DIFERENTES PERSPECTIVAS SOBRE O CONSUMO
1.MODERNIDADE LÍQUIDA – ZIGMUNT BAUMAN
O título da obra decorre do fato de que os líquidos não têm uma forma, ou seja, são fluídos
que se moldam conforme o recipiente nos quais estão contidos, diferentemente dos sólidos
que são rígidos e precisam sofrer uma tensão de forças para moldar-se a novas formas. Os
fluídos movem-se facilmente, escorrem entre os dedos, transbordam, vazam, preenchem
vazios com leveza e fluidez, penetram nos lugares, nas pessoas, contornam o todo, vão e vem
ao sabor das ondas do mar. Essas são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como
metáforas adequadas para captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na
história da modernidade.
Bauman distingue dois momentos da modernidade: o que chama de capitalismo pesado ou
modernidade sólida e capitalismo leve ou modernidade líquida. Quanto ao capitalismo pesado
segue certa ordem, ou seja, significa monotonia, regularidade, repetição e previsibilidade. Um
exemplo é o caso do fordismo que em seu apogeu representou um modelo de industrialização,
de regulamentação e de acumulação. As pessoas tinham funções muito bem definidas no
processo de fabricação dos carros, algumas apenas apertavam arruelas de parafusos da porta,
outras colocavam pneus, outras os bancos e assim por diante, com um alto grau de
especialização para que o processo fosse ágil e eficiente. Na modernidade pesada, a riqueza e
o poder dependem do tamanho e qualidade do hardware que são lentos e complexos no
movimento, em antítese a modernidade leve.
O poder na era da liquidez não é mais aquele que se materializava na disciplina da fábrica
fordista, na torre de controle panóptica, na administração pública. O poder agora é
extraterritorial, o seu objetivo não é mais impor à sociedade um ordenamento rígido, mas
simplesmente, através de uma aceleração compulsiva do tempo e do domínio total do espaço,
expor todos os lugares do planeta à livre ação da globalização econômica do mercado
capitalista. A elite global não tem mais o interesse de governar a partir de um território, pois
ela é cada vez mais desterritorializada e inacessível, vivendo em fortalezas fortificadas por
sistemas de segurança high-tech, as quais são meras paragens de sua contínua mobilidade
espacial.
O poder líquido está em quem pode se liquefazer, ou seja, quem é livre para tomar decisões,
ocupa mais espaço e livre para movimentar-se quase de modo imperceptível. A administração
no capitalismo leve consiste em manter a mão-de-obra afastada do espaço ou mesmo forçá-la
a sair, onde a era do software não mais prende e permite a liberdade de movimento, volátil e
inconstante, por sua dinâmica de desenvolvimento em qualquer espaço e tempo ao redor do
mundo.
Na modernidade líquida, a vida é organizada em torno do consumo e os indivíduos orientamse por desejos e quereres ilimitados. Consumir representa o elixir contra a incerteza aguda e
enervante sobre o porvir e o sentimento de incômoda insegurança. Propagou-se um
comportamento geral de comprar, não apenas produtos e serviços, mas também as
habilidades necessárias ao nosso sustento, o tipo de imagem que desejamos para nós, os
métodos de convencimento de nossos possíveis empregadores, etc
As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm “data de validade”, mas
muitas cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de
fascínio pela competição de ofertas “novas e aperfeiçoadas”. Na corrida de consumidores, a
linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores. Então é a
continuação na corrida que se torna o verdadeiro vício. O desejo se torna seu próprio
propósito.
A vida organizada em torno do consumo é orientada pela sedução. A ideia é fazer dos luxos de
hoje as necessidades de amanhã e reduzir a distância entre o “hoje” e o “amanhã” ao mínimo.
Os consumidores querem comprar também para levar pra casa sensações agradáveis, ou atrás
das sensações mais profundas e reconfortantes. Desta forma, também tentam escapara da
agonia da insegurança. Querem estar, pelo menos uma vez, livres do medo, do erro, da
negligência ou da incompetência. Querem estar, pelo menos uma vez, seguros, confiantes; e a
admirável virtude dos objetos que encontram quando vão às compras é que eles trazem
consigo (ou parecem por algum tempo trazer) a promessa da segurança.
(Texto adaptado. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001)
2. O MUNDO DOS BENS – MARY DOUGLAS E ISHERWOOD
O mundo dos bens tem um papel importante por enfatizar as dimensões culturais e simbólicas
do consumo de diferentes grupos sociais em distintos contextos. Para Douglas e Isherwood os
bens de consumo são, em última instância, comunicadores de categorias culturais e valores
sociais. As escolhas de consumo refletem, segundo os autores, significados sociais de grande
importância, dizendo algo sobre o sujeito, sua família, sua cidade, sua rede de relações. O ato
de consumir seria um processo no qual todas as categorias sociais estariam sendo
continuamente definidas, afirmadas ou redefinidas.
Os bens são, em qualquer sociedade, obviamente necessários para subsistência: comida,
abrigo e outras funções utilitárias. Mas, convém ao antropólogo aproximar o olhar, e perceber
outras funções. Eles também produzem e ajudam a manter relações sociais. Têm um duplo
papel, provendo subsistência e desenhando as linhas das relações entre indivíduos e grupos.
Para compreender as escolhas de consumo seria necessário, portanto, analisar os processos
sociais como um todo, não apenas o ato de consumir isoladamente.
O consumo para o senso comum está muito associado ao supérfluo, a uma visão pejorativa.
Por ser algo que toda sociedade experimenta, torna-se alvo fácil para generalizações
superficiais, prejulgamentos inconsequentes e suposições precipitadas. Em geral, quando se
fala em consumo, o discurso proferido o faz a partir de enquadramentos preferenciais, tais
como:
a) HEDONISTA: explicado como essencial para felicidade e realização pessoal. Esta visão
é a mais conhecida ideologia do consumo. Nesse discurso, o sucesso traduz-se na
posse infinita de bens que, agradavelmente, conspiram para produzir felicidade.
b) MORALISTA: nesse caso, o tom é denunciatório e o consumo é responsabilizado por
diversas mazelas da sociedade: violência, individualismo, desequilíbrio ecológico etc.
Acredita-se que é politicamente correto falar mal do consumo.
c) NATURALISTA: explica o consumo como algo biologicamente necessário, naturalmente
inscrito e universalmente experimentado. Ora atendendo a necessidades físicas, ora
respondendo a desejos psicológicos.
A antropologia ao lançar seu olhar para o fenômeno cultural do consumo, se afasta destas
noções desqualificadoras apontadas acima para, ao contrário, mostrar que a necessidade mais
importante que ele supre é a simbólica. Esta é também uma das conclusões importantes de "O
mundo dos bens" juntamente com a ideia de que o consumo é um código e através dele são
traduzidas muitas relações sociais. Assim, consumir seria exercitar um sistema de classificação
do mundo que nos cerca, sendo fundamental para nos ajudar a estabelecer nossas identidades
e para compreender a construção das fronteiras entre os grupos sociais, os mecanismos de
inclusão e exclusão, as relações de afetos entre os indivíduos, dentre outros aspectos
relacionados às definições de nossos mapas culturais.
(DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do
consumo. Rio de Janeiro Ed: UFRJ, 2013).
3. TRECOS, TROÇOS E COISAS – DANIEL MILLER
A ideia de que as coisas de algum modo drenam a nossa humanidade, enquanto nos
dissolvemos numa mistura pegajosa de plástico e outras mercadorias, corresponde à tentativa
de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada.
Há bons e péssimos usos da antropologia. Um dos péssimos é o primitivismo, ao supor que,
como os povos tribais não possuíam muitas coisas, eram necessariamente menos
materialistas. Ao contrário, algumas das mais sofisticadas relações com as coisas podem ser
encontradas entre os povos como os aborígenes australianos ou os índios norteamericanos da
costa noroeste, por exemplo. Além disso, não ter coisas não significa que você não as queira.
Um índio amazônico pode estar muito mais desejoso de possuir coisas do que nós, e
simplesmente não ter meios para obtê-las.
Outra hipótese é que ser o que realmente somos está profundamente situado dentro de nós e
em oposição direta à superfície. Assim, um comprador de roupas seria superficial porque um
filósofo ou um santo seriam profundos. Mas tudo isso são metáforas. Profundamente dentro
de nós há sangue e bile, não certezas filosóficas. A questão é que não há nenhuma razão para
considerar que nosso ser real é profundamente interior, enquanto a falsidade é externa. O que
está em cima da pele, as nossas vestimentas, por exemplo, pode dizer coisas muito profundas
sobre os indivíduos e suas culturas.
A questão é que a verdade não é intrinsecamente profunda nem está na superfície. Nenhum
dos conjuntos de metáforas é certo ou errado. Simplesmente não há razão pela qual qualquer
população deva ter um conceito de superficialidade que veja o que é profundamente
interiorizado como verdadeiro e significativo, e a superfície como falsa e insignificante.
(Texto adaptado. MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a
cultura material. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2013)
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As diferentes perspectivas do Consumo