ALIANÇAS, DISPUTAS E CONFLITOS: ENTRE A FAVELA E UMA
ESCOLA DE ELITE
OLIVEIRA, Amanda Prado de – FE - USP
[email protected]
Eixo Temático: Didática: Cultura, Currículo e Saberes
Agência Financiadora: Fapesp
Resumo
A pesquisa tem como principal objetivo analisar as relações – alianças, disputas e conflitos –
entre duas instâncias fundamentais do processo de socialização: a escola e a família. Tais
relações são abordadas por meio de uma investigação sobre o projeto Escola da Comunidade
do Colégio Visconde de Porto Seguro, que há 40 anos concede bolsas de estudo, do Ensino
Fundamental ao Ensino Médio, a crianças e jovens moradores da favela de Paraisópolis,
propiciando, assim, um encontro improvável: de um lado famílias de baixa renda, cujos pais
têm pouca ou nenhuma escolarização e, de outro, uma tradicional escola paulistana
reconhecida como uma “escola de elite”. Mais especificamente, interessa-nos, nesta pesquisa,
analisar as trajetórias de jovens ex-alunos bolsistas, tendo em vista apreender quais são os
efeitos sobre esses jovens da circulação cotidiana entre universos tão díspares, como o colégio
Porto Seguro e a favela, e como as diferenças curriculares entre estes alunos e os alunos
pagantes se configuram no dia-a-dia escolar e no futuro. Mais do que isso, analisa-se, aqui,
como família e escola se relacionam em uma situação tão pouco comum. As perguntas
norteadoras da pesquisa são: Qual a natureza dos conflitos e alianças entre essas duas
instâncias socializadoras na formação das trajetórias de vida desses jovens? Bem como, na
constituição dos seus projetos de futuro, sobretudo, no que tange à sua inserção sócioocupacional? Para tanto, nesta pesquisa, primeiramente, buscamos por meio de redes sociais
já constituídas, famílias que participaram do projeto em questão para entrevistar pais e filhos,
visando compreender como se dão as relações aqui expostas. As principais referências aqui
utilizadas serão de Pierre Bourdieu e suas conceituações acerca do capital cultural e do
habitus, Norbert Elias e os processos de socialização e Nadir Zago, que trata do avanço dos
estudos em camadas populares.
Palavras-chave: Socialização. Currículo. Escola. Relações intergeracionais.
Introdução
Esta pesquisa tem o intuito de analisar as relações entre duas instâncias fundamentais
de socialização – família e escola – em uma situação pouco comum: famílias de baixa renda,
com pais que possuem escolaridade muito reduzida, moradores da favela de Paraisópolis e do
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seu entorno, cujos filhos participam ou participaram de um projeto de escolarização regular
(Projeto Escola da Comunidade) promovido por uma escola privada, reconhecida como uma
das instituições de ensino responsáveis pela formação de grupos considerados de “elite” na
cidade de São Paulo, o Colégio Visconde de Porto Seguro.1
A família representa um papel fundamental na vida escolar dos filhos, papel que se dá
por meio de ações simbólicas ou materiais, desenroladas de maneiras muitas vezes sutis, e que
não ocorrem necessariamente de forma intencional ou consciente (ZAGO, 2000, p.20).
Estudos demonstram que as relações entre a família e a escola podem apresentar diferentes
níveis de conflito e/ou cooperação, o que está relacionado diretamente ao menor ou maior
nível de confluência de objetivos entre essas duas instituições (PRESTA & ALMEIDA,
2008). Neste sentido, as famílias de maior poder aquisitivo que, no Brasil, gozam do
privilégio de escolher as escolas de seus filhos dentro de uma extensa oferta de instituições de
ensino privadas, teriam maiores chances de constituir uma relação cooperativa com a escola
(PEROSA, 2009). Por outro lado, as famílias de classes populares, cujos conhecimentos sobre
o próprio funcionamento do sistema de ensino tende a ser bastante limitado, enfrentam
maiores dificuldades na relação com as escolas de seus filhos; além disto, estas famílias
vivem num contexto no qual a vida escolar é marcada, em geral, por um percurso acidentado,
permeado por reprovações e/ou evasões. (ZAGO, 2000).
O caso analisado nesta pesquisa, guarda a especificidade, como dito acima, de reunir
famílias de classes populares e um projeto de escolarização formal concebido por uma escola
privada, que seleciona seus bolsistas entre os moradores da favela de Paraisópolis. Neste
sentido, as relações existentes entre as famílias de Paraisópolis que participam do Projeto
Escola da Comunidade e o Colégio Visconde de Porto Seguro tem-se mostrado um campo
fértil para uma pesquisa com os objetivos centrais de (i) compreender de maneira aprofundada
as múltiplas dimensões das relações entre família e escola e (ii) analisar os efeitos desse
processo específico de escolarização sobre as trajetórias dos jovens bolsistas do projeto em
questão.
A partir disto, é importante destacar algumas características da favela de Paraisópolis,
que é a segunda maior da cidade de São Paulo (a primeira é Heliópolis), contando atualmente
1
A noção de “elite” é bastante controversa e será mais bem explorada ao longo da pesquisa. Provisoriamente,
estamos associando a noção de elite, basicamente, a dois aspectos: alto poder aquisitivo e alto nível de
escolarização, materializado em diplomas relativamente raros.
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com pouco mais de 80.000 habitantes. A região é formada pelos núcleos Paraisópolis, Jardim
Colombo e Porto Seguro, e localiza-se geograficamente na zona sul da cidade, ao lado de
bairros de classe média alta, como o Morumbi. A área onde hoje está situada a comunidade
fazia parte da Fazenda do Morumbi, que foi dividida em 2.200 lotes pela União Mútua
Companhia Construtora e Crédito Popular S.A., em 1921. A infraestrutura do loteamento não
foi completamente implantada, e muitos moradores que adquiriram esses lotes nunca tomaram
posse deles, deixando a área abandonada por muitos anos.2 A atual configuração dessa região
é resultado de um processo de sucessivas ocupações que tiveram início ainda na década de
1950, mas que se intensificaram a partir do final dos anos de 1970 e início de 1980.
De acordo com estudo de Almeida e D’Andrea (2004), Paraisópolis é uma favela
considerada como “local de ascensão social relativa”, comparativamente a outras favelas da
cidade. De acordo com esses autores, devido à localização próxima a bairros da elite
paulistana, a oferta de empregos (serviços domésticos, prestação de serviços, como pedreiros,
encanadores, eletricistas) é, em certa medida, muito maior e mais regular do que se pode
encontrar na maioria das favelas de São Paulo, o que tenderia a minimizar a probabilidade dos
jovens se envolverem com a criminalidade. Para além disso, Paraisópolis também tem se
constituído como um núcleo potencial de ações sociais e culturais que visam o “bem-estar e
desenvolvimento da comunidade”, colocadas em prática por uma rede de instituições
religiosas e organizações não-governamentais, o que também parece ter efeito sobre as
condições de vida da população desta favela.
Entretanto, considera-se aqui que, apesar dessa aparente “vantagem”, a população de
Paraisópolis apresenta demandas crescentes por trabalho formal, áreas de lazer e esporte,
saúde pública, segurança e direito à escola. É preciso ainda considerar que a proximidade
entre os moradores dessa favela e dos bairros de classe média alta explicita cotidianamente a
concretude e gravidade da desigualdade social em nosso país, o que parece fomentar e
aprofundar alguns conflitos, que já se materializaram em manifestações coletivas
(interpretadas como atos de vandalismo pelos meios de comunicação) e confrontos com a
polícia militar. Assim, poderíamos dizer que a favela de Paraisópolis, como qualquer outra,
também é marcada pela vulnerabilidade social de sua população, que conta com recursos
2
Ver:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/paraisopolis/historia/index.php?p=4385
5858
econômicos e culturais limitados, e cujo cotidiano é permeado por diversos problemas sociais
que a sua condição engendra.
O Colégio Visconde de Porto Seguro é uma das instituições que atuam junto à
comunidade de Paraisópolis. Trata-se de uma instituição de ensino tradicional da cidade de
São Paulo, foi fundada em 1878, como Deutsche Schule, única escola alemã da cidade, e
situou-se primeiramente no centro da capital. Atualmente conta com três unidades, sendo a
principal delas localizada no bairro do Morumbi. O Porto Seguro é reconhecido como uma
das maiores escolas voltadas para o atendimento da elite paulistana e compõe o grupo de
colégios com as mensalidades mais caras da cidade. Entretanto, apesar dessa identidade de
“instituição escolar de elite”, há cerca de 40 anos a Fundação Visconde de Porto Seguro,
mantenedora do Colégio, criou o projeto Escola da Comunidade, que atende do ensino
fundamental ao ensino médio crianças e adolescentes da favela de Paraisópolis, oferecendolhes bolsas de estudos.
Atualmente o Colégio se divide em três unidades fundamentais: Morumbi (Unidade I),
Valinhos (Unidade II) e Panamby (Unidade III). Cada uma delas conta com uma unidade de
Educação Infantil, denominada “Portinho”, que formam as unidades IV, V e VI. A Escola da
Comunidade situa-se no Morumbi (Unidade I), o que não significa que os alunos bolsistas
estudem junto com os demais alunos. Segundo informações cedidas pela própria escola, existe
um prédio para os alunos bolsistas da comunidade, e outro prédio para os alunos regulares –
eles não interagem de forma direta diariamente, apenas em festividades, possíveis viagens ou
eventos organizados pela escola.
Além disso, o Porto Seguro possui três currículos: o primeiro é o currículo brasileiro,
que abarca a grande maioria dos alunos; o segundo é o currículo alemão, que dispõe de uma
quantidade reduzida de estudantes (todas as aulas são ministradas na língua alemã); e,
finalmente, o terceiro, que é o currículo da Escola da Comunidade, que possui adaptações,
como a substituição das aulas de alemão por aulas de informática, por exemplo. A questão a
ser investigada neste ponto é de que maneira estes currículos são pensados e efetivados pela
escola cotidianamente, e quais os resultados obtidos para cada “necessidade” diferenciada de
cada grupo de alunos.
A escola da comunidade conta atualmente com cerca de 850 alunos, abrindo 30 vagas
anualmente para novos estudantes. Os materiais pedagógicos e de apoio são pagos pelo
5859
Colégio, e o quadro docente é o mesmo que o dos outros currículos, de acordo com
informações cedidas pela administração da escola.
É precisamente no encontro dessas duas “realidades” que nosso objeto de pesquisa é
delineado: as relações entre uma escola de elite, que se propõe a educar gratuitamente
crianças e jovens de uma favela – desenvolvendo para isso um currículo específico –, e as
famílias de Paraisópolis, cujos recursos materiais e culturais são bastante limitados. Interessanos também apreender os efeitos da passagem por essa escola sobre os projetos de futuro
constituídos pelos alunos bolsistas. A hipótese principal é que, diferentemente do que
acontece com as famílias que podem pagar uma escola privada e, portanto, escolhem a
instituição escolar dos seus filhos, de acordo com seus recursos financeiros e também pela
afinidade com a proposta pedagógica da instituição (PEROSA, 2009), as famílias de
Paraisópolis têm suas vidas “atravessadas” pelo projeto do Colégio Porto Seguro, que se
apresenta e é percebido como uma importante oportunidade de acesso à “educação de
qualidade”, que, na opinião das famílias de Paraisópolis, não poderia ser alcançada na escola
pública. Dito de forma sumária, acreditamos que, neste contexto, a probabilidade de família e
escola exacerbarem seus conflitos aumenta consideravelmente.
Poderíamos desdobrar essas considerações em várias outras questões: diante da
distribuição desigual tanto de bens materiais como simbólicos, tão marcante na sociedade
brasileira, qual seria o papel assumido por essa escola, que parece querer dar conta do que a
família não é “capaz” de oferecer aos seus filhos? E qual seria o papel da própria família
diante de uma instituição escolar que se apresenta como algo tão distante da experiência de
escolarização dos próprios pais? Quais seriam os efeitos dessas duas instâncias sobre a
constituição de projetos de futuro desses jovens? Como esses jovens conseguem mediar as
influências da escola e da família? Como concebem seu futuro em função de terem usufruído
de uma escolarização diferente daquela tida como “comum” na sua comunidade, ou seja, a
oferecida pela rede pública de ensino? Que tipos de expectativas quanto ao futuro são
construídas e legitimadas pela participação nesse projeto – tanto por parte dos alunos, quanto
das famílias e da escola?
Poderíamos dizer, assim, que, as trajetórias estudadas nesta pesquisa possuem uma
característica comum principal: terem sido cruzadas por uma “instituição salvadora”,
percebida como uma “opção” já dada e ratificada de qualidade e como materialização de uma
possibilidade de mobilidade social ascendente.
5860
Sendo assim, podemos dizer que essa pesquisa se insere em um debate mais amplo
que gira em torno da atual crise do papel educativo tanto da escola quanto da família e, por
outro lado, da “disputa” existente entre essas duas instituições no que tange à definição do
papel de cada uma no processo de socialização de crianças e jovens (de todos os extratos
sociais), bem como da possibilidade e/ou limite dessas duas instituições continuarem a
protagonizar o processo de socialização das novas gerações.
Acreditamos que o entendimento dos processos educativos desenvolvidos pela família
e pela escola só é possível se esses forem concebidos como parte do processo de socialização
como um todo, no qual precisamos considerar também a existência e importância de outras
instâncias socializadoras, tais como a igreja, espaços associativos, vizinhança, grupos de
pares, mídias etc. (SETTON, 2005)
Na pesquisa, o processo de socialização é entendido como a aprendizagem e
interiorização de códigos e normas da sociedade, processo este necessário para que um
indivíduo possa vir a fazer parte desta, de fato. (BERGER & BERGER, 2006). Neste
contexto, é bastante relevante a discussão suscitada por Norbert Elias (1994), na qual o
processo de socialização não se limita à interação entre um “dentro” e um “fora”
originalmente distintos, mas constitui uma função e um precipitado de relações, só podendo
ser entendido – como a imagem do fio numa trama - a partir da totalidade da rede.
Sendo assim, podemos considerar que a socialização é um processo fundamentalmente
ativo, que se desdobra durante toda a vida dos indivíduos por meio de novas experiências, o
que não ocorre exclusivamente através da escola e da família, mas estas são, sem dúvida,
basilares neste processo. Esta pesquisa se debruça, sobretudo, sobre essas duas instâncias,
analisando suas relações, sem, no entanto, desconsiderar a importância de outras instâncias de
socialização.
O problema geracional, a aquisição de capital cultural e a desigualdade social no Brasil
Vivemos hoje num país permeado por desigualdades sociais que persistem no tempo,
portanto, é de fundamental importância compreender os mecanismos que permitem a
reprodução destas desigualdades. Este tema tem sido de grande tradição no âmbito dos
estudos das Ciências Sociais e da Educação, e ainda suscita importantes investigações
sociológicas por sua atualidade e suas múltiplas facetas (ZAGO, 2007). A contribuição desta
pesquisa para essa discussão se situa na análise dos processos de distribuição de riquezas não
5861
somente materiais, mas também simbólicas, que permite ou não que parcelas da população
consigam superar, de uma geração a outra, uma determinada condição social. E, neste sentido,
a experiência da Escola da Comunidade pode ser tida como uma tentativa de superação do
“déficit cultural” das crianças de Paraisópolis, tendo em vista potencializar suas chances de
uma bem sucedida inserção na estrutura sócio-ocupacional.
A posse de capital cultural, de acordo com Bourdieu, é determinante na constituição
de uma trajetória escolar bem sucedida e, conseqüentemente, no destino dos indivíduos.
Podemos entender como capital cultural um conjunto de elementos relacionados à cultura tida
como legítima ou dominante. Ele pode existir sob três diferentes estados: o estado
incorporado (tendo como principais elementos constitutivos os gostos, o domínio maior ou
menor da língua culta e as informações sobre o mundo escolar), o estado objetivado (sob a
forma de bens culturais, tais como esculturas, pinturas, livros etc.) e o estado
institucionalizado (materializado por meio dos diplomas escolares, por exemplo).
(BOURDIEU, 1998).
Na obra de Bourdieu, a noção de capital cultural está ligada a uma problematização da
dominação, pois o espaço social é considerado um espaço de lutas, o que ressalta a
importância das estruturas simbólicas como exercício de legitimação de um grupo sobre os
outros. Mais do que compreender o fracasso escolar de camadas populares, o autor procura
compreender de que maneira este pior desempenho nas escolas serve à estrutura de
dominação, que ele define como a hegemonia de um sistema simbólico sobre o(s) outro(s).
(ALMEIDA, 2007). Aquele que possui capital cultural “beneficia-se de uma série de
vantagens sociais” (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2006, p. 35), principalmente no ambiente
escolar e no mercado de trabalho.
O conceito de capital cultural é uma ferramenta para se apreender a dimensão
simbólica da luta entre os diferentes grupos sociais, para descrevê-la, para definir
diferenciais de poder. Pensando na analogia com a noção marxista de capital,
permite que seja contabilizado um outro tipo de patrimônio, simbólico, que, a partir
daí, pode ser pensado como recurso possível de ser investido na obtenção de outros
recursos.(ALMEIDA, 2007, p. 47)
Interrogar o sistema de ensino é importante para precisar os elementos definidores da
cultura que ele contribui para legitimar (ALMEIDA, 2007, p. 55). Desta maneira, investiga-se
aqui como a Escola da Comunidade lida com esta questão. Há algum tipo de resgate e/ou
5862
valorização da trajetória e dos recursos culturais familiares? Ou a escola se empenha em
constituir um distanciamento entre a cultura escolar e a cultura familiar? De que maneira estes
adolescentes identificam estas diferenças e lidam com elas no seu dia-a-dia e nas suas
relações com o colégio e o próprio bairro?
Levando em conta as diferenças entre estas duas instâncias de socialização (família e
escola), há estudantes para os quais a cultura escolar é a cultura de seu próprio grupo social
(onde estão desde que nasceram) e há aqueles para os quais esta cultura é estrangeira ou quase
(ALMEIDA, 2007); como espera-se que ambos apresentem igual domínio dos conteúdos, um
deles, evidentemente, será mais exigido.
O estudo da relação dos jovens sujeitos deste estudo com suas respectivas famílias é
fundamental na tentativa de responder às questões suscitadas por essa pesquisa. O contexto
familiar é parte fundamental do processo de formação do indivíduo, e compreender como se
dão estas relações é essencial para chegar aos objetivos deste estudo. A diferença entre as
trajetórias escolares e as histórias de vida entre pais e filhos pode provocar conflitos
significativos no que tange ao desenvolvimento de uma identidade e de um projeto de vida
(PRESTA & ALMEIDA, 2008). Observar a interpretação destas diferenças tanto da parte dos
filhos quanto dos pais é muito importante. Para tanto, têm-se reconstituído (por meio de
entrevistas) as trajetórias destas famílias, com vistas a compreender melhor os caminhos
percorridos e as expectativas quanto ao futuro destes jovens em relação a si mesmos.
As diferenças entre pais e filhos suscitam discussões no que tange à transmissão
intergeracional de conhecimentos, valores e princípios entre os mesmos. Os filhos enxergam a
herança simbólica recebida de seus pais como ainda válida, ou seria já ultrapassada, diante da
quantidade de informação fornecida a estes no ambiente escolar e com a apropriação que
fazem destas informações? Como pais e filhos encaram as diferenças e as conseqüências
destas diferenças nos processos de formação e na trajetória a ser percorrida por eles?
De acordo com Bourdieu, a perpetuação da posição social do pai pode significar
diferenciar-se dele e ultrapassá-lo, processo que não é vivido sem conflito por parte tanto de
pais, como de filhos (BOURDIEU, 2003). No caso de pais que viveram suas vidas em uma
posição social dominada ou subalterna é possível que os filhos entendam suas próprias
vitórias como fracassos, visto que essas negariam a trajetória do próprio pai. Esses pais, por
sua vez, poderiam desenvolver um olhar ambíguo em relação à vitória de seus filhos: por um
lado vivem o desejo de que o filho supere a situação na qual ele se sente preso, por outro lado,
5863
à medida que o filho o ultrapassa, se afasta dele mesmo, de sua história familiar e de seu
grupo de origem (BOURDIEU, 1983).
Esta discussão perpassa o conceito de geração, que considera duas noções
fundamentais: a contemporaneidade e a igualdade de idade. A todo o momento, coexistem, no
interior das sociedades, “contemporâneos” que pertencem a diferentes gerações, grupos que
partilham o mesmo tempo vital, o mesmo “hoje”, mas que são capazes de entender esse
tempo e seus acontecimentos com diferentes “tonalidades”, que são constituídas em função de
sua idade. Entretanto, o pertencimento a uma faixa etária não é suficiente para estabelecer
uma relação de geração: é necessário que exista também uma comunidade espacial e, mais do
que isso, uma “comunidade de destino” (TOMIZAKI, 2006, p. 159).
Não há dúvida de que o ritmo biológico está relacionado com o fenômeno geracional,
mas o fato de as pessoas possuírem a mesma idade não é suficiente para a formação de uma
geração. Um dos elementos importantes na formação de um grupo geracional é a similaridade
das experiências vivenciadas pelos seus membros. Mannheim foi o sociólogo que deu maior
contribuição teórica para o debate a respeito de geração como categoria sociológica. Para o
autor, é preciso ter nascido na mesma comunidade de vida social e histórica para que seja
possível a criação de um modo de comportamento, uma maneira de sentir e de pensar próprios
a um grupo. Assim, só podemos falar em uma situação de geração na medida em que os
indivíduos que entram simultaneamente na vida participem de acontecimentos e experiências
capazes de criar laços entre eles (TOMIZAKI, 2010).
A partir da abordagem geracional, a pesquisa procura compreender como se dá a
relação entre pais e filhos, com o objetivo de apreender como esta influencia o processo de
formação dos jovens moradores da favela de Paraisópolis que foram bolsistas do projeto
Escola da Comunidade.
Considera-se aqui que uma geração só existe em relação à outra(s), assim como o que
podemos chamar de juventude. Existe consenso entre os pesquisadores contemporâneos no
reconhecimento de que a juventude é uma categoria diversificada, heterogênea, que assume
esta diversidade segundo condições sociais e históricas específicas, e, sendo assim, o termo
juventude seria melhor empregado no plural, falando-se de juventudes e culturas juvenis.
Catani e Gilioli (2008) comentam a existência de diversos critérios que podem ser utilizados
para delimitar a juventude e que podem combinar-se uns com os outros: a faixa etária, a
determinação de maturidade e imaturidade, critérios socioeconômicos e estado de espírito,
5864
estilo de vida ou setor da cultura (CATANI & GILIOLI, 2008, p. 13). Estes critérios se
aplicam também aos jovens sujeitos deste estudo, moradores de uma mesma comunidade (a
favela de Paraisópolis), que compartilham muitos deles.
Bourdieu também problematiza a conceituação de juventude, classificando-a como
uma construção social, passível constantemente de manipulação: “o fato de se falar dos jovens
como uma unidade social, como um grupo dotado de interesses comuns e de se referirem a
estes interesses a uma faixa de idades constitui, já de si, uma evidente manipulação”
(BOURDIEU, 1983, p. 145). De acordo com o autor, a existência de um grupo denominado
juventude depende do olhar do pesquisador, e não tanto da realidade objetiva, já que existe
uma ampla variedade de características dos grupos juvenis que são comprometidas ao serem
classificadas dentro de um mesmo conceito.
O conceito de juventude que também permeia esta pesquisa não descarta as noções
biológicas de fase de vida, e tem sempre em conta que a delimitação de idade é uma
construção social, atentando especialmente para a idéia de juventude em toda a pluralidade
que o termo abarca, e à existência de culturas juvenis, diversificadas entre si, de acordo com a
posição socioeconômica e com o capital cultural adquirido de acordo com as condições
materiais e simbólicas do meio em que se está inserido (CATANI & GILIOLI, 2008).
Analisa-se, aqui, a categoria de forma a perceber algumas maneiras em que a condição
de ser jovem atualmente pode ser vivida, adquirindo sentidos em si mesma e não apenas como
preparação para a vida adulta (ABRAMO, 2005, p. 44). Além desta perspectiva, procura-se
compreender com rigor científico os modos de interação da juventude com o aparato escolar a
sua disposição, e como esta sociabilidade desenvolvida através da escola permeia as relações
familiares, sociais e de trabalho.
Considerações Finais
Através de entrevistas realizadas com ex-alunos já foi possível traçar direcionamentos
para a conclusão da pesquisa. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os jovens,
onde foi possível colher informações relevantes para o entendimento do funcionamento da
Escola da Comunidade e da imagem e noção de pertencimento que eles possuem com relação
ao colégio. Muitos deles relatam dificuldades sofridas durante suas trajetórias escolares e um
envolvimento pleno das famílias neste processo educacional. Confirma-se aqui a hipótese de
que as relações entre escola e família são intensas, não necessariamente conflituosas em
5865
essência, pois o objetivo máximo destes pais é o sucesso escolar dos filhos diante de uma
“oportunidade sem igual”, de acordo com a fala dos próprios ex-alunos. A pesquisa encontrase na metade de seu percurso, portanto estas questões ainda serão melhor exploradas no
futuro, além das relações intergeracionais entre pais e filhos e suas características na
convivência familiar e nas concepções de sucesso destes jovens no que tange às suas posições
sócio-ocupacionais.
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