1 PREFÁCIO António Campos é uma personalidade singular. De vários pontos de vista: humano, cívico, técnico e como estudioso dos fenómenos rurais, num mundo globalizado. Filho de uma família abastada da Beira, republicana e anti-clerical, de Oliveira do Hospital um tio paterno, que o educou, depois da morte do Pai, tinha um prestigiado Colégio na então vila feito o liceu, no referido colégio, rumou para a Alma Mater fazer o curso na Escola Agrícola de Coimbra, de regente agrícola, como então se chamava. Mas, para além do curso, participou, em Coimbra, intensamente na vida estudantil e na boémia pataqueira do tempo. Noitadas, jantares, serenatas, namoros, pégas de toiros... Mas também em apaixonadas discussões políticas, porque a Academia do seu tempo despertava, por forma radical e empenhada, para a luta contra a ditadura e contra as guerras coloniais. No entanto, António Campos, activista dessas lutas políticas, desde novo, nunca se deixou contaminar pela febre do radicalismo (comunista ou maoista), talvez graças ao efeito da pedagogia democrática do seu tio, inclinando-se, desde muito cedo, para o socialismo democrático. Aliás essa via foi facilitada pela fortíssima amizade que fez com Miguel Torga (de quem foi rendido admirador, companheiro de caça e ouvinte atento das suas histórias) e com o velho patriarca da democracia, na Região, Fernando Vale, de quem foi sempre amigo, companheiro dedicadíssimo, correligionário e irmão maçon - a Maçonaria era então clandestina - onde aliás entrou pela austera mão desse Mestre. Note-se que Fernando Vale participou, em 1973,no Congresso fundador do Partido Socialista reunido na clandestinidade, em Bad Munstereifeld, na Alemanha Federal. António Campos, que foi membro activo, desde 1964, da Acção Socialista Portuguesa (ASP) e grande entusiasta da sua transformação em Partido, só não esteve presente no Congresso porque um dos seus filhos teve um grande desastre, dias antes da sua partida. Conheci António Campos na ASP. Mas só me tornei amigo dele do peito, como se diz - muito mais do que correligionário - depois do meu regresso de S. Tomé, em pleno consulado caetanista, em Novembro de 1980, quando me convidou para ir a Coimbra fazer uma espécie de conferênciadebate numa "República de Estudantes" que se chamava "Prakistão". Foi uma experiência que não esqueci. O esquerdismo grassava entre os estudantes, que se mostravam poucos dispostos a ouvir e, menos ainda, a simpatizar com um socialista moderado, como eu, com uma ideia clara para um Portugal democrático, desembaraçado das colónias, europeu e progressista. Parecia pouco, então, àqueles jovens que transpiravam Revolução (com R grande)por todos os poros. Ansiavam pelos "amanhãs que cantam"... António Campos, contudo, manteve-se firme na brava discussão, para que me convidara, sempre solidário e ao meu lado, embora eu representasse outra geração que não a dele. Eu tinha então 42 anos, muito vividos e aventurosos, enquanto Campos tinha trinta e poucos e o seus amigos da "República" não teriam mais de vinte e tal... Desde então, ficámos amigos fixes, camaradas, cúmplices, envolvidos na fraternidade dos mesmos combates. Foi um caminho longo, repleto de percalços, que percorremos, solidariamente, com um empenhamento total e sempre desinteressado, saboreando grandes vitórias - inesquecíveis - mas também algumas amargas derrotas. A que, aliás, soubemos resistir com dignidade e coragem, ao longo de quase quarenta anos. António Campos foi deputado desde as Constituintes e nas seguintes. Para tanto, mudou-se para a área de Lisboa, primeiro, para Cascais e depois S. Pedro do Estoril - foi Secretário de Estado da Agricultura nos meus I e II Governos e Secretário de Estado Adjunto da Presidência do Conselho de Ministros, no IX, chamado do "Bloco Central" - e, mais tarde, durante dois mandatos, foi deputado europeu. Dirigente do PS, desde 1974, foi responsável pela organização do P.S - um lugar chave - cerca de dez anos. 2 Politicamente extremamente arguto, excelente camarada, simpático, aberto, espertíssimo, revelou uma enorme intuição para compreender - e fazer face - às situações políticas mais delicadas e para entender - e ajudar a resolver - os problemas dos camaradas mais problemáticos. Nos Governos socialistas ganhou uma riquíssima experiência tendo vivido, por dentro, as "tricas" internas e as relações de força de um grande partido democrático, fundador da democracia, como o PS. Sob esse aspecto, é uma "memória viva" que pode alimentar vários estudos de jovens investigadores desses anos decisivos para a construção da democracia portuguesa. Foi, no entanto, nos dez laboriosos anos que passou em Bruxelas e em Estrasburgo, como deputado europeu, que se pôs a estudar, em profundidade, os complexos problemas da agricultura comunitária (preocupado sempre com a tão arruinada agricultura portuguesa, cuja decadência anunciada nunca aceitou) e com os problemas que a alimentação e a saúde das populações implicam. Sobretudo, dada a pressão interessada das grandes cadeias multinacionais, em tempo de globalização. Com efeito, essas pressões revestem para quem queira um futuro melhor para todos como é o caso - um enorme perigo e, por isso, devem ser encaradas com lucidez, conhecimento, informação completa e realismo. Fui testemunha presencial da actividade que exerceu António Campos no Parlamento Europeu - visto que nos últimos cinco anos do seu mandato de dez, fui seu colega e companheiro permanente - e posso falar, sem qualquer exagero, do respeito em que era tido pelos seus colegas da Comissão de Agricultura, apesar de algumas vezes ter votado sozinho tanto na Comissão como no Plenário do Parlamento. Foi a voz intemerata da razão, do conhecimento, do bom senso e da independência, em relação a interesses e lobbies, inaceitáveis, do ponto de vista ético. Quando, por exemplo, denunciou, corajosamente, o escândalo das "vacas loucas" e os perigos - e prejuízos imensos - que essa doença iria revestir, como tem sucedido, para a saúde pública. Foi nessa denúncia um pioneiro intemerato e o tempo deu-lhe razão. Como hoje é, aliás, geralmente reconhecido, mesmo por aqueles que, na Pátria, se ergueram contra as suas tão legítimas chamadas de atenção e o apontaram a dedo, exclamando que "o louco era apenas ele"! Infelizmente a memória das pessoas é em geral muito curta... O modesto prefácio do livro que ora tenho a honra de apresentar, "Agricultura, Alimentação e Saúde", foi feito por insistência amiga de António Campos. Não sem ter sérias hesitações. Reconheço que não tenho competência técnica para falar sobre o livro de António Campos. Aceitei o seu convite como simples cidadão, vivamente empenhado na resolução destes problemas tão importantes para Portugal. Por se tratar de um livro original que traduz uma longa e informada conversa entre o Autor e o jornalista Rui Cavaleiro. É este último, de resto, que inicia o diálogo, pondo-lhe esta perturbadora pergunta: "como é que daqui a dez ou vinte anos se comportará o mundo rural europeu?" A este desafio, António Campos responde, com números em apoio, referindo os gastos, em subsídios, da União Europeia para proteger uma parte da sua agricultura e a "aliança espúria e entre a União e os Estados Unidos. Foi essa aliança que levou a Organização Mundial do Comércio - ao serviço exclusivo dos ricos - a permitir que o património genético agrícola pudesse ser apropriado pelas grandes multinacionais do sector. E exemplifica: "Recordo o que está a acontecer no México, onde as variedades autóctones do milho estão a ser trabalhadas com pequenas operações genéticas e patenteadas como sendo bens privados de empresas multinacionais". Ou seja, o que Campos chama: "a biopirataria da natureza feita pelas multinacionais"! O livro de António Campos é extremamente interessante e oportuno para quem queira compreender o que se está a preparar em matéria de agricultura, de alimentação e de saúde para um futuro próximo. Campos é um inimigo confesso da Política Agrícola Comum (PAC), à qual assaca grandes responsabilidades, inclusivamente no desregulamento da agricultura tradicional portuguesa. Na verdade, a PAC tem favorecido os grandes terratenientes e os grandes produtores de cereais (especialmente o trigo), carne e leite, em detrimento dos agricultores médios e pequenos e dos países em via de desenvolvimento. Estes abriram os seus mercados, por pressão da Organização Mundial do Comércio (O.M.C.), mas encontram os mercados europeus e americanos fechados à importação dos seus próprios produtos, em virtude da escandalosa política de subsídios concedidos aos produtores dos países ricos. Sendo uma conversa entre o Autor e o jornalista, aliás bastante informado, o livro de António Campos, em alguns momentos, ergue-se à altura de um verdadeiro manifesto contra as práticas imorais das grandes multinacionais agro- 3 alimentares e das políticas, definidas para o sector, pelos governos dos Estados Unidos e da União Europeia. O impasse da Conferência da Oranização Mundial do Comércio, em Cancun, várias vezes referido ao longo do livro, demonstra que países, com grandes índices demográficos como o Brasil, a China e a Índia, começam a abrir os olhos e a não suportar a retórica enganosa das grandes multinacionais, apoiada pela diplomacia dos Estados Unidos e da União Europeia. Num mundo em que a globalização selvagem que temos, influenciada pelo pensamento neoliberal, divinisa o mercado - e o dinheiro - como valores essenciais, em detrimento da ética e dos valores humanistas, é óbvio que os tráficos ilegais abundam (de armas, de drogas, de pessoas, de crianças, de orgãos humanos, etc.). Só os lucros auferidos por qualquer destes tráficos ilegais, se aplicados na luta contra a fome, dariam e sobravam para acabar com este terrível flagelo, eticamente incompreensível no Sec. XXI ou, pelo menos, para o minorar muitíssimo! O desassombrado livro de António Campos trata de temáticas que, como disse, são decisivas para o futuro da Humanidade. Exemplifico: a evolução do mundo rural; comércio e ajuda alimentar; agricultura e fome no mundo; problemas ambientais; agricultura e produção energética; agricultura e alimentação; o financiamento da Política Agrícola Comum (PAC); o problema da água; o caso das vacas loucas; riscos alimentares; o controlo da cadeia alimentar; os incêndios não são uma fatalidade; um modelo para a gestão florestar; ligação do campo à cidade; a ligação dos produtores aos consumidores; a escola e o mundo rural; os estrangeiros e o mundo rural; a organização da produção. Trata-se de um livro com uma grande densidade polémica. O que é bom: o debate conduz à consciencialização dos cidadãos. E ensina-nos imenso, sobretudo para aqueles que se sentem mais distantes do mundo rural: revelando-nos números e estatísticas impressionantes - em diversos enquadrados - ao longo de todo o livro que fazem reflectir os leitores. O livro contem ainda um glosário dos termos mais técnicos e uma indicação bibliográfica utilíssima. António Campos e o seu entrevistador estão de parabéns. Prestaram, com este livro, um excelente serviço ao conhecimento dos problemas do mundo rural e a uma futura maior participação dos cidadãos ao serviço do aprofundamento da nossa democracia. Como se diz na Beira, bem hajam, por isso! Lisboa, Março de 2005