Operação Duchaviana
Sem receio das palavras, mas buscando colher cuidadosamente cada uma delas como novos pensamentos,
elas me vem fortes e com o destino certo de quem busca o alvo. Dessa maneira debruço-me sobre os atos,
as ações e os fatos criados por Marcos Chaves na casa-museu de Eva Klabin, ao aproximar-se
delicadamente da casa e da coleção, que não lhe eram desconhecidas, mas que desejava resgatar da
estranheza e do incômodo que há muito, em muitos, chama a atenção.
Marcos Chaves aproximou-se desse espaço como se quisesse libertá-lo dessa estranheza provocada pela
clausura das camadas de tempo que foram se superpondo ao longo dos anos, pelo acumulo de objetos de
arte de várias épocas e pelo número de anos que a proprietária está ausente desta residência, atribuindolhe um ar de presença ausente que pesa no imaginário daqueles que aqui entram. O artista desejou
primeiro dar leveza a casa-museu, fazendo uma espécie de “lavagem espiritual”, o que, de certa maneira,
é uma das intenções do Projeto Respiração, quando propõe oxigenar a casa ao presenteá-la com a arte de
nosso tempo, introduzindo um novo ar capaz de lhe dar nova vida. Marcos Chaves, como um “xamã”,
criou códigos particulares de “limpeza espiritual” da casa que lhe permitissem ficar à vontade para agir
recuperando o mesmo espírito desprendido que provavelmente guiou a idéia de construção e adequação
dessa residência em fundação.
Em outras palavras, desejou libertar a casa-museu das forças que ataram a casa à sua criadora pela
radicalidade de seu ato de criar um desvio no tempo e devolvê-la para aqueles que sentem vontade de
aqui estar sem sentirem-se oprimidos pela natural imposição do desejo de Eva Klabin de permanecer.
Talvez, somente um artista como Marcos Chaves fosse capaz de libertar este espaço daquilo que o
caracteriza, sem descaracterizá-lo. Isso porque na sua forma humorada de ser consegue dobrar a
resistência da própria situação.
Quem nos dá a pista é o próprio artista, em entrevista à Gloria Ferreira e Lula Vandereley, quando diz:
“No meu caso, uso o humor, o desvio, a dobra para apresentar novos olhares para a mesma coisa.” (1)
Nessa mesma entrevista declara sua filiação artística a Marcel Duchamp, no fato dele ter introduzido a
estratégia do desvio em arte, ao retirar um objeto de seu contexto original e ressemantizá-lo ao introduzilo no conceito da arte. Mais adiante, nessa mesma entrevista, ele fala da influência de Lygia Pape, sua
professora, na sua obra.
Concordo com o artista nas suas afirmações, mas destacaria mais o humor, a dobra e a Lygia Pape do que
a influência de Duchamp, que, apesar de inegável, considero um marco de irredutibilidade a que quase
todos os artistas contemporâneos estão condenados. Por isso ouso dizer que mais do que uma operação
Duchampiana, Marcos Chaves executa uma manobra Duchaviana, de características próprias, e mais
comprometidas com o conceito de dobra de Foucault - a quem Lygia Pape também é tributária - do que ao
deslocamento de Duchamp.
Para mim, a pista é que a obra de Chaves trata mais de como ver do que do olhar. Mas isso também não
traz nenhuma diferenciação daquilo que tantos já falaram antes de mim e com mais propriedade do que
eu. Mas, o que percebo é que mais do que ver, o olhar que daí brota não tem nada de sublime. É direto
(straight to the point) e não se perde em firulas da banalidade. De banal já basta o cotidiano
domesticado... Mas a vida cotidiana para ele, porém, não é banal, é matéria bruta e prima; é fonte de onde
extrai o descompasso do diferente: o paradoxo da transparência de ver aquilo que se apresenta e, com
seus jogos de palavras, passamos a ver o que fingíamos não ver. Olhar cristal. Neste aspecto a presença de
Lygia Pape é clara. Ele lida com aquilo que se apresenta e não moraliza seu olhar entre alta e baixa
cultura ou em arte erudita e arte popular. O esforço de Marcos Chaves é o de mostrar que todo elemento
da realidade é rico e passível de se transformar em arte. Parafraseando Enrica Bernardelli: a arte pode
ajudar a mudar a nossa percepção do cotidiano ou, em outras palavras, daquilo que está incrustado pelo
habito em determinada realidade.
A operação Duchaviana faz uso do humor e dos jogos de palavras para desestabilizar os lugares das
coisas. Apesar de sabermos que não é possível reduzir a palavra à imagem e a imagem à palavra, Marcos
Chaves dobra palavra e imagem ao atribuir a força indicativa da palavra à imagem e ao atribuir a presença
inquestionável da imagem à palavra. Dobra a potência de um com o elemento do outro. Este lugar da
dobra é o local do acontecimento da estratégia Duchaviana (que se remete à Foucault), porque faz aflorar
o paradoxo que é o lugar que ilumina e que silencia. Diz com imagem.
1
Na obra I Only Have Eyes for You (Só tenho olhos para você), título retirado da canção de Al Dubin e
Harry Warring, de 1934, que pode ser ouvida na gravação de Art Garfunkel no quarto de dormir de Eva
Klabin, e que dá título à exposição, por exemplo, Marcos Chaves instaura uma circularidade de olhares
que começa com o seu olhar sobre Eva Klabin e culmina com o publico vendo, através do seu olhar, a
casa e a coleção. Nessa obra os olhos de Nicolaus Padavinus, pintado por Tintoretto, são iluminados de tal
maneira que estabelece uma troca quase íntima de olhares entre o retratado (ou Tintoretto) e a cama da
colecionadora (ou Eva Klabin). Essa cumplicidade alude a uma sensualidade inerente a um quarto de
dormir, ao mesmo tempo em que nos fala de uma troca de olhares ou do sempre presente voyeurismo na
prática de visitas a museus e exposições. E mais, brinca com a idéia de que todos nós só temos olhos para
Eva Klabin quando estamos visitando sua casa e coleção.
Seguindo na trilha da sensualidade, a obra Hot Widow (Viúva quente), localizada no Hall superior,
parodia a obra de Marcel Duchamp, Fresh Widow. Nessa obra o que vemos é uma projeção da janela
sobre a própria janela. Dobrando a projeção, que é um registro diferente do mesmo sobre o mesmo, a
janela deixa de ser a mesma. Marcos Chaves exerce uma das principais manobras de sua obra. Citando
Luisa Duarte: “É o mesmo, mas já não é o mesmo, por um simples e leve deslocamento do olhar.” (2)
Acrescentando à sua percepção, diria que o mesmo também deixa de ser o mesmo porque ao deixar que
imagens virtuais e reais se desloquem simultaneamente, acrescidas do registro verbal, cria dobraduras
entre essas várias instâncias, explicitando paradoxos e liberando outras camadas de sentido,
principalmente o humor.
O humor é a chave-mestra de Chaves. Com o humor, como o próprio artista diz, ele tira a tragicidade das
coisas, e eu acrescento que, no caso especifico da Fundação Eva Klabin, tira a austeridade da casa-museu
que não se coaduna com a própria personalidade de sua fundadora. Em Cartoon Soundtrack, na Sala de
Jantar, somos surpreendidos por um barulho de cristais se quebrando e talheres se batendo; uma
traquinagem de Eva Klabin? Sim. É ela que se esconde por detrás da cortina, traída pelos bicos de seus
sapatos, e que se diverte presenciando sua irreverência com o visitante. Eva Klabin era divertida e
irreverente e nos deixou pistas sobre esse traço de sua personalidade ao colocar em destaque a obra do
Mestre da Madona do menino travesso no centro do retábulo que domina a Sala Renascença. Citando
Ligia Canongia, no belo texto sobre Marcos Chaves Vazio e totalidade, que nos remete à teoria Freudiana
sobre o chiste: “O humor intervém sobre o significado original do objeto e enxerta outro, por um
movimento imprevisto, um desconcerto, quase piada.” (3)
Na Sala Renascença, temos Cinema Lavado, em que o retábulo maneirista que ocupa o fundo da sala,
assim como toda a sala, é transformado em tela que recebe imagens da natureza do Rio de Janeiro, que é
apreendida por Marcos Chaves como potência barroca. O desenho naturalmente retorcido da mata e
convulso do mar é visto como o pano de fundo para uma manifestação barroquizante de nossa cultura
visual. É curioso lembrar que a origem desta percepção talvez esteja no fato de que o modernismo
brasileiro faz uma hipérbole sobre o neoclassicismo do século XIX, criando uma ponte direta entre o
barroco colonial e a arte moderna. Mas o que nos interessa em Cinema Lavado é de novo a dobra que o
artista estabelece entre a imagem barroca que cria da natureza e as imagens do barroco colonial brasileiro
das igrejas, sendo projetadas sobre o retábulo. O duplo barroco: o mesmo sobre o mesmo sem ser o
mesmo, não para enfatizar, mas para descolar novas camadas de leitura. Soma-se à Cinema Lavado que as
imagens “lavadas” trazem um jogo de palavras no sentido de “lavagem espiritual”, à qual nos referimos
no início do texto e que foi importante para que Marcos Chaves gerasse o clima de leveza que necessitava
para criar - que não têm nada a ver com sentido religioso, stricto sensu -, mas que fica ainda mais
evidente quando vemos as imagens da missa que mandou rezar em memória de sua mãe e de Eva Klabin,
assim como as imagens de um turíbulo que atravessa a casa como um disco voador envolto em fumaça,
incensando os diferentes ambientes, como se dessem continuidade ao processo de limpeza durante o
período da intervenção.
Cinema Lavado transforma a Sala Renascença em cinema instalação e nos traz de volta uma reflexão
importante sobre o Projeto Respiração, que é a questão do virtual e do real. A casa-museu de Eva Klabin,
assim como o cinema e a imagem fotográfica, é um passado que se torna presente; é uma virtualidade real
ao mesmo tempo em que é uma realidade virtual. Este é um tema recorrente que talvez seja o que de mais
forte e expressivo podemos encontrar no Projeto Respiração. E esta idéia é ainda reforçada na intervenção
que Marcos Chave faz logo assim que entramos na casa, no Hall inferior, e nos deparamos com três
tapetes que são reproduções de detalhes que o olho do artista pescou dos tecidos da coleção, que é o traço
mais secreto do colecionismo de Eva Klabin, que se dedicou a reunir pedaços de tecidos dos séculos
XVII, XVIII e XIX. A obra Zoom nos recebe, nos lembrando de que a operação Duchaviana consiste em
enriquecer o óbvio, tirando-o da banalidade que o protege.
2
Essa maneira direta de tratar a realidade indica uma forma de transparência que evidencia que o mistério
do mundo não se esconde; que a metafísica é imanente ao real e que os artistas são os seres capazes de
transmitir isso. Marcos Chaves, através de jogos semânticos, extrai visibilidade das palavras e, dessa
maneira, realoca a imagem numa nova realidade, evidenciando que mesmo aquilo que nos parece óbvio e
banal carrega consigo uma riqueza que pode nos passar desapercebida.
Marcio Doctors
(1) FERREIRA, Glória e WANDERLEY, Lula. Entrevista in Arte Bra Marcos Chaves. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra Produção Editorial, 2007. p.129.
(2) DUARTE, Luisa. O Desvio é o alvo in Arte Bra Marcos Chaves. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra Produção Editorial, 2007. p.99.
(3) CANONGIA, Lygia. Vazio e totalidade in Arte Bra Marcos Chaves. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra Produção Editorial, 2007. p.87
Relação das Obras
Hall Inferior – Zoom
Sala Renascença – Cinema Lavado
Sala Inglesa – Pintura da mãe do artista (normal, tirar o itálico)
Sala de Jantar – Cartoon Soundtrack
Sala Chinesa – Spell
Hall Superior – Hot Widow
Quarto de Dormir – I Only Have Eyes for You
3
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Operação Duchaviana. Marcio Doctors, 2013.