III SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS:
ILEGALISMOS E LUGARES MORAIS
6 a 09 de dezembro de 2011, Laboratório de Estudos da Violência, UFC,
Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho: GT 10 – SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA DA CIDADE
“Bairro violento” e referências morais: contextos do bairro Bom Jardim
João Miguel Diógenes de Araújo Lima
Universidade Federal do Ceará
Resumo:
Duas pesquisas de campo realizadas no bairro do Bom Jardim, em Fortaleza –
uma em 2008 e a outra em 2011 – consistem no subsídio empírico para este
artigo, que se propõe a discutir a classificação de “bairro violento” que está
presente na maior parte dos discursos sobre esse bairro. Inculcada nas mentes
e fincada na cartografia simbólica da cidade por meio de matérias de jornais e
de programas policiais na televisão, essa classificação tem sido, contudo,
tensionada em tempos recentes. As atividades de movimentos sociais e de
grupos artístico-culturais locais têm despertado reconhecimento social e
agregado as classificações de “bairro engajado” e “bairro de protagonismo”
como possibilidades discursivas. Com base em experiências do Centro Cultural
Bom Jardim (CCBJ) e de um projeto cultural financiado pelo Programa
Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci), o artigo se dedica à
forma como essas classificações recentes exercem ressonância nas redes
sociais locais. Essas ações adquirem contornos de investimentos simbólicos
que conectam pessoas, marcam presença e demarcam espaços físicos e
morais no cotidiano do bairro.
Na tarde da sexta-feira, dia 23 de outubro de 2009, dois jovens
moradores do bairro Canindezinho, na cidade de Fortaleza, tiveram suas vidas
cruzadas. Os dois foram assassinados, um em Fortaleza, e o outro no
município vizinho de Maracanaú, mas somente um dos dois era procurado. Por
terem características físicas semelhantes e a mesma idade – ambos com 20
anos –, foram confundidos. Francisco Alex da Rocha, conhecido como „Alex
Terror‟, havia participado de um assalto dentro de um ônibus e teria atirado
contra um policial militar. Danilo Pinheiro de Araújo caminhava próxima à praça
do Canindezinho para participar de uma atividade da União dos Moradores do
Bairro Canindezinho (UMBC), associação onde era voluntário.
Caminhando por uma rua vazia sob o sol vespertino, Danilo foi alvejado
com sete tiros. Em sequência ao barulho, moradores da rua teriam ouvido:
“Esse é o cara errado!”. Pouco tempo depois, a alguns quilômetros dali, „Alex
Terror‟ foi baleado em confronto com policiais no Parque Jari, em Maracanaú.
Por ironia do destino, os dois jovens ainda se “encontraram” no Hospital
Distrital Edmilson Barros de Oliveira, no bairro da Parangaba, mas não
resistiram e morreram.
Ouvi sobre o caso cerca de um ano e meio depois, pela narração da
diretora da UMBC. Seu convívio com Danilo transpareceu na forma emotiva
com que recontou o acontecido, enfatizando a impunidade e a morosidade na
investigação. Danilo era um “menino bom” que tinha passado a manhã do
fatídico dia na associação, ajudando numa atividade para crianças. A partir da
narração dela, debrucei-me sobre os arquivos de jornais e pude localizar três
matérias sobre o caso nas páginas do jornal Diário do Nordeste.
A primeira matéria1 sobre o acontecimento, publicada uma semana após
os assassinatos, ressalta a oposição entre os dois rapazes. Apesar das
semelhanças físicas, as testemunhas ouvidas pelo jornal apontavam Danilo
como o “homem errado”, vítima de um “erro de execução”, pois havia sido
“confundido com „Alex Terror‟”. O que realmente chamou minha atenção foi a
apresentação de Danilo logo na primeira linha: “Testemunhas do assassinato
do arte-educador e jovem liderança comunitária Danilo Pinheiro de Araújo, 20
anos (...)”. Esse dado é reforçado no último parágrafo da matéria, que informa
1
Matéria “Polícia apura „erro de execução‟”, publicada em 1º de novembro de 2009.
1
sobre uma caminhada pela justiça no caso: “Danilo fazia parte da União dos
Moradores do Bairro Canindezinho há cinco anos, era integrante da Rede de
Promoção da Criança e do Adolescente do Grande Bom Jardim, além de
participar do Projeto Mais Educação”.
As trajetórias de Danilo e de „Alex Terror‟ foram condensadas em
algumas linhas de matérias de jornais, apontando para adesões de moradores
a determinadas práticas que compõem a maior da parte das descrições sobre
os bairros do Grande Bom Jardim2.
Esse caso traz à tona práticas que se dão cotidianamente nos bairros da
área de Fortaleza chamada Grande Bom Jardim e revela uma sistemática na
cobertura jornalística. As classificações de “arte-educador” e “liderança
comunitária” sobre Danilo criam antagonismo com a classificação “bandido”,
usada no jornal para apresentar „Alex Terror‟. Arte-educadores, lideranças
comunitárias e bandidos, estas podem ser apontadas como as principais
figuras que ilustram matérias de jornal sobre os bairros da região.
Descobrir o jogo de adjetivações entre Danilo e „Alex Terror‟ numa
mesma matéria de jornal estimulou a conjugação de duas inserções de campo
no Grande Bom Jardim: na primeira delas, convivi com lideranças comunitárias
e membros de ONGs; na segunda pesquisa, tenho convivido com pessoas que
trabalham com práticas artístico-culturais por meio de oficinas para crianças,
jovens e adultos. Nos dois momentos, a classificação de “bairro violento”
apareceu como orientador de posicionamentos.
Etnografia de um curso de formação política
Entre os meses de outubro de 2008 e fevereiro de 2009, acompanhei um
curso de formação política organizado por uma ONG do bairro Bom Jardim.
Esse curso estava relacionado às propostas do Plano Diretor Participativo de
Fortaleza (PDPFor), que estavam em votação na época. O PDPFor previa a
implementação de Zonas Especiais de Interesse Social para a moradia,
especialmente em pontos da cidade com baixos indicadores sociais e
considerável problemas de ocupação irregular do solo. O bairro do Bom Jardim
2
Área formada pelos bairros Siqueira, Bom Jardim, Canindezinho, Granja Portugal e Granja
Lisboa.
2
por inteiro estava previsto como ZEIS, assim como comunidades e ocupações
dos bairros do entorno, do Grande Bom Jardim e do Mondubim.
O curso, portanto, teve como objetivo “capacitar” moradores e lideranças
para concorrerem aos conselhos gestores de suas ZEIS, para que incidissem
sobre as políticas públicas que seriam planejadas para suas localidades.
Durante o curso, conforme discuti previamente (LIMA, 2011), os
participantes discutiam outros assuntos, tais como as eleições municipais,
acontecimentos familiares e programas de geração de renda, para citar alguns.
A ameaça de ser um local perigoso apareceu pouco, mas se deu entre os
moradores dos bairros do entorno, como ouvi em diálogo com duas senhoras
moradoras do Mondubim, ambas artesãs, que me recomendaram outra linha
de ônibus, em que eu teria de andar somente um quarteirão para chegar à
ONG, ao invés de cinco: “Aqui é perigoso”.
No final do mês de janeiro, contudo, a situação se modificou. Os jornais
estampavam matérias sobre assassinatos ligados a grupos de extermínio no
bairro3, e isso incitou o debate entre os participantes do curso. No auditório
onde nos reuníamos, no primeiro sábado após as publicações no jornal, não
houve outro assunto que não a violência e a criminalidade no bairro. Discutiram
problemas e possíveis formas de resolução, e alguns defenderam a
necessidade de uma conferência entre movimentos e associações dos bairros
do Grande Bom Jardim para pensar encaminhamentos. Havia um sentimento
de que era preciso “dar uma resposta da sociedade civil”, como disse uma
coordenadora da ONG. Essa percepção dialoga também com o entendimento
de alguns jornalistas, que é, por sua vez, usado pelas lideranças para
fortalecimento de suas práticas no local onde atuam.
No corredor de entrada da ONG, uma folha de jornal estava afixada com
a matéria “A reinvenção do bairro”, publicada no dia 23 de março de 2008, no
jornal O Povo. A matéria é iniciada com a frase “A reinvenção do cotidiano no
Grande Bom Jardim passa pela organização popular, vertente detectada na
região”.
Uma das senhoras presentes nesse dia ressaltou a relação entre jovens,
drogas e violência: “nossos jovens ficam na rua, fazendo nada”. Durante esse
3
Matéria “Grupo de extermínio no Bom Jardim”, publicada em 25/01/2008 e disponível no
endereço: http://www.jangadeiroonline.com.br/interior/grupo-de-exterminio-no-bom-jardim/
3
encontro, discutiram também sobre a necessidade de agregar novas
lideranças, principalmente das ocupações, com as quais tinham pouco contato.
Esses locais seriam visitados por participantes, mas foi difícil ter alguém para
fazer a visita à ocupação Marrocos, considerada muito perigosa. Uma moça foi
indicada por sua mãe, mas ela respondeu com um “Deus me livre!”. No
contexto local, o bairro Bom Jardim é compreendido por nomenclaturas mais
específicas, que correspondem a antigos loteamentos e a ocupações.
Em entrevista realizada dia 08/02/2008 com um dos sócios da ONG, ele
concordou que a violência existe, mas que quando um assassinato acontece
no Canindezinho, “dizem que foi no Bom Jardim porque chamam a área toda
de Grande Bom Jardim”. Esse seria um dos motivos da reputação negativa do
bairro.
Práticas artístico-culturais
Logo na primeira incursão de pesquisa que fiz ao Bom Jardim, em
agosto de 2008, pude perceber a cena artística local. O protesto pelo “voto
consciente” do Movimento Não Dá Mais foi organizado por jovens do bairro e
grupos de música, dança e teatro que compunham a Rede de Arte e Cultura do
Bom Jardim.
A
União
de
Moradores
do
Bairro
Canindezinho
(UMBC),
no
Canindezinho, e o Projeto ABC do Parque Santa Cecília e o Centro Cultural
Bom Jardim (CCBJ), no Bom Jardim, são algumas das instituições destacadas
por sua atuação para a realização de oficinas e cursos. A crença na eficácia
dessas práticas como recurso metodológico se opera por representações
sociais “positivadas” sobre a arte de uso corrente entre moradores.
O uso dessas práticas como recurso metodológico tem sido recorrente
em espaços marcados por pobreza e por criminalidade, de contextos
socioeconômicos
semelhantes.
Podemos
citar
os
projetos
sociais
desenvolvidos na favela da Mangueira, no Rio de Janeiro (COSTA, 2003); os
projetos da seção Educativa do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, RJ,
para os moradores de morros do entorno (REINHEIMER, 2006); a “inclusão
social” por meio da dança e do teatro, objetivo central da Escola de Dança e
Integração Social para Crianças e Adolescentes (FREITAS, I., 2004) e a
atuação da ONG Enxame no Morro Santa Terezinha (FREITAS, J., 2003) – as
4
duas últimas experiências localizadas na cidade de Fortaleza. Esses projetos
mobilizam concepções de cidadania por meio de práticas artístico-culturais,
compreendo-a como uma forma de transformação social e de construção de
cidadania, com transmissão e apropriação de valores.
Por meio de diálogos com interlocutores que conheci a partir de minha
inserção como professor4 do Centro Cultural Bom Jardim, pude perceber a
valoração positivada que era atribuída à participação em atividades do centro
cultural, do ABC do Parque Cecília, da União de Moradores do Bairro
Canindezinho (UMBC), de formas implícita e explícita.
Segundo Germana5, artesã com quem ministrei uma oficina, frequentar o
centro cultural fez com ela se profissionalizasse. Na rua onde mora com sua
família, a poucos quarteirões do CCBJ, ela incentiva seus vizinhos a levarem
seus filhos para o local, “porque vão aprender muita coisa interessante”, em
vez de ficarem “desocupados por aí, na rua”. Para Iasmim, adolescente que é
bailarina no CCBJ e que estuda violino na sua escola, a mãe fica tranquila de
saber que está na escola ou no centro cultural; não quer que ela fique na rua.
Sua mãe acha o bairro muito perigoso, “mas ela mal sai de casa” – seu medo
vem do que escuta na rua e “porque ela assiste muita TV, vê esses programas
Cidade 190 e Barra Pesada, que só passa desgraça”.
Essa crença também se expressa nas diretrizes do Programa Nacional
de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), que está sendo
implementado em Fortaleza, e especificamente no Bom Jardim por meio do
programa “Território de Paz”. O Ministério da Justiça implantou o PRONASCI
em 2007, com a proposição de articular políticas de segurança e ações sociais
com ênfase numa segurança pública de prevenção.
Presente em 22 estados brasileiros e no Distrito Federal e com recursos
previstos de mais de seis bilhões de reais até 2012, o PRONASCI visa a
“valorização dos profissionais de segurança pública; a reestruturação do
sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e o envolvimento da
comunidade na prevenção da violência”6. O programa, segundo suas diretrizes,
4
Trabalhei em três edições da oficina “Pensando fora da caixa – Artesanato e
Sustentabilidade”, na qual fiquei responsável por levantar discussões sobre valor das coisas e
das pessoas, modo de produção artesanal e sustentabilidade em práticas artesanais.
5
Os nomes dos interlocutores foram substituídos por nomes fictícios.
6
Dado obtido na página institucional do Pronasci.
5
“desenvolverá políticas específicas de prevenção à violência para os
adolescentes em conflito com a lei, jovens presos, egressos do sistema
prisional, oriundos do serviço militar e em situação de vulnerabilidade”
(BRASIL, 2008, p. v) e tem adesão voluntária por parte dos estados.
O programa lançou edital público, em 2009, para o financiamento de
projetos que abordassem direitos humanos e cidadania com atividades de “arte
e cultura” para um público jovem, de idades entre 15 e 24 anos, por um período
de seis meses. Essa orientação se faz segundo o Ministério, que avalia como
pouco eficaz o investimento do Estado brasileiro em segurança pública por
meio de medidas repressivas e penas mais severas, construção de presídios e
aumento de contingente policial (BRASIL, 2007). O PRONASCI, portanto, tem
como objetivo enfrentar a questão “de maneira mais qualificada e humanista”
(BRASIL, 2007, p. 5).
Segundo Marina, a „agente mobilizadora‟ do projeto Trilhos Urbanos, o
projeto busca “tirar os jovens do mundo da marginalidade”, “dar uma ocupação”
e “inserir esses jovens no mercado de trabalho”.
O Grande Bom Jardim nos jornais
Em 2007, o Bom Jardim ocupou a primeira posição no ranking do Centro
Integrado de Operações de Segurança (Ciops) em número de homicídios e,
somando-se aos bairros do entorno, a região foi primeiro lugar em violência de
Fortaleza7 naquele ano. Em 2010, 282 homicídios8 foram registrados no
Grande Bom Jardim.
Reportagens de jornal impresso e de televisão têm feito a cobertura dos
crimes no local e têm contribuído para a difusão de narrativas sobre o crime
nesses bairros. O Bom Jardim foi o primeiro a alcançar notoriedade, no início
dos anos 1990, por seus índices de criminalidade. A reputação negativa dos
bairros tem sido reafirmada a cada matéria que é veiculada, reproduzindo as
classificações de “bairro perigoso” e de “bairro violento”.
Por consequência, os moradores são afetados por essas classificações,
que orientam o mapa simbólico dos habitantes da cidade com demarcações de
7
Pesquisa divulgada no jornal Diário do Nordeste por meio da matéria “Estatísticas do Ciops
apontam bairros mais violentos da RMF”, de 28 de maio de 2007.
8
Dado divulgado no jornal Diário do Nordeste em 25 de fevereiro de 2010, na matéria
“População é agente de mudança no Bom Jardim”.
6
um lugar interdito, que deve ser evitado por seus “perigos”. Dessa forma, essas
classificações infligem aos moradores dos bairros do Grande Bom Jardim o
peso social do estigma. São, segundo Caldeira (2003), narrativas do crime, que
recontam assassinatos, assaltos e tiros, mesmo que “de ouvir dizer”.
Essas imagens sobre moradores e sobre o bairro são ora positivadas em
torno das noções de “arte”, “cidadania” e de uma certa “política de movimentos
sociais”, ora negativadas pela violência e o estigma associado a ela. Nesse
jogo entre valorações, os discursos jornalísticos ocupam papel de relevância,
tanto nos jornais impressos, como na televisão. Eles contribuem para esta
construção da “cidadania pela arte” e para a atuação dos movimentos sociais
como a outra face da moeda do estigma de “lugar perigoso”.
Alba Zaluar (2000), pesquisando em favelas do Rio de Janeiro, e Teresa
Caldeira (2003), ao pesquisar sobre segurança pública e cidadania em São
Paulo, analisaram a construção da ideia de um “lugar violento” por parte da
imprensa. Coberturas midiáticas não inventam a criminalidade, mas, por suas
escolhas editoriais, corroboram com a perpetuação dessa modalidade de
estigma de espaços marginalizados. As notícias não são acontecimentos que
emergem naturalmente como fatos do mundo real; “as notícias acontecem na
conjunção de acontecimentos e textos” (TRAQUINA, 1993, p. 168; grifo do
autor). Expandindo a análise de Bourdieu (1997b, p. 28) sobre a televisão para
a imprensa em geral, podemos entender a notícia como produtora de um
“efeito do real”. Nesse sentido, as notícias veiculadas sobre o Bom Jardim e os
bairros do entorno têm efeito sobre os seus moradores, porque fazem circular
marcadores sociais que “constroem” o local.
As representações sociais que embasam essas práticas estão
associadas a um efeito transformador de conduta e comportamento, da
“melhor” conduta. No caso dos movimentos sociais, seu engajamento supõe
uma intenção de mudança, de envolvimento e pertencimento com os bairros.
Com relação às práticas artístico-culturais, estas seriam capazes de “tirar os
jovens do mundo da marginalidade”, como disse Marina, a „agente
mobilizadora‟.
Se, por um lado, os bairros são “condenados” nos jornais pela violência,
as matérias também podem “salvar” alguns de seus moradores, quando
positivam as práticas artístico-culturais e a atuação da política comunitária – e,
7
por consequência, seus praticantes. São apontados como os “caminhos” da
transformação, como baluartes do enfrentamento à violência e ao estigma. Em
última instância, a produção jornalística opera com regimes de verdade,
estipulando caminhos e práticas moralmente valorizados e descreditados.
Ao analisar as relações sociais de poder entre os estabelecidos e os
outsiders, Elias e Scotson (2000) argumentam que os dois agrupamentos
tinham características socioeconômicas semelhantes, mas se diferenciavam
pelo tempo de moradia. Os „estabelecidos‟, que habitavam no mesmo local
havia pelo menos três gerações e nutriam relações sociais de grupo,
expressavam a existência de uma diferenciação moral, que os posicionava
superiormente aos „outsiders‟. As relações sociais entre os outsiders eram
ainda frágeis e não possibilitavam a mesma coesão desfrutada entre os
estabelecidos, que permitia a difusão de “verdades”.
Algumas considerações
As notícias que ressaltam os moradores, as associações comunitárias,
as instituições locais e os projetos sociais como agentes de mudança são
indicadoras dos lugares de legitimidade e de potência. Podemos relacionar
essas “narrativas de transformação” com o conceito de centro de Edward Shils
(1992), para o qual o “centro, ou zona central, é um fenômeno que pertence à
esfera dos valores e das crenças” (1992, p. 53), e não é uma construção
inequívoca, abrangente de toda a sociedade. O sistema central de valores é
percebido como tal por aqueles que compartilham dele e que se consideram
portadores de sua autoridade. É, ademais, “uma estrutura de atividades, de
funções e pessoas, dentro da rede de instituições. É nessas funções que os
valores e crenças centrais se encarnam e são propostos” (SHILS, 1992, p. 54).
A proximidade com a autoridade confere contornos de sagrado aos valores,
tornando-os mais legítimos.
As atividades legitimadas pelos valores centrais (SHILS, 1992), imbuídas
de autoridade, revestem aqueles que se engajam nessas práticas da mesma
aura moral e de autoridade. Tornam-se mais próximos do centro dos valores de
sua sociedade e são, portanto, considerados dignos dentro de sua
comunidade.
8
Os valores positivados atribuídos aos cursos, às oficinas e às
associações comunitárias se inserem na teia das práticas sacralizadas,
detentoras de dignidade e legitimidade. Constituem-se em referência moral
para a narração dos bairros e dos que as praticam. São os fiéis da balança do
julgamento social que moradores e não-moradores fazem sobre os bairros do
Grande Bom Jardim. Criam, portanto, tensões com as bases que sustentam a
reputação negativa do estigma de “bairro violento”.
As narrativas do crime (CALDEIRA, 2003) que influenciam na
construção dos bairros do Grande Bom Jardim são relativizadas por narrativas
de práticas moralmente valorizadas, que demarcam com precisão locais e
pessoas. A valorização recai sobre práticas que propõem movimento –
“mudanças”, “resgates”, “reinserções” e “transformações” –, sugerindo a
classificação de “narrativas de transformação”. Esses casos entendidos como
“bons exemplos” atuam como referências morais que procuram incidir sobre os
comportamentos e as práticas nesses bairros, assim como sobre as narrativas
que oferecem “chaves de leitura” sobre esses lugares na cidade.
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10
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