AS COISAS
Inês Fonseca Santos
Ilustrações João Fazenda
Janeiro 2012
Na palavra abysmo, é a forma do y
que lhe dá profundidade, escuridão, mistério…
Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo,
é transformá-lo numa superfície banal.
Teixeira de Pascoaes
Edição 04
Lisboa, Janeiro 2012
Poemas
Inês Fonseca Santos
Ilustrações e logótipo convidado
João Fazenda
Revisão
Luis Manuel Gaspar
Composto em caracteres Bembo Book
sobre papel Cyclus Offset de 90 g.
Caderno das ilustrações em papel Igloo Offset de 140 g.
Capa em papel papel KeayKo lour Liso Branco Puro de 300 g.
Tiragem 500 exemplares
Composição Undo
Impressão e acabamento ????
Depósito Legal ???
ISBN 978-989-97448-3-7
abysmo
Av. Almirante Reis, 201, 2.º
1000-048 Lisboa
www.abysmo.pt
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso
As Coisas foram escritas em poucos dias, mas levaram
anos a formar-se. Se o leitor agora lhes pega, como
coisas menos irreais, a razão (ou a falta dela) habita
uma perplexidade: depois de estarem escritas, As Coisas
depararam-se com um poema que confirmou o seu
eventual sentido. E, sim, As Coisas – tímidas, inseguras,
adolescentes – procuram confirmação.
As Coisas
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.
Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.
Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós um dia tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.
Manuel António Pina
INTRÓITO: POEMA EM JEITO DE AGRADECIMENTO
Era um poeta que só escrevia primeiras obras
condenado por ter um dia escrito um poema
feito com palavras conhecidas apenas pelos deuses.
Queria usar agora palavras como: lírios. Ou: Eva.
Considerá-las com ênfase, como lhe tinha ensinado uma amiga
poeta com um amigo poeta. Fechou-se em casa.
Encheu páginas de silêncio.
Passados dias, os deuses devolveram-no
às coisas. Com elas escreveu a segunda obra.
7
AS COISAS
São feitas de vidro.
Partem-se quando digo em voz alta
o teu nome. Nome de todas as coisas.
8
AS COISAS RECUPERADAS
Colo-as. Mesmo aos pedaços
demasiado pequenos. Com sílabas
de palavras caídas em desuso
o teu nome volta a formar-se.
As coisas recuperadas seguem-no. Partem-se de novo
por raramente resistir a pronunciá-lo.
Dizê-lo é uma espécie de vitória.
9
AS COISAS IRREPARÁVEIS
Arrumo a casa. Encontro minúsculos vestígios
das coisas irreparáveis. Em cada uma, metade
de uma letra do teu nome. Junto-as.
Reaprendo a dizê-lo de uma forma diferente, quase nova.
10
AS COISAS DIFERENTES
Repito o teu nome. Até lhe perder o sentido.
Nas coisas forma-se outro nome.
Quem me ouvirá agora ao chamar-te?
Percebo então que o som dos cacos é uma coisa diferente
do som dos teus passos.
Contento-me com cópias como o escritor se contenta
com a falta das palavras.
11
AS COISAS SEMELHANTES
Um dia tiveste a minha idade e tantas ou mais coisas
partidas do que eu. Um coração, o fecho de um colar de pérolas,
aqueles olhos vazios como o aquário verde no topo da estante,
demasiadas palavras armadas em metáforas. Coisas semelhantes
que mais tarde alguém tentou reparar. Tempo, amor e morte –
[sobretudo
os seus lugares vazios.
E uma pele capaz de os alojar.
14
AS COISAS MATERIAIS
Com muita fome, compra-se a mais. Garantem
estudos sobre o comportamento dos consumidores.
Temos demasiadas coisas no frigorífico. E na mesa
os lugares postos permanecem vazios.
Chamam-te para os ocupares. Chamam-te pelo nome.
Tens fome, mas não vens. E eu nem ouço, ocupada
que estou a colar as partes do corpo com que podes regressar.
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AS COISAS DO CORPO
Demasiado internas para lhes conhecer os contornos.
Demasiado ocultas para lhes saber as razões.
Ostensivas, as coisas do corpo exibem-se perfeitas. Segundos
em que cheguei a odiá-las. Estavam demasiado longe
dos lugares a que devíamos regressar quando eu envelhecesse.
Puxei-te pela mão. A mão soltou-se do teu corpo.
Coloquei-a no lugar do coração; com as unhas
construí um fecho novo para o colar de pérolas;
vendi a pele e voltei a encher o frigorífico.
Alguém se sentou à mesa. Tinha o teu nome gravado;
um rosto sem marcas, irreconhecível,
aguardava a mão capaz de lhe levar coisas à boca.
Coisas de alimento às coisas do corpo. Como esta mão a bombear-te o coração do lado errado do peito.
16
AS COISAS SOBREVIVENTES
Devias ter morrido naquela noite.
Eu julgava que era uma história só tua até
um poeta, homem de palavra, me ter dito das coisas sobreviventes
de alguém tão amável que toda a vida carregou a cruz da hipocrisia.
[Mas tu não
querias morrer realmente. Nem mesmo apenas pelo tempo
de eu percorrer uma rua, subir as escadas e recolher em casa
as últimas roupas. Morrer com o quê se tanto te sobrevivia?
Morrer como quem? Enganaste-te, e talvez por isso tenhas
[sobrevivido.
As coisas morreram. Alguém te vinha buscar e preferiu-as.
Sentou-se à mesa, comeu as coisas por dentro e por fora
das coisas do corpo, esvaziou o frigorífico, empurrou a estante
e sobre esse alguém tombou o aquário verde, vazio.
Quando entrei em casa, aguardando a tua morte, envelhecida
à superfície da pele e sentada de ossos encostados à mesa,
[organizei os restos,
coisas que me sobreviviam.
Não é exactamente o que se quer:
morrer a apanhar migalhas com as pontas dos dedos.
17
AS COISAS NAS PONTAS DOS DEDOS
Cortam os vasos, as veias. Minúsculas,
as coisas nas pontas dos dedos
são feitas de vidro partido.
Invisíveis aos olhos, levam com elas
as nossas impressões
digitais.
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AS COISAS DIGITAIS
Letra a letra, investigam o passado.
Algumas nem formam palavras. Gaguejam, quase mudas,
o seu certo e impronunciável sentido.
As coisas digitais dão erro
se as atiramos ao ecrã. Como barro a uma parede acrílica.
Ou as tintas de Pollock se Pollock tivesse pintado na vertical.
Descolam-se do teu nome obcecadas
com o futuro.
21
AS COISAS REMENDADAS
«Nesta pequena taça de tempo», disseste, juntando
os cacos com cola amarela, «um dia vais colocar gelo
e, como uma actriz francesa, mergulhar aqui a cara todas
[as manhãs».
Respondi com o teu nome como se o quisesse exclamar
e fosse ainda possível encaixar-te, seguro, nele.
Gostava de te ter avisado naquele dia que o futuro,
derretido com o gelo, não me traria as coisas remendadas: as rugas
[das tuas mãos
de velho, suaves, minuciosas, capazes até de me colar
agora que a doença me desfaz em pequenas zonas isoladas,
[carcomidas;
agora neste futuro sem rugas, apenas
demasiadas recordações – e uma certa falta de sentido.
22
AS COISAS PARTIDAS
E no entanto não existiam coisas partidas
nem se avistavam cacos.
Quando ela te chamava e dizia o teu nome
ouvia-lo subitamente desprendido.
E tudo se ordenava.
Nos copos havia whisky para as visitas,
mazagran para as crianças, caídas aos tombos
em cima dos sofás, ignorando futuros, esquemas, mapas
e caminhos. Algumas nem sabiam o teu nome.
Pouco importava.
Nas casas onde as coisas em vez de ignoradas
são coladas perduram fiéis os retratos nas molduras.
Não fantasmas, visitas. A elas, servem-se bebidas
em copos remendados.
O tom do whisky, antídoto da memória,
disfarça os riscos de cola, as tentativas de regressar.
23
AS COISAS INSIGNIFICANTES
O meu dedo já serviu para muitas coisas
insignificantes, já tocou alguns segredos, demasiados
medos. Breves papéis feitos com a prata do maço de tabaco,
outros interpretados no meio da praceta, em cima do repuxo,
centro da nossa arena. O meu dedo insistente tenta
imitar-te: recorda. Alguns amores terríveis guardam dentro
(como reféns)
bandos de pássaros recém-nascidos – insectos,
se puseres os óculos e os vires ao perto.
Com o meu dedo, ajustava-te as hastes,
aproximava-tas dos olhos, com medo de que um dia
visses demasiado próximos os dedos
amarelos: cor de vela sem pavio,
muito menos chama.
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AS COISAS OCAS
Mais uma vez quebrei a promessa
num dia em que provavelmente me bateste.
Faltas de educação não toleravas nunca. Mas adolescentes
são bichos que desconhecem o fim e o princípio
das coisas. Prometi-te: não odeio ninguém. As feridas
(no coração, na razão) têm causas geralmente humanas,
coisas de que me arrependo. Como daquela vez
em que te atirei à cara a inversão da ordem genealógica da família.
Íamos de carro, a gata a precisar de pontos, eu duvidando
[da condução.
Adolescentes: bichos esquisitos. A culpa não os come
por dentro; abandona-os: coisas ocas. E um nome.
Por dentro, há um dia de árvores altas
onde vivemos: um coração olha-nos de fora
como se não nos pertencesse e o seu lugar fosse
o de um boneco trocado por namorados no São Valentim.
Daqui de longe parece-me ter pernas. Pendem-lhe do banco
onde um dia te disse que eras o mágico da rua: papéis
voavam-te dos dedos ao alcançarem a ponta das unhas.
Desse lugar avistei a infância, desse lugar
por onde agora corre um caminho que teima:
o coração é fraco, não resiste se o partilhamos
como deformação congénita. É desse tamanho
o buraco no peito.
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AS COISAS CONHECIDAS
Não são coisas se lhes soubermos os limites,
conhecermos as formas, o volume, a superfície.
As coisas conhecidas são pedras e poemas. E o teu nome
sempre infiltrado nos versos.
Colecciono-as: pedras. Colecciono-os: poemas.
Tenho por hábito roubá-los. E, todavia, possuo apenas uma
coisa conhecida. Colhida numa praia de vidro
fundido pelo ar quente do Adriático, a pedra polida
é o melhor poema (o nosso melhor poema).
Guardo-a no bolso, onde meto a mão;
guardo-a na mão, onde se encaixa,
fria, macia, perfeita, uma pedra cinzenta,
a única coisa conhecida.
Leio-a. Tem o teu nome.
Largo-a
ao sentir o peso que lhe falta.
Como as andorinhas anunciam a Primavera,
os papéis velhos têm outros mistérios a anunciar:
o teu nome e a impossibilidade de o roubar.
Não é deste tempo. Não pertence a ninguém.
28
AS COISAS DE NINGUÉM
Levámos meses a juntá-las e, nesse momento, tinham uma morada.
As coisas de ninguém viviam em hibernação forçada.
Generosas, davam-nos segurança.
Como se um dia tivéssemos tido uma casa aonde regressar
e um caminho certo a percorrer
em que antecipávamos armadilhas, subtraindo-as
às dificuldades.
Depois daquele momento começámos a cair. Tropeçávamos
nos recantos por onde nos espreitavam as coisas de ninguém.
Algumas ostentavam o teu nome como um rosto. E foram
os teus olhos a tua boca os teus dentes o teu nariz os teus sinais
as tuas rugas os teus cabelos as tuas feridas até as tuas mãos
que arrancámos das estantes, arrastámos pela rua, atirámos
para uma morada nova.
Tenho ideia de estar sol e de me teres pedido
para não te deixar morrer num dia de sol.
Acalmei-te, na minha marcha pouco convincente
de tombos: dentro do caixote
do lixo, como dos caixões,
nunca ninguém viu raios de luz.
29
AS COISAS LAVADAS
Entre os pássaros, havia sempre roupa lavada. Lençóis
em que se fodia menos do que o desejável.
Naquele dia ias na rua com a camisa por passar, apesar
de te cobrirem o corpo tantas coisas lavadas quanto uma origem:
pele pêlos dentes cabelos, mas sobretudo
desejo e vontade
apenas de desejo. Lavado como frutos por comer,
o teu desejo: um nome completo, um nome
próprio seguido de apelidos. Mãe, pai, filhos a quem o deixar.
Mais tarde soube. Quando passava no meio dos lençóis,
o cheiro a lavado cobria outro
indecifrável, lento. Não era exactamente pecado. Ou apenas isso.
Muito menos sangue ou drama. Era
o medo concreto e exacto de um nome
bordado, branco absolutamente branco.
Assustador
como papel químico encostado ao tempo.
30
AS COISAS QUEIMADAS
Fumava-se muito na casa.
As crianças puxavam do cigarro
enquanto procuravam o teu nome debaixo
da estante debaixo dos escombros.
Na alcatifa, demasiados buracos: antigas cabeças
ardendo lentamente de significado. Porém:
o fogo da casa ardia do lado de dentro interior à casa.
Eram centenas de palavras-fósforos raspadas contra as lombadas
dos livros, palavras queimadas pela inclinação do sol.
Capas por dentro de capas por dentro da casa; por dentro
dos livros, palavras misturadas com as coisas queimadas
[sobreviviam-te,
sobreviviam às chamas: peixes-palavras
por dentro do aquário verde, no topo da estante.
31
AS COISAS DIFÍCEIS
Nada mais definitivo do que terem fechado a casa.
O senhorio esfregava as mãos de contente e, em contraluz,
via-se-lhe o coração gelado. Há lá felicidade maior
do que a de um imóvel desocupado...
O teu nome desceu então às ruas
e não foram precisos assim tantos dias para te ver
na companhia afável de outros sem-abrigo.
(Afinal, a felicidade maior é fazer amigos à transparência
[e na eternidade.)
Deixei de ver-te depois, quando contratámos os fotógrafos.
Avisei: nada de flashes. Queria manter-te perto,
receber de braços subexpostos a tua nova família.
Avisaram: lugar tão escuro não se fotografa
sem luz artificial. Desconheciam:
estavam obrigados a fixar a tua ausência.
Durante três dias tiraram os retratos (ficaram os das molduras
em novas moradas): cada milímetro da casa eternizado
com precisão matemática. Mas a verdade (a nossa verdade)
fazia-se com palavras, e as nossas contas aritméticas
em momento algum deram em alguma coisa,
muito menos em coisas difíceis como um resultado
certo, real.
Talvez por isso, nas fotografias, o teu nome
nem vislumbrá-lo. Nem sequer as sombras dos teus passos,
tão exactos, de lado a lado percorrendo
o corredor; os braços,
com precisão geográfica.
Recusei-me a pagar o serviço. A reclamação seguiu
em teu nome.
34
AS COISAS MAIS DIFÍCEIS
Mascava pastilha elástica
até me doer o maxilar. O desejo: impressionar
o vizinho de baixo. Também ele tinha um aquário.
Era azul e nunca mo mostrou. Eu mascava com fúria
a pastilha elástica – e corria:
o pulmão aberto (um deles, explicaste-me tu),
a barriga a inchar com o vento.
Hoje, seria cancro. Naquele lugar gigante, era apenas
demasiada energia ou outra coisa mais difícil chamada
infância.
As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.
Pouco se pensava no tempo. Nenhuma consciência dele, menos ainda
do modo de contá-lo. Não pela falta de relógio
(o encarnado mostrava os números por debaixo de um arco-íris
[de cinco cores).
Era a falta de: as palavras. Pareciam-se com
o teu nome. O jogo – a guerra de procurá-las,
quanto mais dizê-las, fazia-nos de tempo (na pele, nos ossos).
Invencíveis, as coisas mais difíceis. Sobretudo
nos dias de sol:
com o som audível dos peixes no aquário verde,
a estante prestes a cair.
Dentro da casa, instalava-se a tempestade.
35
AS COISAS FRÁGEIS
Pegava-te no nome como no aquário
verde, quando era ainda cidade de peixes –
bichos de alimento diário e morte mensal,
silenciosa, sem desgosto ou pânico,
indiferente à vida. (As nossas, as deles.)
Hoje caminho, como todas as manhãs, com a tua existência
nas mãos (na cabeça, nos pés), seguro-a como coisa frágil,
quebradiça – coisa morta do dia em que morreste.
Recordo apenas o pássaro. Tinha no nome ruivo
e no bico o som atenuado de uma canção.
36
AS COISAS INAUDÍVEIS
Beethoven. Bach. Compositores colocados lado a lado na estante
por baixo do aquário verde. Sabias pouco de música,
era uma questão de pôr as coisas em ordem.
Da tua falta de ouvido e de talento (para a música)
terá nascido o tom monocórdico e inocente do teu nome.
Se até os pássaros o chamavam de dentro das gaiolas.
Mas era o outro: o nome visível, audível. As coisas inaudíveis
seguiam-se ocultas, frágeis, repetitivas como o som das moscas
encostadas aos cantos das janelas.
Podíamos tê-las libertado. Preferimos deixá-las zumbir em desespero.
Ocasionalmente esmagá-las, se o ruído se começasse a afastar
do teu nome inaudível.
Nunca se abriam as janelas.
As moscas continuavam a entrar.
Lá fora, aguardava-me um castigo:
a condenação de memorizar o tempo, de saber de cor
o número de moscas sobre os teus restos.
37
AS COISAS EM MOVIMENTO
Pré-adolescentes, as coisas em movimento
chegavam depressa demais a todo o lado.
Durante semanas, penduraram-se na árvore, lembrando
a insistência das moscas nos cantos dos vidros.
Era tudo demasiado delas, e a árvore cedia
ao peso que levava a passar a hora de furo na escola.
Se estava entre elas, ou, antes, se as observava, é tão difícil de dizer
como o teu nome. Elas eram cinco coisas em movimento
procurando novas coisas em movimento: o sol a pique ao meio-dia,
os gatos pretos e brancos nas marquises, o homem ejaculando
à janela todas as santas terças-feiras de observação, iniciação.
Naquele tempo, alguém dizia o teu nome esperando a salvação.
40
AS COISAS LENTAS
Fumo demasiado depressa
o meu cigarro apagado.
Os cigarros fumam-se lentamente
ao espelho fixando um único dos nossos rostos.
Pois bem: na casa só nos cacos há reflexos. Os rostos suspendem-se
entre nós e nós, as letras das palavras. Os rostos aguardam-se,
observam-se, ao longe. E não há fumo que os evole.
Talvez por isso: nunca aprendi a acender um cigarro
por ser absolutamente desnecessário aprender a aprender a acender
um cigarro. Na casa onde tu fumavas
cada cigarro era uma letra. De cada vez que o filtro te tocava
os lábios eu perguntava: como te chamas? À superfície
do espelho, o teu vagar respondia-me
até ao esquecimento de nós.
Talvez por isso: tento acender um cigarro. Apago-o antes
que me chegue aos lábios.
Está frio neste lugar. A boca abre-se
como uma coisa lenta em forma de espanto.
41
AS COISAS LIVRES
Havia várias formas de chamar-te.
Chamar-te não era apenas dizer o teu nome.
Muito menos fazer-te virar a cabeça na direcção da casa.
Era conhecer-te o rosto – dedicado, disponível, raro.
As coisas livres ficaram escritas no chão.
42
AS COISAS ESCRITAS
Tenho as coisas escritas
no peito, o teu nome. Nada tem que ver
com o coração, muito menos com sentimentos.
O teu nome está-me escrito nos sinais, sobre a pele.
A tinta, desenhos de círculos castanhos
assinalando lugares.
O meu mapa genético tem uma única localidade.
Dizer o nome dela é chamar-te.
Chamar-te é encontrar a minha morada.
43
AS COISAS EM IMAGENS
Cortam-me o cabelo à tigela.
Sentam-me no banco do jardim
sem flores, só cabos que ligam máquinas
como órgãos: o coração aos pulmões, o estômago ao útero.
Devia ter escrito: «Entre as coisas em palavras e as coisas
em imagens há uma distância longa como um túnel em forma
[de cone.
No vértice, eu, despida do teu nome – coisas, palavras, imagens.»
O vento incomoda as árvores
enquanto procuro o caminho de casa.
44
AS COISAS INANIMADAS
Os meus dedos morrem muitas vezes.
Começa pelas pontas e, de minuto em minuto,
pequenos insectos descem à palma da mão.
Como o exército de um país em guerra,
avisam ser possível – até aceitável – desaprender
o teu nome. Insisto
em escrevê-lo. De minuto em minuto,
os dedos são os meus, os teus,
outros no fecho dos caixões e
mais: aqueles com que fumas
as coisas inanimadas.
Se é isto a morte?
Tenho poucas dúvidas
e ainda a impossibilidade
e o tempo de as anotar.
45
AS COISAS ETERNAS
Quando acordou,
o teu nome ainda estava lá.
Com o dinossauro de Monterroso.
46
AS COISAS DO UNIVERSO
São também feitas de vidro,
mas soprado. As coisas do universo habitam
o espaço frio de um nome redondo. Chamam-lhe
esfera. Nenhuma palavra, nenhuma lembrança a parte.
Ensinou-me o poeta a teoria das cordas. Espreito
à transparência da esfera. Os sons não me dão o entendimento
[das coisas
do universo, apenas do teu nome. Guardo na boca
o gelo da língua
ao pronunciá-lo.
Assim me calo.
47
AS COISAS INQUEBRÁVEIS
Não me lembro de outras
que não as palavras.
48
ÍNDICE
Intróito: poema em jeito de agradecimento
As coisas
As coisas recuperadas
As coisas irreparáveis
As coisas diferentes
As coisas semelhantes
As coisas materiais
As coisas do corpo
As coisas sobreviventes
As coisas nas pontas dos dedos
As coisas digitais
As coisas remendadas
As coisas partidas
As coisas insignificantes
As coisas ocas
As coisas conhecidas
As coisas de ninguém
As coisas lavadas
As coisas queimadas
As coisas difíceis
As coisas mais difíceis
As coisas frágeis
As coisas inaudíveis
As coisas em movimento
As coisas lentas
As coisas livres
As coisas escritas
As coisas em imagens
As coisas inanimadas
As coisas eternas
As coisas do universo
As coisas inquebráveis
7
8
9
10
11
14
15
16
17
20
21
22
23
24
25
28
29
30
31
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
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