Copyright: Goethe-Institut, Humboldt 2008
Humboldt 149/97
Barbara Potthast
Democracia no país e democracia em casa.
Embora a discriminação formal da mulher na política e na vida pública tenha sido quase que
eliminada na maior parte dos países da América Latina, as estruturas patriarcais continuam sendo
um empecilho para uma verdadeira igualdade entre os gêneros.
A década de 60 do século passado significou para a América Latina desenvolvimento, mas foi
também o período da repressão das esperanças por regimes militares. Em seguida à revolução
cubana, à Pedagogia dos Oprimidos e à Teologia da Libertação, vieram a morte de Che Guevara, o
massacre na praça de Tlatelolco, a repressão do movimento Cordobazo e da guerrilha urbana no
Brasil e no Cone Sul. A década de 80 foi marcada por novas esperanças, desencadeadas pela
vitória da guerrilha sandinista na Nicarágua, em 1979, e pelo fim paulatino dos regimes
autoritários em muitos países. Nesse período, o mote das feministas chilenas, “democracia no país
e democracia em casa”, tornou-se o símbolo dos movimentos feministas em toda a América Latina,
que desempenharam um importante papel naquela fase de transição. Será então que as tentativas
de uma revolução política foram seguidas de uma outra relacionada com as relações de gênero?
Guerrilheiras e revolucionárias
No início do século XX, formou-se o primeiro movimento feminista latino-americano, composto
principalmente por mulheres das classes média e alta urbanas. Seu objetivo básico, a plenitude dos
direitos políticos e civis das mulheres, foi alcançado em grande parte até o final da década de 60.
Em sua luta, elas também conseguiram o direito à educação, e as universidades deixaram de ser
dominadas pelos homens. Da mesma forma que seus colegas do sexo masculino, muitas jovens
estudantes se engajaram nos movimentos revolucionários, algumas até na guerrilha. Enquanto a
teuto-argentina Tamara Bunke, cognominada Tania, foi a única mulher a participar do grupo de
Che Guevara, cerca de um terço das fileiras da guerrilha urbana e dos sandinistas era formado por
mulheres. Muitas vezes elas se engajaram em organizações estudantis ou da igreja ou em
sindicatos. A consciência feminista se desenvolveu principalmente quando as mulheres não foram
plenamente reconhecidas no seio da guerrilha e constataram que pagavam um preço mais alto que
os homens. Essas experiências levaram muitas guerrilheiras a lutar por questões feministas dentro
do movimento revolucionário, transformando também nesse setor o privado em político.
Ao lado dessas mulheres, na maioria com boa formação escolar, que participavam ativamente da
guerra armada, houve na década de 70 também muitas mulheres das camadas baixas que se
organizaram juntamente com seus companheiros em sindicatos e lutaram por melhores condições
de vida e de trabalho. O exemplo mais conhecido foi o dos chamados “comitês de donas-de-casa”
que se formaram nas cidades mineiras da Bolívia, quando a situação delas se tornou cada vez mais
precária em função das crises econômicas e das privatizações. Aos comitês de donas-de-casa se
uniram pequenas camponesas indígenas. Esses grupos femininos consideravam a luta contra a
pobreza e a exploração como sua principal meta e participavam na linha de frente das
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manifestações, do fechamento das ruas ou das greves de fome, embora fossem muitas vezes no
início confrontadas com a desconfiança, se não até mesmo com a desaprovação por parte dos
companheiros. A maioria das camponesas e das mineradoras recusava as exigências feministas,
como por exemplo o livre acesso a meios de controle da natalidade. Elas consideravam isso uma
estratégia imperialista para enfraquecer o movimento ou a classe trabalhadora e os camponeses.
Também a sua identidade cultural foi sempre subjugada à identidade de classe até a década de 80.
Hoje, no entanto, temas relevantes em termos de gênero, como a violência familiar, estão sendo
discutidos também nos movimentos de esquerda e indígenas, e muitas mulheres tentam aliar
concepções ocidentais dos papéis dos gêneros com as indígenas. Um marco nesse sentido foi o
levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1994 no México, que se voltou contra as
conseqüências da política econômica neoliberal. Para o espanto público, uma mulher indígena se
encontrava entre os comandantes da guerrilha, e a “lei revolucionária feminina” dos zapatistas,
que tratava dos problemas específicos das mulheres maia, deixou claro que a rebelião era também
uma revolta das mulheres indígenas contra suas condições de vida, tanto dentro da sociedade
mexicana como nas suas aldeias e famílias.
Mães e donas-de-casa
Uma outra forma de protesto feminino se desenvolveu, depois do estabelecimento dos regimes
militares, no sul do continente, onde o sonho de um mundo melhor de muitos jovens engajados
terminou em prisão, tortura e assassinato. A política de “dar sumiço” aos opositores políticos foi
praticada em grande estilo pelos militares argentinos. Como reação foi criada, em 1977 na
Argentina, a organização das Mães da Praça de Maio. As mães reconheceram, durante as buscas de
seus filhos, que só ações conjuntas poderiam levar a um resultado. Elas eram mulheres de todas
as classes sociais argentinas, que somente se mobilizaram depois do desaparecimento de seus
filhos. Com lenços brancos na cabeça, simbolizando as fraldas de seus filhos, as mães protestavam
diante de edifícios governamentais na Praça de Maio. A não-violência era o princípio básico do
movimento. Quando os militares tentavam dissolver as concentrações, elas reagiam só
pacificamente e utilizavam o respeito tradicional ao papel materno como sua proteção. As Mães da
Praça de Maio se consideravam uma instância moral, acima dos partidos e da política
institucionalizada. Assim elas se tornaram para os argentinos o símbolo da reação contra a ditadura
militar e conseguiram que o desrespeito aos direitos humanos e a forma de reação a isso
continuassem sendo temas constantes de debate, mesmo após a derrubada do regime militar.
As ditaduras militares do Brasil, Chile, Argentina e outros países enfatizaram por um lado o papel
tradicional das mulheres no lar e na família, mas por outro lado destruíram inúmeras famílias com
a tortura e o assassinato. A politização das donas-de-casa e mães foi assim uma conseqüência
lógica. Em relação ao papel dos gêneros questiona-se, no entanto, se as mulheres com sua postura
sedimentaram os papéis tradicionais dos sexos, ou se transformaram o papel da mulher na política
e a concepção de política ao levar a público temas que até então eram considerados particulares e
apolíticos.
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A ligação entre privado e público, família e política, foi muito bem expressada pelas mulheres
chilenas, especialmente por aquelas que se organizaram em associações de base e de bairro.
Muitas dessas atividades eram realizadas sob a proteção da Igreja, um terreno familiar às
mulheres e, além disso, insuspeito em termos políticos. O objetivo dos grupos foi inicialmente
garantir a sobrevivência da família, mas o engajamento feminino maciço e duradouro e a formação
de redes contribuíram para o questionamento da imagem de passividade e fragilidade das
mulheres. Com isso, a dominância dos homens sobre a família também foi abalada, porque a nova
consciência adquirida pelas mulheres começou a manifestar-se em todos os níveis. As organizações
de base da classe baixa se apossaram de pontos de vista feministas, e a divisão entre feministas
“burguesas”, ativistas de esquerda e mulheres dos “movimentos de sobrevivência” começou a se
dissipar paulatinamente. Foi assim que no Chile surgiu um amplo movimento feminista, que
influenciou também outros movimentos feministas da América Latina com o já mencionado mote
“democracia no país e democracia em casa”.
Feministas e revolucionárias
Um fato importante para as mulheres na América Latina foi a proclamação da Década das Mulheres
pela ONU, bem como a conclamação da Primeira Conferência Mundial das Mulheres na Cidade do
México, em 1975. A conferência e sua preparação abriram por um lado novos caminhos, mas por
outro trouxeram à tona a diversidade dos interesses e das condições sociais das mulheres latinoamericanas (e outras). Como um dos temas centrais da conferência era o trabalho remunerado
feminino, as mulheres do campo, as migrantes nas cidades e as indígenas passaram aos poucos a
ocupar o foco das atenções. O efeito da iniciativa das Nações Unidas e a mistura das questões
privadas com as públicas podem ser bem ilustrados com o exemplo do Brasil. O governo militar
estava preparando uma abertura paulatina, e para melhorar a imagem e dar credibilidade ao
processo, os militares permitiram um protesto das mulheres, onde estariam no centro os
problemas cotidianos, como os preços dos gêneros alimentícios e o abastecimento de água potável.
Ele se transformou na maior manifestação no Brasil desde o golpe militar e levou a uma ampla
coalizão de diversos grupos femininos que se utilizaram da idéia do suposto pacifismo das
mulheres. A coalizão politicamente heterogênea das mulheres continuou existindo após a
conferência do México e procurou o apoio de outros grupos, como as organizações de base da
Igreja, onde a maioria era formada por mulheres. Em especial no Brasil, as mulheres
desempenharam um papel extremamente importante na transição paulatina para a democracia.
Por um lado, devido ao fato de que podiam contar com organizações já existentes, toleradas pelo
regime militar por se ocuparem de questões aparentemente apolíticas, como a infra-estrutura ou a
educação. Por outro lado, os grupos femininos apontavam claramente os déficits gerais de
democracia ao mostrar que sem eles os problemas da metade dos cidadãos não estariam sendo
considerados.
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Os amplos preparativos do congresso no México e o envolvimento de diferentes organizações de
base fizeram com que, ao lado do evento para os representantes governamentais, fosse criado um
outro fórum para organizações não governamentais, como tem sido praxe em muitos congressos
da ONU desde então. No fórum das organizações não governamentais, as representantes latinoamericanas estavam na maioria e por isso os temas e perspectivas latino-americanos dominaram
também em termos de conteúdo. No entanto, as representantes dos grupos de base, dos
sindicatos e dos comitês de donas-de-casa tiveram inicialmente grande dificuldade para encontrar
uma base comum na discussão com as feministas dos países industrializados reunidas no México. A
conferência foi, contudo, um sucesso para as latino-americanas, menos pelos resultados obtidos do
que pelas conseqüências que ela acarretou. As organizações para o desenvolvimento começaram a
integrar as mulheres ou a aplicar programas voltados especialmente para elas, o que por sua vez
pressionou os governos nacionais. Dessa forma as organizações femininas nos diversos países
latino-americanos receberam atenção e apoio. O maior problema dos diversos grupos de mulheres
nos anos 70 continuou sendo a compatibilização do feminismo com a ideologia marxista ou
socialista. A polêmica dominou ainda os Encontros de Mulheres da América Latina e do Caribe que
se seguiram à conferência no México, mas na metade da década de 80 houve uma aproximação e
um reconhecimento da pluralidade das reivindicações específicas das mulheres. E surgiram novos
temas. A redução da pobreza e a exploração das mulheres continuaram sendo temas dos mais
importantes nos diversos fóruns de mulheres, mas cada vez mais eram tematizadas as relações de
gênero e as questões da identidade cultural.
As novas políticas
A necessidade de mudar também as relações entre os gêneros tornou-se bem clara com a
transição. A discriminação da mulher na política e na vida pública tinha sido eliminada na maior
parte, mas as estruturas patriarcais na política e na sociedade impediam a igualdade de direitos na
prática. Após a participação na transição e nas lutas trabalhistas, as mulheres já não estavam mais
dispostas a ser colocadas novamente à margem. A ampliação do reconhecimento da diversidade
cultural nas constituições reformadas de muitos países fez com que também as mulheres indígenas
não aceitassem mais ser simplesmente ignoradas. O símbolo disso são as mulheres indígenas do
movimento zapatista e a candidatura à presidência do país – mesmo que malograda – da
guatemalteca e prêmio Nobel Rigoberta Menchú. Tanto isso como também as vitórias de Michelle
Bachelet e de Cristina Fernández de Kirchner são sinais da crescente participação das mulheres na
política formal mesmo que muitas, principalmente aquelas ligadas às organizações de base e aos
movimentos sociais, continuem céticas diante dos partidos e do Estado, o que é compreensível se
considerarmos a ampla difusão do machismo, do clientelismo e da corrupção. Se no entanto a
participação das mulheres na política formal cresceu nos últimos anos, isso se deve ao fato de que
muitos países e partidos introduziram o regime de cotas, que nem sempre é muito efetivo e rígido,
mas que funcionou em alguns países, como a Argentina e a Costa Rica. Na Argentina, por exemplo,
quase um terço dos representantes na Câmara dos Deputados são mulheres. Muitas dessas
políticas não defendem posições feministas, mas acontecem coalizões esparsas suprapartidárias de
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mulheres em torno de determinados temas, uma novidade na cultura política na América Latina.
Notáveis e mais complicadas de aceitar para os homens latino-americanos são as leis capazes de
mudar as relações entre os gêneros no seio da sociedade e na família. Inovadores foram os
primeiros postos policiais com funcionárias exclusivamente do sexo feminino, criados em 1985 em
São Paulo, aos quais as mulheres podem se dirigir em casos de agressão. Estas delegacias de
defesa da mulher tornaram-se um modelo em todo o mundo. Em seguida foram criados cursos
especiais de treinamento para policiais do sexo masculino visando criar uma compreensão para a
problemática específica da violência entre os gêneros. Sem as experiências das mulheres na luta
contra as ditaduras militares e na transformação do regime político, as mulheres brasileiras nunca
teriam conseguido impor tais medidas. Também em outros países foi reformado pelo menos o
direito penal no que tange ao uso da violência contra a mulher na família e ao assédio sexual. No
entanto, a aplicação da lei é problemática na maioria dos países latino-americanos, devido aos
déficits no sistema judiciário. Mas a ampla discussão acerca dessa problemática, impulsionada
pelos grupos feministas, provocou mudanças na imagem tradicional da família e da mulher. Só
uma ampla discussão dessas questões que inclua também os homens pode levar a uma mudança
fundamental das estruturas ainda patriarcais na sociedade e na família, e muitas mulheres latinoamericanas estão trabalhando para isso.
Barbara Potthast é professora na Universidade de Colónia e directora do Departamento Ibérico e
Latino-americano do Centro de Estudos Históricos. É co-editora do Jahrbuch zur Geschichte
Lateinamerika (Anuário de História da América Latina) e da European Review of Latin America and
the Caribbean (Revisão Europeia da América Latina e Caraíbas). Os pontos principais da sua
investigação assentam no âmbito da história das famílias e das gerações, bem como da história
social em geral da América Latina. Geograficamente, dedica-se à história do Paraguai e à história
da América Central na costa caribenha.
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