chapeuzinhos, lobos, porquinhos e fadinhas. Isso só faz atrasar. A maioria desses criadores carece de fundamentos básicos, informações e até
mesmo de manejo adequado. Muitas vezes passam longe
de conhecer o básico de Jean Piaget, por exemplo.
Como se comunicar artisticamente com uma criança sem
entender seu mecanismo lógico, o desenvolvimento do
seu pensamento, as estruturas de seu raciocínio? Só pela
intuição? Livros como A linguagem e o pensamento na
criança (1923), O raciocínio da criança (1924), A representação do mundo na criança (1926) e O julgamento
moral na criança (1931) deveriam fazer parte dos estudos
dos criadores de teatro para a infância. Piaget apresenta
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
a criança como sujeito da razão, “ainda que de uma razão
própria”. Com o livro A linguagem e o pensamento na
criança, ele apresenta um quadro do processo de aprendizado infantil, importantíssimo para um adulto conhecer
a fundo a psicologia desse ser em formação. E, conhecendo, dispor de elementos certeiros para se comunicar
melhor.
uma valorização e um extraordinário desenvolvimento,
com espetáculos ousados, inovadores, de excelência conceitual e muito bem realizados, elevando definitivamente
o teatro infantil para o mesmo patamar do teatro adulto.
Em relação à dramaturgia, felizmente a criação original
para crianças está cada vez mais sofisticando sua escrita,
tratando de temas contemporâneos com o uso de linguagens diversas e se aprofundando em conceitos que vão
Talvez toda essa desinformação ou desinteresse possa ser
além do mero entretenimento. O grande desafio agora
explicado –mas nunca justificado - pelo pouco tempo de
parece não só manter e avançar, mas difundir esse provida que o teatro para crianças tem em nosso país. Cosgresso. Afinal, já é hora do teatro infantil crescer pelo
tuma-se considerar Lúcia Benedetti como a precursora
Brasil todo, mostrando seu poder na
do teatro infantil no Brasil quando, em 1948,
educação emocional e na formação de
e
Verd
o Dedo atrais
d
o
in
n
com a estreia da peça O Casajovens cidadãos aptos a transformar o
e
e
lo O M perimentus T
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s
E
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co Encantado, lançou as bases
mundo.
do que hoje é considerado
dramaturgia infantil brasileira.
Pela primeira vez, uma ence
nação era totalmente pensada
Marcelo Romagnoli é Dramaturgo
para um público de crianças, feita
e diretor, atuando nos teatros
por atores adultos. Depois dela,
adulto e infanto-juvenil em São
podemos citar dois nomes: Maria
Paulo desde 1994. Formado em
Clara Machado e Ilo Krugli.
Direção Teatral pela ECA/USP
e História da Arte pelo Instituto Lorenzo de Médice em
Florença-Itália. Desde 1998,
escreve regularmente para
crianças e jovens. Com livros
editados pela Panda Books e
Cia das Letras, acumula 12
prêmios e tem 14 textos
encenados.
Maria Clara fundou uma escola, O
Tablado, no Rio de Janeiro e foi autora profícua, que influenciou gerações e tem fundamental importância
no desenvolvimento de uma linguagem
para crianças. Se Maria Clara Machado
foi, a partir dos anos 50, uma das construtoras da identidade dramatúrgica do
Teatro Infantil, Ilo Krugli renova e reconstrói os conceitos de encenação com
o espetáculo História de Lenços e Ventos,
em 1974. A partir dos anos 90 vivemos
Espetáculo A Caixa
Cia Mútua
Espetáculo Devoradores de Livros
Porto Cênico
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
11
Pedagogia da Dramaturgia
Excerto da entrevista com Luís Alberto de Abreu realizada pela pesquisadora Lucienne Guedes,
na sede dos Narradores de Passagem, em Santo André, em 2010.
Luís Alberto de Abreu é um dos mais
importantes dramaturgos brasileiros
em atividade. Autor de mais 50 peças,
premiado várias vezes com algumas
das mais representativas distinções
do teatro brasileiro, escreve também
para cinema e TV. Seus cursos e oficinas de dramaturgia têm orientado
centenas de dramaturgos ao longo
dos anos.
Lucienne Guedes foi coordenadora
e professora da ELT – St. André,
atriz fundadora do Teatro da Vertigem, desenvolveu mestrado na
ECA-USP e atualmente desenvolve doutorado, sob orientação de
Silvia Fernandes. Em julho de 2014
escreveu e dirigiu o espetáculo Ensaio sob(re) Angústia, com a turma
64 da EAD/USP. É artista colaboradora da Cia. Balagan e do Teatro de
Narradores.
Lucienne – Às vezes, nas experiências pedagógicas que
coordenamos, nos deparamos com alunos muito interessados em teatro e dramaturgia, mas que não sabem o
que escrever. Eles têm vontade de escrever, mas não têm
nada que os toque, digamos assim. Isso já aconteceu com
você, de ter o trabalho de professor que tem de despertar o olhar do aluno?
Abreu – Sim, acontece muitas vezes. Querer fazer dramaturgia imaginando que ela seja uma matéria curricular.
Pensar que o aluno vai entrar na sala, que o professor vai
ali dar a ele algumas regras e que, se aprender aquilo direitinho, ele vai sair fazendo. As pessoas não percebem que
a dramaturgia começa nelas. Começa no material sensível
que elas têm, na capacidade, na sensibilidade delas em relação a escolher, em relação ao mundo, em relação a si
próprio. Em geral os alunos não percebem isso. Mistifica-se tudo, que “dramaturgia é isso”, é “aquilo”, que é “inspiração”. Dramaturgia é muito mais um processo de paciência e atenção para que você possa se perceber, nesse
sentido. Perceber na verdade o que o toca. Dramaturgia
12
não é colocar personagens dialogando. O aprendizado da
dramaturgia está na sensibilidade, no “centrar-se”. Aquilo
te tocou? Tocou. E então se começa a processar daí.
Lucienne – Nas suas aulas de dramaturgia, muitas vezes
você fala sobre o processo de criação. Entre outras tantas
coisas, você diferencia o que seria um processo indutivo
e um processo dedutivo. O que você pode me esclarecer
sobre isso?
Abreu – No processo dedutivo você tem tudo. Você tem
todo um arsenal de raciocínio mental, você estudou, você
conhece algumas coisas do material que você vai trabalhar. Então você entra em contato com o material que
você vai trabalhar, na forma que você vai trabalhar. Você
entra em contato com o material, com a imagem. Viu a
imagem, ela te tocou? A partir daí você começa a deduzir coisas, vai deduzindo até formar todo um esquema a
partir daquela imagem. A imagem está em determinada
pessoa, em determinada situação, que se relaciona com
outras situações, cria outra cena... Conseguiu estabelecer
o protagonista, a personagem, as relações dos personagens todos... Isso é o processo dedutivo. Ou seja, todo o
processo foi feito por você, teve apenas um estímulo de
fora e disse “não, deixa comigo!”. Deixa comigo que eu
vou trabalhar. Isso talvez não seja o melhor. É muito potente? Sim, é muito potente. Mas talvez sozinho não seja o
melhor. Já o processo indutivo: você teve aquela imagem
inicial, você vai para o material. Vai para o mundo, vai procurar esse tipo de imagem. Vai procurar na literatura, vai
procurar na vida real mesmo. Ou seja, vai reunir um material muito grande. Então você vai encontrar uma imagem, e outra que vai se contrapor contra aquela. Quando
você reúne tudo, aí você vai se relacionar com esse material, e o processo também. Você vai se relacionando com
esse material e deixando que ele te conduza. Aí vai chegar num momento em que você vai falar: “isso aqui não
dá! Vai ter dois protagonistas? Como é que eu faço isso?”
Se você respeitar mesmo o material, você vai ouvir isso.
Quem disse que tem que ter um protagonista só? Deixa
os dois protagonistas. Não interessa se esse protagonista
é dessa história e esse outro é dessa outra história. Percebe? Então, o material vai indicando para você. O objeto
nos induz a raciocinar a partir dele.
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
Lucienne – Essa ideia de processo criativo surgiu estimulada por algum autor?
Abreu – M. Bakhtin trabalha muito com isso. Ele vai falar de Dostoievski, que cria uma obra diferente dos romances da época. Madame Bovary, por exemplo, é um
processo todo dedutível, perfeito, perfeito! A poética
está presente. Está muito bem engendrada. E então vem
o Dostoievski, aquilo é um mar de coisas acontecendo, e
você vai vendo: “quem é o personagem aqui?”, “qual é o
principal?”. Você não sabe qual é o principal. Não precisava de tanto. Precisa tanto personagem? Madame Bovary
tem os amantes dela e tem o Carlos, que é o marido dela;
pronto. Acabou. Agora, no Crime e Castigo, você fala
“meu Deus do céu!”. Já no final, o romance está acabando, aí entra aquele Svidrigáilov. De onde ele veio?! É genial, isso. Esse é o processo indutivo.
Dostoiévski respeitou
o material. Imagine se
o tal Svidrigáilov, quer
entrar no romance e
você diz: “não dá. Segundos os cânones do
que eu aprendi não pode
e...”. Mas ele entra. Se
quer entrar, entra. É interessante? É significativo? Então, entra. “Como
é que eu vou fazer isso?
Não sei, me trouxeram um
grande problema!”. Azar o
nosso. Azar do público também; vai ter de se virar com
isso. Isso é material indutivo.
Lucienne – Por que você se interessou em dar aulas, em
compartilhar seus estudos e inquietações? Por que você
acha que alguém se interessa em dar aula?
Abreu – Acho que, para mim, isso teve muito a ver com
essa “solidão de dramaturgo”. É uma coisa bastante solitária. Até hoje eu tenho dificuldade de ter interlocutores,
para discutir questões de estética, de dramaturgia. Com
os grupos, foi sempre uma reação de não pertencimento.
Porque tem os atores e tem o diretor... e aí também tem
o dramaturgo. O que o dramaturgo faz? O dramaturgo
escreve o texto. Depois que ele escreveu o texto, acabou. Ele está alijado de um convívio que é muito legal,
que é o convívio com os atores, o convívio com o diretor, com o processo de criação. E é por causa disso, também, que o dramaturgo se tornou um escritor separado
da cena; também por causa disso. Mas, para mim, acho
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
que dar aula que vem dessa necessidade mesmo, dessa
necessidade de partilhar. Eu lembro que antes disso eu fiz
parte de um grupo de estudo, grupo de três: eu, o Calixto
(de Inhamuns) e o Ednaldo (Freire). Comecei a estudar;
acho que ficamos estudando uns seis meses. Estudamos
A Poética, o Bentley, etc. E eu nunca tinha dado curso
de dramaturgia. Então, o Antunes Filho me chamou para
organizar um núcleo de dramaturgia - acho que isso foi
em 86 - e então tudo começou. Eu percebi que ali, com o
pessoal que estava se interessando por dramaturgia, havia
uma possibilidade de interlocução. Era interessante, porque eu poderia estudar e também porque eu era questionado. O próprio fato de você ter de ministrar uma aula,
por exemplo, o obriga a estudar, a entender o que você
estudou, o que
é muito importante. E ainda
ter de comunicar isso. E cheBella Ciao
u
re
b
A
gam os questionamentos, as
Luís A. de
Texto de
questões. Com o pessoal
de dramaturgia eu começo
a ter um grupo, um trabalho coletivo mais ágil, de
estudo, de pesquisa, de
investigação. Eu acho que
eu comecei a gostar a
partir daí, desse processo mesmo de coletivo,
do desenvolvimento em
forma do coletivo.
Lucienne – Há também um aprendizado
que não vem de professores
“vivos”. Quais autores estimularam seus estudos, sua
dramaturgia, suas aulas? Quais são suas influências?
Abreu – São aqueles que estão lá na base de minha formação. Depois vieram a mitologia, o Joseph Campbell,
o Vladimir Propp, o MirceaEliade... Estes tiveram uma
função posterior para mim, muito importante na criação.
Mas para falar de dramaturgia, Aristóteles eBentley são
muito interessantes. É complicado citar outros autores
para falar especificamente da criação, sobre processos
de criação, porque não existem outros, sinto muito! Não
existem pessoas que trabalharam tanto como esses dois.
Claro, existe a Renata Pallottini, que teve uma investigação bastante significativa sobre esses aspectos, mas, em
geral, não há outros especificamente sobre a criação, sobre o processo de criação. O que existe é muita informação de como determinado autor trabalha, como determinado autor faz, o que ele faz, o que ele fez, como ele
fez, que elementos. Percebe? Sobre o processo de criação você tem pouquíssima coisa. Quando eu li Aristóteles
13
pela primeira vez, eu percebi elementos formais importantíssimos, muitos aspectos, por exemplo, de criação.
Uma personagem se cria de caráter e de pensamento:
talvez isso fosse de fato importante, pensei. Eu passo a
vida inteira referenciado nesses dois elementos; é importante mesmo. Já Bentley vai pegar todos esses elementos aristotélicos, reelaborar o raciocínio de uma forma
contemporânea, com uma série de citações, de peças, de
exemplos, que os ligam contemporaneamente. É um excelente trabalho. Um trabalho como o dele, com aquela
qualidade: que outra pessoa foi capaz de fazer? Podemos
começar a discussão pelos gêneros: melodrama, drama,
drama burguês, tragédia... Se aprende muito com isso.
Lucienne – Eu me lembroquando estávamos juntos no
processo de adaptação do
Crime e Castigo, na Escola
Livre de Santo André, e você
estimulou os alunos-dramaturgos da seguinte forma: “Vamos
estudar tudo, os heróis, a estrutura poética do Aristóteles, todos os gêneros. Vamos estudar
tudo e então podemos, depois,
reconhecer as coisas estudadas
no trabalho feito”.
Lucienne –E a respeito dos heróis? E
quanto a querer buscar uma universalidade possível na dramaturgia?
Abreu – É assim mesmo, não tem
jeito. O conhecimento só se torna
criação quando ele passa por você
e ele surge de maneira criativa. Não
adianta você ler A Poética e querer
sair por aí escrevendo tragédias. Isso
vai demorar muito tempo, até ela entrar e voltar como material de criação. Esse processo nem sei quanto
tempo demora. A gente estuda para
isso, mas na hora da criação isso tudo
não conta. Conta a maneira como você consegue organizar essas coisas. (Isso também não é o processo dedutivo;
é o processo indutivo, o do teu corpo.) Como é que teu
corpo vai responder? Não adianta você tentar deduzir a
organização dessas histórias todas.Se nós próprios nos
entendermos como material também será interessante.
E então eu posso perguntar: que tipo de peça está se gerando aqui dentro de mim? Que tipo de peça eu estou
pronto para gestar agora? Não adianta falar: “eu quero
escrever uma peça sobre isso”. Será necessário me ouvir,
para saber que tipo de material está se gerando, dentro
de mim. Será necessário ouvir o material, e esse material
14
é sensível. Isso é claríssimo! Dou sempre esse exemplo:
se eu escrever um enredo, um projeto, guardá-lo numa
gaveta e retirar esse mesmo enredo depois de 10 anos,
e daí começar a escrever uma peça, o que vai acontecer?
Com certeza vai ser uma peça completamente diferente daquela que eu teria feito ali na hora, 10 anos antes.
Concorda? O que mudou ali? Mudou o material, mudou a
gente, mudou o que vai elaborar aquilo. Necessariamente
sempre será preciso ouvir o material, aquilo que chega
de fora e o material que está dentro do sujeito. Às vezes, a gente fica brigando, querendo escrever uma peça
“assim”, e a
cena não sai. A cena não sai, a cena não
sai, a cena não sai, a cena não sai... O
que é isso? Em geral é porque, no processo de criação, a gente não está respeitando o material, que está dizendo
que a cena é outra cena. Não é a cena
que a sua cabeça quer, é outra coisa.
Abreu – Acho que é preciso buscar a universalidade e o subjetivo.
O princípio das coisas é subjetivo
também, como já falamos. Não
tem como. O criador é aquele que vai criar. É a visão do
mundo, mas está sempre em
conflito, está sempre em crise. Se você pegar aquilo que
é subjetivo e cair numa ideia
de fazer uma escrita tão soe Jó
O Livro d u
re
b
mente intuitiva, ficaria muito
A
e
d
Luís A.
Texto de
próximo de chegar a uma
escrita espontânea ou a uma
escrita espírita. Precisa haver comunicação, a relação com a sua cultura, com as outras pessoas.
E também há essa necessidade de chegar na universalidade. Esse é um mito muito contemporâneo. A teoria
da relatividade já explicou muita coisa, buscou a teoria
do unificado, que pudesse unificar todas as teorias, isso é
próprio do homem. Nessa ideia de universalidade eu vou
ter de buscar aquilo que nos é comum. Não só aquilo que
eu sinto, embora o que eu sinto seja verdade. Eu vou ter
de buscar aquilo que eu tenho em comum com o outro.
Aí sim será um material ótimo para se trabalhar, porque
já estão resolvidas algumas questões básicas, como a da
comunicação.E se eu sei que Aristóteles, por exemplo,
escreve que o enredo é elemento fundamental, estrutu-
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
rador da dramaturgia clássica, e se eu também sei que o
personagem tem uma força muito poderosa - tanto que
Aristóteles gasta muito tempo para falar de personagem
- e o teatro Nô organiza suas peças a partir do personagem, é imediato passarmos daí para questões de mito e
arquétipo. Trabalhar com as questões das estruturas que
se repetem, que são próprias do mito, e trabalhar com
essas figuras arquetípicas, com essas configurações que
são reconhecíveis por qualquer ser humano: o caminho
da universalidade, de uma certa maneira, já está indicado.
Vou trabalhar o enredo, a personagem, mas vou fazer isso
a partir da estrutura mítica, dos arquétipos. Vai resolver?
Sim, em parte. Porque tanto os mitos quanto os arquétipos são infinitos. As estruturas são infinitas, e as possibilidades daqueles personagens também são infinitas. Mas de
qualquer maneira eu estou “no chão”, num lugar onde eu
posso pisar. Eu tenho uma estrutura na qual as pessoas se
reconhecem. Eu tenho onde trabalhar, onde começar a minha organização do enredo,
de uma forma comunicável.
Contudo, isso pode
ser uma prisão, se o
dramaturgo acreditar
muito nisso. Temos que
duvidar sempre. Essa é
uma estruturação básica,
as pessoas gostam dessa estruturação, se reconhecem nisso, mas ela é a
única? Tem estes arquétipos
aqui, mas são só esses? Não
pode haver a inclusão de um
arquétipo perdido na poeira da história? Então, ampliamos o campo de
pesquisa. O que estava fechado em Aristóteles de repente começa a se ampliar muito mais, no campo da pesquisa
da dramaturgia. Isso para mim foi fundamental. A teoria
arquetípica é fundamental como material para o meu trabalho. E então eu começo a passar essa teoria para os alunos, para que eles possam reconhecer que não existem
diferenças entre escrever uma peça em dramaturgia e a
vida que eles levam, os acontecimentos que eles veem e
aqueles que encontram. Isso pode ser expressado! Isso é
dramaturgia! Esse olhar um pouco mais apurado para a
síntese do ser humano é que faz a dramaturgia.
No começo da minha carreira, eu dava aulas. Depois que
saí do CPT eu fui dar cursos de dramaturgia na Oficina
Cultural Três Rios (hoje, Oficinas Culturais Oswald de Andrade), na época áurea das Três Rios. Lá eu encontrava
gente muito boa, que havia saído da USP, etc. Eram pessoas
muito bem preparadas para aquilo. Muito tranquilamente,
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
eu começava as aulas com os pré-socráticos, depois eu
entrava com Aristóteles, entrava em Hegel, facilmente.
Então me convidaram para dar um curso de dramaturgia
numa oficina cultural que abriu em São Miguel Paulista. E
lá fui eu, todo munido de Aristóteles e os filósofos todos.
Chegando lá eu vejo: meus alunos eram uma molecada
da periferia, que não sabia nada. Nada! Meu Deus do céu,
como é que eu vou começar a falar da Poética? Eles não
sabiam nem o que era dramaturgia. Devia ter umas vinte
pessoas. “O que eu vou fazer com esse grupo?!”, pensei.
Bom, tira Aristóteles, tira Hegel, tira todo mundo. Vamos falar de mitologia. Comecei a falar de mitologia para
aquela molecada. E eles se “acenderam”, porque se reconheceram naquilo, tiveram o reconhecimento de imediato. Reconheceram suas próprias questões através da
mitologia. Isso é um
bom caminho: falar de coisas
a
comuns.
sc
France
de
Texto
Luís A.
eu
de Abr
Lucienne – De coisas que já
se pode saber, sem saber
que se sabe.
Abreu – Sem saber que
se sabe. Reconhecem-se no próprio mito. Isso
aconteceu ali, e o curso
foi ótimo, nesse sentido. Isso é outra via do
processo indutivo. Se
fosse processo dedutivo seria
assim: “Vou ensinar A Poética de Aristóteles,
pois é assim que se ensina dramaturgia”. Mas o meu material estava ali: não tinham ouvido falar de Aristóteles,
não conheciam e nem queriam conhecer Aristóteles, não
estavam preparados de fato para aquilo. Essas pessoas me
induziram, e meu trabalho mudou esse conceito. Isso foi
uma coisa legal também, porque a estética se tornou uma
coisa útil. Socialmente, quando você vai falar para o moleque de mitologia, são coisas que ele está vivendo ali, no
dia a dia; são questões fundamentais. Tudo se faz a partir
das funções que cada uma dessas pessoas ocupa: política,
economia, percebe? É uma análise bastante interessante.
Por sobre essa percepção você pode colocar o que você
chama de ideológico, filosófico, etc.
Lucienne – Em relação à função de professor, essa ideia
de trabalhar a partir do que o outro reconhece deve ser
muito potente.
Abreu – Com certeza. Partir do material que eles, alunos,
trazem, é muito potente. Isso é base para o meu trabalho.
15
Eles trazem o material, e a partir do material é que eu vou
analisar o ponto de vista. Se aquele material abre uma discussão do ponto de vista aristotélico, ótimo. Se não, não.
Se é dramaturgia de unidades independentes, de uma forma muito mais épica, então será isso. Dois protagonistas?
Vamos ver o que a gente ganha com isso?! Sim, vamos ver
o que a gente ganha e o que a gente perde. Os alunos
trazem muitos materiais que são inacreditáveis, também.
Eu falo: “Ok. Você quer fazer isso mesmo? Você vai ter
problemas, mas vamos lá.” Eu, como orientador, não vou
facilitar o trabalho, muito pelo contrário; não tenho que
facilitar nada. Senão o projeto será meu. O meu projeto
eu já faço fora da sala de aula, o meu projeto pessoal.
Lucienne – Agora uma pergunta a respeito do personagem. Podemos dizer que ele é feito essencialmente de
ação? Vejo que, ultimamente, a palavra toma cada vez
mais conta de qualquer tipo de coisa que possa
ser conhecida como ação. O
que você poderia
dizer sobre isso?
Abreu – Isso tem
bastante da ideia
de que teatro é diálogo. Não é verdade. Isso vem do
século XIX e do século XX, e chegou
até aqui. As pessoas
falam mais e agem menos. As pessoas articulam muito mais o discurso e menos a ação.
Lua
Isso não é um problema
Ouvi a
reu
Um dia
. de Ab
A
ís
u
só do teatro, é um pro- Texto de L
blema da vida também.
Parece
que estamos numa sociedade de falastrões. A
gente fala demais. Eu tenho a impressão disso. A gente
conseguiu chegar no século XXI com a articulação do discurso muito elaborada, e com baixo nível de articulação
de ação. Tem uma dissintonia que está próxima do ser
humano. Mas isso tem uma razão de ser: a fala talvez seja
a coisa que a gente aprende desde pequeno. E de novo
se confunde teatro com fala. Teatro é uma síntese comum
e total das coisas. Este é um problema muito apontado
no teatro, do personagem expressar muito mais um discurso (ou uma retórica discursiva, o que é pior ainda) do
que uma ação. Isso é uma dificuldade fundamental, porque o teatro é uma arte extremamente sintética. Num
curto espaço de tempo a gente tem toda uma trajetória
humana, específica, clara, uma síntese bastante grande.
16
No entanto, o teatro se expressa, desde seu nascimento,
através das palavras. É uma arte oral. E aí vai gerar toda
esta confusão. Se a gente aprende, por exemplo, que no
melodrama o diálogo tem mais importância que os elementos narrativos e poéticos, a gente vai percebendo que
o teatro começa a se aproximar perigosamente da fala. É
só juntar isso com a televisão, que é uma arte naturalista,
do diálogo e das falas por excelência: não existe nada mais
“anti-teatro” do que isso. São personagens desprovidos
de ação. Mas personagem é o que ele faz, não o que ele
fala. Pode ser o discurso, mas desde que por trás desse
discurso a gente perceba exatamente o que ele faz. Essa é
uma questão difícil de ser resolvida, mas se pode “limpar
a área”. Diálogo não é conversa, isso já elimina muita coisa. Não é este diálogo fático do “bom dia”, “boa tarde”,
“tudo bem?”. Não,
esse diálogo não. Seria
muito mais expressão.
O personagem fala –
e isso que eu acho
legal no teatro! - ele
fala aquilo que não
pode mais conter.
Há uma ebulição
tão grande nele
que o obriga a falar. Mesmo quando, na verdade,
ele queria ser
mudo. Se o personagem fala
demais, se ele
tem uma compulsão a falar,
para que ele seja
um personagem ativo o público
logo vai identificar que a quantidade das coisas que
ele fala não tem importância nenhuma. O que é importante é que está sendo obrigado a falar. Isso, sim, pode ser
interessante. Gosto de construir o personagem sempre a
partir da ação, nunca a partir do diálogo. O diálogo tem
uma potência bastante grande, tem força. Mas é necessário primeiro saber trabalhar isso. Depois fazer com que o
diálogo não seja desconectado do personagem; o personagem não pode ser desconectado da ação. Essa é uma
questão fundamental.
Lucienne – Desde janeiro de 2010 existe o DCC (Dramaturgia Concisa Contemporânea), um evento mensal do
Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, em que os dramaturgos escrevem na hora ou trazem escritas cenas teatrais
prontas, para serem lidas. Muitas dessas cenas são estruturadas com diálogos. Como tenho acompanhado esses
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
eventos, percebo que muitos dos textos querem representar ideia de “vazio”, criam personagens que ficam conversando sobre algo indefinido. E o público parece gostar
muito disso.
Abreu – Por que é que as pessoas gostam dessas coisas?
Eu sempre me pergunto isso. Aristóteles falou muito sabiamente da mimese. A pessoa tem um prazer enorme
na mimese. Se você subir a um palco e andar como uma
galinha, e o público reconhecer uma galinha, ele vai adorar esse tipo de coisa, porque é o milagre da mimese! Isso
não quer dizer que você fez teatro. Isso não quer dizer
que você fez uma coisa muito importante, que foi uma experiência! Apenas foi o prazer da mimese. Como um malabarista, que você fica olhando e aplaude no final. Percebe? Mas isso é teatro? Faz parte do teatro, é um elemento
teatral, um jogo. Isso pode até quebrar a sisudez do teatro, mas eu sei que é um elemento. São jogos, são brincadeiras que fazem parte do cabedal dos materiais cênicos,
mas não é teatro. É necessário fazer o material todo ser
potente, como experiência; aí chegamos no
teatro, a uma linguagem artística.
Material cênico tem
de monte.
Lucienne
–
Você diz que
é necessário,
para quem faz
teatro, entender
o que o público
quer, o que precisa, como ele pulsa,
e ainda facilitar o
encontro com esse
público. Como podemos saber o que quer
o público?
Abreu – Sim, passa por
aí, por conhecer a necessidade do público. Eu também sou público. Eu preciso me
olhar, olhar para o meu material, saber para onde é que
eu estou indo. Ali, puramente, sabe? Eu gosto muito de
música erudita, por exemplo. Mas eu sei que eu não posso fazer um espetáculo só de música erudita. Então, esse
“gostar” não serve. Mas alguns elementos servem, aqueles que me tocam com a sensibilidade. Não aqueles que
tocam apenas pelo meu conhecimento de música erudita,
mas aquilo que me toca mesmo, que me deixa de boca
aberta. Como saber o que toca o público? Esse público
tem todo um pé na cultura, tanto na mais popular como
na mais erudita. É isso que tenho que investigar. O que o
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
público quer a gente nunca vai saber de fato, mesmo. Mas
a gente tem bons indicativos. Eu sei, por exemplo, que
uma melodia emociona, nos toca. Por mais que seja música dodecafônica contemporânea, a melodia toca. Eu sei
que uma bela melodia está tanto numa música sertaneja
como em Bach. Ezra Pound diz que a música apodrece
quando se afasta da dança, do ritmo. Isso é verdade, apodrece mesmo. É uma equação que a gente vai fazendo: se
eu sei que a melodia é um elemento, e a pulsação é outro,
é aí que eu vou trabalhando. Sei que dá para tentar atingir uma universalidade. Eu sei, por exemplo, que poesia
não é um monte de palavras difíceis. São imagens potentes, sonoridades interessantes, então eu trabalho nisso.
Mesmo em casa, fazendo um trabalho sem pesquisa (sem
pesquisa entre aspas), porque eu estou sempre lendo, estudando, sempre olhando com esse olhar para as pessoas
e para as coisas. Não pesquiso tanto como eu gostaria
de pesquisar, mas tenho
esse trabalho, eu sei que a qualidade faz
diferença, no sentido de tentar dialogar com o público.
Percebe? Não é o
contrário, não é
falta de qualidade. Se eu usar o
contrário disso,
o público “vai
entender”; se
a
d
entende muiBoran u
Abre
e
to mais facild
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ís A
de Lu
mente com
Texto
uma linguagem
tosca. Agora: uma linguagem
elaborada vai segurá-los. Vai propor, talvez, uma experiência em que eles embarquem, uma
experiência que a gente precisa partilhar. A elaboração é
fundamental. Se a gente pega mesmo a cultura popular,
qualquer artefato visual, como por exemplo as vestimentas do Bumba... aquilo é de uma elaboração tão grande...!
Dali vão surgir coisas elaboradas; não é qualquer coisa
não. Esse é o critério para mim. Muito mais do que os
temas, importa é como eu posso trabalhar com qualidade
com eles.
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O ÚLTIMO
Gregory Haertel
1 – Início
(O Homem está sentado em uma poltrona, de costas para
o público, observando uma TV ligada. Várias imagens aparecem na tela e, entre elas, imagens da cidade de Paris. O público não vê o rosto do Homem. Ele bebe uma long-neck no
gargalo e come fatias da pizza que está jogada ao lado da sua
poltrona. Depois de um longo tempo aparece, na tela, o close
do rosto de uma mulher coberto com uma burka. Quando o
plano fica mais aberto, percebemos que a imagem é de um
país do oriente médio, onde várias pessoas caminham pelas
ruas.)
Homem: Sabe qual a única merda de todos estes países
árabes? (dá uma mordida na pizza) A burka. A burka não
esconde o rosto. A burka esconde a alma. Ela torna a mulher dos teus sonhos e uma mulher-bomba iguais. A ingênua e a terrorista, iguais. Nenhuma diferença entre elas.
Foi a burka que instaurou a desconfiança no mundo. É a
ditadura de Dalila, a mulher que dorme contigo e depois
corta os teus cabelos e tira a tua força. Daí tu vais definhando até morrer bem devagar. Magro. Seco. Sozinho.
Desconfiando de tudo. Tá na bíblia. Tá certo que lá na
bíblia tá meio diferente: lá o cabelo do cara cresce rápido
e ele derruba uma construção. Mas na bíblia a Dalila é
uma só e hoje em dia a Dalila é todo mundo. Um mundo
de Dalilas. Homens e mulheres. Não dá pra confiar em
ninguém. Todos Dalilas. (pausa. O Homem dá mais uma
mordida na pizza e depois se justifica) Eu não sou cristão
nem anti-muçulmano ou qualquer porra dessas. Nem de
Deus, nem de Alá. (olha para o rosto da tela) Eu só queria
ver por trás da burka. A expressão do rosto. (desvia os
olhos) O que tu estás sentindo. Eu só queria não precisar adivinhar se tu estás sorrindo ou não. Quem tu és. O
que tu queres. Quem são essas pessoas que estão por aí,
nas calçadas, nos teatros, chorando em casa, correndo,
dormindo, vendendo coisas nas ruas. O que é que tem
por trás disso tudo. (muda o tom) ‘Leg! Leg!’. Eu vi num
documentário. O sujeito falava ‘leg!’ e eu tentava entender o que aquilo significava. ‘Leg!’. O cara gritava ‘leg!’
e a câmera permanecia no rosto dele. Em close. Aquela palavra que não fazia o menor sentido pra mim era o
sentido dele estar ali. O sentido da vida dele. Os olhos
dele brilhavam quando ele falava ‘leg!’ e eu pensava ‘que
merda é essa? É de comer? É de jogar?’. ‘Leg!’. ‘Leg!’ pra
ele era igual a ‘deus’ para os meus avós. Ambos falavam
acreditando mesmo que a gente entenderia. Parecia tão
simples. ‘Deus!’. ‘Leg!’. E de repente todo o caos parecia ter um sentido... (na TV aparece o rosto de uma outra
mulher. O Homem se aproxima da tela e agora passa a falar
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diretamente para a pessoa da tela) Sai daí e vem até aqui.
Eu quero poder tocar o teu rosto e não só imaginar que
eu estou tocando o teu rosto. Eu quero poder tirar a tua
burka e entender o que tu estás sentindo e não só imaginar tudo isso. Eu te quero aqui perto porque assim, do
jeito que tu estás, eu não sei se és de verdade ou se és
apenas uma imagem criada por alguém e depois aceita
por mim. Eu não sei se tu és essa mulher que imagino que
tu sejas ou se tu és somente a mulher que alguém criou aí
para me fazer acreditar que tu eras a mulher que eu imaginaria. E se fores como aquelas mulheres de disque sexo
que, enquanto gemem, fazem as unhas dos pés e tiram os
bobs dos cabelos? Como é que vou saber? Como é que
vou saber o que tu és se eu não sei nem se tu existes?
Vem aqui e encosta em mim. Só assim, chegando perto,
tocando, encostando, sentindo, pra gente ter certeza de
que as coisas são de verdade.
2 – Notícias
(acompanhado por imagens do que está sendo dito, na TV)
Homem (continuando): Mas vocês não querem isso, não
é? Vocês, homens e mulheres, Dalilas dos dois sexos, não
querem isso. Vocês não querem contato, não é? Vocês
querem entrar num avião com quinhentos e quarenta
passageiros e se jogar contra o maior edifício da maior
potência do mundo, não é? Porque assim vocês se mostram sem precisar tirar a burka. Assim vocês se afirmam.
(imagem das torres gêmeas) Um avião contra a dupla ereção dos Estados Unidos. Não que vocês não tenham razões. Os Estados Unidos são um país de merda. Um país
de outdoor. Tudo o que vocês escondem eles realçam.
Tudo o que vocês resguardam eles exageram. A burka da
Britney Spears é raspar o cabelo na frente de um paparazzi e mostrar a periquita depilada pra todo mundo ver. A
burka da Lady Gaga é aparecer feito um bife mal passado
na TV. A burka do Obama é se fazer de bom moço. Vocês
falam ‘jihad’ como eles falavam ‘cruzadas’. Eles falam ‘terror’ como tu falas ‘justiça’. Tem mais é que deixar a barba
comprida e colocar uma máscara na cara e apontar pro
alvo e explodir com tudo pra ver se a dor ajuda a raspar
a maquiagem e tirar a burka e mostrar o rosto de verdade, um rosto que a gente possa tocar e falar ‘tas triste?’,
‘tens rugas?’, ‘tás com medo?’, ‘algumas vezes te sentes
sozinho?’, ‘algumas vezes?’, ‘pelo menos algumas vezes?’.
(toma a cerveja) Mas como é que a gente pode não se sentir sozinho se a única outra opção é conviver com alguém
que mais cedo ou mais tarde vai cortar o teu cabelo e tirar
a tua força? Cada um que fale a sua língua e não me encha
Revista de Teatro Porto Cênico - Dramaturgia | Pedagogia – Linguagem - Panorama
o saco! ‘Leg!’. Joguem uma bomba em tudo e me deixem
em paz! (pausa. Repensa o que acabou de falar)
Eu não quero que ninguém sofra. Nunca quis. Acho injusto. Eu não quero que ninguém morra. Mas quando não
é aqui, quando não é em mim, quando não tá pertinho,
não é o cara, é só a imagem do cara. Então, ó, dane-se. É
a imagem do cara levando um tiro e daí eu penso ‘foda-se se a imagem do cara tá levando um tiro, a imagem do
cara não tem pele, a imagem do cara tem pixel e pixel não
sente, não é?’. Daí eu fico pensando naquele casal que
jogou a filha de sei-lá-que-andar da merda do prédio onde
eles moravam e fico achando que deve ser feita justiça
porque a pobre da menina que eu nunca vi na vida foi
assassinada pelos pais e daí eu penso ‘vamos matar esses
pais de merda’ porque eu não conheço nenhum deles e
é muito mais fácil matar quem a gente não conhece do
que conhecer quem a gente quer matar. (imagem do casal
Nardoni na TV. Ele fala para o casal) Assassinos! (fala para
todos) E é só isso o que eles se tornam: assassinos. Eu falei
‘assassinos’ e pronto, legenda neles: assassinos. E eu os
vejo cobrindo o rosto para entrar no tribunal e não penso
que talvez as pernas deles estejam tremendo e que talvez
o coração esteja acelerado e que eles talvez estejam pensando na merda que fizeram e que destruiu a vida da filha
e a vida deles. Eu penso apenas ‘taí o casal de assassinos
escondendo o rosto e entrando no tribunal’. Eu não estou
aqui para defendê-los. Eu não os conheço. Pra mim eles
são iguais ao Coringa ou outro personagem qualquer. Dá
logo um tiro, compra uns litros de catchup pra fazer de
sangue, bate uma foto, põe no jornal e tá pronto: dois vilões a menos no noticiário! Os papéis do William Bonner
e da Fátima Bernardes teriam bastante destaque naquela
noite. (abre outra long-neck e dá um gole) Jornal Nacional
dividindo o bloco do casal assassino com a notícia da morte do Steve Jobs. Quer saber? Perfeito! Pra mim o cara é
um gênio. Ele e o carinha do facebook. Aproximaram o
mundo. Todo mundo se conhece e ninguém precisa sentir
o cheiro do outro. Muito melhor. Vida sem viscosidade,
sem saliva, aperto de mãos sem mãos, conversa sem mau
hálito. Um mundo sem Dalilas, sem pessoas, sem ninguém pra te puxar o tapete. Tudo aqui. (aponta pra própria
cabeça) A porra da vida existindo só aqui! (continua apontando para a própria cabeça. Volta a falar do Steve Jobs) E o
cara morreu. Pelo menos é o que dizem. Ele, o Michael
Jackson, o Coringa, a filha dos Nardoni, o personagem do
Brokeback Mountain, o ator do Brokeback Mountain, a
Odete Roitman, o Tancredo Neves, o Pasquim, o carinha
do Filadélfia e até o papa João Paulo II. Todos morreram.
Eu vi. Numa dessas até eu morri e não sei. Tá tudo aqui
(aponta de novo para a própria cabeça. Depois o Homem se
senta novamente de frente para a TV e de costas para o público e observa uma sucessão de imagens de tiros e mortes,
Edição nº 03 - Ano 2014 - Itajaí / Santa Catarina / Brasil
reais ou de desenhos animados e filmes. O indicador do Homem continua apontado para a sua têmpora. Aos poucos o
indicador do Homem começa a fazer a imagem de um revólver. Ele atira – com o seu indicador – contra a sua cabeça. As
imagens continuam passando. Depois de algumas imagens
o Homem fala exaltado) Tás vendo isso, meu filho? Meu
filho? (pausa) Meu filho. Meu filho, tas assistindo? Chega
(o Homem desliga a TV. O Homem pega um gravador, coloca
uma fita virgem e começa a falar com o Filho)
3 – Narração para o Filho
Homem: O dia aqui está como ontem, pelo menos dentro de casa. (pausa) Eu estou bem. Eu pedi uma pizza há
dois dias e ela tá durando bastante (dá uma mordida na
pizza). Na verdade, acho que estão aumentando a circunferência da pizza. Ou colocando mais fermento na massa. Pelo menos ela está durando mais. (pausa) Calabresa.
Sem cebola (dá outra mordida na pizza). Depois de velha
ela resseca um pouco e as últimas fatias ficam meio rançosas, meio sem gosto. Eu até já tentei esquentar no microondas mas daí ela fica mole demais como se fosse um erro
querer esquentar um pedaço de pizza que devia ter sido
comido há pelo menos uma dia e meio. Melhor assim:
fria. (dá outra mordida) Faz tempo que não recebo notícias
tuas. Como estão as coisas por aí? Vou mandar esta fita
pra Paris. Praquele endereço que me deste. Eu quero que
tu ouças a minha voz como eu ouço a voz do Sarkozy. E
eu queria que tu visses o meu rosto como eu vejo o rosto
da Carla Bruni na TV, mas da última vez que eu me filmei
a fita parou na alfândega. Eu não gosto de webcam: não
sou eu quem me filma, é ela quem me manda pro outro
computador. Tu também não gostas, eu sei. E eu não quero que me vejas além do que eu me permito te mostrar.
Eu quero que sintas falta de mim do mesmo jeito que eu
sinto falta de ti. E eu quero que imagines o que eu estava
fazendo enquanto eu me gravava pra ti do mesmo que jeito que eu vou imaginar o que estarás fazendo quando me
escutares em teu toca fitas. Em Paris. Perto da torre Eiffel.
O meu único filho. Que não está aqui perto. Aquele que
dá sentido à minha vida. Aquele que me completa. Sabias
que a minha vida vai acabar em ti? A vida de um pai acaba
no filho. O filho é o último passo do pai. Depois acaba.
Mais nenhum passo. Mais nenhuma história. No neto, a
gente já está tão diluído que é quase homeopatia. (o Homem se levanta e procura um CD. Enquanto ele procura pelo
CD, ele continua falando com o Filho) Sabes o que eu estava
fazendo? Vendo as notícias. (Ele coloca o CD e começa a
ouvir uma música) É um dos meus CDs preferidos. Obrigado.
(ouve uma parte da música) Sempre que eu converso contigo eu tenho vontade de falar das coisas que fizemos juntos, mas eu não me lembro de nada. O que é que nós fizemos juntos? Eu não me lembro. Me ajudas? Me ajuda que
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eu te falo do tsunami no Japão. Me ajuda que eu te falo do
novo disco do Chico. Me ajuda que eu te falo de qualquer
coisa que querias saber... Se eu ficar uns segundos quieto
vai ter tanta coisa acontecendo que não vai fazer a menor
diferença pro mundo eu estar falando ou não. (o Homem
liga a TV e se cala. Notícias de todo o mundo, também em
off, se cruzam. O CD continua tocando. O Homem abaixa
totalmente o som da TV e volta a falar. A balbúrdia diminui e
voltamos a ouvir apenas a música) Sentes falta de mim? Não
precisas. Pra falar bem a verdade, eu não sinto tanta falta
de ti. (o Homem desliga o gravador. Desliga o CD. Leva a fita
até um toca fitas e a rebobina um pouco. Ouve a parte final
do que falou. Quando chega no final – ‘não precisas. Pra falar
bem a verdade, eu não sinto tanta falta de ti’ – o Homem
apaga estas frases. Ele ouve novamente o final da fita, a rebobina por completo e a coloca em um envelope no braço da
poltrona. Escreve o nome do Filho em um lado do envelope e
o seu próprio nome no outro. Depois o Homem aumenta um
pouco o volume da TV e volta a se sentar na poltrona, de costas para o público. Ele come mais uma fatia de pizza e toma
mais um pouco da long-neck. Na TV, um comercial de novela.
De costas, o Homem narra) O meu filho vai receber a fita
pelo correio e não vai entender. Ele vai ler o meu nome e
se lembrará de mim. Antes de abrir o envelope, algumas
imagens de coisas que vivemos juntos passarão pela sua
cabeça. Talvez ele se emocione e abra logo o envelope.
Talvez ele espere pela mulher ou pelo companheiro para
só então escutar a fita. E naquele momento, quando ele
começar a me ouvir, eu não sei como, eu vou saber disso.
Eu vou saber que ele estará me escutando. E nós dois, ele
e eu, estaremos de algum jeito juntos. O meu filho e eu.
(fala como se citasse algo) ‘O que nasceu de mim a mim
retornará, e a voz da sua garganta preencherá em meus
ouvidos o que nenhuma outra voz, e nem mesmo outro
grito, algum dia conseguiu’. (O Homem aumenta muito o
volume da TV – ao ponto do volume ficar muito incômodo
para o público – e fica olhando para a TV, de costas para o
público. Depois de um tempo, o Homem se vira e agora ele é
o Filho que mora em Paris e que acabou de receber o envelope com a fita cassete.)
4 – Contraponto do Filho
Filho (chamando a sua mulher): Amelie? Amelie? (o Filho
procura o controle da TV) Amelie? (encontra o controle e
desliga a TV) Que volume é esse? Tás meio surda, é? (o
Filho encontra o envelope onde está a fita. Ele pega o envelope e lê o nome do remetente. Caminha de um lado para o
outro sem saber ao certo o que fazer. Finalmente ele busca
uma tesoura e o abre. Retira a fita cassete de dentro e dá
uma risada divertida – como se pensasse como o seu pai está
atrasado com a tecnologia. Chama mais uma vez pela sua
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mulher) Amelie! (depois o Filho procura pelo toca-fitas até
que o encontra. Ele coloca a fita para tocar, comentando, de
vez em quando, sobre a gravação)
Homem (na fita): O dia aqui está como ontem, pelo menos dentro de casa. (pausa) Eu estou bem. Eu pedi uma
pizza há dois dias e ela tá durando bastante. Na verdade,
acho que estão aumentando a circunferência da pizza. Ou
colocando mais fermento na massa. Pelo menos ela está
durando mais. (pausa) Calabresa. Sem cebola.
Filho: Eu gosto de Calabresa. Tu te lembras disso...
Homem (na fita): Depois de velha ela resseca um pouco
e as últimas fatias ficam meio rançosas, meio sem gosto.
Eu até já tentei esquentar no microondas mas daí ela fica
mole demais como se fosse um erro querer esquentar um
pedaço de pizza que devia ter sido comido há pelo menos
uma dia e meio. Melhor assim: fria. Faz tempo que não
recebo notícias tuas. Como tão as coisas por aí?
Filho: Bem, meu pai. A Amelie não para muito em casa e
eu sinto saudades de ti, mas estão bem. Ontem eu ainda
tinha falado de ti pra ela. Eu tinha falado que eu não me
lembrava do teu rosto... mas agora eu reconheço a tua
voz.
Homem (na fita): Vou mandar esta fita pra Paris. Praquele
endereço que me deste. Eu quero que tu ouças a minha
voz como eu ouço a voz do Sarkozy. E eu queria que tu
visses o meu rosto como eu vejo o rosto da Carla Bruni
na TV, mas a última vez que eu me filmei a fita parou na
alfândega. Eu não gosto de webcam: não sou eu quem me
filma, é ela quem me manda pro outro computador. Tu
também não gostas, eu sei. E eu não quero que me vejas
além do que eu me permito te mostrar. Eu quero que
sintas falta de mim do mesmo jeito que eu sinto falta de ti.
Filho: Eu sinto.
Homem (na fita): E eu quero que imagines o que eu estava fazendo enquanto eu me gravava pra ti do mesmo que
jeito que eu vou imaginar o que estarás fazendo quando
me escutares em teu toca fitas.
Filho: Tá bom. To imaginando. (ri, imaginando a cena)
Homem (na fita): Em Paris. Perto da torre Eiffel. O meu
único filho. Que não está aqui perto. Aquele que dá sentido à minha vida. Aquele que me completa. Sabias que a
minha vida vai acabar em ti? (a expressão do Filho muda e o
sorriso em seu rosto desaparece) A vida de um pai acaba no
filho. O filho é o último passo do pai. Depois acaba. Mais
nenhum passo. Mais nenhuma história. No neto, a gente
já está tão diluído que é quase homeopatia. (pausa) Sabes
o que eu estava fazendo? Vendo as notícias.
Filho: Pra variar. (na fita, começamos a ouvir a música)
Homem (na fita): É um dos meus CDs preferidos. Obrigado. (o Filho vai até o lugar onde está a capa do CD – a
mesma que o Homem havia deixado na cena anterior – e a
pega entre as mãos) Sempre que eu converso contigo eu
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tenho vontade de falar das coisas que fizemos juntos, mas
eu não me lembro de nada. O que é que nós fizemos juntos? Eu não me lembro. Me ajudas? (o Filho se emociona)
Me ajuda que eu te falo do tsunami no Japão. Me ajuda
que eu te falo do novo disco do Chico. Me ajuda que eu te
falo de qualquer coisa que querias saber... Se eu ficar uns
segundos quieto vai ter tanta coisa acontecendo que não
vai fazer a menor diferença pro mundo eu estar falando
ou não. (na fita, começa a balbúrdia das notícias)
Filho: Pai, a gente nunca fez nada juntos! A gente nunca
fez nada juntos porque tu nunca precisaste de mim. (o
Filho vai se emocionando mais à medida que fala) Tu tinhas
tudo! Tu sabias de tudo! Como é que tu poderias me querer se o teu tempo servia apenas para todas as respostas
que inventavas para as tuas próprias perguntas? ‘Desconfia de tudo. As pessoas têm máscaras. Elas não são o que
elas parecem’. E tu és o que, meu pai? E eu, sou o quê?
‘Tu podes escolher o mundo em que queres viver’. Tu escolheste? ‘Olha os dois lados da questão. Examina bem.
Conversa contigo. Se consegues te colocar no lugar do
outro e entender o ponto de vista dele, podes começar
a entender o mundo’. Que outro, meu pai? Existe algum
outro além de ti? Existe algum outro quando a gente passa
a vida inteira tentando conhecer tudo e todos os lados
de tudo e tudo o que tudo quer dizer? Existe algum outro além do tudo? Existe algum outro além de ti? Eu? Eu
sou esse outro? O filho que tu nunca tiveste? O filho que
não tinha lugar nesse teu mundo tão cheio de lados e conhecimentos e desconfiança e razão? Nesse mundo que
tu tanto conheces? Nessa porra de mundo onde tu sabes
tanto? Nessa porra do teu mundo? (o Filho liga a TV, sem
volume) Nessa merda do teu mundo? (na TV, uma cena
feliz qualquer. O Filho demora um pouco até se recuperar.
Depois, o Filho conta nos dedos os segundos enquanto a cena
da TV se desenrola) Um, dois, três, quatro, cinco. (a cena
continua rolando na TV. O Filho fala) Olha, meu pai, eles, ali,
nestes cinco segundos, viveram mais do que tu em toda
a tua vida.
Homem (na fita): Sentes falta de mim?
Filho: Merda.
(a fita continua tocando, mas não existe mais nada nela. O
Filho se dirige até a poltrona e desistindo, se senta. A TV
continua sem volume. O Filho pega a long-neck e toma um
gole. Depois dá uma mordida em uma fatia da pizza. A cena
volta a ser igual à cena de início. Sem que o público perceba,
o ator volta a interpretar o Homem. O Homem se senta na
poltrona de costas para o público)
5 – A Solidão do Conhecimento (Leg!)
(Na tela, o rosto de um vendedor de rua. Dá para observar
os transeuntes passando sem prestar muita atenção nele. A
imagem é de documentário de TV. O vendedor de rua grita
‘Leg!’ e não é possível entender o que ele quer dizer. ‘Leg!
Leg!’. O vendedor de rua continua gritando e os transeuntes desviam sem prestar muita atenção. O Homem continua
tomando a sua cerveja e comendo fatias da pizza. Só depois
de algum tempo a câmera abre e se revela ao público que o
vendedor de rua quando gritava ‘leg!’ estava simplesmente
vendendo uma calça leg. A imagem permanece algum tempo assim, aberta, mostrando o vendedor gritando ‘leg!’, as
calças leg e os transeuntes passando. A luz da cena diminui)
Homem (sentado na poltrona): Sentes falta de mim? Não
precisas. Pra falar a verdade, é bem melhor que tu não
existas. Eu não sinto nenhuma falta de ti. (o Homem aumenta o volume da TV. Luz diminui até o Black. Por fim, a
imagem da TV desaparece – não é o Homem que a desliga).
FIM
Gregory Haertel é dramaturgo atuante, possui vários textos montados
por diversificados grupos de Santa Catarina, reside na cidade de Blumenau/SC e possui trabalho continuado com a Cia Carona de Teatro.
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Realização
Grupo Porto Cênico Itajaí (SC) - Brasil
www.portocenico.com.br
Grupo filiado à
foto: Ana Beatriz de Oliveira
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